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A constitucionalidade do teleinterrogatório no processo penal brasileiro

A constitucionalidade do teleinterrogatório no processo penal brasileiro

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A corrente contrária ao novo procedimento está contaminada pelo vício da inconstitucionalidade, ao passo que o teleinterrogatório configura-se como um instituto genuinamente constitucional.

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia, e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

Fernando Pessoa

Resumo: O teleinterrogatório (também conhecido como interrogatório on-line) é, em essência, uma forma atualizada de se operacionalizar o ato processual do interrogatório do acusado previsto no CPP, pela incorporação dos recursos da moderna tecnologia de videoconferência. O novo procedimento vale-se de ferramental de hardware e soft-ware específicos que permite que o interrogatório se realize estando juiz e acusado geograficamente distantes. A despeito dos muitos benefícios e vantagens advindos da utilização desse procedimento, o mesmo enfrenta forte resistência de expressivo contingente de doutrinadores e aplicadores do direito, que sustentam ser o teleinter-rogatório inconstitucional por ferir os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e contraditório, e da dignidade humana. Este estudo se propõe a demonstrar que tal entendimento não pode prosperar, e que o instituto do teleinterrogatório é constitucional. A partir da investigação dos princípios (também de matriz constitucional) da proporcionalidade, da razoabilidade e da eficiência, evidencia-se que a argumentação pró-inconstitucionalidade, considerada em si própria, é, ela sim, inconstitucional. Por outro lado, se constata que o teleinterrogatório, ao invés de afrontar, fortalece o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Vale-se do método dedutivo, no qual a premissa geral é a de que o controle de constitucionalidade necessita estar assentado em exegese eminentemente constitucional. Através de abordagem “principiológica” aprofundada do conjunto de argumentos que pretende afastar o teleinterrogatório da prática processual penal, conclui-se que o mesmo revela-se desproporcional e não-razoável. Além disso, esses argumentos buscam perpetuar a utilização de procedimento bem menos eficiente do que o teleinterrogatório, este perfeitamente alinhado com a base principiológica da Constituição brasileira. Em síntese, a corrente contrária ao novo procedimento está contaminada pelo vício da inconstitucionalidade, ao passo que o teleinterrogatório configura-se como um instituto genuinamente constitucional.

Palavras chaves: Processo Penal. Interrogatório. Videoconferência. Teleinterrogatório. Princípios constitucionais. Constitucionalidade. Inconstitucionalidade.

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO..1 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO ESTADO CIVIL DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 1.1 PRINCÍPIO, REGRA E NORMA.1.2 O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E O ESTADO LIBERAL. 1.3 O ESTADO SOCIAL. 1.4 O ESTADO DEMOCRÁTICO.2 A BASE PRINCIPIOLÓGICA DO INTERROGATÓRIO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO.2.1 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL..2.2 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO.2.3 PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA..2.4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.2.5 PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.2.6 PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA.2.7 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.3 INTERROGATÓRIO E TELEINTERROGATÓRIO NO CONTEXTO DA TEORIA DAS PROVAS NO PROCESSO PENAL.3.1 A PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO.3.2 INTERROGATÓRIO E TELEINTERROGATÓRIO.4 A CONSTITUCIONALIDADE DO TELEINTERROGATÓRIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.4.1 O TELEINTERROGATÓRIO E O DEVIDO PROCESSO LEGAL.4.2 O TELEINTERROGATÓRIO E A AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO.4.3 O TELEINTERROGATÓRIO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA..4.4 TELEINTERROGATÓRIO: CONSTITUCIONALIDADE OU INCONSTITUCIONALIDADE?....5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..REFERÊNCIAS..


INTRODUÇÃO

Em episódio recente, que mereceu amplo espaço na mídia, a opinião pública nacional viu-se perplexa diante de uma verdadeira “operação de guerra” que mobilizou policiais, viaturas e expressivo contingente de recursos que deveriam estar direcionados à proteção e segurança do cidadão, mas que, no caso, se destinavam a assegurar que conhecido traficante de entorpecentes, preso desde 2001, pudesse comparecer aos atos dos diversos processos a que responde, valendo-se assim das prerrogativas que a lei processual penal faculta a todos os réus. Aos olhos do cidadão comum, mais um exemplo do descalabro e dá má versação das verbas públicas, num país tão carente de investimentos em saúde, educação, transporte e tantos outros serviços vitais para o bem estar da população.

À luz do direito posto, contudo, a questão não se mostra tão simples assim. O direito de efetiva participação nos atos processuais (audiências, interrogatório, oitiva de testemunhas etc) ancora-se numa matriz de princípios constitucionalmente consagrados, aos quais o legislador constituinte conferiu o status de garantias fundamentais, e cujo rol constitui um dos pilares mestres do Estado Democrático de Direito inaugurado em nosso país pela Constituição Federal de 1988.

Assim, é com base nos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (os dois últimos tidos como verdadeiros corolários do primeiro), que se assegura ao réu do direito de participar aos diversos atos processuais. São todos princípios caros ao direito processual penal.

Sempre informados por esses princípios constitucionais, dentre os atos processuais de que deve tomar parte o acusado destaca-se o seu interrogatório, que é tido como um dos atos processuais mais importantes do processo penal, e que inaugura a fase de instrução criminal. É verdadeiro meio de defesa, pelo qual o réu, na presença do juiz tem oportunidade de apresentar a sua versão acerca dos fatos criminosos que lhe são imputados, defendendo-se das acusações constantes da denúncia, assistindo-lhe inclusive o direito de permanecer em silêncio, não respondendo as perguntas que lhe forem formuladas. Através do interrogatório, por sua vez, o juiz tem a oportunidade de conhecer a personalidade do réu, ouvindo diretamente seus motivos e as circunstâncias do crime, propiciando ao julgador a coleta de elementos que contribuam para a formação do seu livre convencimento a respeito da autoria e materialidade do delito criminoso.

Pelo fiel cumprimento das formalidades processuais legais que informam o procedimento do interrogatório se realizam os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório no processo penal. E é um tal proceder, nessa via, que legitima a atuação jurisdicional e, em última análise, autoriza a pretensão punitiva do Estado persecutor.

Apesar de necessário, é pacífico na doutrina que o interrogatório do acusado não é imprescindível, haja vista a possibilidade de prosseguimento do processo penal no caso de revelia.

Contudo, estando presente o réu, a não realização do interrogatório, esta sim, tem o condão de nulificar o processo, posto desrespeitar os princípios anteriormente elencados.

Assim, em particular, estando o acusado preso (aguardando julgamento ou em cumprimento de pena por outros delitos), é necessária sua participação no interrogatório dos processos dos quais é parte, sob pena de nulidade.

Nesses casos, a realização do interrogatório quase sempre envolve um conjunto de providências que, para além de dispendiosas, requerem planejamento e disponibilidade de uma série de recursos coordenados, cuja resultante, via de regra, depõe contra a efetividade do processo penal.

A condução de réu preso para participação de interrogatório exige, invariavelmente, escolta policial, com destacamento de viaturas e policiais para acompanhamento do acusado até o local de realização do ato, onde permanecem aguardando até a conclusão do mesmo para então conduzi-lo de volta ao local onde o réu se encontra preso. Dependendo do local onde tramita o processo, o deslocamento pode significar a realização viagens interestaduais demandando transporte aéreo combinado à logística de transporte até aeroportos e destes até os pontos de destino/origem.

Também, em função do grau de periculosidade do réu, o aparato de segurança precisa ser reforçado para coibir tentativas de fuga ou de resgate do réu por comparsas ou grupos inimigos que desejam a sua eliminação. Desnecessário dizer que em situações como essa não somente há riscos para a segurança do acusado como para os cidadãos que circundam o trajeto por onde segue a escolta.

Observe-se ainda que, para viabilizar o deslocamento do acusado até o local do interrogatório são mobilizados viaturas e contingente policial de patrulhamento e de apoio, recursos esses que deveriam estar sendo empregados no policiamento e segurança da população.

E quando, por alguma razão, o deslocamento do réu não é possível, o cumprimento do procedimento do interrogatório requer o uso da expedição de cartas precatórias, rogatórias e de ordem, as quais, invariavelmente, representam entrave na tramitação dos feitos judiciais.

Nesse viez, guindado pela evolução sem precedentes das ciências da informação e da comunicação de dados experimentada pela sociedade contemporânea, que na esteira da tecnologia digital tem presenciado o surgimento de recursos – entre equipamentos computacionais de alto desempenho, softwares, redes de comunicação etc... – cujo efeito é a “eliminação” das distâncias que separam os indivíduos em face da espantosa velocidade com que dados, voz e imagem cruzam o planeta transformando-o numa verdadeira “aldeia global”, tem sido objeto de acirrada polêmica doutrinária e jurisprudencial a realização do interrogatório do réu através de recursos de videoconferência (ou, simplesmente, o chamado teleinterrogatório), expediente que seria adotado em especial (mas, contudo, sem se restringir a tal) nas situações em que o acusado estivesse preso.

Longe de um posicionamento pacífico, de ambos os lados da questão (favorável e contrário ao emprego do procedimento) filiam-se doutrinadores de expressão e aglutinam-se jurisprudências de instâncias de peso do Judiciário brasileiro.

A linha de fogo da corrente contrária a utilização do teleinterrogatório direciona suas baterias no sentido da inconstitucionalidade do procedimento, sustentando com veemência que o interrogatório do acusado por videoconferência desrespeita aquelas garantias fundamentais dos réus, posto ferir os princípios constitucionalmente consagrados do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Por outro lado, tornar juridicamente viável a alternativa do teleinterrogatório como mais uma ferramenta à disposição do processo penal reveste-se de importância capital para a efetividade processual; por intermédio dele é possível eliminar-se o expediente das precatórias, rogatórias e cartas de ordem, referidas acima. A celeridade do processo sai privilegiada uma vez que tal recurso facilita o contato entre o juiz e o réu (esteja ele preso ou solto) pela simplicidade dos procedimentos necessários para se viabilizar o interrogatório por videoconferência.

Com o teleinterrogatório ficam fortalecidos e prestigiados o princípio do juiz natural (bem como do promotor natural), o princípio da publicidade e, de maneira destacada, o princípio da celeridade processual e da razoável duração do processo, pelo que permite otimizar o tempo útil dos diversos operadores do direito (magistrados, promotores, advogados, defensores públicos), além de minimizar o efeito do cancelamento de audiências decorrente dos mais variados motivos.

