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A justa causa nos crimes de preconceito contra pessoas com deficiência

A justa causa nos crimes de preconceito contra pessoas com deficiência

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Há 24 anos, certas condutas discriminatórias contra as pessoas com deficiência estão criminalizadas, mas os tipos penais ainda são pouco conhecidos. Esse artigo aborda a Lei 7.853, cujo propósito de forçar a inclusão parece ter sido atingido. Atualmente as eventuais discriminações precisam ser justificadas por argumentos juridicamente lícitos e politicamente corretos.

Resumo: A partir de uma breve exposição sobre o que é o preconceito, desenvolvemos uma discussão sobre os crimes previstos no art. 8º da Lei 7853 de 1989, os quais pretendem preservar, entre outros, os direitos ao acesso à educação, ao trabalho, e à saúde das pessoas com deficiência. Após a exposição de cada um dos tipos penais previstos na mencionada lei, passamos à abordagem dos elementos objetivos e subjetivos, do bem jurídico tutelado e dos demais aspectos inerentes. Em conclusão, são verificados os aspectos mais problemáticos da aplicabilidade dos dispositivos.

Palavras Chave: direito penal, crimes, pessoas com deficiência, justa causa.


1 Nota Introdutória

O Direito Penal, em relação às pessoas com deficiência, possui pelo menos duas funções importantes. A primeira consiste em prever sanções aos que cometem crimes apenas em razão da deficiência da vítima, ou seja, a única razão para que o agente pratique o fato típico consubstancia-se na condição de portador de deficiência do sujeito passivo e a segunda em proteger bens jurídicos expostos a riscos maiores em razão da condição de deficiente do ofendido. Em outra oportunidade, trataremos do segundo caso. Aqui, pretendemos fazer uma análise dos tipos previstos no art. 8º da Lei 7853 de 1989.

Há 24 anos certas condutas discriminatórias contra as pessoas com deficiência estão criminalizadas. Os tipos previstos na Lei 7853, de 24 de outubro de 1989 ainda são pouco conhecidos, inclusive de boa parte dos doutrinadores e operadores do Direito. Muitos não comentam, em suas obras, sobre os aspectos dos tipos ali contidos, outros fazem menções superficiais.

A contribuição do presente trabalho está em lembrar que os tipos existem e, de certa forma, apontar o verdadeiro desuso em que sempre estiveram em decorrência da própria atitude legislativa de criar um elemento de compreensão difícil e de prova quase impossível. Neste sentido, essas linhas buscarão expor os aspectos principais relativos ao tema, sem a preocupação em apontar eventuais soluções práticas, mas apenas detectar a existência do problema.


2 Preconceito

Indiscutivelmente, o mais sério estigma da deficiência é o rótulo no qual ela se constitui, ocorrendo mesmo, a sobreposição desta ao ser humano, que praticamente desaparece. Com isto, o portador de deficiência passa a ter, em inúmeras situações, seu nome desconhecido, sendo tratado pela espécie de sua deficiência, ou seja, referências como “aquele ceguinho”, “o paralítico”, “aquele maluco”, e “o surdo”, são pronunciadas em substituição ao nome civil.

Os objetivos das pessoas com deficiência que não aceitam o assistencialismo consistem em receber tratamento justo, que se materialize na mais fiel tradução prática do princípio da igualdade, o qual pode ser expresso pela afirmativa de que deve-se “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”. Neste mesmo sentido, dispõe o Art. 24, inciso XIV da Constituição da República Federativa do Brasil:

“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

XIV – proteção e integração social das pessoas com deficiência; “

Visando garantir e criar instrumentos para o exercício de direitos já positivados tanto na Constituição Federal quanto em outros tantos diplomas legais, foi editada a Lei 7853 de 24 de outubro de 1989 que “Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORD), institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos destas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes e dá outras providências”.

