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Liberdade sob o enfoque do Estado de Natureza e a Constituição Federal de 1988

Liberdade sob o enfoque do Estado de Natureza e a Constituição Federal de 1988

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A liberdade em seu enfoque Jus-Filosófico, sob a égide do Estado de natureza, contrato social, e a analise se o contrato social permanece ou não em vigor, bem como de que maneira a Legislação Pátria esta correlata a este Contrato Social.

           

Sumário.

I- Introdução.

II- Do pacto social.

III- Liberdade.

IV- Estado Democrático de Direito.

V- Prisão preventiva art. 312 do Código de Processo Penal.

VI- A gravidade em abstrato do crime e a necessidade de apontamento concreto.

VII- A prisão como última ratio do processo penal.

VIII- Conclusão.

IX- Bibliografia

        I.        Introdução.

O presente trabalho visa abordar um dos bens jurídicos mais importantes tutelados pelo Estado: a liberdade.

O presente assunto é de indubitável relevância e será abordado, embora superficialmente, à luz da filosofia, sociologia e do direito. Passando primeiramente pelos contratualistas Rousseau e Hobbes, traremos a tona os primórdios do conceito de liberdade.

Adentraremos em um segundo momento no contrato social, que se trata da alienação da liberdade “plena”, sem freios, para a liberdade controlada e mitigada por um terceiro imparcial dotado de poderes de punição, que pune todos que contrariam “as cláusulas do contrato”. Porém, todo contrato há no mínimo duas partes e todas as partes devem ter “ganhos e perdas”.

Com esta explanação do tema liberdade sob o enfoque filosófico, poderemos com mais segurança tratar do assunto na perspectiva jurídica.

É evidente que se trata de um assunto de inesgotável discussão, de maneira que não será possível o exaurir plenamente, principalmente por não ser esta a finalidade do presente trabalho.

Traremos à baila, o caráter de subsidiariedade da privação de liberdade, no enfoque da presunção de inocência, consolidado na Carta da República de 1988, explicitando de forma sucinta a correlação entre o pacto social e a liberdade.

Surge com esse estudo o seguinte questionamento: o Estado ainda está legitimado a permanecer punindo os indivíduos, tendo em vista, que descumpre a sua parte no pacto social, e ainda delega este ônus a sociedade?

As evidências nos levam a crer, que o Estado perdendo a sua força inicial e não conseguindo mais proteger a sociedade como deveria, tem usurpado deste poder, utilizando-o de forma desmedida e desproporcional, desarmônico a finalidade pelo qual fora instituído.

Ao perder este controle social, o Estado utiliza do seu poder de punição e privação da liberdade em desrespeito à Constituição Federal 1988, que lhe serve como norte e delimitação do alcance de seus atos.

Esta atitude faz com que todos se sintam novamente no Estado Natureza narrado pelos contratualistas, sendo o retorno do caos, da insegurança da própria vida, da família, propriedade privada, honra e liberdade.

A importância dessa abordagem pauta-se no seguinte ponto: “Os subordinados que descumprem com sua parte no contrato, são penalizados pelo Estado, e quando o próprio Estado não cumpre com sua parte no contrato? Quais são as consequências?”.

       II.        Do pacto social.

O conceito de liberdade não pode ser abordado, sem antes analisa-lo, em sua forma genuína.

Jean Jacques Rousseau abordou o assunto com muita propriedade, sendo considerada a sua obra “Do Contrato Social um legado para todas as gerações.

É importante analisar os contratualistas, pois por meio da abstração conseguem explicar, ou no mínimo nos levar a pensar, o quão importante é este significado de liberdade pós-pacto social.

Em artigo extraído da internet, temos a interessante comparação no que tange aos conceitos de Estado de Natureza para Hobbes e Rousseau, vejamos:

“Para Hobbes o homem era egoísta, vivia isolado e vivia para satisfazer seus próprios interesses, por esta razão a desordem imperava, não existiam regras de moral nem ética, daí surge a frase o homem é o lobo do homem. Segundo Hobbes, não seria possível a sobrevivência da humanidade sem a existência de regras, por esta razão surge a sociedade civil. Contrariando a visão de HobbesRousseau afirmava que no Estado de Natureza o homem era bom, vivia em harmonia com os demais, para ele o Estado de natureza não é um estado de guerra, no entanto com o advento da propriedade privada passou a haver conflitos entre os Homens e por esta razão houve a necessidade de se estabelecer um contrato social, surgindo desta forma não só a sociedade civil, mas também o Estado.” (GRIFOS). (SILVA, 2010).

