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A comunicabilidade das elementares pessoais no crime de infanticídio

A comunicabilidade das elementares pessoais no crime de infanticídio

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Em face das peculiaridades de que é cercado o crime de infanticídio, defende-se a tese da incomunicabilidade das circunstâncias pessoais descritas no art. 123 do CP aos terceiros que porventura se envolvam em tal prática delitiva, de modo que somente a mãe da vítima do citado crime pode nele figurar como sujeito ativo.

RESUMO: O presente trabalho versa sobre o crime de infanticídio, especificamente quanto à polêmica aplicabilidade da disposição contida no art. 30 do Código Penal em relação a tal crime. Em um primeiro momento, são descritos os diferentes tratamentos dados ao crime de infanticídio por diferentes povos ao longo da história. Após, é feita uma descrição do citado delito com base na doutrina. Em seguida, de forma bastante oportuna, são feitas considerações acerca do concurso de agentes para, em seguida, chegar-se ao objetivo precípuo do estudo: a defesa da tese da incomunicabilidade das circunstâncias pessoais no crime de infanticídio. Para tanto, discorre-se sobre os entendimentos doutrinários divergentes, contudo, sempre se tendo por foco o robustecimento da corrente daqueles que compartilham com tal entendimento, tal seja, de que a comunicabilidade das circunstâncias pessoais no crime de infanticídio não merece prosperar.

Palavras-chave: infanticídio – incomunicabilidade das circunstâncias pessoais – coautoria


INTRODUÇÃO

O crime de infanticídio está tipificado no art. 123 do Código Penal, no Título Dos Crimes contra a Pessoa, Capítulo Dos Crimes contra a Vida. Vejamos o que dispõe o citado artigo: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto, ou logo após: Pena – detenção de 2 a 6 anos”. Trata-se, na verdade, de um homicídio privilegiado, com pena consideravelmente mais branda do que a do crime disposto no art. 121 do nosso Código Penal. O crime descrito no art. 123 pode ser definido como a ocisão da vida do ser nascente ou do neonato, realizada pela própria mãe, que se encontra sob a influência do estado puerperal.

Já à primeira análise do tipo penal, depara-se com definições que trazem dificuldades: influência do estado puerperal e logo após o parto. Fazendo-se um estudo da literatura relacionada ao tema, depreende-se que as posições médicas são divergentes quanto ao conceito de puerpério.

Outro ponto de divergência trazido pelo tipo é o entendimento acerca do que seja logo após o parto. A corrente predominante entende que o período mais razoável para se admitir como sendo após o parto e sob a influência do estado puerperal é aquele que vai até o reaparecimento da menstruação. Há quem entenda, contudo, que a análise de tal elemento seja feita no caso concreto, pois há o delito de infanticídio enquanto perdurar a influência do estado puerperal.

Tais divergências doutrinárias, contudo, não serão o objeto do presente trabalho, que tem por finalidade precípua discorrer sobre outra problemática que causa ainda mais celeuma entre os estudiosos do Direito Penal: a aplicabilidade da disposição contida no art. 30 do Código Penal em relação ao delito em questão. Como se sabe, o crime de infanticídio é classificado pela doutrina como próprio, ou seja, somente a mãe do infante pode cometê-lo. Há, porém, a possibilidade do concurso de agentes, ou seja, um terceiro pode concorrer para a ocorrência do crime, na condição de coautor ou partícipe.

Conforme dispõe o art. 30 do CP, “Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”. Pois bem, em uma breve análise do citado dispositivo, a circunstância de ser mãe da vítima, uma vez que se trata de elementar do delito, se comunicaria ao coautor ou partícipe, fazendo com que estes incidam nas penas cominadas para o crime de infanticídio.

É esse o grande foco da acalorada discussão que se trava na doutrina e que motivou a realização deste estudo.


1 - O CRIME DE INFANTICÍDIO NO CURSO DA HISTÓRIA

Interessante notar que o crime de infanticídio recebeu tratamento bastante diferenciado durante a história da humanidade, passando pela absoluta impunidade até o extremo da severidade.

Conforme ensina Maggio (2001, p. 34), podem-se distinguir três períodos bem nítidos com relação ao tratamento do infanticídio. No primeiro, que perdurou até meados do século V a. C., não constituía crime a prática do infanticídio. Aliás, tal prática era comum, principalmente em culturas em que o sacrifício humano era usual. No Império Romano e também em algumas tribos bárbaras a prática do infanticídio era aceita para regular a oferta de comida à população. Já no segundo período, compreendido entre o século V e o XVIII d. C., sob influência do Cristianismo, em direção totalmente oposta passou-se a punir com a morte o referido delito.

Nelson Hungria e Fragoso (1981, p. 239-240) destacam que:

o direito romano da época avançada incluía o infanticídio entre os crimes mais severamente punidos, não o distinguindo do homicídio. Se praticado pela mãe ou pelo pai, constituía modalidade do parricidium e a pena aplicável era o culeus, de arrepiante atrocidade.

O terceiro período, por sua vez, teve início no século XVIII e perdura em grande parte das legislações penais do ocidente. Sob a influência de ideias iluministas, em especial de Beccaria, passou-se a considerar o infanticídio como delito privilegiado, quando este fosse praticado por razões de honra pela própria mãe ou por parentes.