Por fim, mas não menos importante, a adoção do sistema de teleinterrogatório propicia expressiva economia de recursos públicos, representados pelos custos que seriam despendidos com passagens aéreas, mobilização de policiais e viaturas, combustíveis, diárias etc. O montante é expressivo; apenas para se ter uma idéia, levantamento efetuado no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo indicou que num período de 15 dias, em Junho de 2003, foram gastos cerca de R$ 4,5 Milhões com despesas de locomoção de réus para participação em atos de processos em que se encontravam arrolados. Num país de recursos escassos, permeado de problemas sociais, com uma população extremamente carente de serviços essenciais como educação, saúde, saneamento básico e até mesmo segurança pública, não há dúvidas que tais dispêndios teriam uma melhor destinação, em prol do bem estar da coletividade.

No fervilhar das argumentações, onde não raro a corrente contrária ao teleinterrogatório chega a perfilar ataques apaixonados contra aquilo que representaria a coroação da insensibilidade judicial diante da condição degradante do réu encarcerado e entregue à própria sorte), impõe-se investigar com profundidade e isenção se o teleinterrogatório efetivamente desrespeita as garantias constitucionais do acusado (ou seja, tal procedimento desrespeitaria os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório?).

Num primeiro lançar de olhos, como hipóteses que nortearão o desenvolvimento deste estudo, tem-se que:

a)    À luz da sistemática mais atualizada que a moderna tecnologia propicia ao procedimento do teleinterrogatório, o conjunto de argumentos e razões utilizado como fundamento da afirmação de que esse procedimento desrespeita os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, e, portanto, contaminado pela inconstitucionalidade, revela-se desproporcional e não-razoável. Em outras palavras, o confronto entre o procedimento do teleinterrogatório e a argumentação que alega sua inconstitucionalidade por ferir aquelas garantias fundamentais demonstra que tal argumentação, considerada em si própria, viola os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, estes também de matriz constitucional, por estarem inseridos na estrutura normativa da Carta Magna, ainda que não expressamente nela positivados, contudo informando a elaboração e interpretação de seus dispositivos bem como das normas infraconstitucionais. Ou seja, em síntese, aquela argumentação é, ela sim, eivada do vício da inconstitucionalidade;

b)    Na medida em que os argumentos que sustentam a inconstitucionalidade do teleinterrogatório estabelecem o suporte doutrinário para afastar a aplicação de um procedimento que, por incorporar modernos recursos da tecnologia de informação, é capaz de propiciar expressivos ganhos de produtividade, agilidade e economia à atividade jurisdicional prestada pelo Poder Público, torna-se evidente o descompasso de uma tal argumentação com os valores abarcados pelo princípio da eficiência, também de matriz constitucional, que, além de figurar expressamente de forma inequívoca no capítulo que trata da Administração Pública, está no fundamento do postulado da celeridade processual, consagrada como garantia fundamental, ao mesmo tempo em que confere maior efetividade ao princípio do acesso à justiça (outra garantia fundamental constitucional). Assim, inexoravelmente, conclui-se pela inconstitucionalidade daquela argumentação em face de sua inobservância ao princípio constitucional da eficiência;

c)    Na forma como implementado o procedimento do teleinterrogatório, com canais de vídeo e áudio que permitem o contato direto entre todos os envolvidos no ato (inclusive com canal exclusivo de áudio para conversação entre o acusado e seu julgador), tem-se asseguradas em sua plenitude tanto a autodefesa (exercida pelo próprio acusado, quando apresenta sua versão dos fatos, manifestando-se sobre alegações ou provas produzidas, ou simplesmente mantém-se em silêncio, para influenciar a formação de convencimento do julgador), quanto a defesa técnica (exercida pelo defensor do acusado). Restam, assim, fortalecidos em sua essência os princípios constitucionais da ampla defesa, e, em decorrência, do contraditório;

d)    A recentíssima reforma do Código de Processo Penal (CPP), patrocinada pela Lei 11.900, de 08/01/2009, ao alterar a redação do art. 185 introduziu expressamente a modalidade do teleinterrogatório para a realização do interrogatório do réu, nas hipóteses de admissibilidade contempladas no § 2º desse artigo. Ademais, o ordenamento jurídico pátrio já havia incorporado, antes mesmo dessa novíssima reforma do CPP, outras normas que também contemplam a utilização de técnicas de videoconferência (caso do art. 69, nº. 2, do Decreto 4.388/02, pelo qual foi recepcionado o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional; do art. 24, item 2, alínea b, do Decreto 5.015/04, que trouxe para o ordenamento a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional; e da Lei 11.690, de 09/06/2008, que alterou a redação do art. 217, CPP, introduzindo de forma expressa o emprego da tecnologia de videoconferência para a realização do depoimento de testemunhas e do ofendido (vítima)). Não há, assim, porque falar em desrespeito ao princípio do devido processo legal pela aplicação do procedimento do teleinterrogatório.

As vantagens e ganhos vislumbrados com a adoção do sistema de teleinterrogatório não podem se dar às custas do desrespeito das garantias fundamentais constitucionais dos acusados. Assim, o objetivo do estudo proposto é demonstrar que o teleinterrogatório não fere os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e contraditório, e da dignidade da pessoa humana; ao contrário, fortalece-os.

Nessa linha, o primeiro capítulo busca estabelecer a base conceitual em que se fará a análise da constitucionalidade do teleinterrogatório, situando o Estado Brasileiro como um Estado Civil Democrático de Direito, regido por uma carta constitucional caracterizada como um sistema normativo aberto de regras e princípios; também é contextualizada a relevância dos princípios constitucionais e sua eficácia normativa e jurídica.

O segundo capítulo tem por objetivo abordar o escopo dos princípios constitucionais basilares (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, proporcionalidade, razoabilidade, eficiência, dignidade da pessoa humana) para a análise de constitucionalidade que se pretende empreender neste estudo.

O terceiro capítulo apresenta uma breve incursão pela teoria geral da prova, referindo-a ao processo penal, de forma a contextualizar o procedimento do interrogatório na prática processual penal (tendo em vista que todo o regramento que disciplina esse procedimento no CPP se encontra inserido no Título VII, o qual versa especificamente sobre a prova no processo penal), situando-o com meio de prova (mas sem descuidar de sua natureza de também meio de defesa do réu). A visita aos institutos do interrogatório (em sua modalidade tradicionalmente conhecida) e do teleinterrogatório (modalidade que incorpora a tecnologia de videoconferência) complementa o capítulo, tornando possível a contraposição desses procedimentos através da consideração dos seus principais aspectos.

O quarto capítulo se ocupa precipuamente da análise e comprovação da constitucionalidade do procedimento do teleinterrogatório à luz da sistemática adotada para esse procedimento pela Lei 11.900/09, responsável pela sua introdução no âmbito do processo penal brasileiro. A última seção do capítulo é encabeçada pelo rol dos principais benefícios vislumbrados a partir da utilização do teleinterrogatório; a análise que promove a “desconstrução constitucional” da argumentação contrária à aplicação desse procedimento encerra a seção.

Em seu quinto e último capítulo, o estudo traz considerações finais relacionadas à temática do interrogatório por videoconferência em face das transformações sociais (e tecnológicas) da modernidade.

Busca-se, assim, lançar luz sobre a polêmica em torno da adoção do teleinterrogatório, trazendo elementos que demonstrem que, na sistemática adotada na sua implementação e operacionalização, ao invés de ferir, essa ferramenta privilegia e fortalece aqueles princípios tão caros ao processo penal, razão pela qual não há que se falar na sua inconstitucionalidade. É instituto que, na sua essência, privilegia sociedade e réu.


1 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO ESTADO CIVIL DEMOCRÁTICO DE DIREITO

1.1 PRINCÍPIO, REGRA E NORMA

O termo “princípio” admite uma diversidade de sentidos. Na acepção que interessa aqui (aquela adotada pelo Direito), o termo quer significar a proposição que serve de fundamento para uma determinada linha de raciocínio. Nessa linha é o entendimento de Delgado (2009, p. 171, grifo do autor), para quem a palavra “princípio” representa “[...] de modo geral, a noção de proposições fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a partir de certa realidade, e que, após formadas, direcionam-se à compreensão, reprodução ou recriação dessa realidade”. Com base em tal conceito, esse doutrinador sustenta que

[...] os princípios seriam elementos componentes da visão de mundo essencial que caracteriza as pessoas e grupos sociais, resultando de suas práticas cotidianas e sobre elas influindo. Na dinâmica das pessoas e sociedades, os princípios atuariam como enunciados que refletem e informam – em maior ou menor grau – as práticas individuais e sociais correspondentes (DELGADO, 2009, p. 171).

No âmbito das Ciências Jurídicas os princípios revestem-se de capital importância; isso porque o objeto dessas ciências caracteriza-se essencialmente por padrões de conduta ou organização que visam construir realidades normatizadas e abstratas e que correspondem ao chamado mundo do “dever-ser”, e que se distingue do mundo dos fatos sociais, o mundo do “ser”. É nesse contexto que se evidencia o caráter instrumental dos princípios na compreensão dessas realidades, ou seja, do significado desse “dever-ser”. Na lúcida exposição de Delgado (2009, p. 173, grifo do autor)

[...] a premissa orientativa consubstanciada no princípio favorece à correta percepção do sentido do instituto [jurídico] e da norma no conjunto do sistema normativo em que se integra. Por essa razão, os princípios, na Ciência Jurídica, não somente preservam irrefutável validade, como se destacam pela qualidade de importantes contributos á compreensão global e integrada de qualquer universo normativo.

Essa validade dos princípios, porém, não deve ser considerada algo estático, cristalizada na estrutura social da qual eles se originaram. Pelo contrário, a força que deles emana encontra limites que são determinados pela sua extensão conceitual e pelo momento histórico considerado; em outras palavras, a carga axiológica dos princípios reflete a dinâmica social na qual se encontram inseridos, e, por isso, é comum verificar-se a relativização dessa carga em função do período histórico em que dado grupo social é tomado (DELGADO, 2009, p. 173).