Para que possamos desenvolver um estudo claro do Art. 8º desta lei, é indispensável que façamos uma discussão prévia do que vem a ser atitude preconceituosa. Isto porque a Lei em análise apresenta expressões abertas, as quais não se encontram definidas nem mesmo no decreto que a regulamenta, qual seja, o decreto 3298 de 20 de dezembro de 1999.

Como trata-se de vocábulo sobre o qual existe uma infindável discussão, sobretudo entre os psicólogos e sociólogos, utilizaremos, para o termo preconceito, as definições abaixo:

“Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos, ideia preconcebida; Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste;“Superstição, crendice, prejuízo. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões etc.”1.

Por todas as definições, depreende-se que o preconceito contra as pessoas com eficiência foi um dos fatores que durante muitos séculos as impediu de galgar espaço e respeito na sociedade. Assim, o preconceito pode resultar do desconhecimento, da indiferença ou da rejeição.

Avaliando os bens jurídicos protegidos pela lei 7853/89, torna-se mais fácil compreender a tipificação de certas condutas. Na declaração Universal dos Direitos Humanos afirma-se o direito de todas as pessoas, sem qualquer distinção, ao matrimônio, à propriedade, o igual acesso aos serviços públicos, à seguridade social e à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Desta forma, buscando fazer valer acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, bem como inúmeros dispositivos constitucionais, o preconceito foi criminalizado:

Art. 8º Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa:

I recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta;

II obstar, sem justa causa, o acesso de alguém a qualquer cargo público, por motivos derivados de sua deficiência;

III negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de sua deficiência, emprego ou trabalho;

IV recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico?hospitalar e ambulatorial, quando possível, à pessoa portadora de deficiência;

V deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida na ação civil a que alude esta Lei;

VI recusar, retardar ou omitir dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil objeto desta Lei, quando requisitados pelo Ministério Público.

A criminalização de certas atitudes tem, portanto o escopo de impedir que as pessoas com deficiência sejam privadas de direitos, constitucionalmente garantidos, apenas pela forma preconceituosa de agir de grande parte dos responsáveis por assegurar o exercício destes direitos.


3 Preconceito na Educação

O Artigo 8º da lei 7853/89 relaciona os crimes puníveis com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, estando o primeiro deles disposto no inciso I: “recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta.”

O dispositivo acima visa proteger o direito da pessoa com deficiência ingressar em estabelecimento de ensino, público ou privado, e nele permanecer sem sofrer discriminação por motivo de sua deficiência. Ao reconhecermos o bem jurídico tutelado pelo tipo, podemos compreender tratar-se de crime próprio, mas não de mão própria, visto que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa com poderes para praticar a conduta (um diretor de escola ou um chefe de secretaria, por exemplo). Considerando que este crime pode ser praticado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, nada obsta a ocorrência de concurso de agentes, aplicando-se a regra do Art. 29 do Código Penal.

Convém esclarecer que “Os crimes de mão própria (ou de atuação pessoal) distinguem-se dos delitos próprios porque estes são suscetíveis de ser cometidos por um número limitado de pessoas, que podem, no entanto, valer-se de outras para executá-los, enquanto nos delitos de mão própria – embora passíveis de serem cometidos por qualquer pessoa, – ninguém os pratica por intermédio de outrem.”2. Como o sujeito passivo somente pode ser pessoa portadora de deficiência, pode-se afirmar que também este, é próprio.

As modalidades de execução constituem-se em recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar. Recusar significa negar-se diretamente em permitir ou efetuar a matrícula da pessoa com deficiência. O ato de suspender ocorre após a admissão do aluno, quando o agente impede que o educando freqüente as aulas em razão de sua deficiência. Procrastinar consiste na utilização de delongas e sucessivos adiamentos, de maneira pérfida para evitar o ingresso do portador de deficiência no estabelecimento, impedindo que ele freqüente as aulas neste espaço de tempo. “Cancelar e fazer cessar a inscrição vêm a ser modalidades equivalentes; a primeira é ato formal de rever a matrícula, a inscrição, antes deferida, tornando-a sem efeito; a segunda consiste em obter-se o mesmo desiderato, mas não de forma direta, mas insidiosa, sem clara definição, oficial, do estabelecimento de ensino.”3 A modalidade fazer cessar difere daquela de procrastinar, visto que na primeira, a matrícula já está efetivada e alguém, pelo estabelecimento, impede, de fato que o deficiente estude no estabelecimento, enquanto que a primeira dá-se antes que seja concretizada a inscrição.