Conforme mencionado, o crime de infanticídio foi tratado de maneira mais benéfica, ou seja, como forma de homicídio privilegiado, somente a partir do Iluminismo. O primeiro ordenamento jurídico a tratá-lo assim foi o Código Penal Austríaco de 1803 e, seguindo tal tendência, cuidou-se o Código Criminal do Império de tratar referido delito como figura excepcional, prevendo-lhe pena mais branda, conforme ensina Maggio (2001, p. 38-39). O citado código não só cominou pena menor à mãe que eliminasse a vida do filho recém-nascido para ocultar desonra própria, como também o fez quanto a terceiro que eventualmente matasse um neonato por quaisquer razões.

Com a edição do Código Penal Republicano (1890), a punição para o crime de infanticídio foi agravada, passando tal crime a ser considerado como o assassinato de recém-nascido por motivo de honra, praticado pela mãe ou por terceiro. Portanto, diversamente da legislação atual, não era a influência do estado puerperal que concedia ao homicídio o caráter de privilegiado, e sim, a busca pela preservação da honra da mulher que tivesse que enfrentar os inconvenientes de uma gravidez ilegítima. Ressalte-se que não é difícil entender que naqueles tempos dar a luz a uma criança em uma situação desfavorável (como, por exemplo, não ser casada) representava, mais do que nos tempos atuais, uma afronta aos bons costumes da sociedade, o que justificava a concessão de tal privilégio. Em outras palavras, matar o nascente ou neonato diante das prováveis sanções sociais que tal nascimento ocasionaria era ato tido como passível de punição, contudo, com uma pena mais branda do que um homicídio praticado em circunstâncias diversas.

Em 1940 foi elaborado o Código Penal vigente, que sofreu forte influência do Código Suíço de 1937, tipificando-o desta forma: “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após” (art. 123).

É certo que o “estado puerperal” é objeto de controvérsias várias, sendo de difícil comprovação, pois a agente do crime, na maioria das vezes, é submetida à análise dos médicos e psicólogos depois de passado considerável período desde o acontecimento do crime, o que acaba por ensejar uma presunção de sua ocorrência, com base na máxima de que a dúvida deve prevalecer em favor do réu. Há quem defenda que o estado puerperal é uma mera ficção jurídica, senão vejamos o que diz França (1998, p. 240) sobre o tema:

nada mais fantasioso que o chamado estado puerperal, pois nem sequer tem um limite de duração definido (...) o que acontece no infanticídio é que numa gravidez ilegítima, mantida em sobressaltos e cuidadosa reserva, pensa a mulher dia e noite em como se livrar do fruto de suas relações clandestinas (...) e como maneira de solucionarem seu problema praticam o crime devidamente premeditado em todas as suas linhas, tendo o cuidado, entre outras coisas, de esconder o filho morto, dissimular o parto, tudo isso com frieza de cálculo, ausência de emoção, e, às vezes, requintes de crueldade.

Outra dificuldade trazida pelo tipo penal em questão é o tempo de duração do puerpério, já que a redação do art. 123 se limita a consignar “durante o parto ou logo após”. O critério mais elástico prefere deixar a análise da concepção de “logo após” ao caso concreto, compreendendo que há o crime de infanticídio enquanto perdurar a influência do estado puerperal. Noronha (2003, p. 49) segue essa linha de entendimento:

Todavia, nascida a criatura, pode o delito ainda ocorrer, desde que se dê logo depois do parto. Este outro período acha-se delimitado pela influência do estado puerperal, isto é, aquele estado de angústia, perturbações etc., que justificam o delictum exceptum. A lei não fixou prazo, como outrora alguns Códigos faziam, porém não se lhe pode dar uma interpretação mesquinha, mas ampla, de modo que abranja o variável período do choque puerperal. É essencial que a parturiente ainda não haja entrado ainda na fase da bonança, em que predomina o instinto materno. Trata-se de circunstância de fato a ser averiguada pelos peritos médicos e mediante prova indireta.

A maior controvérsia levantada pelo delito em tela, contudo, é a aplicabilidade do art. 30 do Código Penal, conforme já mencionado acima, e é essa divergência que se busca tratar neste estudo.


2 – O CRIME DE INFANTICÍDIO E SUAS CARACTERÍSTICAS

 

2.1 - A definição do termo infanticídio

 

A expressão “infanticídio”, que provém do latim infanticidium, teve ao longo da história o significado de morte de criança, mais especificamente do recém-nascido. Na definição extraída do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (1986, p. 601), infanticídio é o “assassínio do recém-nascido, morte dada a uma criança”.

2.2 – Classificação doutrinária do crime de infanticídio

De acordo com a doutrina, o delito de infanticídio trata-se de crime próprio, material, instantâneo, comissivo ou omissivo impróprio e de forma livre.

É crime próprio porque exige uma condição especial do agente (ser mãe da vítima); é material, pois exige resultado prático no mundo naturalístico, qual seja, a morte do neonato ou do nascente; é instantâneo porque sua consumação não se estende pelo tempo, ou seja, o crime se consuma no momento da morte do neonato ou do nascente; é comissivo, pois exige uma conduta ativa do agente (ação de fazer), ou omissivo impróprio, nos casos em que a mãe deixa de agir de modo a preservar a vida do neonato ou nascente, causando-lhe a morte; é crime de forma livre porquanto pode ser praticado de incontáveis formas.