Da conjugação de tais aspectos é possível inferir a relevância do papel desempenhado pelos princípios como “pano de fundo” para a análise da norma jurídica. Essa importância traduz-se, de forma sintetizada, no fato de que

[...] para a Ciência do Direito os princípios conceituam-se como proposições fundamentais que informam a compreensão do fenômeno jurídico. São diretrizes centrais que se inferem de um sistema jurídico e que, após inferidas, a ele se reportam, informando-o (DELGADO, 2009, p. 173, grifo do autor).

No Direito, os princípios apresentam aplicações diversificadas. No processo legislativo desempenham papel de elementos basilares e norteadores para a criação de normas, visando assegurar coerência sistêmica à produção normativa. Operam, dessa forma, como fontes materiais do Direito (DELGADO, 2009, p. 174).

Outra função exercida pelos princípios, esta bem mais clássica, é a de atuarem como elementos informadores no processo de interpretação jurídica. Neste contexto, funcionam como verdadeira “linha-mestra” na qual se pauta a atividade interpretativa desenvolvida na busca da compreensão das normas jurídicas, conferindo aderência entre o ordenamento jurídico sob análise às premissas essenciais que lhe serve de fundamento. Tais princípios são, por isso, designados pela doutrina como princípios informativos (ou descritivos) (DELGADO, 2009, p. 174-175).

A terceira função dos princípios está prevista textualmente em vários diplomas da legislação pátria, e os guinda à condição de fontes formais supletivas do Direito. É o que se extrai de dispositivos como o art. 8º, da CLT[1] (Consolidação das Leis Trabalhistas); art. 4º, da LICC[2] (Lei de Introdução ao Código Civil); do art. 126, do CPC[3] (Código de Processo Civil); e do art. 3º, do CPP (Código de Processo Penal), este último de maior interesse para o presente trabalho pela sua vinculação com o tema abordado, e que traz a seguinte redação (BRASIL, 2010b, p. 621):

Art. 3º, CPP: A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

Tal função desenvolve-se nos casos em que se constata a existência de lacunas no ordenamento jurídico, consubstanciadas na falta de dispositivos legais aplicáveis ao caso concreto. Nessas situações, os princípios funcionam como regras jurídicas e, através do expediente de integração normativa, incidem sobre o caso concreto para suprir a lacuna identificada. Quando atuam nessa via, os princípios são designados como normativos subsidiários, na medida em que suprem a carência das fontes normativas principais do ordenamento (DELGADO, 2009, p. 175).

A quarta função dos princípios é de concepção mais recente, e decorre de construção doutrinária que os reconhece como autênticas normas jurídicas, dotados de força vinculante (ou seja, para além de meras proposições programáticas). Em outras palavras, do ponto de vista normativo, os princípios estariam no mesmo patamar dos dispositivos legais tradicionais, uma vez que teriam idênticas naturezas; possuiriam, pois, eficácia normativa e eficácia jurídica, pelo que, poderiam por si só, fundamentar decisões judiciais (DELGADO, 2009, p. 176).

Essa corrente doutrinária congrega alguns dos expoentes do pensamento jurídico contemporâneo (destaque para os constitucionalistas), citando-se Bobbio, Alexy, Dworkin, Canotilho e o brasileiro Paulo Bonavides, dentre outros; a partir da proposição de que os princípios possuem uma função normativa própria, os adeptos dessa linha de pensamento estabeleceram um novo entendimento para a distinção conceitual entre normas, regras e princípios. Assim, para essa corrente o conceito de norma remete a uma “[...] referência geral aos dispositivos gerais, abstratos, impessoais e obrigatórios que regulam a vida social” (DELGADO, 2009, p. 175-176, grifo do autor).

Percebe-se então que os conceitos de norma, regra e princípio guardam entre si uma relação do tipo gênero e espécie, onde norma (em sentido amplo, mais abrangente) é gênero que tem como espécies a regra (também designada às vezes como norma, porém em sentido estrito), e o princípio jurídico. Ou seja, as regras e os princípios constituem dois tipos de normas jurídicas (DELGADO, 2009, p. 176).

Numa análise preliminar, poderia se dizer que é a especificidade o principal aspecto a distinguir regras e princípios. A regra é uma norma objetiva e concreta, e sua aplicação se faz por um simples raciocínio de subsunção; já o princípio é uma norma geral e abstrata. Contudo, uma análise mais criteriosa da distinção entre regras e princípios pode ser encontrada na obra de Ronald Dworkin; para este doutrinador americano tal distinção é de natureza lógica; em outras palavras, regras e princípios “[...] distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem” (DWORKIN, 2002, p. 39).

A abordagem de Dworkin para estabelecer a diferenciação entre regras e princípios baseia-se em três aspectos: aplicação, dimensão e na sistemática de solução de conflitos. Afirma ele que “As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão” (DWORKIN, 2002, p. 39). Depreende-se daí que as regras aplicam-se de forma absoluta (à base do “tudo-ou-nada”, como se refere aquele autor), sujeitando-se às condições que elas mesmas estabelecem em seu enunciado. Emerge também a dimensão de validade que cinge as regras.

Com os princípios a situação é outra. Nas palavras de Dworkin (2002, p. 40, grifo nosso), “Mesmo aqueles [princípios] que mais se assemelham a regras não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas”. Isto é, eles têm aplicação ponderada, a qual deve ser temperada pela consideração de seu maior ou menor peso ou importância, e da força relativa dos demais princípios, sempre em relação ao caso concreto. Diz-se, por isso, que os princípios tem a dimensão do peso ou importância.

Na solução de conflitos entre regras mantém-se a sistemática do “tudo-ou-nada” de Dworkin; ou seja, uma regra termina por afastar a outra que lhe é conflitante, levando à sua “revogação” ou “anulação”. O conflito entre princípios, por outro lado, resolve-se através da busca da harmonização entre os princípios conflitantes, considerando a força e relevância relativas de cada um para o caso concreto; em outra via, funda-se na ponderação, sopesando os princípios atinentes ao caso, porém isso não significa o afastamento do princípio de menor peso ou relevância para a situação em análise, como se, por isso, ele não mais integrasse o ordenamento jurídico. Aqui, não há que falar-se em “revogação” ou “anulação”. Tais sistemáticas são depreendidas do pensamento de Dworkin, que afirma que, no que tange às regras,

Podemos dizer que as regras são funcionalmente importantes ou desimportantes [...]. Nesse sentido, uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior.

Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes. (DWORKIN, 2002, p. 43).

e no que concerne aos princípios

Quando os princípios se intercruzam [...], aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é. (DWORKIN, 2002, p. 42).

Neste ponto convém assinalar a teoria de princípios proposta por Robert Alexy, um dos mais influentes juristas alemães da atualidade; esta teoria apresenta alguns aspectos que se diferenciam do pensamento de Dworkin, referido acima, os quais se revelarão de importância capital mais a frente neste estudo, como sustentáculo da fundamentação acerca da constitucionalidade do teleinterrogatório.

Um desses aspectos reside precisamente na conceituação como mandamentos de otimização que Alexy faz dos princípios, conceito esse que, em sua teoria, constitui o elemento crucial para a distinção entre princípios e regras; conforme o entendimento desse doutrinador

[...] princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes (ALEXY, 2008, p. 90, grifos do autor e nosso).

Por sua vez, na teoria de Alexy as regras são

[...] normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível (ALEXY, 2008, p. 90, grifo do autor).

Com base nas conceituações estabelecidas para os princípios e para as regras é possível concluir que, em Alexy, a distinção entre eles não é quantitativa (no sentido de envolver alguma relação de intensidades ou gradações entre eles), mas sim qualitativa. Para Alexy, mantém-se o entendimento já firmado anteriormente segundo o qual as regras e os princípios são espécies de normas jurídicas (este, um conceito portanto mais abrangente que abarca os dois primeiros) (ALEXY, 2008, p. 91).

Ao perscrutar a amplitude do conceito de princípio, um paralelo entre as abordagens de Alexy e Dworkin revela que, neste último, aquele conceito

[...] é definido de forma mais restrita [...] Segundo ele [Dworkin], princípios são apenas aquelas normas que podem ser utilizadas como razões para direitos individuais. Normas que se refiram a interesses coletivos são por ele denominadas como “políticas”. A diferenciação entre direitos individuais e interesses coletivos é, sem dúvida, importante. Mas não é exigível nem conveniente vincular o conceito de princípio ao conceito de direito individual. As características lógicas comuns aos dois tipos de princípios aos quais Dworkin faz referência com seu conceito de “princípio em sentido genérico” – e que aparecem com clareza nos casos de colisões entre princípios – indicam a conveniência de um conceito amplo de princípio (ALEXY, 2008, p. 116).

A conceituação dos princípios como mandamentos de otimização tem um desdobramento particularmente importante para os objetivos deste estudo (vide seções 2.7 e 4.3 infra), que consiste no fato de ser tal conceito irremediavelmente incompatível com a concepção de princípio absoluto (ou seja, aquele princípio que em função de seu elevado conteúdo axiológico sempre prevalece sobre os demais princípios quando em colisão com eles).  Conforme leciona Alexy (2008, p. 111),

Se existem princípios absolutos, então, a definição de princípios deve ser modificada, pois se um princípio tem precedência em relação a todos os outros em casos de colisão, até mesmo em relação ao princípio que estabelece que as regras devem ser seguidas, nesse caso, isso significa que sua realização não conhece nenhum limite jurídico, apenas limites fáticos.

Com efeito, demonstrar a inexistência de princípios absolutos em um ordenamento jurídico orientado a direitos fundamentais (tal como é o caso do ordenamento jurídico brasileiro!) é tarefa que se mostra simples, e que se faz por mera lógica dedutiva. Assim é que partindo da constatação de que princípios podem versar sobre interesses coletivos ou sobre direitos individuais, num primeiro giro considere-se a hipótese de um dado princípio absoluto que trate de interesses coletivos; nesse caso, por ser absoluto, não poderão existir direitos fundamentais que imponham limites jurídicos a tal “princípio coletivo” (ou seja, o alcance desse princípio absoluto não poderá ser obstado por direito fundamental de natureza alguma). Num segundo giro, a hipótese de colisão de um princípio absoluto que se refira a direitos individuais se mostra flagrantemente contraditória uma vez que, não havendo limites colocados para tal princípio (ele é absoluto!), os direitos de cada indivíduo que venha a se posicionar num dos “pólos antagônicos” dessa colisão, e fundamentados por esse princípio absoluto, deveriam ceder lugar para privilegiar os direitos de todos os demais indivíduos posicionados no outro “pólo” da colisão, e que, por questões de isonomia, são igualmente fundamentados pelo aquele mesmo princípio absoluto. Em suma, esse raciocínio conduz à despropositada constatação de que “[...] ou os princípios absolutos não são compatíveis com direitos individuais, ou os direitos individuais que sejam fundamentados pelos princípios absolutos não podem ser garantidos a mais de um sujeito de direito” (ALEXY, 2008, p. 111). Daí concluir-se pela inexistência de princípios absolutos em ordenamentos que contemplem direitos fundamentais.