O tipo penal aqui estudado vem também com a finalidade de garantir a observância do que está previsto no Art. 2º, inciso I da Lei 7853/89:

“Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem?estar pessoal, social e econômico.

Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos desta Lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:

I na área da educação:

a) a inclusão, no sistema educacional, da Educação Especial como modalidade educativa que abranja a educação precoce, a pré?escolar, as de 1º e 2º graus, a supletiva, a habilitação e reabilitação profissionais, com currículos, etapas e exigências de diplomação próprios;

b) a inserção, no referido sistema educacional, das escolas especiais, privadas e públicas;

e) o acesso de alunos portadores de deficiência aos benefícios conferidos aos demais educandos, inclusive material escolar, merenda escolar e bolsas de estudo; “

O elemento justa causa vem a ser o motivo de todas as dificuldades na aplicação da norma contida no inciso I do Art. 8º. Motivos que poderiam constituir-se em justa causa para a recusa de um aluno, seria a falta de especialização dos professores ou a não adaptação das edificações do estabelecimento às necessidades do deficiente. No primeiro caso, poucos são os educandários que dispõem de educadores com algum tipo de especialização para o trabalho com pessoas com deficiência, por outro lado, a grande maioria das pessoas com deficiência que têm oportunidade de freqüentar os estabelecimentos de ensino, o fazem na rede regular, valendo-se de seus próprios esforços, e vencendo as dificuldades. No segundo caso, a instituição de ensino deve oferecer as condições conforme a espécie de deficiência do educando. Assim, por exemplo, se um usuário de cadeira de rodas deseja estudar em uma escola na qual as salas de aula somente são acessíveis através de escadas, a instituição de ensino deve receber o deficiente e acomodar sua turma em Local cuja necessidade de utilização de escadas não exista. Esta é a verdadeira cidadania. O conceito de justa causa é extremamente aberto e permite inúmeras definições e o que se faz na prática é uma análise caso a caso, porém, sempre que esta constituir-se na incompatibilidade da deficiência com a presença no estabelecimento precisa ser atestada por mais de um médico especialista que deve ainda indicar todos os pontos de incompatibilidade, ficando a justa causa caracterizada se não há possibilidade de solucioná-la, havendo, não se pode admitir justa causa. 4

Evidentemente, há situações nas quais a justa causa é indiscutível, cabendo ao portador de deficiência ter o bom senso e reconhecer. Por exemplo, o cego que deseja ingressar em escolas de tiro, e o paraplégico que deseja freqüentar escolas de futebol precisam ter esta capacidade de reconhecer suas limitações sob pena de ter sua matrícula negada com justa causa. Havendo dúvidas, sejam elas de qualquer natureza, deve ser permitido ao portador de deficiência fazer a tentativa, pois ninguém melhor que o próprio indivíduo para conhecer suas limitações e habilidades. Factualmente, em razão desta expressão, o tipo dificilmente é aplicado face a dificuldade de caracterizar o crime.