2.3 – As circunstâncias tidas como elementares do delito de infanticídio

O Código Penal Pátrio, no art. 30, trata das circunstâncias elementares do crime. Citados elementos dizem respeito a requisitos fundamentais para a caracterização do tipo penal.

Especificamente quanto ao infanticídio, são tidas como circunstâncias elementares: o sujeito ativo, que é a mãe da vítima; o sujeito passivo, que, por sua vez, é o filho do sujeito ativo; a ação dolosa de matar; o objeto material, que é o neonato; a circunstância elementar normativa, que é o estado puerperal; e a circunstância elementar temporal, que é praticar o delito durante ou logo após o parto. A ausência de um ou mais dos citados elementos descaracterizaria o delito e, a depender do caso concreto, caracterizaria crime diverso. Como exemplo, pode-se citar a mãe que mata o filho sem estar no estado puerperal, o que configuraria o crime de homicídio.


3 - CONCEITO E FORMAS DE PARTICIPAÇÃO

Como se sabe, um delito pode ser praticado por uma só pessoa ou por mais de uma. Aquele sujeito ativo principal do crime é chamado autor, enquanto aqueles que contribuem mutuamente para a prática de um dos núcleos verbais do tipo penal são coautores. Já o partícipe é aquele que contribui de forma acessória para a prática do crime.

A coautoria é caracterizada pelo princípio da divisão de tarefas definido por Batista (1979, p. 76):

A idéia de divisão de trabalho, que alguns autores, como Antolisei, situam como reitora geral de qualquer forma de concurso de agentes, encontra na co-autoria sua adequação máxima. Aqui, com clareza, se percebe a fragmentação operacional de uma atividade comum, com vistas a mais seguro e satisfatório desempenho de tal atividade. Por isso os autores afirmam que a co-autoria se baseia no princípio da divisão de trabalho.

É importante a menção ao art. 29 do Código Penal Brasileiro, que dispõe que “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Tal disposição legal contempla a Teoria Monista, abarcada por nosso ordenamento jurídico. Pertinente também é mencionar o que preleciona o art. 31 do mesmo Diploma Legal: “O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado”.

Portanto, observa-se que enquanto o art. 29 refere-se à participação no crime de forma abrangente, o art. 31 chega a fazer menção a algumas formas de participação (auxílio, determinação, instigação e auxílio). Tal participação pode ser material ou moral. Na primeira, são praticadas pelo partícipe condutas acessórias efetivas, concretas. Na segunda, o partícipe limita-se ao incentivo moral à prática criminosa. A participação moral pode ocorrer na forma de instigação ou induzimento. Instigar significa estimular uma intenção criminosa que o autor já possuía, ou seja, constitui um incentivo a uma prática delituosa que alguém já desejava cometer. Induzir, por outro lado, é fazer surgir a ideia da prática delitiva na mente de outrem, que sequer pensava em praticar o ilícito.

A participação pode se dar em relação a diferentes tipos de crimes. Para se chegar à sua constatação, deve-se buscar o vínculo subjetivo existente entre os agentes. Também é possível a participação nos chamados crimes próprios, em face do disposto no art. 30 do CP, já transcrito alhures. Aníbal Bruno (1967, p. 43) bem esclarece a questão:

O concurso admite-se para qualquer espécie de fato punível. Mesmo nos crimes especiais, que requerem no agente qualidades pessoais particulares, como a de ser funcionário público, por exemplo, a concorrência é possível. Podem neles tomar parte pessoas não revestidas daquelas qualidades, desde que pelo menos uma delas as possua.

Nesse caso, responderão todos pela mesma conduta, e serão responsabilizados “na medida da sua culpabilidade” (art. 29 do CP). É importante ressaltar que, em face do princípio da individualização da pena, cada partícipe será apenado de acordo com os critérios estabelecidos nos arts. 58 e 69 do citado diploma legal.

3.1 - A disposição contida no art. 30 do Código Penal Brasileiro

É oportuno trazer novamente à baila a redação do art. 30 do CPB: “não se comunicam as circunstâncias e condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”.

Circunstâncias são elementos externos ao delito e exercem grande influência na dosagem da pena. A constatação das mesmas não contribui para a caracterização do delito, apenas são consideradas quando da aplicação da reprimenda. Um homicídio cometido em uma rua comum, por exemplo, não pode ser apenado com o mesmo rigor que um homicídio praticado dentro de uma igreja; claro, considerando-se inalteradas todas as demais circunstâncias. As circunstâncias subdividem-se em objetivas e subjetivas. Objetivas são aquelas que concernem a fatores externos, tais como o local, o horário, modus operandi, entre outras. Subjetivas, por outro lado, referem-se a elementos que dizem respeito ao indivíduo, e não com os fatores relacionados à materialidade delitiva, como o fato de ser menor de 18 anos, por exemplo.

Condições de caráter pessoal são elementos que caracterizam o indivíduo em sua vida social, envolve seu conjunto de relações com outros e o papel que o mesmo exerce. Nesse contexto podem-se citar como condições pessoais a profissão, nome, dentre outros.

Elementares são aqueles elementos que, se ausentes, descaracterizam o fato como crime ou configuram delito diverso. Em outras palavras, são circunstâncias essenciais para a configuração de determinado tipo penal.