São notórias ou quase proféticas as ideias levantadas por eles, pois seja na visão de Hobbes, onde o homem por não ter limites se utiliza do uso da força para satisfazer seus próprios interesses, ou na visão de Rousseau, onde o homem vivia em harmonia, até que a propriedade privada suscitou conflitos entre os homens, os levando ao estágio de caos descrito por Hobbes, há uma contemporaneidade no que os dois disseram, mediante a realidade em que vivemos.

A priori as ideias soam divergentes, porém se completam ao mesmo tempo, tendo em vista que nos dois pensamentos, podemos notar a concretude e realidade com que eles se materializam em nossa atual conjuntura.

O Estado perdeu o controle social há muito tempo, e o afã exacerbado por bens materiais elevou a criminalidade a estágios avassaladores.

Ao que parece, o monstro do Leviatã já não tem mais o mesmo poder de intimidação que possuía, nos levando a crer que a sociedade se encaminha aos seus primórdios naturais.

Rousseau descreve os motivos que ensejaram o homem a “pactuar” para melhor assegurar sua liberdade, quando diz:

“Suponho que os homens que chegam a este ponto, em que os obstáculos que impedem sua conservação no estado de natureza, levam, por sua resistência, para as forças que cada individuo pode empregar para se manter nesse estado. (...) Encontrar uma forma de associação, que defenda e proteja com toda força comum a pessoa e seus bens de cada associado e pelo qual cada um se uniria a todos, obedecendo, entretanto só a si mesmo e permanecendo tão livre quanto antes. Tal é o problema fundamental ao qual o contrato social fornece a solução. (...) Cada um de nos reúne sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e nos recebemos num corpo cada membro, como parte indivisível do todo. (Grifos)” (Rousseau).

É interessantíssimo este conceito de liberdade de Rousseau, pois numa visão de senso comum, liberdade esta ligada a fazer tudo o que quer, enquanto neste conceito extraímos que, mediante a realidade anterior ao pacto social, a liberdade outorgada foi justamente o meio empregado para verdadeiramente serem livres.

No contexto atual, observamos que o pacto social permanece para o homem, uma vez que ele ainda esta sujeito a ser punido, quando sai do que o “corpo social” definiu. O Estado ainda permanece com seu poder de punir e encarcerar, “a todo vapor”, embora, não esteja cumprindo com sua parte no contrato.

É como nossos pais ou avós costumavam nos dizer na juventude “faça o que eu mando, não faça o que faço...”.

Apenas como forma de elucidar o assunto, sem adentrarmos no mérito e muito menos no contexto da citação, mas, na Bíblia Sagrada no Livro de Jó Capítulo 2 versículo 4, extraímos: “(...) Um homem dará tudo o que tem por sua vida (...)”.

Neste trecho está a essência do motivo pelo qual o homem “pactuou”. De nada vale ter bens, ou trabalhar para obtê-los, sem termos a segurança de nossas conquistas. Há paz e tranquilidade, em sairmos de casa sem sabermos se veremos nossa família novamente? Estamos seguros dentro de nossas próprias casas?

Certamente analisando este quadro atual, as pessoas estão dando tudo o que tem por sua vida, foi este o motivo encorajador que levou a humanidade a pactuar. E o preço a ser pago é a restrição de todos em prol de todos.

A unidade de pensamento e submissão era o que vigorava, todos passariam a representar um todo. O coletivo ganha maior relevância, por outro lado, o individual passa a ser secundário. Em contrapartida, o Estado asseguraria a inviolabilidade da vida, família, propriedade, liberdade.

Foi com base nesta segurança que o homem se abdicou de sua liberdade natural para a liberdade “vigiada”, entretanto, de nada adiantaria o homem deixar de fazer o que bem entende para se submeter a este “terceiro imparcial”, sem que todos estes bens jurídicos fundamentais estivessem seguros.

Se por um lado os bens jurídicos estão totalmente a mercê da lei do mais forte, ou do mais astuto, o Estado tem empregado a sua força de maneira arbitrária e dissonante dos motivos pelo qual lhe fora dada.