Outro aspecto relevante da teoria dos princípios defendida por Alexy refere-se ao que ele designa como caráter prima facie, e que também, e que também configura uma característica distintiva entre regras e princípios. Alexy sustenta que

Princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Nesse sentido, eles não contêm um mandamento definitivo, mas apenas prima facie. Da relevância de um princípio em um determinado caso não decorre que o resultado seja aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. A forma pela qual deve ser determinada a relação entre razão e contra-razão não é algo determinado pelo próprio princípio. Os princípios, portanto, não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e das possibilidades fáticas (ALEXY, 2008, p. 103-104, grifos do autor e nosso)[4].

Em relação às regras, contudo, a situação é absolutamente diferente. As regras, a priori, têm um caráter definitivo que decorre do conteúdo imperioso da prescrição que elas trazem; ou seja, nas palavras de Alexy,

[...] as regras exigem que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam, elas têm uma determinação da extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode falhar diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorrer, então, vale definitivamente aquilo que a regra prescreve (ALEXY, 2008, p. 104).

Neste aspecto se evidencia um outro ponto distintivo entre os pensamentos de Alexy e Dworkin. Para Dworkin, esse modelo é estático, ou seja, o caráter prima facie dos princípios e o caráter definitivo das regras serão sempre os mesmos, imutáveis; esse entendimento fica patente na emblemática afirmação de Dworkin de que “[...] regras, se válidas, devem ser aplicadas de forma tudo-ou-nada, enquanto os princípios apenas contêm razões que indicam uma direção, mas não têm como conseqüência necessária uma determinada decisão” (ALEXY, 2008, p. 104). Alexy, por sua vez, entende que um modelo assim, estático, é muito simples e sustenta ser necessário um modelo diferenciado[5] (ALEXY, 2008, p. 104).

1.2 O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E O ESTADO LIBERAL

O Estado de Direito encontra seu fundamento na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fruto de todo o ideário que inspirou a Revolução Francesa, de 1789, e é o marco que decreta o fim da ordem moral e social arcaica que prosperou à sombra do Absolutismo, marcada por privilégios descabidos e pela injustiça e desigualdade sociais (BONAVIDES, 2008, p. 40).

Inaugura-se também a partir daí a era do Constitucionalismo, que substituindo o Absolutismo decadente, determina a conversão do Estado Absoluto em Estado Constitucional, no qual a legalidade é a expressão do valor supremo e prepondera na letra dos códigos e das constituições. Reside aí a característica marcante do Estado de Direito: nele, o poder advém das leis e não do subjetivismo de pessoas; nele, são as leis que disciplinam o ordenamento social e político e não a vontade dos governantes (BONAVIDES, 2008, p. 41). Em síntese, o Estado (constitucional) de Direito faz “[...] o direito da força ceder à força do Direito” (BONAVIDES , 2008, p. 40).

As constituições que daí emergem, sob os influxos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, trazem sem si a consagração do princípio da separação dos poderes (que vinha estampado no art. 16 da Declaração) como uma de suas vigas-mestras a sustentar o Estado de Direito, que, por essa via, põem fim aos regimes absolutos de poderes ilimitados, ao restringir o poder dos governantes em prol do ideal maior de liberdade dos governados (BONAVIDES, 2008, p. 42). Como bem pontifica Bonavides (2008, p. 43),

Se não garantir nem concretizar a liberdade, se não limitar o poder dos governantes, se não fizer da moralidade administrativa artigo de fé e fé pública, ou princípio de governo, se não elevar os direitos fundamentais ao patamar de conquista inviolável da cidadania, não será Estado de Direito.

A partir daquele marco inaugural, o chamado Estado de Direito tem descrito sua trajetória histórica sob a égide do Constitucionalismo. E essa trajetória inicia-se tendo a bandeira da liberdade como seu ideal maior, que serviu de fundamento e garantia para que florescessem os direitos individuais, civis e políticos que integram os direitos fundamentais de primeira dimensão; por isso essa primeira modalidade do Estado de Direito denominou-se Estado Liberal (BONAVIDES, 2008, p. 43).

Assim, conforme destaca Silva (2000, p. 32) com propriedade, fica claro que “Na origem, [...] o Estado de Direito era um conceito tipicamente liberal”. Além disso, seu objetivo fundamental era assegurar o princípio da legalidade consubstanciado no fato de que toda a atividade estatal deve estar submetida à vontade da lei (SILVA, 2000, p. 32).

O centro de gravidade do Estado Liberal, no dizer de Bonavides (2008, p. 44), foi

[...] a lei, o código, a segurança jurídica, a autonomia da vontade, a organização jurídica dos ramos da soberania, a separação de Poderes, a harmonia e o equilíbrio funcional, do Legislativo, Executivo e Judiciário, a distribuição de competências, a fixação de limites à autoridade governante [...].

Ou seja, na precisa abordagem de Silva (2000, p. 32, grifo do autor), o Estado Liberal de Direito tinha como características básicas:

a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do poder legislativo, composto por representantes do povo, mas do povo-cidadão; b) divisão de poderes, que separa, de forma independente e harmônica, os poderes legislativo, executivo e judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; c) enunciado e garantia dos direitos fundamentais.

Destaque-se que o forte traço individualista do Estado Liberal, aliado a outros elementos igualmente preponderantes, deram causa à grandes injustiças que expuseram as deficiências das liberdades de cunho burguês aninhadas nesse modelo de organização estatal; tais circunstâncias permitiram que os movimentos sociais surgidos no decorrer do século XIX e, de forma mais intensificada, no século XX, construíssem uma “consciência da necessidade da justiça social” (SILVA, 2000, p. 34). Era o caminho aberto para o alvorecer de um novo modelo de organização estatal, o Estado Social de Direito, abordado em maior detalhe na próxima seção.

1.3 O ESTADO SOCIAL

Consolidada nos ordenamentos constitucionais, a liberdade deixa de ser o foco das preocupações; estas, guindadas pelo dinamismo político e social, se deslocam para o ideal de justiça, ao qual buscam dar concretude e positividade através da inserção, nos textos constitucionais, dos direitos sociais (e que correspondem a direitos de segunda e, até mesmo, de terceira gerações) (BONAVIDES, 2008, p. 46).

A polarização em torno dos valores de liberdade e justiça estabelece o alicerce sobre o qual se sustentará uma nova e inovadora modalidade do Estado de Direito, por assim dizer, um Estado constitucional dos direitos fundamentais. É essa a gênese da modalidade a que se designou de Estado Social; prepondera agora o caráter social de suas instituições (BONAVIDES, 2008, p. 46).

Entre o Estado Social e o seu antecessor, o Estado Liberal, há um aspecto distintivo nitidamente marcante (e que se mostrará de particular importância no contexto deste estudo). Enquanto o Estado Liberal tem como paradigma a legalidade (a lei como o ápice), para o Estado Social a legitimidade ao invés da lei constitui o paradigma dos seus postulados fundamentais. Ou seja, a norma constitucional tem agora a legitimidade como fundamento. E a partir desse entendimento, Bonavides tece um raciocínio brilhante quando afirma que

A legitimidade é o direito fundamental, o direito fundamental é o princípio, e o princípio é a Constituição na essência; é sobretudo sua normatividade. Ou, colocado em outros termos: a legalidade é a observância das leis e das regras; a legitimidade, a observância dos valores e dos princípios. Ambas se integram na juridicidade e eficácia do sistema, fazendo-o normativo [...]. A regra define o comportamento, a conduta, a competência. O princípio define a justiça, a legitimidade, a constitucionalidade” (BONAVIDES, 2008, p. 48-49, grifo nosso).

No Estado Social os direitos fundamentais assumem papel de extrema importância como sustentáculo da nova legitimidade; conforme assevera Bonavides (2008, p. 49), verifica-se “[...] a supremacia da legitimidade sobre a legalidade, da Constituição sobre o Código, do princípio sobre a regra [...], do Direito/justiça e ética sobre o Direito/norma e coerção”. No Estado Social, a legalidade consiste em se observar leis e regras, ao passo que a legitimidade se atinge pela materialização de valores e, especialmente, princípios, elementos nucleares das cartas constitucionais.

Não é demais afirmar que o Estado Social inaugura uma nova etapa na ordem constitucional, a qual se destaca pela normatividade de valores que têm nos princípios seus veículos por excelência. Os princípios assumem assim uma conotação de valores vinculantes de alto nível que, inseridos no texto da constituição, são capazes de alcançar com a normatividade que carreiam todo o escopo constitucional (BONAVIDES, 2008, p. 49).

Se num primeiro momento essa carga principiológica tinha conteúdo eminentemente abstrato e programático, no Estado Social moderno são os próprios direitos fundamentais que adquirem o status de princípios normativos, colocando-se no mesmo patamar dos demais princípios que conformam as constituições (BONAVIDES, 2008, p. 51).

Por sua força axiológica, os princípios que introduzem os direitos fundamentais na positividade das constituições tornam-se o sustentáculo da legitimidade constitucional, a sua essência. A extensão dessa afirmativa afere-se, indubitavelmente, nas palavras de Bonavides que afirma que “[...] a soberania constitucional é a soberania dos princípios. [...] os mais altos princípios radicam na vontade do Povo e da Nação, [...] só esta vontade, uma vez traduzida na Constituição, por obra do constituinte, faz a legitimidade dos governos” (BONAVIDES, 2008, p. 53).