A primeira parte do art. 30 do CP nos leva à conclusão de que as circunstâncias de caráter pessoal não se comunicam aos coautores e partícipes do crime. Cada agente carrega consigo determinadas características e é responsabilizado de acordo com as mesmas. Desse modo, se três agentes cometem um crime de roubo, por exemplo, e apenas um deles é reincidente, a agravante contida no art. 61, I, do Código Penal, somente será aplicada a este último. Acerca do tema assevera Mirabete (2003, p. 239):

As condições e circunstâncias pessoais não se comunicam entre os co-autores ou partícipes. Assim, cada sujeito responderá de acordo com suas condições (menoridade, reincidência, parentesco) e circunstância (motivo fútil, de relevante valor social ou moral, de prescrição etc.).

Não obstante tais considerações, o conteúdo do art. 30 não se encerra nessa disposição. A segunda parte de tal norma prevê que, quando as circunstâncias pessoais constituírem elementares do crime, comunicarão aos demais coautores ou partícipes. Trata-se de uma exceção à incomunicabilidade do art. 30.

Os crimes próprios, conforme já dito, caracterizam-se por exigirem do agente uma qualidade especial. Pode-se citar como exemplo o crime de peculato, que exige, para sua configuração, que o agente seja funcionário público. Tal condição é elementar do crime. Frise-se, porém, que a comunicabilidade somente é possível quando o coautor ou partícipe tenha ciência da qualidade especial do outro agente, caracterizada como elementar. Do contrário, chegar-se-ia à esdrúxula situação de punição sem ocorrência de, no mínimo, culpa do agente, o que é totalmente abominado por nosso sistema jurídico. A respeito do tema discorre Fernando de Almeida Pedroso (1995, p. 132):

Com relação às circunstâncias objetivas, vige a regra da comunicabilidade, desde que conhecidas pelo partícipe ou coautor. É imperioso, para a comunicação da circunstância objetiva ao coautor, que tenha entrado em sua esfera de conhecimento, pois a comunicabilidade absoluta, sem esse fator de cognição, implicaria a adoção da profligada, execrável e abominada responsabilidade objetiva (qui in re illicita versatur etiam pro casu tenetur).


4 – OS ELEMENTOS NORMATIVOS DO CRIME DE INFANTICÍDIO

Conforme já explicitado anteriormente, o crime de infanticídio é assim tipificado: matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após.

Como se vê, o verbo núcleo do crime em questão é matar, o que pode ocorrer tanto na forma comissiva como na omissiva. Há, também, o elemento normativo “durante o parto ou logo após”. Fragoso (1958, p. 76), ao interpretar tal redação, assim preleciona:

a morte do recém nascido deve dar-se logo após o nascimento. Esta expressão significa logo em seguida, imediatamente após, prontamente, sem intervalo.

Noronha (2003, p. 49), entretanto, dá interpretação mais elástica à norma, deixando a solução à análise do caso concreto, entendendo que há o crime de infanticídio enquanto perdurar a influência do estado puerperal, entendimento este que se mostra mais razoável.

Outro elemento normativo é praticar o crime sob influência do estado puerperal, que é definido por Alcântara (1982, p. 115-116) como “uma obnubilação mental seguinte ao desprendimento fetal que só se manifesta na parturiente que não recebe assistência, conforto ou solidariedade, e é um quadro mais jurídico do que médico, embora haja algumas explicações etiopatogênicas”.

Portanto, estar sob influência do estado puerperal configura circunstância indispensável para a configuração do crime de infanticídio.

Ressalte-se, porém, que a gravidade de tal estado pode chegar a tal ponto que retire completamente a capacidade da agente entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, o que levaria a uma absolvição imprópria, dada a inimputabilidade do sujeito ativo do delito, ou a uma mera redução da pena, caso a diminuição de tal capacidade seja apenas parcial, conforme se pode depreender do art. 26 do Código Penal. É oportuno trazer à colação os ensinamentos de Bitencourt (2000, p. 43):

Se, entretanto, o estado puerperal atuar de modo ainda mais grave, interagindo com alguma particular e preexistente condição psíquica da mãe, de tal modo que se possa concluir que ela atuou sem a capacidade de entendimento ou determinação, poderá ser considerada inimputável ou com capacidade diminuída, havendo homicídio inculpável ou com pena reduzida na forma do que dispõem, respectivamente, o caput e o parágrafo único do art. 26 do Código Penal.

Portanto, a influência do estado puerperal pode conduzir até mesmo à inimputabilidade, o que ficará caracterizado quando comprometer a saúde mental da mãe que venha a praticar o tipo penal em questão.


5 – OS SUJEITOS DO CRIME DE INFANTICÍDIO

Como já explicitado anteriormente, somente a mãe pode ser sujeito ativo do crime em questão. Teles (2006, p. 123) ensina que:

Trata-se de crime que só pode ser praticado pela própria mãe da vítima, nascente ou neonata. Assim, o sujeito ativo é a própria mãe. E o sujeito passivo é o ser humano nascente ou que acabou de nascer.

Não obstante tal fato, de acordo com parte da doutrina, é possível que um terceiro que não esteja sob influência do estado puerperal venha a figurar como sujeito ativo do citado delito, isso em face do disposto no art. 30 do Código Penal.

O sujeito passivo do referido crime é o recém-nascido (aquele que acabou de nascer) ou o feto nascente (que tem características do infante nascido, porém ainda não respirou), conforme ensina Hungria (1958, p. 257-259):

O sujeito passivo do infanticídio. O Código atual ampliou o conceito de infanticídio: o sujeito passivo deste já não é apenas o recém-nascido, mas também o feto nascente.