4 Preconceito no Acesso a Cargo Público

O inciso II do mesmo Art.8º, afirma ser crime o ato de obstar, sem justa causa, o acesso de alguém a qualquer cargo público, por motivos derivados de sua deficiência. Este tipo penal vem com a finalidade de ser a forma de coerção contra as pretensões existentes no sentido de não se aplicar o que está disposto no Art. 2º, Parágrafo único, inciso III, alínea b da própria Lei 7853/89. 5

No tipo penal em análise, a única modalidade executiva consiste em obstar, sem justa causa, o que equivale a impedir ou causar embaraços para alguém ter acesso a cargo público única e exclusivamente em razão da deficiência da pessoa. Daí, conclui-se que é fundamental que o agente conheça a deficiência da vítima, pois o tipo só se configura com o dolo direto de discriminar por motivo derivado de deficiência, sendo incabíveis o dolo eventual ou a culpa. Portanto, o bem jurídico aqui protegido é o direito da pessoa com deficiência ter acesso aos cargos públicos sem discriminação.

Mestieri afirma que “A expressão sem justa causa está aí no sentido de se excepcionar da tipicidade os casos de incompatibilidade fática, do deficiente, com o cargo público a ser preenchido; ou seja, incri­mina-se aqui a discriminação, o preconceito, propulsores da exclusão, do obstar, sem qualquer razão preponderante.”6 Todavia, a questão não é tão simples conforme parece, basta sabermos que em praticamente todos os concursos públicos a administração permite que a pessoa efetue sua inscrição na condição de deficiente, e realize as provas nesta mesma condição. Quando aprovado, é que o deficiente tem verificada a compatibilidade de sua deficiência com as atribuições do cargo.

Dependendo da espécie de deficiência, seu portador enfrenta diversas dificuldades para estudar e deslocar-se para realizar as provas; quando é aprovado, tem seu acesso ao cargo negado em função de sua deficiência. Seria mais condizente com o princípio da razoabilidade que a avaliação sobre a compatibilidade fosse feita antes da inscrição do deficiente.

Algumas dúvidas que devem ser esclarecidas são: o que se entende por incompatibilidade? Esta incompatibilidade existe entre a deficiência do indivíduo e as funções inerentes ao cargo ou entre a deficiência do indivíduo e os instrumentos fornecidos pelo poder público para o exercício das funções inerentes ao cargo?

Como resposta a primeira pergunta, podemos afirmar que somente existe incompatibilidade nas situações em que o exercício do cargo exija do deficiente, habilidades suprimidas pela própria deficiência, ou seja, o que gera a incompatibilidade para o exercício das funções inerentes ao cargo, é a incapacidade, definida no capítulo I deste trabalho. Isto posto, podemos afirmar que são incompatíveis, dentre outras, a cegueira total com o cargo de policial militar e a surdez com as funções inerentes ao cargo de telefonista.

Havendo incompatibilidade entre a deficiência do indivíduo e os instrumentos fornecidos pelo Estado para o desempenho das funções inerentes ao cargo, não há incompatibilidade e sim, impedimento, cabendo ao Estado adaptar os instrumentos às necessidades do deficiente, sob pena de não se cumprir o disposto no Art. 2º, parágrafo único, inciso III, alíneas b e c da Lei em estudo.

Considerando que toda pessoa, ao ingressar no serviço público, submete-se ao estágio probatório ou a contrato de experiência previstos em lei, sempre que houver dúvidas não sanáveis por médicos especialistas quanto a sua origem, (incapacidade ou impedimento), deve ser permitido ao portador de deficiência submeter-se ao estágio, devendo este ser aprovado ou reprovado de acordo com os critérios legais, conforme se faz com qualquer pessoa e assim, na prática, será aferida a compatibilidade da deficiência com as atribuições do cargo.

Como não se sabe ao certo o que é justa causa, a aplicabilidade deste dispositivo legal fica extremamente prejudicada, pois diversos fatos são alegados e aceitos como tal.


5 Preconceito no Acesso a Emprego ou Trabalho

Conforme disposto no Art. 8º, inciso III, também constitui crime, negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de sua deficiência, emprego ou trabalho. Aqui, também, o fundamento para a tipificação da conduta encontra-se no Art. 2º, Parágrafo Único, Inciso III, alíneas a e b da Lei em Estudo. Conforme ocorreu no item anterior, aqui, a tipificação tem por finalidade sancionar criminalmente o preconceito e a discriminação da pessoa com deficiência na distribuição de oportunidades de emprego ou trabalho.