Trazendo ao seio social prejuízos de proporções intangíveis, o Estado, além de não assegurar os principais bens sociais inerentes a convivência humana, ainda torna vulnerável a segurança da liberdade, devido à sua total perda de controle social.

É como se o Estado dissesse: “já que não consigo controlar a criminalidade, prendo primeiro e depois investigo, e se a investigação me deixar na duvida, fica por lá mesmo (...)”.

   III.        Liberdade

O resultado do excelente trabalho desenvolvido pelos contratualistas se confirma com o ecoar de seus pensamentos até a contemporaneidade, isto se deve a eximia capacidade visionaria dos autores, que trataram do tema a séculos atrás.

Tudo o que fora explanado soa com um elevadíssimo grau de atualidade, talvez seja esta a resposta do porque estes autores tenham as suas obras reconhecidas até hoje. Não há dúvidas que Hobbes e Rousseau estão presentes de maneira contundente no pensamento moderno.

No conceito de Hobbes um homem livre é aquele que, dentro de sua capacidade de fazer, não sofre restrição externa de realizar sua vontade.

“O Estado de Hobbes, apesar de não ser fundamentado no medo, ainda assim ele se faz presente e desempenha papel relevante. O leviatã não é aterrorizante, pois que o estado de natureza, esse sim é a imagem do terror, visto que não há segurança e nenhuma garantia, o homem vive em estado permanente de vigília e terror, onde nem mesmo nos amigos é possível confiar. No Estado hobbesiano, o que há é certo temor do soberano, no entanto se o súdito se mantêm dentro das leis, pouco ele tem à temer. O Estado não é fundado apenas no medo da morte, ele representa uma aspiração a uma vida confortável, e isto se traduz praticamente em propriedade, ou seja, o Estado se funda também nessa perspectiva burguesa de legitimar a propriedade. O súdito passa a ter total controle tanto do uso da terra quanto do fruto que ela produz, e do abuso, visto ter todo o direito de suprimir todos os outros súditos do uso dessa terra, menos o soberano, e é aqui que o pensamento hobbesiano se afasta dos ideais burgueses, pois nega o direito natural a terra e coloca na mão do soberano a responsabilidade por sua distribuição. Hobbes não via no homem um ser naturalmente social, pois se assim fosse o homem não poderia conhecer essa sociabilidade natural, pois que só aquilo que o homem constrói pode por ele ser conhecido, portanto se existe um Estado foi o homem que o fez. É nesses termos que Hobbes concebe o Estado e a Ciência Política.” (Silva, 2010).

Sob o enfoque do Estado de Natureza, a verdadeira liberdade foi alcançada após a passagem do homem natural para o homem artificial, é este o momento em que todos se abdicam do seu “eu”, para pensar no coletivo e consequentemente outorgar este comando para o Soberano.

O Soberano é o responsável por assegurar a liberdade plena a todos os súditos, fazendo valer esta liberdade outorgada, que deve ser plena e completa. Ponto crucial da visão hobbesiana, é que em decorrência do pacto, direitos e deveres foram gerados, acarretando responsabilidades para ambos.

Caso os súditos desrespeitem o pacto, sofrem sanções. Entretanto, se o Soberano não cumprir com seu papel de proteção aos cidadãos passa a não ser mais viável se submeter ao Soberano, de maneira que os cidadãos teriam somente ônus, porém, a finalidade do pacto social, não estaria sendo alcançada.

Tais teorias são bem atuais. Observamos que a maioria dos cidadãos cumpre a sua parte no pacto, porém, “O Soberano” tem descumprido há muito tempo a sua parte. E em como qualquer relação contratual, quando uma das partes não cumpre o seu papel, o caos esta estabelecido.

A busca pela propriedade privada, o consumismo midiático, somado à falta de investimento em educação de qualidade é fator gerador de elevação do índice de violência.

Sob o enfoque do Estado de Natureza e o Pacto Social, se o Soberano não cumpre o seu papel, os súditos são obrigados a cumprir o seu?

Pergunta polêmica, que abrange os mais diversos campos científicos, porém, o presente trabalho se restringe a liberdade no seu enfoque Constitucional, mais precisamente sob a ótica do Estado Democrático de Direito.