Pode-se observar que o Código Penal de 1940 tornou ainda mais ampla a concepção de infanticídio anteriormente adotada pelo Código Penal de 1890, tendo em vista que este diploma legal admitia, como sujeito passivo, unicamente o recém-nascido, nos sete primeiros dias de vida. Desde tal orientação do Código Penal, o feto nascente, além do recém-nascido, passou a ser sujeito passivo do referido crime.

Destarte, a possibilidade de vida autônoma do neonato não mais foi considerada condição indispensável para a caracterização do infanticídio, mostrando-se suficiente a vida biológica. Segundo o magistério de Prado (2008, p. 95), "Sujeito passivo é o ser humano nascente – na etapa de transição da vida uterina para a extra-uterina – ou recém-nascido (elemento normativo do tipo). Dispensável a vida autônoma, sendo suficiente a prova da vida biológica".

Dessa forma, o sujeito passivo do delito de infanticídio pode ser o próprio filho, recém-nascido ou o nascente. Quando não se puder falar em vida autônoma, qualquer ato que visasse à eliminação do feto caracterizaria crime impossível.


6 – A COMUNICABILIDADE DAS ELEMENTARES DO DELITO DE INFANTICÍDIO

Como já esboçado acima, o autor do delito em questão somente pode ser a mãe que esteja sob influência do estado puerperal. Há situações, contudo, em que a mãe não pratica a conduta sozinha, contando com a colaboração de terceira pessoa.

Não obstante seja classificado pela doutrina como crime próprio, tal fato não tem o condão de afastar a possibilidade de ocorrência do concurso de agentes.

E, em face da disposição legal contida no art. 30 do Código Penal Brasileiro, já transcrito acima, tal matéria é causa de grande celeuma no mundo jurídico.

Grande parte da doutrina, sustentando-se no citado dispositivo, defende a comunicabilidade, ou seja, aquele que, de qualquer forma, concorre para a prática do infanticídio, incide nas penas a este cominadas.

Ocorre que tal entendimento cria uma situação por demais estranha. Isso porque é notório que o terceiro não se encontra nas mesmas condições fisiológicas da mãe da vítima e, portanto, não pode ser tratado de forma idêntica.

É oportuna a menção a um trecho de autoria de Bitencourt (2001, p. 117), que esclarece:

Enfim, é indispensável uma relação de causalidade entre o estado puerperal e a ação delituosa praticada; esta tem de ser conseqüência da influência daquele, que nem sempre produz perturbações psíquicas na mulher [...] Não teria sentido, caso contrário, manter o privilégio, e o infanticídio representaria uma inversão odiosa da ordem natural dos valores protegidos pela ordem jurídica.

Com efeito, o estado puerperal é circunstância indispensável para que possa a mãe autora do crime ser beneficiada pelo privilégio previsto na lei. E, se referida condição é indispensável à mãe, o que se dizer em relação a um terceiro totalmente estranho a tal situação?

O que se pode depreender da doutrina que defende a tese da comunicabilidade é uma desconfortável busca da aplicação à comunicabilidade prevista no art. 30 do Código Penal, mesmo que para isso tenha que se chegar a uma situação inconcebível. Trata-se de um posicionamento excessivamente positivista, que não merece prevalecer. É importante trazer à baila trecho da citação trazida no artigo Crimes contra a Vida, de João José Caldeira Bastos:

a moderna dogmática penal, ora centrada em falsas premissas ontológicas, ora apegada ao ilusório positivismo da lei, já se esgotou há muito como instrumental teórico-metodológico de retransmissão acadêmica. Quer dizer, já prestou serviço, já cumpriu seu papel histórico, já mostrou circunstancialmente sua utilidade prática. Mas está morta, em substância, pouco importando que suas crenças, autofágicas e contraditórias, continuem a ilustrar as melhores obras de nossos melhores penalistas[1].

A conclusão que se pode extrair do trecho supramencionado é a de que a lei penal deve guardar relação com a realidade atual. Como conclusão imediata, tem-se que o trabalho do intérprete é de suma importância na preservação da legitimidade da atuação do Estado, no exercício de seu direito de punir, afastando entendimentos que possam trazer soluções destoantes dos objetivos almejados pela sociedade.

Ora, é corolário do Estado Democrático de Direito a simetria entre as normas jurídicas e a realidade que se busca alcançar, ou seja, para que atinja o objetivo maior a que se propõe, que é a harmonia das relações sociais, devem ser aplicadas normas condizentes com a finalidade almejada e que efetivamente se mostrem eficazes para o alcance desse escopo. Como consequência disso, tem-se que o modelo punitivo hoje estabelecido visa justamente restabelecer um equilíbrio inicialmente quebrado pela infringência à norma legal, punindo aquele que cometeu o ato ilícito de forma proporcional ao dano causado, de modo que tal reprimenda se mostre suficiente para evitar que aquele infrator não mais venha a praticar a conduta ilegal.

À medida que tais normais se distanciam do que é tido como razoável, proporcional, distancia-se do objetivo proposto pelo Estado Democrático de Direito.