As condutas tendentes a discriminar, no tocante ao aproveitamento profissional do portador de deficiência são as mesmas, a diferença pode ser encontrada nas espécies contidas na disposição legal. Por emprego podemos entender a situação na qual o empregado presta serviço subordinado, não eventual, pessoal e assalariado a empregador determinado. Por trabalho, ficam entendidas as demais prestações de serviços.

O bem jurídico protegido constitui-se no direito da pessoa com deficiência ao trabalho e ao emprego. A modalidade executiva é compreendida pelo ato de negar sem justa causa, ou seja, não conceder o emprego ou trabalho a alguém apenas em razão de sua deficiência. Diferentemente do crime previsto no inciso II, aqui, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, mantida a obrigatoriedade de ser o sujeito passivo, pessoa portadora de deficiência.

A intenção de discriminar é fundamental, sendo cabível apenas o dolo direto como elemento subjetivo para que se configure o delito, não há dolo eventual nem forma culposa. Convém ainda elucidar que a Legislação brasileira não obriga a que o deficiente declare ao ofertante do emprego ou do trabalho, sua condição de portador de deficiência, salvo se esta for notória. Com arrimo no disposto no Art. 5º do inciso II da Constituição Federal, as instituições de Apoio às pessoas com deficiência têm por prática deixar que o próprio deficiente decida–se quanto a este fato, porém, sendo-lhe a vaga negada, mesmo que por motivo da deficiência que porta, será extremamente difícil caracterizar o tipo penal.

A expressão “justa causa” volta a ser o maior problema para a caracterização do ilícito penal. Em inúmeras ocasiões, a pessoa portadora de deficiência, para receber oportunidades de emprego ou trabalho, necessita que a empresa faça algumas adaptações. Como não interessa para grande parte do empresariado, ou mesmo dos profissionais liberais, ver seus custos crescerem, o ofertante nega o emprego a portadores de determinada espécie de deficiência e concede a pessoa portadora de espécie diversa daquela. Para uma pessoa totalmente cega prestar serviços como operador de telemarketing em um call center, por exemplo, basta que o empregador instale softwares com síntese de voz em um dos computadores, todavia, é muito mais cômodo negar a oportunidade ao cego e contratar uma pessoa amputada de um dos membros inferiores, assim, cumpre-se a Lei 8213/91 e não se despende capital. Neste caso, fica evidente que a negativa de emprego ou trabalho é por motivo derivado da deficiência do indivíduo, porém, como provar? A caracterização do tipo penal aqui, também, é extremamente árdua, contudo, não podemos admitir os impedimentos como justa causa para a negativa de emprego ou trabalho à pessoa com deficiência sob pena de não se cumprirem os objetivos de alcançar uma sociedade mais justa e igualitária no tocante a oportunidades. Admitindo o Estado, a prática acima descrita como justa causa, permitirá a geração de maiores desigualdades entre os próprios portadores de deficiência, concedendo-se maior número de oportunidades às pessoas cuja deficiência não requer adaptação e cada vez menos a quem não tem a mesma sorte. Esta conduta destoa do disposto no Art. 2º, Parágrafo Único, inciso III, Alíneas b e c da Lei 7853/89:

Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos desta Lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:

III NA ÁREA DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL E DO TRABALHO:

b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial, destinados às pessoas com deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;

c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas com deficiência;


6 Preconceito no Acesso à Saúde

O delito que passamos a estudar decorre do Art. 2º, inciso II, o qual em suas alíneas elenca direitos das pessoas com deficiência no que se refere à saúde. A alínea c, especialmente, apresenta particular ligação com o tipo a estudarmos. Visa garantir o acesso das pessoas com deficiência aos estabelecimentos de saúde públicos e privados, e seu adequado tratamento neles, sob normas técnicas e padrões de conduta apropriados.

