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Animal como sujeito de direito

uma proposta com base na teoria dos sistemas de Luhmann

Animal como sujeito de direito: uma proposta com base na teoria dos sistemas de Luhmann

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Descrição das principais comunicações desenvolvidas em torno do reconhecimento do direito dos animais, utilizando como contraponto crítico alguns dos pressupostos da teoria sistêmica de Luhmann.

Resumo: O texto pretende descrever as principais comunicações desenvolvidas em torno do reconhecimento do direito dos animais no âmbito do sistema jurídico brasileiro, buscando demonstrar alguns possíveis equívocos metodológicos de tais concepções, ainda pautadas na lógica individualista-liberal dos direitos naturais. Como contraponto a tais ideias, propomos uma análise da questão sob a ótica da teoria sistêmica Luhmanniana, que busca superar a lógica da causalidade linear e do essencialismo, tão presentes na ciência jurídica.

Palavras chaves: Direito. Animal. Sujeito de direito.

Sumário: Introdução. 1. Antropocentrismo e não-antropocentrismo. 2. Animal como sujeito de direito na teoria brasileira. Conclusão


Introdução

Este artigo pretende descrever as principais comunicações desenvolvidas no âmbito do sistema jurídico brasileiro, que buscam fundamentar a defesa dos interesses dos animais, demonstrando alguns dos possíveis equívocos metodológicos de tais concepções, ainda pautadas na lógica individualista-liberal dos direitos naturais.

Para tanto, inicialmente analisar-se-á a proposta de classificação dos modelos ético-jurídicos em antropocêntrico puro, antropocentrismo intergeracional e não-antropocêntrismo, proposta por Antonio Herman Benjamin, de forma a compreender os sentidos das expressões utilizadas pelos defensores dos direitos dos animais.

Após, apresentar-se-á os principais argumentos desenvolvidos pela teoria brasileira em prol do direito dos animais, para depois realizar um contraponto a tais ideias com base na teoria sistêmica Luhmanniana.


1. Antropocentrismo e não-antropocentrismo

Inicialmente, importa esclarecer alguns dos termos mais utilizados quando se aborda a temática do reconhecimento de direito aos animais, quais sejam: antropocêntrico puro, antropocentrismo intergeracional e não-antropocêntrismo.

O modelo antropocentrista puro propõe que o ser humano, que seria o único capaz de se comunicar, é a fonte de todos os valores. Nesse contexto, a tradição aristotélica e tomista, por exemplo, adotam a crença sobre a existência de uma cadeia da vida, na qual os animais ocupariam uma posição inferior, pois destituídos de espírito racional.

Segundo a concepção aristotélica, os animais possuíriam alma sensitiva, uma vez que possuem sentimentos, mas não possuíriam alma imaginativa, a inteligência, pertencente exclusivamente ao homem, único capaz de elaborar um discurso e de viver na polis. Sendo assim, a superioridade do homem em relação ao animal se daria, sobretudo, pelo dom da palavra, sendo natural, portanto, o domínio do homem sobre o animal, da mesma forma que também seria natural o domínio de um homem que só tem força física por aquele que tem ideias. Nesse contexto de dominação, o animal se inclui na sociedade de forma equiparada ao escravo. Em suas próprias palavras: “A família se formou da mulher e do boi feito para lavra. O boi serve de escravo aos pobres” (ARISTÓTELES, 1951, p. XLV).

A grande cadeia dos seres criada com base nessa lógica de dominação faz o homem grego aparecer logo após os deuses, que estariam em seu topo, seguindo da mulher, das crianças, dos loucos e dos escravos, em ordem decrescente de parcela de espirito racional. Por fim, na base da pirâmide, encontram-se os animais, que não possuiriam espírito. Neste contexto, os seres que se posicionam na base da cadeia existiriam para servir aos que se encontram nos degraus mais elevados. Dessa forma, a posição dada aos animais é ainda mais penosa, uma vez que, embora reconheça que eles sintam dor e prazer, aprendam e experimentem os fenômenos, Aristóteles defende que eles são privados de um mundo espiritual, sendo incapazes de distinguir um ato de justiça e um ato de injustiça, não merecendo qualquer consideração moral (ARISTÓTELES, 2001, p. 114).

Por sua vez, Tomás de Aquino, em seu “Tratado de justiça”, afirmou que “ninguém peca por usar uma coisa para o fim a que foi feita. As plantas vivem em função dos animais e os animais das plantas” (AQUINO apud DIAS, 2004). Analisando a tese de Agostinho sobre a não aplicabilidade do mandamento do 5º mandamento (não matarás) aos animais, Aquino afirma que os animais são meros sujeitos mecânicos de leis causais, naturalmente escravizados aos interesses do homem (AQUINO apud ARAÚJO, 2003, p. 55).

Atualmente, os que ainda se filiam ao antropocentrismo puro têm a esperança de poder continuar a tradição lógica-ontológica, que parte da distinção ser/pensar, buscando alcançar o ser pelo pensar.