Ora, o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, também conhecido como Princípio da Proibição de Excesso, que, de acordo com a interpretação do Supremo Tribunal Federal, tem como sede material a regra constitucional do devido processo legal substantivo, veio com a finalidade de impedir restrições desmedidas aos direitos fundamentais, seja por atos administrativos, seja por atos legislativos.

 Tal princípio demonstra a observação ao limite do alcance das regras jurídicas positivadas. Em outras palavras, não é suficiente que se tenha elaborado a lei de acordo com os procedimentos previstos; deve ser ela também adequada, proporcional, de forma que a restrição aos direitos fundamentais se mostre adequada ao padrão de justiça social. No dizer de Humberto Bergmann Ávila (2006, p. 54):

pode-se definir o dever de proporcionalidade como um postulado normativo aplicativo decorrente da estrutura principal das normas e da atributividade do Direito e dependente do conflito de bens jurídicos materiais e do poder estruturador da relação meio-fim, cuja função é estabelecer uma medida entre bens jurídicos concretamente correlacionados.

No entender de Juarez Freitas (1997, p. 45), “o princípio da proporcionalidade quer significar que o Estado não deve agir com demasia, tampouco de modo insuficiente na consecução dos seus objetivos”.

Nesse contexto, é importante ressaltar que o Direito Penal tem como objetivo precípio a proteção dos valores individuais e sociais de maior importância. E esse mister é cumprido por meio da incriminação de condutas.

Porém, apenas proibir ou exigir não basta para que as pessoas se comportem de acordo com a norma penal prevista no ordenamento. Para que a efetivação disso seja possível, é necessário que tal descumprimento tenha como previsão legal uma sanção, isto é, uma punição à pessoa que infringiu a norma. Várias são as sanções previstas em nosso ordenamento jurídico: desde penas de multa até a pena de morte – no caso de crimes militares em tempo de guerra.

Assim, observa-se que o Estado, a fim de proteger alguns direitos, prevê sanções em caso de descumprimento das normas estabelecidas. Porém, em face do princípio da proporcionalidade, tal sanção deve ser proporcional à gravidade da conduta. No caso do crime de infanticídio, ao se adotar a tese da comunicabilidade, dá-se uma solução desproporcional ao caso, e tal desproporcionalidade reside no fato de que é aplicada pena consideravelmente menor àquele que, estando em seu estado normal, vem a concorrer para a morte de um recém-nascido, do que àquele que mata em circunstâncias diversas (aquele que mata um adulto).

Não é preciso fazer um grande esforço de hermenêutica para se chegar a essa conclusão, e tal situação poderia ser solucionada de forma diversa sem que se necessite recorrer a divagações jurídicas. Doutrinadores vários já cuidaram dessa tarefa, valendo, aqui, citar alguns nomes: Nelson Hungria, Galdino Siqueira, Costa e Silva, Heleno Cláudio Fragoso, Salgado Martins e Aníbal Bruno. É oportuna a citação de Nelson Hungria (1955, p. 44) a respeito do tema:

Não condiz com o infanticídio a regra do art. 25 (“Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas”). Trata-se de um crime personalíssimo. A condição “sob a influência do estado puerperal” é incomunicável. Não tem aplicação, aqui, a norma do art. 26, sobre as circunstâncias de caráter pessoal, quando elementares do crime. As causas que diminuem (ou excluem) a responsabilidade não podem, na linguagem técnico-penal, ser chamadas circunstâncias, pois estas só dizem com o maior ou menor grau de criminosidade do fato, ou seja, com a maior ou menor intensidade do elemento subjetivo ou gravidade objetiva do crime. O partícipe (instigador, auxiliar ou co-executor material) do infanticídio responderá por homicídio.

É certo que Hungria, em momento posterior de sua carreira, acabou por reconhecer a comunicabilidade no crime de infanticídio, conforme menciona Fragoso (2002, p. 35), entretanto, defende-se aqui o posicionamento que aquele ardorosamente defendeu inicialmente.

Tal entendimento – o da incomunicabilidade – em que pese à maestria de inúmeros doutrinadores que entendem de forma diversa, se mostra muito mais sóbrio e próximo da proporcionalidade acima invocada, pois reconhece a notória particularidade do concurso de pessoas no crime de infanticídio. Conforme se pode ver acima, trata-se de crime personalíssimo, em que somente pode figurar como sujeito ativo a mãe que esteja sob influência do estado puerperal. Aliás, é importante ressaltar que, na exposição de motivos do Código Penal, consignou-se que "o infanticídio é considerado um delictum exceptum quando praticado pela parturiente sob influência do estado puerperal”. Ora, a redação citada deixa claro que o infanticídio trata-se de um delito especial quando for cometido pela mãe sob influência do estado puerperal. Pela leitura do trecho referido, entende-se que o crime de infanticídio contempla uma situação peculiar, que não tipifica o homicídio em face de uma circunstância excepcional. Tais considerações, por si sós, já são suficientes para se afastar a hipótese de que um terceiro venha a figurar como sujeito ativo de tal crime.