Pelo Art. 8º, inciso IV, constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro), anos e multa, recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial, quando possível, à pessoa portadora de deficiência.

As formas pelas quais o delito pode ser praticado consistem em recusar, retardar, ou dificultar a prestação de assistência médico-hospitalar a portador de deficiência em razão desta. Recusar é o ato de negar-se terminantemente a cumprir com o dever imposto por lei, não é simplesmente um comportamento omissivo, mas desobediência a preceitos legais atinentes à função do agente e dos quais ele deve ter pleno conhecimento. Retardar significa protelar, utilizar-se de delongas desnecessárias no cumprimento do dever jurídico de prestar assistência ao deficiente, ou seja, retarda sem necessidade, quem procrastina quando já estão presentes as mínimas condições de realização do atendimento exigido pelo caso concreto. Deixar de prestar assistência constitui-se na modalidade pela qual o agente comete o crime ao omitir-se de executar o dever de prestar assistência, considerando para tal atitude negativa, unicamente a deficiência da vítima.

Se o agente desconhece a condição de portador de deficiência da vítima, não se pode imputar a ele a prática do delito de Preconceito no Acesso à Saúde, apenas a de omissão de socorro, prevista no Art. 136 do Código penal. “A prestação de assistência incumbe àquele sujeito determinado que no estabelecimento hospitalar está encarregado de tal serviço. Trata-se, pois, de crime omissivo em que o sujeito é especializado, determinado, próprio. Ainda assim é possível o concurso de agentes, uma vez que mais de um agente, obrigado a prestar a assistência a deficiente venha a omi­tir-se.”7

A impossibilidade no cumprimento do dever legal inviabiliza a caracterização do tipo penal, devendo se examinar, no caso concreto, as circunstâncias em que ocorrem os fatos, tais como as condições técnicas, e materiais tanto do agente quanto do estabelecimento.

Assim, podemos afirmar que o elemento subjetivo constitui-se com o dolo direto do agente em recusar, retardar ou dificultar o acesso da pessoa para atendimento médico ou ambulatorial, exclusivamente em razão de sua deficiência.

Em todos os tipos até aqui estudados, observa-se que para a configuração dos delitos, é premente que a conduta seja levada a efeito por motivo exclusivamente derivado da deficiência da vítima. Esta condição, que é extremamente subjetiva do agente, dificulta a caracterização dos crimes, isto é, não havendo confissão do agente, a prova de que houve discriminação incumbe ao autor da Ação Penal.

Comumente, pessoas com deficiência (cegos, surdos, ou paraplégicos), procuram postos de saúde, pois apresentam quadro clínico que requer cuidados, (normalmente, febre, resfriado e dores de cabeça). Muitos não conseguem atendimento, uma vez que alega-se que o estabelecimento não tem especialização para tratar de pessoas com deficiência, como se febre, resfriado e dores de cabeça fossem doenças específicas de pessoas com deficiência. Juridicamente, esta atitude é criminosa, o atendimento é negado única e exclusivamente em razão da deficiência das pessoas, porém, a maior dificuldade está em comprovar este fato.


7 Descumprimento de Ordem Judicial em Ação Civil Pública

Quando qualquer dos legitimados, pretendendo propor a Ação Civil Pública, requer, às autoridades competentes, certidões ou informações que julgue necessárias para instrução da peça inicial, e as têm negadas, por razões não admitidas em lei ou sem qualquer explicação, a ação pode ser proposta sem estes documentos, cabendo ao juiz requisitá-las, desde que estejam presentes as condições estabelecidas no Art. 3º, Parágrafo 4º da Lei 7853/89.