Em suas versões mitigadas, o antropocentrismo admite algumas prerrogativas aos demais seres vivos, não abandonando, contudo, a tradição ontológica. Tais versões mitigadas podem ser classificadas em antropocentrismo intergeracional e antropocentrismo do bem-estar dos animais (BENJAMIN, 2001, p. 160).

Segundo Leite e Ayala (in WOLKMER; LEITE, 2003, p. 241-253), a equidade intergeracional permite que se reconheçam valores intrínsecos aos seres vivos não humanos, já que tal modelo ético pressupõe que a necessidade de proteção do patrimônio ambiental decorre da necessidade de se garantir os direitos das gerações futuras.

O antropocentrismo dito intergeracional se fundamenta, pois, na solidariedade entre os contemporâneos, bem como entre estes e as gerações futuras. É uma forma temporalmente ampliada da visão antropocêntrica clássica, já que enfatiza obrigações do presente para com os seres humanos do futuro No caso das gerações futuras, temos um novo quadro ético, construído sobre a ética da solidariedade, que se manifesta em vários níveis, no individual e no coletivo, no presente (equidade ou solidariedade intrageracional) e no futuro (equidade ou solidariedade intergeracional) (BENJAMIN, 2001, p. 156-157).

Em síntese, no plano ambiental, a solidariedade intergeracional, fundada em argumentos éticos que apontam na direção da justiça entre as várias gerações, tem, pelo menos, dois elementos básicos: (a) a conservação da natureza para as gerações futuras, visando assegurar a perpetuação da espécie humana com (b) os mesmos ou superiores padrões de qualidade de vida hoje encontráveis (BENJAMIN, 2001, p. 158). Um dos pilares da noção de sustentabilidade é exatamente a solidariedade intergeracional.

Interessante notar, entretanto, que a concepção intergeracional não abandona a ideia de um mundo pré-existente de coisas, substâncias, como se observa do seguinte trecho:

A tendência atual é evoluir para um panorama muito menos antropocêntrico, em que a proteção da natureza, pelos valores que representa em si mesma, mereça um substancial incremento. A natureza precisa de proteção de per si e por seu próprio fundamento.

(...)

A proteção individual do animal de modo algum quebra com a visão holística que se deve ter do meio ambiente e seus componentes, mas ao contrário, embora privilegie a consideração individual de cada animal, tendo-o de acordo com seu valor de per si e valorando eticamente seu sofrimento face a atos humanos atentatórios ao bem-estar individual do animal. (LEITE; AYALA in WOLKMER; LEITE, 2003, p. 215). (Grifamos)

A ética intergeracional propõe, portanto, a defesa do alter, de forma a se reconhecer a dignidade do animal, possibilitando a condução do reconhecimento de uma nova ética para a definição dos sujeitos envolvidos nas relações ambientais. Dessa forma, ao tratar dos interesses das futuras, desenvolve-se o discurso da defesa integral da vida, compreendendo aqui como sujeito de direito todos os seres vivos, vistos em concreto, mas, em última análise, busca-se tutelar o interesse humano dos seres humanos em potencial, das gerações futuras, sem abandonar a lógica essencialista.

O modelo ético chamado não-antropocêntrico, por sua vez, considera a natureza e, consequentemente, todos os animais, como sujeitos de direito pelos seus valores intrínsecos, independentemente dos interesses dos seres humanos presentes ou futuros. Para esta concepção, “somente a ética poderia resgatar a natureza, refém da arrogância humana. Ela é a ferramenta para substituir o deformado antropocentrismo num saudável biocentrismo” (NALINI, 2001, p. 3.). Em síntese, segundo o paradigma não-antropocêntrico a natureza é dotada de valor inerente, que independe de qualquer apreciação utilitarista de caráter homocêntrico (BENJAMIN, 2001, p. 155).

No âmbito dessa ética não-antropocêntrica é que se desenvolvem as considerações sobre o bem-estar dos animais (Animal Welfare), que advoga um tratamento mais “humanitário” para os outros seres vivos, com relevo para os animais domesticados e de estimação. Nessa corrente, aceita-se, de uma maneira geral e conforme as circunstâncias, a possibilidade de eliminação de animais, desde que estes sejam tratados da forma mais humana possível. Ou seja, mesmo desenvolvendo uma suposta lógica não-antropocêntrica, a ética do bem estar animal pressupõe que inexistiria qualquer interesse animal que não pudesse sucumbir em função de benefícios de vulto para os seres humanos (BENJAMIN, 2001, p. 160).

Não-antropocentrismo puro, por assim dizer, propõe que o ser humano seja concebido como parte da natureza, bem como que se abandone a ideia de superioridade moral dos humanos, fundada na habilidade para pensar, falar e fazer ferramentas. Para corroborar sua defesa, as correntes não-antropocêntricas exemplificam que alguns seres humanos não falam (mudos); outros vivem em estado vegetativo (portadores de deficiência mental); nem por isso se propõe que eles sejam tidos como menos humanos. Com isso pretendem equiparar em condições éticas e jurídicas, os animais humanos aos não-humanos.