Magalhães Noronha (1990, p. 214), contrário ao entendimento aqui defendido, assim discorre sobre o tema:

Questão sumamente controvertida é a proporcionada pelo art. 123 - infanticídio. Trata-se de crime privilegiado, em face do estado puerperal da mãe que mata o filho durante o parto ou logo após. Pergunta-se, então: o terceiro que a auxilia é co-partícipe de infanticídio ou pratica homicídio? Hungria é pela última hipótese, dizendo que o estado puerperal é personalíssimo e incomunicável. A figura contém um privilégio que só à mulher aproveita. Não comungamos da abalizada opinião. Preliminarmente, nossa lei não distingue: ela só conhece circunstância pessoal, sendo arbitrária a invocação de outra espécie, e, portanto, o princípio firmado no art. 236 (sic) só pode ceder diante de texto expresso. Depois porque a douta opinião quebra o todo unitário do crime, constituído por fato material único, e vinculados psicologicamente os participantes pela convergência de vontades.

Tal entendimento não merece prevalecer. Isso porque manifestar-se pela incomunicabilidade não significa diferenciar onde o legislador não o fez, e sim reconhecer que o crime em questão é personalíssimo, com características peculiares que o distinguem dos demais.

Aníbal Bruno (1966, p. 67), com excepcional perspicácia, vem a corroborar esta posição:

Só pode participar do crime de infanticídio a mãe que mata o filho nas condições particulares fixadas na lei. O privilégio que se concede à mulher sob a condição personalística do estado puerperal não pode estender-se a ninguém mais. Qualquer outro que participe do fato age em crime de homicídio. A condição do estado puerperal, em que se fundamenta o privilégio e que só se realiza na pessoa da mulher que tem o filho impede que se mantenha sob o mesmo título a unidade do crime para o qual concorrem os vários partícipes. Em todos os atos praticados trata-se de matar, mas só em relação à mulher, pela condição particular em que atua, esse matar toma a configuração do infanticídio.

O entendimento de Aníbal Bruno, indubitavelmente, coloca-se mais próximo do princípio da razoabilidade, previsto em nossa Constituição Federal e sobre o qual se discorreu acima, do que as posições favoráveis à comunicabilidade no crime de infanticídio. Chega-se a essa conclusão sem maiores dificuldades: o verbo reitor do crime de infanticídio é matar, mas que apresenta como sujeito passivo não qualquer pessoa, mas o nascente ou neonato, tendo como sujeito ativo a própria mãe, que esteja sob influência do estado puerperal. Assim, se um nascente é filho de uma mulher, não o pode ser de outra; e somente aquela que deu à luz a este pode estar sob influência do estado puerperal. Não há como negar, destarte, que o infanticídio é por excelência uma forma especial de tirar a vida de alguém, de modo que não há lugar para a coautoria. Dessa forma, diversamente do que entende Magalhães Noronha, não há necessidade de alteração textual da lei para que o terceiro participante do infanticídio seja punido por homicídio. Este já é um crime que, por suas características materiais, nos leva a tal conclusão.

Assim, em face de suas particularidades, entende-se que as elementares do crime de infanticídio tratam-se, na verdade, de circunstâncias do crime de homicídio, ou seja, circunstâncias que atenuam a gravidade do homicídio propriamente dito, com sujeitos ativo e passivo próprios, não obstante constitua um artigo isolado no Código Penal.

Com efeito, não se pretende, aqui, utilizar o princípio da razoabilidade como um instituto que, por já estar consolidado no Direito e ter todo um aparato doutrinário dedicado ao seu estudo, sirva como justificativa idônea a sustentar uma tese apenas por entender que esta é mais “razoável”. Em outras palavras, não se pretende defender um posicionamento tido como mais “justo” – em face da subjetividade que tal conceito carrega em si – mas, sim, de forma mais objetiva, demonstrar a problemática gerada ao se adotar a tese da comunicabilidade no crime de infanticídio. Para se compreender tal linha de entendimento, de forma objetiva, basta que se compare a solução que é dada para aquele que concorre para a morte de um neonato ou nascente com a que é dada àquele que concorre para a morte de alguém, sem estar nas circunstâncias descritas no crime de infanticídio.

É inegável a contradição que tal situação proporciona. Portanto, antes de se valer de argumentos tais como justiça, bom-senso, pode-se facilmente chegar ao entendimento de que a cominação de pena significativamente diversa àquele que comete homicídio e àquele que concorre para o crime de infanticídio fere o princípio da igualdade, previsto expressamente em nossa Constituição Federal.

Ao se fazer esse exercício, tal seja, pensar que dois indivíduos que estejam em condições semelhantes e que vêm a ceifar a vida de outrem podem ser apenados de forma totalmente desigual (claro, desconsiderando-se as excludentes de ilicitude, como, por exemplo, a legítima defesa), aproxima-se ainda mais de parâmetros objetivos e, ao mesmo tempo, afasta-se de critérios excessivamente subjetivos – que devem ser evitados em um Estado Democrático de Direito. É a hipótese objetivamente considerada que nos leva a tal conclusão. Portanto, não se trata de invocar os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e igualdade como forma de defender um entendimento excessivamente pessoal, maculado de extrema subjetividade. Fazer tal exercício é algo semelhante a resolver uma equação matemática (talvez a ciência mais objetiva dentre as existentes), em que, ao se somar fatores idênticos, chega-se a resultados diferentes, o que de forma alguma pode ser admitido.

Nas palavras de Moraes (2002, p. 143):

“A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado”.

É tal situação desigual que é gerada ao se adotar a malsinada tese da comunicabilidade, tese esta que, em face dos argumentos acima esposados, não merece guarida.