Tendo em vista toda a formulação doutrinária em torno dos conceitos de princípios e regras e de sua interrelação (vide seção 1.1 supra), e em que pese o clássico entendimento de que princípios e regras constitucionais ocupam formalmente o mesmo nível hierárquico, o fato é que o Constitucionalismo do moderno Estado Social tratou de desequilibrar a “balança da normatividade constitucional”, fazendo-a pender para o “prato” do escopo principiológico.

Tal constatação encontra suporte na sempre lúcida avaliação de Bonavides (2008, p. 54), para quem

“A sociedade contemporânea – múltipla, complexa, pluralista – [...] faz imperativos o primado e a supremacia dos princípios sobre as regras, das Constituições sobre os Códigos, da legitimidade sobre a legalidade, da Hermenêutica sobre a Dogmática, da justiça sobre a vontade e a política dos governantes”;

mais à frente conclui o eminente constitucionalista paraibano que

Hoje, como se vê, os princípios valem mais porque as Constituições se juridicizaram. Hoje, os princípios, sendo da essência da constitucionalidade, ocupam o lugar mais alto e nobre na hierarquia dos ordenamentos jurídicos. As regras se lhes sujeitam, conforme dissemos, e o Direito vive, de último, a grande idade do Constitucionalismo principiológico [...] (BONAVIDES, 2008, p. 54).

Na ordem constitucional hodierna, portanto, os princípios surgem como condicionantes, são normas de subordinação; as regras surgem como condicionadas, são normas subordináveis (BONAVIDES, 2008, p. 54).

Essa co-existência entre regras e princípios no texto constitucional é o fundamento que, conforme sustenta o consagrado constitucionalista português José Joaquim G. Canotilho, permite compreender as constituições do moderno Estado de Direito (Estado Social) como sistemas normativos abertos de regras e princípios (CANOTILHO, 2003, p. 1159).

Com base no que leciona Canotilho, um sistema normativo aberto de regras e princípios configura-se na alternativa mais equilibrada para a construção de um ordenamento jurídico capaz de garantir a ordem e a pacificação social, e acompanhar as contínuas transformações sociais (CANOTILHO, 2003, p. 1162-1163).

Essa noção decorre, fundamentalmente, do fato de que tal sistema jurídico congrega um conjunto de propriedades que fazem dele um sistema dinâmico de normas, em permanente evolução; na qualidade de norma fundamental, sobre a qual se ancora todo o ordenamento jurídico, a Constituição, além de fundamento de validade de toda a legislação infraconstitucional, estabelece as competências e procedimentos pelos quais delega à outras instâncias poderes para a produção legislativa das demais categorias de normas. É dessa dinâmica, desse processo evolutivo, que advém a designação de sistema normativo aberto.

De fato, se o texto constitucional congregasse tão-somente regras, ter-se-ia um sistema fechado; neste caso, o resultado seria um ordenamento estanque, no qual a ponderação entre valores se mostraria praticamente inviabilizada em função da rigidez dos preceitos expressamente insculpidos nas regras jurídicas que compõem o sistema; nesse sistema, as condutas sociais então relevantes para o Direito estariam exaustivamente disciplinadas, porém não seria possível que novas condutas germinadas da evolução das relações sociais fossem contempladas pelo sistema (que estaria assim “fechado” para estas condutas). Em uma tal constituição preponderaria a segurança jurídica, devido ao caráter determinístico de seu conteúdo normativo, em detrimento da flexibilidade e do juízo valorativo imprescindíveis para regular as condutas sociais em constante modificação (CANOTILHO, 2003, p. 1162).

Essa condição é evidente a partir da análise feita por Canotilho (2003, p. 1162) dos ordenamentos fundados em regras, quando afirma que

Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um “sistema de segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema, como o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro lado, um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma organização política monodimensional.

Por outro lado, conforme esclarece o próprio Canotilho, um texto constitucional em que sobressai a matiz principiológica se revela particularmente importante porque, além de incorporar ferramentas rígidas para solução de determinados “problemas metódicos” (p.ex., “colisão de direitos fundamentais”), confere ao sistema constitucional as seguintes características: (a) caráter aberto (propiciado pela própria natureza aberta que caracteriza os princípios); (b) legitimidade (que advém da noção de que os princípios consagram “[...] valores (liberdade, democracia, dignidade) fundamentadores da ordem jurídica [...]”, e possuem “[...] capacidade deontológica de justiticação [...]”); (c) “enraizamento” (em virtude da “[...] ’referência sociológica’ dos princípios a valores, programas, funções e pessoas [...]”); e (d) possibilidade de “[...] concretização, densificação e realização prática [...]” das normas constitucionais (com destaque de que esta “realização prática” pode se operar gradativamente, em função da conjuntura fática e legal) (CANOTILHO, 2003, p. 1162).

Uma tal constituição propiciaria elaborar juízos que mais se aproximariam da eqüidade por permitir ponderar valores e interesses igualmente caros ao ordenamento jurídico, possibilitando sua convivência harmoniosa. Essas características do elemento principiológico inserido na estrutura constitucional são reforçadas pelo entendimento de Bonavides (2008, p. 58) quando afirma que

Os princípios têm uma virtude manifesta: são a um tempo estabilizadores e tranformadores do sistema. Este, graças àqueles, segue lenta evolução e acomodação a situações sociais e constitucionais problemáticas ou imprevisíveis, cujas crises se vêem absorvidas ou solvidas sem que se faça mister recurso a reformas traumáticas ou a cirurgias revolucionárias.

Esse imperativo de otimização induzido pelos princípios, entretanto, conduziria a um conteúdo normativo impreciso, cuja indeterminação desaguaria em extrema insegurança jurídica. Na análise esclarecedora de Canotilho (2003, p. 1162)

[...] o modelo ou sistema baseado exclusivamente em princípios [...] levar-nos-ia a conseqüências também inaceitáveis, a indeterminação, a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios conflituantes, a dependência do “possível” fáctico e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema.

Em síntese, o caráter dicotômico que sobressai entre os sistemas formados unicamente por princípios ou unicamente por regras (os primeiros, indeterminados, imprecisos, juridicamente inseguros porém capazes de contemplar novas situações dada sua flexibilidade; os segundos, exaustivos, determinísticos, juridicamente seguros porém de eficiência prática restrita em função de sua rigidez) levou à proposição de sistemas constituídos por princípios e regras. Canotilho (1993, p. 170) destaca a importância de tais sistemas para o Direito Constitucional afirmar que

O sistema de regras e princípios, assim, tem particular importância porque fornece suportes rigorosos para a solução de certos problemas metódicos e permite “respirar”, legitimar”, “enraizar” e “caminhar” o próprio sistema: a respiração é obtida mediante a “textura aberta dos princípios”; a legitimidade entrevê-se na idéia de os princípios consagrarem valores (liberdade, democracia, dignidade) fundadores da ordem pública; o enraizamento investiga-se na “referência sociológica” dos princípios a valores, programas, funções e pessoas; a capacidade de caminhar é alcançada por meio de instrumentos processuais e procedimentais adequados, possibilitadores da concretização, densificação e realização prática (política, administrativa e judicial) das mensagens normativas da Constituição.

Canotilho (2003, p. 1159) conclui sua abordagem a respeito dos sistemas normativos de princípios e regras pontuando que a sua uma estrutura dialógica se traduz “[...] na disponibilidade e ‘capacidade de aprendizagem’ das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da ‘verdade’ e da ‘justiça’”.

Destaque-se que a atual Carta Magna brasileira caracteriza-se como um sistema normativo aberto de princípios e regras. Destaque-se igualmente, na esteira de tudo quanto foi acima exposto, a relevância alcançada pelos princípios nas modernas constituições. Conforme assevera Bonavides (2008, p. 57)

[...] a legitimidade constitucional constrói ultimamente sua morada nos princípios. [...] fazem eles concretas, estáveis e eficazes as Constituições e lhes imprimem certo grau de flexibilidade ponderativa de valores normativos no interior do sistema, sem quebrantar-lhes a unidade.

Sem exageros, “os princípios são hoje o espírito das Constituições”; não as “fazem de todo flexíveis, mas lhes abrandam a rigidez e a literalidade interpretativa, sem perda de densidade normativa” (BONAVIDES, 2008, p. 58-59).

Conforme destaca Bonavides (2008, p. 59),

Elementos normativos superiores na contextura do sistema, não padece dúvida de que dos princípios, de sua observância e juridicidade, depende uma eficácia mais visível e manifesta do Direito, tocante à disciplina das relações sociais, sobretudo em ordenamentos demasiado complexos, heterogêneos e pluralistas quais os que, por derradeiro, caracterizam o Estado da contemporaneidade.

Conforme referido anteriormente nesta mesma seção, o moderno Estado Social caracteriza-se por estruturas constitucionais que têm no elemento principiológico o aspecto predominante de sua normatividade. A gênese dessa predominância, na análise sempre precisa de Bonavides (2008, p. 51), situa-se no processo de constitucionalização dos direitos humanos, uma vez que, de acordo com esse eminente doutrinador,

[...] os direitos humanos, à medida que se convertem em direitos fundamentais, segundo a terminologia jurídica, em virtude de inserção no ordenamento positivo das Constituições, se tornaram o norte do Constitucionalismo, de sua legitimidade, de sua ética, de sua axiologia, de sua positividade.

É possível entender assim a posição de destaque que ocupam os direitos fundamentais no Estado Social moderno, o qual tem no princípio da dignidade da pessoa humana seu pilar central; conforme a lúcida conclusão de Bonavides,

O substrato do Estado constitucional contemporâneo é possível visualiza-lo assim nos direitos fundamentais e na justiça e nos princípios. De seu conjunto se infere um valor supremo que governa a teleologia da Sociedade e do Direito, em derradeira instância: o princípio da dignidade da pessoa humana.

Não há outro que lhe seja superior. O Estado constitucional nele inspirado se acerca da perfeição de seus fins, se estes puderem ser concretizados (BONAVIDES, 2008, p. 51, grifo nosso).

1.4 O ESTADO DEMOCRÁTICO

Conforme muito bem assinala Bonavides (2008, p. 41) o constitucionalismo é a premissa básica do Estado Moderno inaugurado a partir dos movimentos revolucionários da segunda metade do século XVIII.