O biocentrismo e/ou o ecocentrismo representam uma dessas tendências não-antropocêntricas, que são comumente associadas aos movimentos de contracultura, propondo, como afirma o próprio Benjamin (2001, p. 161), “uma alteração ontológica na nossa visão da natureza e do nosso relacionamento com ela”. Aqui o valor da vida passa a ser um referencial na relação entre o homem e o mundo natural, atribuindo-se uma significação moral a todas as formas de vida (NACONECY, 2007, p. 99).

Outra manifestação do pensamento ético não-antropocêntrico é o gaianismo, que compreende a Terra (Gaia) funcionando como se fora um enorme sistema “vivo” ou “super-organismo”, na fórmula proposta pelo cientista britânico James Lovelock. A hipótese científica de Gaia “procura explicar a sobrevivência dos seres vivos na Terra por bilhões de anos tratando a vida e o meio ambiente global como duas partes de um mesmo sistema” (BENJAMIN, 2001, p. 161), sistema este que se auto-regula e conserta, possibilitando reconhecer direitos a entidades não humanas.

De certa maneira pairando sobre essas três famílias–antropocentrismo, antropocentrismo intergeracional e não-antropocentrismo, estão duas escolas de proteção da natureza: a conservação e a preservação. Aquela, preferida pelos antropocêntricos puros ou mitigados; esta, favorecida pelos não-antropocêntricos.

Neste contexto classificatório, que vai do antropocentrismo ao gaianismo, há a distinção entre conservacionistas e preservacionistas. A maioria dos conservacionistas entende os ecossistemas e outras espécies como recursos, que demandam regras para sua exploração, mas ainda assim são recursos. Para essa corrente de pensamento, a preocupação principal não é exatamente a proteção de espécies ou ecossistemas em si, mas o seu uso adequado (= uso-inteligente ou, em linguagem mais atual, sustentável). Na exata medida em que todos os componentes da natureza precisam ser utilizados é que se justifica o cuidado ao usá-los, para que não faltem.

Já os preservacionistas, convictos, inclusive com evidências científicas, de que a interferência humana, em certos casos, está em confronto direto com a proteção eficaz do meio ambiente, pretendem manter grandes áreas naturais fora do uso econômico direto (permitido, contudo, o uso econômico indireto, como nos Parques Nacionais), com isso assegurando-se a integridade desses habitats. Buscam, em um mundo onde pouco sobrou da natureza “intocável”, a manutenção de um mínimo do status quo ecológico o mais original possível, admitindo-se, quando muito, a recuperação (e não transformação!) dos fragmentos degradados. Historicamente, na sua origem, está uma postura de reverência perante a natureza, na forma de apreciação das belezas naturais e dos espaços virgens ou selvagens (BENJAMIN, 2001, p. 162-163).

Como se percebe, a comunicação sobre a necessidade de proteção da natureza se dá com base na dicotômica distinção entre natureza-objeto/natureza sujeito. A natureza-objeto apoia-se numa visão dualista do mundo. Em um campo (que uns poderiam chamar de “campo de concentração” autoimposto, tal seu rigor excludente e isolacionista) está a humanidade, os seres humanos como únicos sujeitos de direitos e obrigações. No lado oposto, encontra-se a natureza, reduzida à condição única de objeto, posta à disposição de todos, passível de apropriação, de manejo e, como dissemos, até de destruição irreversível, pura e simples

Já natureza-sujeito, por sua vez, funda-se em um certo monismo jurídico, no qual as posições jurídicas do ser humano e dos componentes naturais não operam por exclusão, estando, ao revés, em posição de simetria. Cabe recordar, neste ponto, que nem todas as correntes não-antropocêntricas concebem, a natureza (ou, mais restritivamente, seus componentes) como titular de direitos. Há, pois, aqueles que, embora rejeitando o antropocentrismo (inclusive o mitigado, das gerações futuras), adotam outros mecanismos não-antropocêntricos, diversos do discurso de direitos.

Mas, principalmente nos últimos anos, vem ganhando força a tese de que um dos objetivos do Direito Ambiental é a proteção da biodiversidade (fauna, flora e ecossistemas), sob uma diferente perspectiva: a natureza como titular de valor jurídico intrínseco ou próprio, vale dizer, exigindo, por força de profundos argumentos éticos e ecológicos, proteção independentemente de sua utilidade econômico-sanitária direta para o homem, tentando enquadrá-la na concepção clássica de sujeito de direito.


2. Animal como sujeito de direito na teoria brasileira

Edna Cardozo Dias foi autora da primeira tese de doutorado no Brasil a defender que a natureza, mais especificamente o animal, deveria ser encarado como sujeito de direitos (DIAS, 2000, p. 1).

A referida teórica ressalta que os animais se tornam sujeitos de direitos por força das leis que os protegem. Afirma que, embora não possuam capacidade de comparecer em juízo para pleiteá-los, o Poder Público e a coletividade receberam a incumbência constitucional da proteção dos animais. Neste contexto, o Ministério Público seria competente para representar os animais, sempre que as leis que os protegem forem violadas. Conclui, portanto, “que os animais são sujeitos de direitos, embora esses tenham que ser pleiteados por representatividade, da mesma forma que ocorre com os seres relativamente incapazes ou incapazes, que, entretanto, são reconhecidos como pessoas” (DIAS, 2005, p. 1).