 IV.        Estado Democrático de Direito.

No Estado Democrático de Direito, a individualidade deve ser assegurada por intermédio da segurança jurídica, manifestada pelo ordenamento jurídico, embora seja discutível se o mencionado ordenamento é justo ou não. Porém, aqueles que se subordinam à lei possuem a real dimensão dos limites impostos.

Segundo o entendimento de Dimitri Demoulis:

“O conceito de Estado de Direito apresenta utilidade se for entendido no sentido formal da limitação do Estado por meio do direito. Nessa perspectiva, o conceito permite avaliar se a atuação dos aparelhos estatais se mantém dentro do quadro traçado pelas normas em vigor. Isso não garante o caráter justo do ordenamento jurídico, mas preserva a segurança jurídica, isto é, a previsibilidade das decisões estatais. O conceito do Estado de direito material é, ao contrário, problemático. As tentativas de ‘enriquecimento’ do conceito, no intuito de considerar como Estados de direito somente o ordenamento que satisfaz os requisitos da justiça, estão fadadas ao fracasso, já que não parece possível definir o que é um Estado justo”. (Dimoulis, 2007).

Conforme denota o autor, no Estado Democrático há limitações para atuação estatal em detrimento do individuo, este posicionamento deve ser defendido, se olhado sob o Estado de Natureza em conformidade com o que já abordamos.

Quando qualquer um dos “contratantes” burla o pacto realizado automaticamente o individuo legitima a atuação do Estado em sua individualidade.

Porém, esta ingerência não pode ocorrer de qualquer forma, e é neste momento que as limitações decorrentes do arcabouço normativo atuam como instrumento delimitador, trazendo segurança jurídica para o individuo, norteando a maneira com que o Estado deve buscar a punição daquele que supostamente desrespeitou o pacto.

É quando o individuo burla o pacto, e o Estado busca a punição dele, que muitas vezes há o confronto dos interesses individuais com os interesses estatais.

Também é nesta circunstância que é colocado em “xeque” um dos bens jurídicos mais importantes tutelados pelo Estado: a liberdade.

Tal qual a liberdade, neste impasse entre a lesão a um bem jurídico, e a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida restritiva da liberdade, que chegamos ao ponto chave deste trabalho.

          V.        Prisão Preventiva art. 312 do Código de Processo Penal.

O Desembargador Paulo Rangel, com a maestria que lhe é peculiar, define o conceito de prisão cautelar:

“A prisão cautelar é uma espécie de medida cautelar, ou seja, é aquela que recai sobre o individuo, privando-o de sua liberdade de locomoção, mesmo sem sentença definitiva. É cediço que a medida cautelar pode recair sobre a coisa (res) v. G, busca e apreensão, sequestro, arresto, e sobre a pessoa (personae), e é exatamente da privação da liberdade, antes da sentença proferida no processo de conhecimento, que vamos tratar neste capitulo. A prisão cautelar tem como escopo resguardar o processo de conhecimento, pois, se não for adotada, privando o individuo de sua liberdade, mesmo sem sentença definitiva, quando esta for dada, já não será possível a aplicação da lei penal. Assim, o caráter da urgência e necessidade informa a prisão cautelar de natureza processual”. (Rangel, 2013).

Na mesma toada Aury Lopes Jr.:

“Porque pensamos o processo penal a partir do “principio da necessidade”, que, como será explicado na continuação, considera que o processo penal é um caminho necessário para alcançar-se a pena e, principalmente, um caminho que condiciona o exercício do poder de penar (essência do poder punitivo) à estrita observância de uma série de regras que compõe o devido processo penal (ou, se preferirem são as regras do jogo, se pensar no célebre trabalho II do processo come giuoco de Calamandrei)”. (Lopes Jr., 2014).

O instituto das medidas cautelares, mesmo que não seja a medida extrema de prisão, é uma restrição à liberdade do indivíduo, restrição esta, que será aplicada antes do trânsito em julgado.

De forma alguma, num Estado que se denomina como Democrático de Direito, pode estar tão afoito em seu direito de punir, a ponto de usurpar as regras do jogo como citado CALAMANDREI.

Entretanto, a regra que deveria servir como exceção é usada como regra, basta uma leitura simplória do arcabouço Constitucional para verificarmos que o principio da inocência, devido processo legal, ampla defesa, deve prevalecer contra qualquer preceito infraconstitucional.

Pensarmos de outra maneira seria inverter a ordem hierárquica de todo o sistema normativo.