Desde o seu advento até os dias atuais, a evolução do Estado constitucional atravessou três modalidades fundamentais: teve início com o Estado Liberal (caracterizado pelo forte traço da separação de poderes – vide seção 1.2 supra), sendo sucedido pelo Estado Social (onde sobressaem de forma hegemônica os direitos fundamentais – vide seção 1.3 supra), chegando ao seu atual estágio representado pelo Estado Democrático (onde impera a Democracia participativa) (BONAVIDES, 2008, p. 41).

A transmutação de uma modalidade à outra não é abrupta; não há marcos temporais nítidos aos quais se possa associar o final do predomínio de uma dessas formas de organização estatal e o início de sua sucessora. Como bem afirma Bonavides (2008, p. 41) uma forma se consubstancia na seguinte como numa “[...] metamorfose, que é aperfeiçoamento e enriquecimento e acréscimo, ilustrados pela expansão crescente dos direitos fundamentais bem como pela criação de novos direitos”.

Assim, mantendo-se a liberdade característica do Estado Liberal, ampliaram-se os horizontes dessa modalidade pela previsão constitucional de direitos sociais, emergindo assim o Estado Social (BONAVIDES, 2008, p. 41). O estágio atual nessa linha evolutiva é o Estado Democrático, o qual representa a opção pela Democracia participativa e a busca contínua para

[...] inserir na ordem constitucional as novas franquias que o Homem conquistou ou está em vias de conquistar, compendiadas em direitos fundamentais de diversas gerações ou dimensões já reconhecidas e proclamadas pelo Constitucionalismo de nosso tempo (BONAVIDES, 2008, p. 41).

Saliente-se, conforme evidencia o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 (Preâmbulo, CR/88: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático [...]” (BRASIL, 2010a, p. 7, grifo nosso)), e o seu art. 1º (Art. 1º, CR/88: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]” (BRASIL, 2010a, p. 7, grifo nosso)), que a Carga Magna brasileira adota como modelo de organização estatal precisamente o regime que tem como conceito-chave o Estado Democrático de Direito (SILVA, 2000, p. 31).

Conforme afirma Silva (2000, p. 31),

O Estado Democrático de Direito concilia Estado Democrático e Estado de Direito, mas não consiste apenas na reunião formal dos elementos desses dois tipos de Estado. Revela, em verdade, um conceito novo que incorpora os princípios daqueles dois conceitos, mas os supera, na medida em que agrega um componente revolucionário de transformação do status quo.

Exatamente nesse aspecto reside toda a importância do art. 1º da Constituição, o qual funda o Estado brasileiro. É que o fato de um determinado Estado ser “de Direito” (tal como o são o Estado Liberal de Direito e o Estado Social de Direito) não tem como decorrência lógica imediata que ele seja também um Estado Democrático; este tem como fundamento o princípio da soberania popular o qual

[...] impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure [...] na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento (CROSA, apud SILVA, 2000, p. 37),

princípio esse que vem consagrado no parágrafo único do mesmo art. 1º da Constituição (Art. 1º, § único, CR/88: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 2010a, p. 7)). Em última análise, o que se busca é dar concretude ao princípio democrático como forma de assegurar os direitos fundamentais da pessoa humana (SILVA, 2000, p. 37).

A ascensão do Estado Democrático de Direito se dá a partir da lacuna deixada pelo Estado Social de Direito, incapaz “[...] de assegurar a justiça social nem a autêntica participação democrática do povo no processo político [...]; desponta assim o Estado Democrático de Direito, de “[...] concepção mais recente [...], fundante de uma sociedade democrática, qual seja a que instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos do controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos da produção” (SILVA, 2000, p. 38, grifo do autor).

Assim é que, no sentir de Silva (2000, p. 39),

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I [CR/88]), em que o poder emana do povo, deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por seus representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de formas de organização e interesses diferentes na sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.

Tal como qualquer outro Estado de Direito, também o Estado Democrático de Direito se subordina ao “império da lei” (faz parte de sua essência a estrita observância à Constituição), pelo que tem como um de seus princípios básicos o princípio da legalidade (inscrito no art. 5º, II, CR/88: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL, 2010a, p. 7)).

Contudo, a lei aqui é alçada a um patamar de importância maior do que aquele observado nas modalidades de organização estatal anteriormente consideradas, principalmente em decorrência da função por ela desempenhada de “[...] regulamentação fundamental, produzida segundo um procedimento constitucional qualificado”, e também por ser ela, no âmbito do Estado Democrático de Direito, o veículo que realiza  “[...] o princípio da igualdade [art. 5º, caput, e inciso I, CR/88] e da justiça [social (art. 170, caput, e art. 193, CR/88, referido como princípio da ordem econômica e da ordem social] [...] pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais” (SILVA, 2000, p. 41).

Tamanha importância atribuída à lei no Estado Democrático de Direito se justifica pelo fato de que é através da lei que ele (o Estado) poderá intervir na realidade social; entender o raciocínio lógico que explica a dinâmica que leva à tal constatação é tarefa relativamente fácil: a Constituição, no Estado Democrático de Direito, é a porta que dá acesso às transformações políticas, econômicas e sociais reclamadas pela sociedade; por seu turno, a lei constitui “expressão fundamental  do direito positivo”, e nessa condição “[...] caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição [...]”, norma maior do ordenamento jurídico e fundamento de validade de todo o regramento infraconstitucional. Ora, tendo em vista aquela natureza de veículo transformador atribuída à Constituição, fica evidente assim que, no Estado Democrático de Direito, a lei “[...] exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas, ainda que possa continuar a desempenhar função conservadora, garantindo a sobrevivência de valores socialmente aceitos”. Reside aí toda a importância da lei nessa modalidade de Estado (SILVA, 2000, p. 41).

Além dos princípios já referidos acima (a saber, princípio da legalidade, princípio da igualdade e princípio da justiça social), o Estado Democrático de Direito ainda tem como princípios norteadores o princípio da constitucionalidade, o princípio democrático (insculpido no art. 1º, CR/88), o sistema de direitos fundamentais (que se espraia pelos Títulos II, VII e VIII da CR/88), o princípio da divisão de poderes (consagrado no art. 2º, CR/88) e da independência do juiz (referido pelo art. 95, CR/88), princípio da segurança jurídica (art. 5º, incisos XXXV a  LXXII, CR/88). É ancorado nessa base principiológica que o Estado Democrático de Direito se lança na persecução de sua tarefa fundamental, a qual “[...] consiste em superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social” (SILVA, 2000, p. 42).

Assim é que, ao proclamar e fundar o Estado brasileiro como um Estado Democrático de Direito, consonante a norma inscrita em seu art. 1º, a Constituição Federal de 1988, no ponderado entender de Silva (2000, p. 40),

[...] abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social fundado na dignidade da pessoa humana.


2 A BASE PRINCIPIOLÓGICA DO INTERROGATÓRIO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

O foco das críticas contrárias à utilização do teleinterrogatório no processo penal empunha a bandeira da inconstitucionalidade desse procedimento, ancorada fundamentalmente na inobservância dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

A defesa da aplicação do procedimento do teleinterrogatório, objetivo geral deste estudo, por sua vez, tem como uma de suas vertentes a desconstrução daquela argumentação contrária, fundamentada na afirmação de que a mesma desrespeita os princípios constitucionais da proporcionalidade, da razoabilidade e da eficiência. 

Por essas razões, entende-se que o enfrentamento da questão, por excelência, deve ser feito à luz de uma abordagem dita “principiológica”, abarcando o conteúdo de cada um dos princípios trazidos à baila, em confronto com o novo procedimento.

Uma tal abordagem exigirá uma conceituação prévia desses princípios, de modo a contextualizá-la e propiciar a criação de um substrato operacional com os conceitos elencados, a partir do qual se desenvolverá a temática aqui proposta.

2.1 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

O princípio do devido processo legal (previsto no inciso LIV, do art 5º da Constituição Federal[6], e que tem origem na Magna Charta Libertatum, de 1215, do direito inglês), determina que somente será possível privar a liberdade ou os bens de qualquer indivíduo desde que sejam observados todos os procedimentos e formalidades legalmente previstas. Significa dizer que o respeito aos direitos do acusado só poderá ser garantido mediante a tramitação regular e legal do processo penal; todo e qualquer desvio nesse fluxo processual deve necessariamente estar previsto em lei.

É somente pela evolução normal do processo, em fiel observância à seqüência e “conteúdo” dos atos processuais, tudo em absoluta conformidade com o previsto na lei, que será possível assegurar o respeito aos direitos dos indivíduos. Desvios não são admitidos, salvo aqueles para os quais haja previsão legal.

São claras, no ordenamento, as evidências dos efeitos decorrentes do princípio do devido processo legal. Apenas para citar, a vedação da admissibilidade de provas ilícitas no processo (que tem matiz constitucional, elencada como garantia fundamental no art. 5º, LVI, CR/88[7], e que consagrou a teoria do “fruto da árvore envenenada”) é manifestação do devido processo legal; e o próprio contraditório (outra garantia fundamental insculpida no mesmo art. 5º, LV, CR/88[8]) só se efetiva a partir da observância do devido processo (prova disso é o subconjunto de dispositivos do CPP[9] inseridos no capítulo que trata do acusado e do seu defensor, estabelecendo a necessidade de um defensor para que tramite o processo contra o acusado), que se negligenciado tem o condão de eivar todos os atos praticados pelo vício da nulidade.

Fioreze (2008, p. 179) esclarece que o princípio do devido processo legal remete à

[...] existência de um regulamento jurídico que garante às partes um processo justo, ou seja, a tramitação regular do processo, segundo as normas e regras estabelecidas em lei, em obediência a todos os requisitos necessários e fundamentais para a efetividade do processo e da jurisdição. Isso exige a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

[...]

[...] representa, portanto, a prévia existência de um regulamento jurídico que garanta às partes um processo efetivo e justo, com paridade de tratamento e iguais oportunidades em juízo.

O devido processo legal determina o estabelecimento de um verdadeiro “sistema de garantias” ao acusado, que visa o equilíbrio de forças com o poder punitivo do Estado, impondo-lhe limitações e evitando arbitrariedades. Nas palavras do que ensina Moraes (2005, p. 252)

O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).

Do pensamento de Moraes acima evidencia-se a existência de duas vertentes do princípio do devido processo legal, as quais Fioreze (2008, p. 179) denomina “substantive due process (sentido material)” e “procedural due process (sentido processual)”, este último também referido como o sentido formal do devido processo legal.