Interessante a conclusão construída pela autora no recente artigo, intitulado, Bioética e direito dos animais:

As novas teorias dos direitos dos animais nos levam a concluir que eles têm o direito a uma legislação protetiva. Eles possuem interesses que devem estar protegidos por leis levando em consideração as necessidades de sua espécie. Devem ter garantidos direitos fundamentais, que lhe assegurem ser tratados com o mesmo respeito com que se exige que sejam tratados os seres humanos. Os animais possuem seus próprios interesses que devem estar protegidos por leis (DIAS, 2005, p. 5).

Como se percebe, a autora aproveita a mesma lógica individualista das concepções clássicas de direito subjetivo, ampliando seu alcance ao atribuir interesses aos animais. Com isso, concebe a realidade a partir de uma racionalidade normativa, como fim em si mesma.

De forma semelhante, um dos maiores defensores da chamada “causa animal”, o teórico e promotor de justiça Laerte Fernando Levai, ressalta que na concepção jurídica tradicional o animal não é tido como sujeito de direitos, tampouco sujeito passivo, porque irremediavelmente destinado pelo homem à submissão. Defende, neste contexto, que já seria tempo dessa postura retrógrada e preconceituosa ser revista.  Seu principal argumento reside na capacidade sensitiva do animal, propondo a substituição da diferenciação racional/não racional, pela sensível/não-sensível. Em sua apaixonada defesa afirma que:

Embora condenados a trabalhos forçados, às prisões, ao matadouro, à exposição pública ou aos macabros laboratórios de experimentação, os animais têm a capacidade de sentir e de sofrer, o que nem sempre é notado por aqueles que os exploram (LEVAI, 2001, p. 70).

Reconhecendo a necessidade de modificar a distinção básica que fundamenta a atribuição dos direitos subjetivos apenas aos seres humanos, relegando aos animais o papel de objetos da relação jurídica, Levai afirma que o pensamento jurídico tradicional comete o equívoco de pressupor a existência de uma diferença qualitativa entre o homem e o animal, de modo a autorizar a preponderância do poder, da forma e, sobretudo, da capacidade de raciocínio humano. Contudo, a essência ética da tese de que os animais são sujeitos de direito não se restringiria à capacidade de pensar ou de falar, mas à capacidade de sofrer (LEVAI, 2001, p. 71).

Utilizando-se de um argumento de autoridade, Levai coleciona um trecho da obra de Peter Singer, Animal liberation, marco teórico na luta a favor do direito dos animais, que propõe a expansão dos horizontes morais do homem, nos seguintes termos:

Hábito.  Essa é a barreira final que o movimento de libertação animal enfrenta. Hábitos não só de alimentação, mas também de pensamento e linguagem, devem ser desafiados e modificados. Hábitos de pensamento nos levam a considerar descrições de crueldade contra animais como algo emocional, ou então consideram o problema tão banal em comparação com os problemas dos seres humanos, que nenhuma pessoa sensata poderia gastar seu tempo e atenção com ele. Isso também é um preconceito – como poderá alguém saber que um problema é banal enquanto não empregar seu tempo para avaliar sua extensão? (apud LEVAI, 2001, p. 72).

Laerte Fernando Levai procura, portanto, defender que a vida dos animais tem valor em si, o que é percebível em diversos trechos da sua obra, como quando trata do antropocentrismo grego e da subjugação dos animais pelo homem helênico, afirmando que “os grandes filósofos clássicos debruçaram-se unicamente sobre a questão do homem, como se a vida dos animais não tivesse valor em si” (2004, p. 18). Afirma que palavras e expressões como “reses”, “cabeças”, “carcaças”, “matrizes”, “peças”, dentre outras expressões de caráter econômico, demonstram que os animais perdem sua condição de seres sensíveis para se transformar em meros objetos descartáveis, em um mundo onde a natureza acaba deixando de ser organismo vivo para se tornar um mero conjunto de recursos (2001, p. 60).

Buscando apelar para moral e sensibilidade do leitor, Levai descreve de forma pormenorizada as diversas formas de violência praticada contra os animais, tanto silvestres, como a caça e a pesca predatória, quanto domésticos ou domesticáveis, como os cruéis treinamentos de ursos, leões, tigres e elefantes para o espetáculo circense, bem como as touradas, a farra do boi de santa Catarina, as vaquejadas do nordeste, as brigas de galo e até mesmo o abate nos criadouros que visam o agronegócio, concluindo que:

Permitidas, toleradas ou clandestinas, pouco importa, essas práticas todas – circos, touradas, farra do boi, rodeios, vaquejadas, rinhas, caça, dentre outras que o homem é capaz de inventar – demonstram a hipocrisia de nossas atitudes e sentimentos, como se o animal nada mais significasse que um mero objeto de recreação, deleite ou mórbido prazer. Tais questões não se restringem a aspectos jurídicos de determinada conduta, porque sua essência é de ordem moral. Enquanto não se mudar a mentalidade das pessoas, dissuadindo-as de prestigiar empreendimento que submetem animais à crueldade, mais difícil será combater uma tirania que o próprio poder público aceita como legítima (LEVAI, 2004, p. 62).