Há que se ressaltar o caráter de imprescindibilidade da prisão cautelar, ainda mais na atual conjuntura, onde para os mais pragmáticos a Lei 12.403/11 ratifica, embora sem necessidade, a ordem da prisão cautelar.

Conforme obtempera Luiz Flávio Gomes, que a prisão é a ultima extrema ratio, para o Estado se socorrer, porém, a Constituição já seria instrumento hábil para suplantar a desnecessidade da mencionada extrema medida de prisão, o que para muitos não era suficiente.

Veio a lei para “chover no molhado”, embora nomine e delimite as medidas cautelares diversas da prisão. Mas, a insistência em discordar do que a Constituição rege ainda permanece.

Na prática a prisão cautelar ainda tem sido a medida mais utilizada em primeira instância, e muitas vezes confirmada pelos Tribunais estaduais, embora dissonante ao preceito constitucional.

A proximidade das decisões aos preceitos constitucionais, infelizmente, passa a ocorrer somente nos superiores tribunais, o que denota tempo e dinheiro, o que, na maioria das vezes, aqueles que estão submetidos à seara penal não possuem.

Dentre tantos argumentos que são utilizados pelos juízes das varas, que são ratificados por muitos tribunais estaduais, está a gravidade em abstrato do crime.

      VI.        A gravidade em abstrato do crime e a necessidade de apontamento concreto.

Por ser uma fundamentação tão corriqueira nas varas e nos tribunais estaduais, se consolidou jurisprudência maciça neste sentido, pelos tribunais superiores, no sentido de que não é suficiente para a mantença da prisão preventiva a gravidade em abstrato do crime.

É de fácil percepção a intenção do legislador nas mudanças ocorridas nas Medidas Cautelares, indubitavelmente o que se busca é sacramentar, no que tange à prisão cautelar, o seu caráter de subsidiariedade, que extraímos do seio constitucional.

Sobretudo pelo principio da inocência capitulado no art.  inciso LVII, da CF.

A gravidade em abstrato do crime, não encontra qualquer respaldo legal e não constitui argumento idôneo para o encarceramento do acusado. Nessa mesma perspectiva o STJ já se pronunciou:

“Criminal”. Habeas Corpus. Roubo. Liberdade provisória indeferida. Gravidade abstrata do delito. Periculosidade do agente não demonstrada. Necessidade de coibir novos crimes não evidenciada. Réu primário. Clamor público que não justifica a custódia cautelar. Constrangimento ilegal vislumbrado. Ordem concedida. (…) II. O juízo valorativo sobre a gravidade genérica do crime imputado ao paciente não constitui fundamentação idônea a autorizar a prisão cautelar, se desvinculados de qualquer fator aferido dos autos apto a demonstrar a necessidade de ver resguardada a ordem pública em razão do modus operandi do delito e da periculosidade do agente, reconhecidamente primário. III. A simples menção aos requisitos legais da custódia preventiva, à necessidade de manter a credibilidade da justiça e de coibir a prática de delitos graves, assim como o clamor público não se prestam a embasar a segregação acautelatório, pois não encontram respaldo em qualquer circunstância concreta dos autos. (...)

Sobre este assunto, o Supremo Tribunal Federal também faz o seguinte apontamento:

“Habeas Corpus. Processual penal. Prisão preventiva. Garantia da ordem pública. Gravidade do crime. Comoção social. Fundamentos inidôneos. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está sedimentada no sentido de que a alusão à gravidade em abstrato do crime e à comoção social não é suficiente para a decretação da prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública. Ordem concedida.”

Ao contrário da periculosidade em abstrato, ou até mesmo a comoção social, como o STF se manifestou, não são argumentos idôneos para ratificar a prisão cautelar.

Entende-se pela melhor doutrina que é necessária a demonstração de existência de periculum libertatis, bem como do comissi dilicti, razão pela qual, associado ao princípio da inocência, o caráter subsidiário da prisão cautelar foi ratificado de uma vez por todas pela lei 12.403/2011, a prisão cautelar deve ser vista sob a luz constitucional.

A liberdade deve ser sempre a regra, não há outra interpretação que se possa extrair da Constituição senão esta.