Sem pretender levar o argumento à exaustão, mas apenas para que seja suficientemente enfatizado, parece inadmissível cominar pena de detenção de 02 a 06 anos àquele que, sem estar sob influência do estado puerperal, venha a matar o neonato ou nascente – alguém que não tem quaisquer chances de defesa – enquanto coexiste em nosso sistema jurídico a possibilidade de apenamento, com até 20 anos de reclusão, daquele que igualmente mata, porém, o faz em relação a um adulto – alguém que em princípio tem muito mais chances de se defender.

Teles (2006, p.126-127) corrobora tal tese:

Só pode, portanto, esse homicídio especial ser praticado pela mãe, em relação ao próprio filho. Por mais ninguém. O tipo foi construído para alcançar, exclusivamente, a conduta da mãe, em relação ao próprio filho, naquele tempo e sob aquela influência, que a ninguém mais pode afetar. Tivesse nossa lei adotado o critério puramente psicológico – a causa de honra – aí, sim, poder-se-ia admitir o concurso, mas apenas para os que também incorporasse o motivo de honra em seu íntimo para participar do crime.

E continua com a citação da lição de Cernicchiaro:

O infanticídio, portanto, é um tipo que pena uma agente. Ela e só ela. O juízo de reprovabilidade é exclusivo à pessoa descrita no tipo. A mais ninguém. O estranho à narração do modelo quando, de qualquer modo concorre para matar alguém, amolda-se a outro tipo de culpabilidade, no caso, do homicídio.

 E arremata:

Assim, aquele que de qualquer modo concorrer para o infanticídio, na condição de co-autor ou de partícipe, ainda que atuando com menor importância, responderá pelo crime de homicídio.

Na mesma esteira, é oportuna a citação de Siqueira (1966, p. 47), que, de igual forma, rechaça a possibilidade de reconhecimento da comunicabilidade no delito tipificado no art. 123 do Código Penal Pátrio, asseverando que somente a própria mãe, independentemente de sua condição legal ou moral, pode figurar como sujeito ativo do crime de infanticídio. Como consequência, um terceiro que eventualmente venha a matar o nascente ou recém-nascido, ou que participe como instigador, auxiliar ou mesmo executor material, responderá por homicídio.


CONCLUSÃO

O infanticídio é delito previsto no art. 123 do Código Penal Brasileiro, punido com pena de 02 a 06 anos de detenção. Conforme demonstrado, trata-se de crime próprio, material, instantâneo, comissivo ou omissivo impróprio e de forma livre. É um crime privilegiado por envolver alterações fisiológicas que se refletem como incapacidade do executor em avaliar a intensidade do delito que se está cometendo, alterações essas que compõem o chamado estado puerperal.

O infanticídio é crime que, em face dos argumentos esboçados no curso deste trabalho, causa grande celeuma no mundo jurídico. A polêmica maior, contudo, é levantada quando o crime em questão é praticado em concurso de pessoas. Em face da comunicabilidade das circunstâncias pessoais, na forma do art. 30 do Código Penal, renomados penalistas se digladiam, manifestando concepções bastante divergentes.

O presente estudo tomou por foco essa controvérsia, razão pela qual foram dedicadas mais páginas à relação entre o art. 30 e o crime em questão. Buscou-se defender, aqui, em face das peculiaridades de que é cercado o crime de infanticídio, a tese da incomunicabilidade das circunstâncias pessoais descritas no art. 123 do CP aos terceiros que porventura se envolvam em tal prática delitiva, de modo que somente a mãe da vítima do citado crime pode nele figurar como sujeito ativo.

Tal entendimento, em que pese a sabedoria dos inúmeros e renomados juristas que defendem o posicionamento contrário, que constituem, inclusive, maioria, se mostra mais próximo dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade que devem nortear o Estado Democrático de Direito, tendo em vista que soluciona, com o necessário rigor, a situação daqueles que cometem tal ato ilícito sem, contudo, estarem sob a influência do chamado estado puerperal, que, conforme se sabe, caracteriza-se por alterações fisiológicas da mãe que acabou de conceber.

Ressalta-se, porém, conforme já enfatizado nas páginas dedicadas à análise da comunicabilidade, que não se buscou, aqui, a utilização dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e igualdade como sustentáculo a um entendimento meramente subjetivo, despido de justificativas objetivas, situação esta que iria de encontro à proposta de qualquer trabalho científico. O exercício realizado neste estudo foi o de apresentar razões objetivas que, no mínimo, nos levem a voltar maior atenção à tese da incomunicabilidade. Como consequência, espera-se que este trabalho torne ainda mais robusta a corrente daqueles que defendem a incomunicabilidade das circunstâncias pessoais no crime de infanticídio.


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Nota

[1]           BASTOS, João José Caldeira. Artigo: Crimes contra a Vida: a Mágica do Intérprete. Disponível no sítio http://jus.com.br/artigos/11274


Autor

  • Bruno Júnio Bicalho Zica

    Bruno Júnio Bicalho Zica

    Graduado em Administração pelo Centro Universitário Newton Paiva e em Direito pela Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte. Especialista em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco. Mestrando em Direito pela Fundação Mineira de Cultura - FUMEC. Advogado. Analista Administrativo do Departamento Nacional de Produção Mineral. Atuou na docência em Cursos Preparatórios para Concursos Públicos.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZICA, Bruno Júnio Bicalho. A comunicabilidade das elementares pessoais no crime de infanticídio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4026, 10 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30152. Acesso em: 26 abr. 2024.