Buscando delinear essas vertentes, Luís Flávio Gomes (GOMES, 2003) esclarece que pelo devido processo legal formal “[...] todos os processos, todas as atividades persecutórias devem seguir as formalidades legais e respeitar estritamente as garantias do devido processo legal”; por outro lado, pelo devido processo legal material “[...] a criação dessas regras jurídicas também possui limites. O legislador deve produzir regras "justas". [...] a produção legislativa tem limites formais e substanciais: não só deve seguir o procedimento legislativo como deve ser proporcional, equilibrada”.

De acordo com Fioreze (2008, p. 179-181) a cláusula do devido processo legal a princípio “[...] foi elaborada e interpretada como uma garantia apenas processual”, o que conduz à constatação de que “[...] a jurisdição penal só será válida num processo em que o conjunto de atos for executado de acordo com a forma e a ordem preestabelecidas”; contudo, acompanhando o movimento de transformação social que expandiu as fronteiras dos direitos fundamentais do homem, esse princípio experimentou significativa evolução em seu conteúdo, tornando-se um efetivo “[...] controle axiológico da atuação do Estado e de seus agentes, instrumento de defesa contra a arbitrariedade do Legislativo (garantia contra o arbítrio do legislador e lei injusta)”.

Por essa via, no entender de Souza Netto (2006, p. 119), o princípio do devido processo legal “[...] impede o automatismo na aplicação das normas, exigindo uma atividade valorativa”.

Delineia-se assim o aspecto material do princípio do devido processo legal, que

[...] nasceu com a preocupação de garantir ao cidadão um processo ordenado. Hoje o objetivo é maior. Adaptado à instrumentalidade, o processo legal é devido quando se preocupa com a adequação substantiva do direito em debate, com a dignidade das partes, com preocupações não só individualistas e particulares, mas coletivas e difusas, com, enfim, a efetiva igualização das partes no debate judicial. (PORTANOVA, 2003, p. 147).

O princípio vem consagrar “[...] uma das mais significativas garantias conferidas pelo Estado aos cidadãos: direito à jurisdição” (FIOREZE, 2008, p. 182), e seu conteúdo, na cátedra de Nery Junior (2004, p. 69-70), abrange os direitos à citação e ao conhecimento do teor da acusação; a um rápido e público julgamento; ao arrolamento de testemunhas e à notificação das mesmas para comparecimento perante os tribunais; ao procedimento contraditório; de não ser processado, julgado ou condenado por alegada infração às leis ex post facto; à plena igualdade entre acusação e defesa; contra medidas ilegais de busca e apreensão; de não ser acusado nem condenado com base em provas ilegalmente obtidas; à assistência judiciária, inclusive gratuita; ao privilégio contra a auto-incriminação.

Em suma, a observância a este princípio é um requisito inafastável no sentido de assegurar a transparência da atuação jurisdicional do Estado e, principalmente, para que o processo conduza à formulação de uma sentença justa e imparcial. Em outras palavras, a legalidade da atuação do Estado de Direito na persecução penal legitima-se a partir da elevação do princípio do devido processo legal ao status de garantia fundamental constitucional, no que se consagram as máximas “não há pena sem processo” e “não há crime nem pena sem lei anterior” (esta última, também outra garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXIX, CR/88[10]). Como bem sintetiza Rangel (2006, p. 6, grifo do autor), “O Estado, sendo o titular do ius puniendi, tem, na realidade, o poder-dever de punir, mas deve, também, preservar a liberdade do indivíduo através do instrumento de tutela de ambos os interesses: o processo penal”.

Entende a melhor doutrina ser o devido processo o princípio basilar de todo o sistema jurídico processual; nele se fundam todos os demais princípios que informam a esfera processual. Em que pese sua relevância, ele não deve, contudo, ser considerado absoluto, e, por essa razão, já se consolidou tanto na doutrina como na jurisprudência o entendimento de que as garantias que derivam do devido processo legal devem ser tomadas em cotejo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade; isso determina, em situações específicas, a atenuação de algumas dessas garantias.

Evita-se assim incorrer em possíveis distorções, motivadas pela rigidez na aplicação desse sistema de garantias à casos que se revestem de inquestionável gravidade, em função dos riscos de prejuízo ao direito material tutelado que decorrem da necessidade de observância de formas procedimentais.

2.2 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO

O princípio do contraditório (consagrado na Constituição pátria no art. 5º, inciso LV[11]) assegura a igualdade entre as partes no processo, na medida em que a ambas é assegurado o direito, em iguais condições, para produzir as provas aptas a demonstrar que a verdade alberga-se na sua pretensão específica.

Este princípio está intimamente relacionado com o próprio direito de defesa e desagua no dever de imparcialidade do julgador. Um processo que se pretenda consagrado pela legalidade deve assegurar a instrução contraditória, propiciando ao acusado a oportunidade de refutar (ou contradizer!) as imputações que lhe são direcionados pelo acusador. Ao julgador incumbe conhecer a controvérsia, o que significa ouvir ambas as partes, não somente quem acusa mas também o acusado; sob a ótica do magistrado, não verifica-se um antagonismo entre as partes, mas uma imprescindível colaboração entre elas. Por isso, o princípio do contraditório “[...] é identificado na doutrina pelo binômio ciência e participação” (CAPEZ, 2009, p. 20, grifo do autor).

O contraditório é uma marca característica do sistema acusatório (cujo traço marcante, no dizer de Fioreze (2008, p. 190), reside na “[...] separação orgânica entre o órgão acusador e o órgão julgador [...]”) que vigora no sistema processual penal brasileiro. Em linhas gerais, consiste “[...] na possibilidade de as partes, em igualdade de condições, praticarem todos os atos tendentes a influir no convencimento do juiz. Atinge, também, a necessidade de cientificação da parte contrária, dos atos praticados por uma delas [...]” (FIOREZE (2008, p. 190). É em função desse seu conteúdo que entende a melhor doutrina que esse princípio

[...] visa exatamente garantir o equilíbrio na relação jurídico-processual, onde as partes (autor e réu) ficam no mesmo pé de igualdade, mantendo uma perfeita harmonia entre os bens jurídicos que irão se justapor (e não contrapor): direito do Estado de punir e proteção dos direitos e garantias do acusado (RANGEL, 2006, p. 17, grifo do autor).

A relevância, no processo penal, conferida às etapas de produção probatória e valoração das provas tem como principal alicerce o princípio do contraditório; dele emerge uma conjugação de garantias às partes no processo que lhes assegura, por um lado, o direito de produzir provas e defender suas razões, e por outro lado, o direito de que tais provas sejam efetivamente consideradas e valoradas pelo magistrado. E essa sistemática de paridade de armas faz do contraditório um autêntico método de conhecimento do fato penal, na medida em que propicia uma estrutura dialética que exerce efetiva influência na formação do convencimento do juiz. Conforme sustentam Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2007, p. 145)

A garantia do contraditório não tem apenas como objetivo a defesa entendida em sentido negativo – como oposição ou resistência –, mas sim principalmente a defesa vista em sua dimensão positiva, como influência, ou seja, como direito de incidir ativamente sobre o desenvolvimento e o resultado do processo.

Pelo contraditório, as partes têm assegurado o acesso à informação de todo e qualquer fato ou alegação processual contrária aos seus interesses, bem como o direito de reação, manifestando-se sobre os mesmos antes que o órgão jurisdicional prolate qualquer juízo (o que configura a garantia de participação no processo). Além disso, essa reação deve oportunizar uma resposta que se equipare, em intensidade e extensão, ao evento que a motivou. Ou seja,

O contraditório está calcado e se manifesta na idéia de bilateralidade da audiência ou contraditoriedade real e indisponível, isto é, todos os atos praticados o devem ser na presença das partes, e essas devem poder se manifestar sobre eles, especialmente os praticados pela parte contrária (FIOREZE, 2008, p. 191).

O contraditório configura-se, assim, como requisito de validade do processo que, se não observado, leva quase que invariavelmente à nulidade absoluta do processo. E, nas palavras de Pacelli (OLIVEIRA, E., 2009, p. 39, grifo do autor), revela-se a magnitude da sua importância para o processo penal:

O contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental [...] do processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e eqüitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal.

2.3 PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA

O mesmo inciso constitucional arrolado na seção supra introduz no nosso ordenamento jurídico o princípio da ampla defesa. Deriva deste princípio a garantia assegurada ao réu que lhe outorga plenas condições para que sejam carreadas ao processo todos os elementos cabais que se fizerem necessários para que estabeleça a verdade dos fatos (facultando-lhe inclusive o direito de permanecer calado, se assim considerar necessário).

Em outras palavras, enquanto o princípio do contraditório busca garantir a participação da parte (principalmente do réu) no processo, assegurando-lhe o direito de impugnar tudo o que seja atentatório ao seu interesse, o princípio da ampla defesa busca imprimir à tal impugnação a mais concreta efetividade, de forma que a participação da parte seja verdadeiramente efetiva, sob risco de nulidade nos casos em que resta prejudicada a defesa do acusado.

Com base na ampla defesa fica o Estado obrigado a assegurar ao acusado a sua defesa da forma mais completa, abrangendo a autodefesa (defesa pessoal, que o próprio réu desenvolve, sobretudo no momento do interrogatório, ao exercer seu direito de ser ouvido pelo juiz da causa), a defesa técnica (realizada por advogado regularmente inscrito na OAB, cuja participação é exigida em todos os atos do processo), a garantia de defesa efetiva (onde não se concebe uma defesa técnica falha e omissa, equivalente à ausência de defesa, o que da causa à nulidade processual), a prestação de assistência jurídica integral e gratuita (concedida aqueles que não dispõem de condições financeiras para a constituição de defensor), e, por fim, qualquer meio de prova que se revele hábil para comprovar a inocência do acusado. Nesta última modalidade incluem-se, inclusive, as provas ilícitas, entendimento esse defendido por doutrinadores como Pacelli (OLIVEIRA, E., 2009, p. 41, grifo do autor), para o qual

[...] é possível, também, atribuir à ampla defesa o direito ao aproveitamento pelo réu, até mesmo de provas obtidas ilicitamente, cuja introdução no processo, em regra, é inadmissível. E isso porque, além da exigência da defesa efetiva, o princípio desdobra-se, dada a sua amplitude, para abarcar toda [sic] e quaisquer modalidades de prova situadas no ordenamento jurídico, até mesmo aquelas vedadas à acusação, pois não se pode perder de vista que a ampla defesa é cláusula de garantia individual instituída precisamente no interesse do acusado (art. 5º, CF).