Para defender seu pensamento essencialista, Levai se utiliza da filosofia oriental e das religiões budistas e janaistas. Segundo o teórico, a filosofia hindu preconiza a harmonia cósmica entre todas as criaturas. É com esse fundamento que o Budismo, nascido no século VI A.C., tem como máxima o respeito à vida de qualquer criatura vivente. Assim, afirma Buda “tende piedade de todas as criaturas vivas e dessa forma o fogo de vossa vida se extinguirá e mergulhareis em uma abençoada eternidade de paz”. Já o Janaismo, considerada a mais compassiva das religiões hindus, também tem como postulado básico não fazer mal a qualquer ser vivo, recomendando o vegetarianismo e a compaixão universal. Fundamentado na doutrina janaísta, Mahatma Gandhi clamou por piedade a todos os animais (LEVAI, 2004, p. 21-22).

Afirma Levai que esta postura ética em defesa dos animais, embora seja rara no ocidente, teve alguns defensores, sendo adotada, por exemplo, pelo Médico Albert Schweitzer, ganhador do prêmio Nobel da Paz de 1952, para quem “o homem só é verdadeiramente ético quando demonstra solidariedade incondicional perante todos os seres que habitam o planeta” (apud LEVAI, 2004, p. 22-23). Também faz menção ao prêmio novel de Literatura de 2003, o sul-africano Coetzee, que em sua obra “A vida dos animais” propõe que o homem tem deveres em relação aos animais e que eles têm direitos em relação a nós, “porque estar vivo não é apenas pensar, mas desfrutar de uma sensação de ser um corpo em movimento, sob as mesmas contingências espaço-temporais que regem o mundo” (apud LEVAI, 2004, p. 23).

Em outra obra, continua, afirmando que o reconhecimento de que existe um direito dos animais, a par do direito dos homens, não se restringe a divagações de cunho abstrato ou sentimental. Ao contrário, é de uma evidência que salta aos olhos e se projeta no campo da razão. Mesmo que o ordenamento jurídico aparentemente defira apenas ao ser humano a capacidade de assumir direitos e deveres (no âmbito civil) e de figurar no pólo passivo da ação (no âmbito penal) - como se as pessoas, tão-somente elas, fossem capazes de integrar a relação processual na condição de sujeitos de direito – é possível identificar imperativos éticos que, além da perspectiva biocêntrica, se relacionam ao bem-estar dos animais. Conclui que o artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal (2006, p. 188) não se limita a garantir a variedade das espécies ou a função ecológica da fauna. Adentrou no campo da moral. Ao impor expressa vedação à crueldade, permite considerar os animais como sujeitos de direito.

Em síntese, Levai fundamenta o direito dos animais num direito natural decorrente do simples fato de sua existência, bem como do valor que a sua vida tem em si, superando o discurso de defesa dos animais baseado unicamente no equilíbrio ecológico e sua importância para o planeta e sobrevivência da espécie humana. Com base na Declaração Universal dos Direitos dos Animais de 1978, subscrita pelo Brasil, cujo preâmbulo considera que “todo animal possui direitos”, defende mais uma vez a existência do animal como sujeito de direito. Afirma que mesmo não possuindo poder coercitivo, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais subsiste como uma carta de princípios, de natureza moral. Para o autor, a moral deve sempre estar acima do direito, “assumindo a função de norma de comando em relação a todas as leis” (LEVAI, 2004, p. 51).


3. Proposta de reconhecimento do animal como sujeito de direito com base na teoria sistêmica de Luhmann 

Apesar da importância das obras acima mencionadas, entendemos que seus pressupostos são, em parte, equivocados. Vejamos.

Ao defender que os animais possuiriam direitos naturais, intrínsecos, as teorias desenvolvidas mostram-se anacrônicas, pois remontam a concepções de individualidade do humanismo iluminista. Neste contexto, as grandes sínteses do direito natural apelam para a natureza, tanto no sentido de uma base invariável do ser, como no de uma base do saber que, como natureza que se conhece a si mesma, pode garantir orientação.

Contudo, na medida em que se impõe a doutrina dos direitos humanos naturais, inatos e inalienáveis, torna-se claro que ela:

(...) não é apta para interpretar ao direito existente, mas tão só para visualizar um futuro pré-desenhado pela política das Constituições. Por isso os direitos humanos podem declarar-se sem limitações. A doutrina do estado natural e de seus efeitos posteriores, quando da transição para o estado civilizado, segue sendo uma autodescrição que não deve retratar a realidade, mas possibilitar sua crítica (LUHMANN, 2007, p. 786-787).