Pelo inciso V do Art. 8º da Lei Especial, constitui crime deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, execução de ordem judicial expedida na ação civil aludida no bojo do texto legal. Decompondo as modalidades executivas, observa-se que deixar de cumprir refere-se a desobedecer sem qualquer justificativa, portanto, consiste na omissão que por si só, é suficiente para caracterizar o delito, desde que seja certo o recebimento da ordem judicial. Retardar é a modalidade pela qual o agente protela deliberada e desnecessariamente, com a finalidade de tornar mais lenta a resposta. Frustrar é valer-se de qualquer meio tendente a impedir ou evitar que se cumpra a determinação judicial. João Mestieri ensina que “O crime é próprio, sendo autora a pessoa obrigada a acatar a ordem judicial, mas o concurso de agentes é admissível, uma vez que terceiro, conscientemente, venha a participar da ação delituosa. A tentativa é, em tese, reconhecível, pois o processo executivo é fracionável.”8

O justo motivo ocorre sempre que fatos alheios à vontade do responsável pelo cumprimento da ordem o impedem de obedecê-la. O tipo subjetivo cabível é o dolo direto, consistente na vontade de deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida na Ação Civil Pública.


8 Desacato a Órgão do Ministério Público

Em 1978, a professora Ada Pelegrine Grinover publicou a obra "A Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos". Depois desta publicação, a ação Civil Pública foi estruturada por meio de projetos de lei que vieram a se constituir na Lei 7347/85, a qual passou a ser um dos fundamentos de atuação processual no sentido de se evitar e reparar danos ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Com a entrada em vigor da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, bem como do Código de defesa do Consumidor, o Ministério Público passou a ter as atribuições de promover a ação e o inquérito civil públicos. Somando-se a isto, foi promulgada a Lei 8884/94, que introduziu no bojo do pedido da ação civil pública, os danos de natureza moral. A Lei 7853/89 inclui na abrangência da Ação Civil Pública os interesses coletivos e difusos relativos às pessoas com deficiência, conforme previsto no Caput de seu Art. 3º.

A norma legal contida no inciso VI do Art. 8º visa sancionar comportamentos assumidos no sentido de causar óbices na obtenção de dados técnicos indispensáveis à propositura da Ação Civil Pública objeto da Lei 7853/89, quando requisitados pelo Ministério Público. Encontra-se diretamente relacionado com o que vem preceituado no Art. 6º da Mesma Lei, tendo como finalidade precípua, assegurar, por meio de norma penal, o exercício das funções atribuídas ao órgão do Ministério Público na propositura da referida ação.

As modalidades pelas quais se executa o crime encontram-se definidas em recusar, retardar ou omitir. As duas primeiras guardam o mesmo valor e significado já expostos no item anterior, inclusive quanto aos objetivos. Omitir, refere-se a deixar de apresentar dados técnicos, passando a conotação de que estes inexistem. “A modalidade permite o surgimento de concurso de delitos, com a falsidade; contudo, sendo esta a única forma de se expressar à omissão, tipicamente exigida, há de se considerar como absorvida pela infração à lei especial.”

É certo que a recusa, o retardamento ou a omissão deve ser de dados técnicos, indispensáveis para a propositura da ação Civil Pública, pois é este o elemento normativo do tipo. O tipo subjetivo constitui-se do dolo direto, ou seja, da vontade livre e consciente de recusar ou retardar a apresentação dos dados indispensáveis a propositura da ação. A última das modalidades, isto é, omitir, teoricamente admite a forma culposa, visto que o responsável pelo fornecimento dos dados pode agir com negligência, imprudência ou imperícia e assim, mesmo sem ter a intenção, deixar de apresentar todos os dados solicitados. Quanto ao dolo eventual, não se vislumbra qualquer possibilidade de sua ocorrência.


9 Conclusão

Os tipos Penais aqui analisados resultaram da tentativa do Poder Legislativo e do desejo das pessoas com deficiência de uma sociedade inclusiva. A sociedade inclusiva foi assim pensada sob fundamentos cuja opção é discutível: optou-se pelos comandos inclusivos rígidos para que as pessoas com deficiência passassem a receber tratamento igualitário em suas demandas por direitos, tais como trabalho, educação e saúde.