                  VII.        A prisão como última ratio do processo penal.

Aury Lopes Jr. defende o caráter instrumental das medidas cautelares:

“Filiamo-nos á corrente doutrinária que defende seu caráter instrumental, em que “las medidas cautelares son, pues, actos que tienen por objeto garantizar el normal dessarrollo del processo y, por tanto, la eficaz aplicacion del jus puniendo. Este concepto confiere a las medias cautelares la nota de instrumentalidade, em cuanto son médios para alcanzar la doble finalidade arriba apuntada”. (Citando – Sara Aragoneses, Prieto-Castro, Herce Quemada, Fairen Guillen, entre outros).

“Constitui uma impropriedade jurídica (e semântica) afirmar que para a decretação de uma prisão cautelar é necessária a existência de fumus boni iuris. Como se pode afirmar que o delito é a “fumaça do bom direito”. Ora, o delito é a negação do direito, sua antítese! No processo penal, o requisito para a decretação de uma medida coercitiva não é a probabilidade de existência do direito de acusação alegado, mas sim de um fato aparentemente punível. Logo o correto é afirmar que o requisito para a decretação de uma prisão cautelar é a existência do fumus comissi delicti, enquanto probabilidade da ocorrência de um delito (e não um direito), ou, mais especificamente, na sistemática do CPP, a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. (Lopes Jr., 2013).

Atrelado a todo este raciocínio desenvolvido, àqueles que são mais propensos à estrita legalidade temos o art. 282 § 6º do Código de Processo Penal, vejamos:

Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:

§ 6º A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

Conforme se destaca do parágrafo 6º do supramencionado artigo, as medidas cautelares diversas da Prisão preventiva conforme o art. 319 do CPP são:

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

VIII - fiança, nas infrações que a admitem para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

IX - monitoração eletrônica. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 1º (Revogado).

§ 2º (Revogado).

§ 3º (Revogado).

(Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 4º A fiança será aplicada de acordo com as disposições do Capítulo VI deste Título, podendo ser cumulada com outras medidas cautelares. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

O parágrafo 6º do art. 282 ressalta o que a CF/88 trata de forma taxativa, sobretudo no que cerne ao Principio da Inocência, de que a prisão deve ser o último artifício de que o Estado deve se valer.

Porém, é necessário para muitos que a Lei ratifique a Constituição e o que o mencionado parágrafo 6º do art. 282 do CPP trouxe pra esta “casta”, a comprovação do desnecessário, de que a prisão é medida subsidiária das opções de restrição da liberdade.

Embora a prisão esteja incluída dentre as Medidas Cautelares, não pode ser penosa ao extremo e ser utilizada como instrumento de antecipação de pena antes da dilação final probatória, que se perfaz pelo contraditório, ampla defesa, com as formalidades, que são inerentes ao devido processo legal e por fim o trânsito em julgado.

O mais revoltante é que embora a subsidiariedade da prisão seja ratificada pela CF/88, e mais recentemente pelas modificações pontuais feitas no CPP, continuam prevalecendo “as constituições dos tribunais estaduais e das varas”.

Pois o que a lei a e a CF nos mostra é que respeitados os requisitos, devem-se esgotar as vias das medidas diversas da prisão, e somente com o desrespeito a tais restrições é que o Estado deve se utilizar da prisão.

Isso sem levar em consideração, o principio da inocência, acertadamente Tourinho Filho obtempera:

“Se ninguém é considerado culpado até que transite em julgado eventual sentença condenatória, é um não senso prender uma pessoa presumivelmente inocente. Embora a Prisão provisória seja um mal, ainda que necessária todas as legislações do mundo tem procurado, dentro do possível, medidas que garantam o comparecimento do acusado aos atos do processo sem os males da privação da liberdade, reservando provisória, mesmo sendo um mal, para os casos de efetiva necessidade”. (Filho; Costa, 2003)

Todos estes argumentos seriam suficientes para que a ampla defesa fosse respeitada, juntamente com o contraditório e o principio da inocência, e consequentemente a prisão ser tratada como ultima ratio do processo.

Constatamos que hoje esta não é a realidade. Muitos magistrados julgam em dissonância dos preceitos e princípios constitucionais, invertendo-os, e fazendo com que a prisão se torne a regra, e o principio da inocência torna-se uma mera abstração teórica, desprovida de fundamentos.

Se por um lado a balança da justiça esta quebrada, pois não mais consegue sopesar com equidade o que é colocado diante dela, a espada esta mais afiada do que nunca, e certamente tem cortado com seu fio afiado muitos inocentes que não deveriam nem estar diante dela.