Contudo, após mais de dois séculos da Revolução Francesa, as teorias acerca do sistema jurídico continuam presas às amarras de uma concepção individualista e essencialista. Mesmo após a guinada linguística, com a obra de Saussure, ainda não se reconheceu no mundo jurídico a diferença entre signo e significado como algo puramente semiótico, tornando os valores meros componentes de uma diferença e não como algo que tem valor por si mesmo (LUHMANN, 2007, p. 789).

Por isso o discurso em defesa dos direitos dos animais procura adaptar-se à comunicação reproduzida pelo sistema jurídico, propondo uma consideração moral dos animais por seus valores inatos, impossibilitando que a teoria do direito dissolva os paradigmas e dualismos que a engessam.

Outro possível equívoco que identificamos nas teorias em defesa do direito subjetivo animal está na crença de a humanidade vive uma evolução histórica para a progressão moral. As afirmações neste tocante são quase proféticas, a exemplo do teorizado por Norberto Bobbio (1992, p. 63), in verbis:

Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no máximo, como sujeitos passivos, sem direitos.

Entendemos não ser possível a aplicação de uma causalidade linear à teoria do direito, segundo aclaram os pressupostos introdutoriamente especificados. A descrença na ideia de prognósticos por parte das ciências de cada um dos chamados sistemas sociais, inclusive do sistema jurídico, parte da distinção entre operação e causalidade. Não se quer com isso negar a causalidade das operações do sistema. Melhor explicando, as operações controlam e variam uma parte das causas que são necessárias para a reprodução do sistema (autopoiese).

Além disso, as designações causais sempre supõem a atuação de um observador, que atribui determinados efeito a determinadas causas selecionadas entre inúmeros outros fatores causais. Daí decorre que, dependendo do interesse da atribuição, a correlação varia de maneira definitiva. Ou seja, para saber que relações causais se estabelecem, se selecionam, é necessário observar o observador. (LUHMANN, 2007, p. 96)

Toda correlação é, portanto, contingente, o que não significa que seja fictícia. Supomos, portanto, que as operações do sistema dependem causalmente de condições do entorno, que se mediam pelos acoplamentos estruturais. Não negamos, portanto que as operações do sistema podem influir causalmente aos estados do entorno, uma vez que:

(...) os limites de um sistema não bloqueiam as influencias em nenhuma direção. Uma comunicação faz vibrar o ar ou colore o papel, muda os estados eletromagnéticos dos aparatos correspondentes aos estados dos sistemas de consciência que participam; isto afeta aos meios respectivos, que passam de um acoplamento frouxo a um acoplamento temporalmente firme (...) Mas a pergunta é: que significado social tem a causalidade do entorno? Muda de alguma maneira as condições de seleção de futuras operações do sistema? E, sendo assim, em quais horizontes de tempo o faria? (LUHMANN, 2007, p. 96-97).

Tanto as perguntas acima expostas, quanto suas possíveis respostas, são encontradas na teoria dos sistemas de Luhmann, que propõe que as mudanças se relacionam com a forma de diferenciação sistêmica da sociedade e com o aumento de complexidade daí decorrente. Esta diferenciação funcional significa, antes de tudo, o fechamento operacional dos sistemas encarregados de uma função específica, que aumenta sua capacidade de decompor e recombinar suas próprias operações, assim como também em referência ao entorno que formam dentro e fora da sociedade.

Com isso, queremos dizer que não abandonamos o conceito de causalidade em geral, apenas o de causalidade linear, prognóstica, profética. Como bem expõe Stamford:

 Ao propor reflexões sobre a insuficiência epistemológica da lógica causal para o direito da sociedade, não eliminamos essa lógica no direito como sistema da sociedade, apenas consideramos que uma explicação científica desse direito não se dá por causalidade. Com isso, já daqui anunciamos que não se trata de defender o outro lado, o extremo oposto: causalidade não explica nada (2009: 111).

Entendemos, entretanto, que a questão da causalidade está ligada ao problema da comparação e do controle. O aumento de possibilidades de comparação e de controle inicia com a escrita e continua através do surgimento da imprensa, impulsionada ainda mais com o processamento de informações por computadores.

Em qualquer caso, temos sempre a comparação entre os dados introduzidos e a memória, mas isso não significa que podemos dominar a causalidade, muito pelo contrário, temos que desenvolver a consciência de que é impossível tal domínio. Neste contexto, adotamos o conceito de causalidade da teoria dos sistemas, significando que a determinação de um lado da distinção não diz nada sobre a determinação do outro. Nas palavras de Luhmann:

Nenhum sistema pode tomar conta de todas as causalidades: sua complexidade deve reduzir-se (...) Causalidade é a capacidade de um sistema de usar acontecimentos que ele não pode produzir nem coordenar; quer dizer, que não se pode produz nem coordenar a rede de sua própria autopoiese. Consideradas dessa maneira as causalidades são perigos, oportunidades, ocasiões. “Aproveitar a causalidade”, então, pode significar obter da causalidade efeitos estruturantes com a ajuda de operações próprias do sistema. Os efeitos, comparados com as estruturas existentes, podem ser tanto construtivos como destrutivos (2007, p. 354-355).