O Estado, através da Lei penal disseminou a crença de que a violação aos direitos protegidos pelo art. 8º da Lei 7853 de 1989 resultaria em prisão para os autores da discriminação. Com isso, as escolas passaram a buscar meios justos para recusar estudantes deficientes, as empresas continuaram a não empregar trabalhadores com deficiência sob argumentos juridicamente lícitos e os hospitais que recusam pacientes com deficiência continuam a recusá-los porque na saúde a tarefa parece ser mais fácil, sobretudo quando se inclui na motivação argumentos relativos às especialidades médicas.

Não deixa de ser uma verdade que as pessoas com deficiência passaram a contar com dois importantes instrumentos em sua busca por oportunidades de acesso à educação, ao trabalho e à saúde: o primeiro são os comandos inclusivos rígidos do art. 8º da Lei 7.853 de 1989. O segundo é o medo que esses comando geram nos autores das discriminações. Disto resulta que a Lei e o medo têm produzido coação e esta coação tem feito uma falsa inclusão. Seja como for, casos em que tenham sido aplicados os dispositivos criminais da Lei 7853 de 1989 são raríssimos. O propósito da Lei, que era forçar a inclusão parece ter sido atingido. Atualmente as discriminações precisam ser explicadas por argumentos juridicamente lícitos e politicamente corretos.


Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Josemar Figueiredo. Depois da Lei de Cotas: Um Estudo dos Atuais Resultados da Política de Inclusão das Pessoas com Deficiência no Mercado de Trabalho. São Paulo: Livre Expressão Editora, 2013).

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 1966.

MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito Penal.: Parte Geral. 17. ed.São Paulo: Atlas, 2000.

STJ. Superior Tribunal de Justiça. Professora que recusou na classe segunda aluna com necessidades especiais não cometeu crime . Disponível em <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=104010> Acesso em 22 out. 2013.

TEPERINO, Maria Paula (Org.). Comentários à Legislação Federal Aplicável às Pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: Forense, 2003.


Notas

1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. P. 1380.

2 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1966, Vol. 3, P. 22.

3 TEPERINO, Maria Paula. (Org.) Comentários à Legislação Federal Aplicável às Pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: Forense, 2003. P. 215.

4 Ao julgar HC 1022478º, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou que não houve ilícito penal na conduta de uma professora do ensino fundamental que se recusou a receber uma criança com deficiência auditiva em sua classe. O episódio ocorreu na Escola Municipal Josafá Machado, no Rio Grande do Norte, no ano de 2004. A aluna foi impedida de frequentar a classe sob a alegação de que já havia outra criança com necessidades especiais na turma e houve a recomendação de que os pais buscassem outra turma junto à mesma escola. O argumento da professora foi o de que não seria possível conduzir os trabalhos de forma regular com a presença da segunda criança com necessidades especiais na turma.

5 Sobre o tema, recomendamos ainda ao leitor a consulta à nossa obra: Depois da Lei de Cotas: Um estudo dos atuais resultados da Política de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. São Paulo: Livre Expressão Editora, 2013.

6 TEPERINO, Maria Paula. (Org.) Comentários à Legislação Federal Aplicável às Pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: Forense, 2003, P.. 215.

7 ibid. p. 18 P. 218.

8 IBID P. 221.


Autor

  • Josemar Figueiredo Araújo

    Josemar Figueiredo Araújo

    Doutorando e Mestre em Ciências jurídicas e Sociais e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Bacharel em Direito pela Faculdade da Cidade. Professor da Universidade Veiga de Almeida (UVA) e do Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro (UniverCidade). É advogado com atuação destacada para a defesa dos direitos humanos.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Josemar Figueiredo. A justa causa nos crimes de preconceito contra pessoas com deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3941, 16 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27759. Acesso em: 26 abr. 2024.