          VIII.        Conclusão.

Conforme fora demonstrado, a humanidade vivia em um Estado Natural, onde a lei do mais forte imperava, e os principais bens da vida encontravam-se totalmente vulneráveis as ingerências de qualquer um que se achasse “no direito” de matar, tomar seus bens, sua esposa, filhos, casa...

Fartos desta total vulnerabilidade em relação ao mais forte, ou o mais astuto, achou-se por bem, outorgar esta liberdade “plena”, por uma liberdade mitigada ou assistida, pelo qual a “pessoa” confiada foi o “Estado”.

Por intermédio do Contrato Social, o Estado representava uma figura forte, que com “seus braços firmes”, e sua “cara de mau”, tornaria o caos em paz, e não traria somente a sensação, mas a própria paz àqueles que se submetem á ele.

O tempo passou, e aquela representação de força e autoridade está com os braços flácidos e as pernas trêmulas.

Mediante a criminalidade que assola a sociedade, a figura da justiça imponente, com a balança e a espada nas mãos, hoje está com a balança caída ao chão, e usando a espada como se fosse uma criança, com o cabo de vassoura, querendo estourar o balão de doces, sem saber onde ou o que ira atingir.

A liberdade é o bem jurídico mais importante tutelado pelo Estado, depois da vida, embora a Constituição Federal tenha todo um arcabouço voltado a tutelar este bem jurídico tão crucial.

A restrição à liberdade tem sido o remédio que o Estado tem se socorrido corriqueiramente. E como todo remédio, os seus efeitos colaterais não tardam a aparecer.

Arbitrariedades constantes são praticadas em detrimento a este bem jurídico tão importante, evidente que o presente trabalho não buscou esgotar o tema da liberdade em todas as suas nuances.

Mas, nos levar a pensar que o pacto fora quebrado e o Estado não consegue mais cumprir “o que prometeu”, e mediante esta quebra, o que fazer?

Na perspectiva atual, o Estado perdeu a sua força, por outro lado, os “inimigos do Estado” ganham espaço e força cada vez mais, e retornamos ao Estado de natureza, onde o caos absoluto impera.

E o Estado, não conseguindo cumprir com sua parte no contrato, tal qual proteger os seus subordinados, utiliza talvez a maneira supostamente mais fácil, tal qual o cerceamento de liberdade do individuo.

Aliás, o direito penal é a arma letal que o Estado se utiliza para todas as mazelas sociais, o Estado descumpre o seu papel no “contrato”, e ainda outorga todo o ônus proveniente disto aos seus subordinados.

Apesar de a liberdade ser regra, segundo denota a CF/88, ratificada taxativamente pelo Código de Processo Penal, a subsidiariedade da prisão não tem sido respeitada.

Absurdos têm sido cometidos devido a este afã estatal em punir e aprisionar a qualquer preço, infelizmente tem sido esta a realidade atual.

O contrato está rompido e as partes retornam ao seu estágio rudimentar, a lei do mais forte impera e ninguém está seguro.

E o Estado? Não protege a vida, liberdade e a propriedade privada, porém, continua detendo o poder de punir e prender, sem cumprir com sua parte no contrato...

Marília/SP, 23 de maio de 2014.

Júlio Dias

OAB/SP 310.193

            IX.        Bibliografia.

SILVA, Denis Manuel. Como se deu a passagem do Estado de Natureza para a Sociedade Civil? JusBrasil. 2010. Disponível em: http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1904910/como-se-deuapassagem-do-estado-de-natureza-paraasociedade-civil-denis-manuel-da-silva.>.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo. Editora RT. 3ª edição revista da tradução e comentários de J. Cretella Jr. E Agnes Cretella.

KANT, Immanuel. A Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret. Pág. 88.

SILVA, Manoel N. Thomaz Hobbes, um pensador maldito. Blog retalhos da mente. 2010. Disponível em: http://retalhosdamentemano.blogspot.com.br/2010/10/thomas-hobbes-um-pensador-maldito.html.

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DIMOULIS. Op. Cit. P., 140. No mais, acrescenta o autor que o Estado de Direito oferece uma importante garantia de segurança jurídica que, por sua vez, constitui precípua finalidade do direito moderno. Ibidem. Pág. 141.

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