 Queremos com isso afirmar que é inútil falar de um objetivo final da evolução ou de uma lei dos movimentos históricos, como querem os que defendem o reconhecimento do direito subjetivo animal como ponto de chegada necessário para toda a teoria do direito, que evoluiria moralmente para conscientização e respeito de todos os seres sensíveis. Nesse contexto, o reconhecimento desse novo sujeito de direito seria um imperativo, uma necessidade, diante da evolução da ética.

É neste sentido que Gary Francione (in CAVALIERI; SINGER, 2008, p. 252) afirma que é preciso enfrentar a questão dos direitos dos animais não-humanos a partir da necessidade de se expandir o rol dos sujeitos de direito para além da espécie humana, outorgando-lhes personalidade jurídica. Para ele, se examinarmos a história do Direito, não é difícil perceber que nem todos os homens são (ou foram) considerados pessoas, assim como nem todas as pessoas são seres humanos.

No mesmo sentido, afirma Eduardo Rabenhorst (2001, p. 68) que “sujeito de direito não é o homem entendido como ser biológico, mas qualquer ente susceptível de contrair direitos e obrigações.” E Danielle Tetü Rodrigues (2010, p. 21) ressalta a falta de argumentos que fundamentem a defendida superioridade humana, propondo o reconhecimento de “valores intrínsecos” e dos “direitos inerentes a cada ser”. Em caráter introdutório, a autora enfrenta os argumentos comumente utilizados para defender a concepção antropocêntrica, ressaltando, inicialmente, que o critério da razão imanente do homem não justificaria a superioridade humana, uma vez que o ser humano portador de deficiência mental, que o deixe desprovido de razão e inteligência, continua tendo seus direitos tutelados pelo ordenamento jurídico (2010, p. 21).

Em outro momento, Rodrigues faz referência à imputação de personalidade às pessoas jurídicas, que têm seus direitos tutelados pelo direito, muito embora sejam desprovidas de características humanas, sugerindo que também os “animais não humanos” possam ser reconhecidos como pessoas pelo direito, recebendo tratamento protecionista do sistema jurídico (RODRIGUES, 2010, p. 22).

Interessante ressaltar a utilização dos termos “animal humano” e “animal não humano” pela teórica, que tenta, assim, evidenciar sua perspectiva de que a ligação do homem ao mundo natural é indiscutível, ressaltando a necessidade de pensar o direito à vida como inerente a todos os seres e não exclusivamente ao homem.

Salienta-se, neste contexto, que o homo sapiens existe apenas há 35 mil anos, enquanto os primeiros organismos vivos surgiram há 3,5 bilhões de anos, sendo o ser humano produto de uma evolução biológica, não podendo ser colocado num patamar mais elevado que as demais espécies (RODRIGUES, 2010, p. 37-38).

Ora, assim como os animais, o homem nasce e morre, sendo o seu organismo aproveitado pelos vermes, pela terra, semeando os alimentos que serão ingeridos pelos demais seres vivos. Além disso, os ossos humanos são transformados em água, bem como em vapor, que retorna em forma de chuva para abastecer rios e mares.  Continua a autora:

Assim, as relações são as essências do mundo vivo, já que cada ser é um pouco do outro ser, em outras palavras, cada qual é um pouco de cada um, de cada organismo vivo. Deste modo o homem é um pouco do mar, um pouco da floresta um pouco do Animal, um pouco de outro homem. Essa é a beleza da vida, tristemente esquecida e desvalorizada pelo ser humano (RODRIGUES, 2010, p. 38).

E é com base neste ontologismo de um argumento cosmológico, que Rodrigues propõe que os animais sejam reconhecidos como sujeitos de direito com personalidade jurídica sui generis. Em suas palavras:

O direito é um instrumento que visa assegurar o ajustamento da conduta humana acima de qualquer prioridade, de modo que se propõe a adequação do sistema legal à real natureza jurídica dos animais não humanos, qual seja: a de legitimar e legalizar os não humanos como sujeitos de direito com personalidade jurídica sui generis que precisam, para tanto, ser redefinidos e readequados no ordenamento jurídico a fim de proporcionar o justo reconhecimento do seu status quo, mediante tratamento eqüitativo e igualitário entre os desiguais, sem que imperem os preconceitos ou formalidades existentes que contrariam o bem-estar animal em prol do ser humano (2010, p. 23).

Com isso, a autora pretende demonstrar a necessidade de uma proteção mais efetiva aos animais, afim de “fazer cessar os abusos e crueldades contra eles cometidos por pessoas físicas e jurídicas, a garantir seus direitos como sujeitos de personalidade jurídica autônoma” (2010, p. 23), devendo ser-lhes garantido não apenas o direito à vida, mas à integridade e á saúde.

Neste contexto de defesa dos interesses dos animais, há, ainda, quem prefira propor uma retomada ao pensamento cosmocêntrico desenvolvido pelos filósofos da natureza, propondo um pensar ético com relação aos animais. É neste sentido que defende Unger (in CARVALHO; GRÜN; TRAJBER, 2009, p. 28):

(...) a sabedoria não reside em muitas informações, mas em manter-se em sintonia com a lei que dá origem, anima e permeia a physis, a sabedoria de reconhecer na multiplicidade de manifestações do real, a unidade profunda de todas as coisas. Esta unidade é, por sua vez, dinâmica: não exclui, mas inclui o movimento, o múltiplo, o diverso; inclui o ser humano, que precisa aprender a pôr-se a escuta do Cosmos e de seus sinais, encontrando o comum acorde que vibra na totalidade do real. Para nós, habitantes de um mundo no qual tanto a natureza como um todo quanto o próprio ser humano foram reduzidos à condição de objetos cujo único valor está no lucro que podem produzir, o pensamento pré-socrático convida a um repensar da nossa identidade enquanto humanos e do nosso lugar no universo.

Epistemologicamente, a explicação causal produz dicotomias (STAMFORD, 2009, p. 111), por isso a maioria dos teóricos analisados trabalham com a distinção sujeito/objeto, o mencionado autor também comete o equívoco de acreditar ser possível apreender a realidade do seu objeto, olvidando-se da sua circularidade.

As referências históricas utilizadas demonstram a utilização da lógica causal como construção linear, que em muito se distancia do sentido aqui proposto. Claro que a autopoiese em sentido causal depende, como também independe, do entorno do sistema. Dizemos que depende, em razão da energia; dizemos que independe, em razão da informação (LUHMANN, 2007, p. 596). Além disso, é obvio que a causalidade requerer decisões de atribuição, uma vez que nunca podem remeter-se todas as causas a todos os efeitos, ou o contrário.

Com isso, queremos mais uma vez ressaltar os equívocos da utilização da causalidade linear tão recorrente nas teorias acerca dos sistemas jurídicos, que parece não perceber que a seleção dos fatores causais é produto dos observadores que realizam o esquema da causalidade e não uma decorrência de verdades ontológicas. Por isso, devemos observar os observadores para verificar que causas produzem que efeitos (LUHMANN, 2007, p. 789). Com isso, a distinção entre sujeito/objeto, assim como todas as demais, perde seu caráter absoluto, devendo ser compreendidas como condições contingentes das observações e das descrições. Isto quer dizer que devemos modificar a pergunta pelo “o que?” para “como?” (LUHMANN, 2007, p. 789).

Acreditamos que dessa forma seja possível superar os impasses teóricos atuais, produzidos por uma explicação científica pautada na disputa pela identificação do conhecimento mais verdadeiro, correto, plausível, o que mantém o debate teórico limitado à defesa de um dos lados da dicotomia, promovendo paradoxos lógicos, que estagnam a explicação científica (STAMFORD, 2009, p. 112). No nosso caso, a disputa para enquadrar o animal como sujeito de direito ou como objeto do direito.

Em outras palavras, a construção de sentido não está presa a uma realidade essencial ao objeto de estudo. Dito de outra forma, o sentido da expressão “sujeito de direito” não decorre de uma verdade intrínseca ao objeto, mas sim de operações do sistema sociais, ou seja, das comunicações produzidas pelo próprio sistema.


Conclusão

Nos últimos anos, vem ganhando força a tese de que um dos objetivos do Direito Ambiental é a proteção da biodiversidade (fauna, flora e ecossistemas), sob uma diferente perspectiva: a natureza como titular de valor jurídico intrínseco ou próprio, vale dizer, exigindo, por força de profundos argumentos éticos e ecológicos, proteção independentemente de sua utilidade econômico-sanitária direta para o homem, tentando enquadrá-la na concepção clássica de sujeito de direito.

Muito embora se reconheça a importância da defesa dos interesses dos animais, acreditamos que os argumentos utilizados não são os melhores, pois partem de pressupostos equivocados, tais quais: o de que existiria um valor inato, intrínseco aos animais, assim como aos seres humanos; o de que o conceito de direito subjetivo deve refletir essa natureza da “coisa em si”, a essência do sujeito de direito; bem como, o de que é possível explicar o desenvolvimento do sentido do termo “sujeito de direito”, enquadrando o animal como tal, por meio de uma racionalidade pautada numa causalidade linear.

Nesse contexto, o presente artigo realizou uma crítica a tal concepção formalista do direito, utilizando-se dos conceitos da teoria sistêmica de Luhmann, cujos pressupostos buscam superar os impasses teóricos atuais, produzidos por uma explicação científica pautada na disputa pela identificação da “verdade”, da “essência”, o que mantém o debate teórico limitado à defesa de um dos lados das diversas dicotomias criadas, gerando paradoxos lógicos, que estagnam a explicação científica e dificultam o reconhecimento do animal como sujeito de direito.

Por fim, ressaltamos que não se pretendemos chegar a conclusões definitivas a respeito do tema, mas apenas levantar alguns importantes aspectos epistemológicos da discussão em torno do reconhecimento ou não do animal como sujeito de direito.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Chiara. Animal como sujeito de direito: uma proposta com base na teoria dos sistemas de Luhmann. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4016, 30 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29706. Acesso em: 25 abr. 2024.