É com base na ampla defesa que tem-se determinada a ordem natural do processo, ou seja, o obrigatoriedade de que a manifestação da defesa ocorra sempre por último, e que, em regra, obriga que, a cada intervenção da acusação no processo, se conceda vista aos autos à defesa do réu, possibilitando assim o mais amplo exercício de seu direito de defesa.

Enfim, a essência do princípio da ampla defesa é brilhantemente sintetizada pelo pensamento de Vladimir Aras (ARAS, 2001), ao afirmar que “[...] não é tolerável nem razoável admitir que alguém possa ser acusado de um crime sem defender-se.”, e que “[...] o único direito de defesa que se lhe retira [do acusado] é o de não se defender. Ou seja, mesmo que o réu silencie em seu interrogatório sempre haverá defesa. Sem defesa, não há processo penal”.

2.4 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da proporcionalidade opera de modo diverso do que se verifica com outros princípios normativos presentes no ordenamento jurídico pátrio; para muitos destes (como p. ex., os princípios da ponderação, da otimização, da proibição de excesso etc), a aplicação depende da existência de elementos vinculados entre si através de uma determinada relação que tais elementos devem obedecer. Contudo, apesar da exigência desse relacionamento entre elementos, estes não são indicados ou especificados a priori com também não o são os critérios que regem o relacionamento entre os elementos e que orientam a aplicação de tais princípios. Por essa razão, a doutrina classifica esses princípios como princípios inespecíficos (ou incondicionais) (ÁVILA, 2008, p. 142).

A aplicação do princípio da proporcionalidade (e também do princípio da razoabilidade, como será visto na próxima seção) exige a presença de elementos específicos e de critérios claramente determinados que estabeleçam a relação entre tais elementos (no caso da proporcionalidade, sua aplicação está condicionada à existência de um meio e de um fim como elementos a serem vinculados). A doutrina refere-se a tais princípios como princípios específicos (ou condicionais) (ÁVILA, 2008, p. 142-143).

A Constituição Federal de 1988 não trouxe previsão expressa para o princípio da proporcionalidade; por essa razão é considerado um princípio constitucional implícito. Tal fato não representa óbice à efetiva aplicação desse princípio já que o mesmo se deriva de outros princípios constitucionais; nesse sentido Brugger e Leal esclarecem que o princípio da proporcionalidade se pressupõe

[...] com base (1) na supremacia da Constituição e (2) na supremacia do indivíduo em face do poder estatal. Ambos os princípios decorrem da natureza vinculante representada pela Constituição brasileira em relação a todos os poderes estatais (art. 3º), bem como da supremacia representada pelos direitos e liberdades fundamentais em face de todas as ações governamentais (art. 5º), impondo ao governo ter bons motivos/fundamentos antes de restringir quaisquer direitos e liberdades básicas (BRUGGER; LEAL, 2007, p. 137).

Na cátedra desses mesmos doutrinadores, com a expressão “ter bons motivos” deve se entender

[...] antes de mais nada, (1) respeitar o âmbito de proteção dessas liberdades e garantias e (2) estabelecer cláusulas limitativas em relação à possibilidade de sua restrição. Se limitações podem e são consideradas, então elas devem servir, empiricamente, para a realização do bem comum – um bem comum legítimo – de modo que a restrição do direito individual seja apropriada (BRUGGER; LEAL, 2007, p. 137).

Conforme esclarece Vizzotto (2006, p. 139),

Devido à existência, hoje cada vez mais pulsante, de conflitos entre direitos fundamentais, e destes com valores inerentes a toda a comunidade (segurança pública e nacional, saúde pública etc) a Constituição autoriza, ainda que de modo não explícito, que tanto o legislativo quanto o judiciário imponham restrições aos direitos fundamentais [grifo nosso].

Contudo, a liberdade concedida pela Constituição ao legislador ordinário não é total, sob o risco de se cometerem arbitrariedades e excessos através de dispositivos legais que restrinjam de forma severa direitos legitimamente conquistados; de forma a permitir o controle da discricionariedade do legislador, a doutrina constitucional concebeu critérios racionais que atual como vetores diretivos no tocante à determinação do alcance das restrições dos direitos fundamentais. Entre tais critérios destaca-se o princípio (ou máxima) da proporcionalidade. (VIZZOTTO, 2006, p. 140).

Assim, o princípio da proporcionalidade desempenha duas funções distintas e essenciais “[...] para que possa se alcançar um resultado equilibrado e coerente com o Estado Democrático” (VIZZOTTO, 2006, p. 141); de um lado, esse princípio

[...] configura instrumento de salvaguarda dos direitos fundamentais contra a ação limitativa que o Estado impõe a esses direitos. De outro lado [...] cumpre a relevante missão de funcionar como critério para solução de conflitos de direitos fundamentais, através de juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto (FIOREZE, 2008, p. 211-212, grifo da autora).

O resultado combinado dessas funções confere ao princípio da proporcionalidade relevante papel na interpretação constitucional e infraconstitucional, notadamente como técnica de controle dos limites que são impostos aos direitos fundamentais, atuando “[...] precipuamente para a averiguação da constitucionalidade de leis que possam interferir no âmbito da liberdade humana” (FIOREZE, 2008, p. 204; 206).

De forma similar, Bonavides (2009, p. 425) sustenta que

Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado.

E para que não restem dúvidas quanto à sua relevância no seio do ordenamento jurídico, mais precisa ainda é cátedra de Bechara e Campos ao afirmarem que o princípio da proporcionalidade

tradicionalmente atua como critério solucionador dos conflitos entre valores constitucionais, mas que constitui, na realidade, uma norma de sobredireito ou de conformação, que define a dimensão conceitual e o âmbito de aplicação de cada liberdade pública. O princípio da proporcionalidade constitui, enfim, uma solução de compromisso, que procura realizar o primeiro mandamento básico da fórmula política de um ordenamento, que é o respeito simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. Sua operacionalização perfaz-se por meio dos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade estrita (BECHARA; CAMPOS, 2005, p. 134).

Destaque-se que a necessidade de se impingir restrições a direitos fundamentais não é um advento da modernidade; desde o surgimento dos primeiros núcleos sociais esse expediente se mostrou necessário como meio de viabilizar uma tênue e minimamente harmoniosa convivência, seja entre os homens ou entre estes e o Estado (VIZZOTTO, 2006, p. 133-134). Tal evidência vem corroborar o fato já pacificado de que não existem princípios absolutos (vide seção 1.1 supra) e, via de conseqüência,

[...] grande parte dos direitos fundamentais não são intocáveis e absolutos, principalmente pelo fato do homem viver em sociedade, e estar em contato com outros sujeitos que gozam de suas respectivas garantias e prerrogativas que defluem do Estado Democrático de Direito. Evidente é, portanto, que surgem hipóteses em que ocorre conflito e eventual choque entre esses direitos (VIZZOTTO, 2006, p. 135).

Ficam evidentes, portanto, as razões pelas quais se tornam imperiosos a precisa compreensão e o correto manejo em concreto do princípio da proporcionalidade, o qual se espraia por todo o ordenamento jurídico pátrio (VIZZOTTO, 2006, p. 141); diante da colisão entre dois princípios constitucionais, em que a decisão de se aplicar um deles significa reduzir o campo de aplicação do outro, esse princípio atua como base de ponderação jurisdicional para avaliar se a redução ministrada é proporcional em face da relevância do princípio afetado. Busca-se por essa via impedir que dispositivos legais que impliquem em restrições à direitos fundamentais venham eliminar por completo esses direitos, “[...] sob pena de inviabilizar a efetivação da dignidade humana, mola mestra do Estado Democrático de Direito” (VIZZOTTO, 2006, p. 142).

Ainda que a noção de proporção se encontre difusa por todo o ordenamento jurídico, assumindo uma diversidade de significações, estas não devem ser confundidas com o que postula o princípio da proporcionalidade. A sistematização apresentada por Ávila (2008, p. 161-162) é extremamente didática ao estabelecer a distinção; afirma esse autor que o princípio da proporcionalidade

[...] se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pelo promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?).

É pacífico, então, que a aplicabilidade desse princípio está condicionada à existência de um meio, de um fim concreto[12] e de uma relação de causalidade que os vincula, sem o que não há como aplicar o postulado da proporcionalidade. Mas mesmo quando tais elementos encontram-se presentes, a aplicação da proporcionalidade requer a superação de dificuldades inerentes ao exame dos seus três aspectos fundamentais, e que decorrem do fato de que os conceitos de adequação, necessidade e vantagens (e em relação ao quê e a quem estas últimas devem ser apuradas) são, o mais das vezes, juridicamente imprecisos e controvertidos. Por essa razão, a investigação desses aspectos “[...] revela problemas que devem ser esclarecidos, sob pena de a proporcionalidade, que foi concebida para combater a prática de atos arbitrários, funcionar, paradoxalmente, como subterfúgio para a própria prática de tais atos” (ÁVILA, 2008, p. 162).

A preocupação desse autor justifica-se na medida em que a relevância do princípio da proporcionalidade tem crescido no ordenamento jurídico brasileiro como um dos principais instrumentos de controle dos atos do Poder Público, quando, conforme esclarece Ávila (2008, p. 182), “A exigência de realização de vários fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito”. Tal comportamento torna-se imprescindível quando enfrentam-se conflitos entre bens jurídicos, e desde que, entre eles, seja possível estabelecer “[...] uma relação meio/fim devidamente estruturada” (ÁVILA, 2008, p. 162); é esse o cenário típico no qual o princípio da proporcionalidade torna-se poderosa ferramenta de aplicação. E como sistematiza esse doutrinador, cabe a aplicação de tal princípio

[...] sempre que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade. Nesse caso devem ser analisadas as possibilidades de a medida levar à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida ser a menos restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame da necessidade) e de a finalidade pública ser tão valorosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em sentido estrito) (ÁVILA, 2008, p. 162-163, grifo do autor).

Indo mais à frente, para que seja possível alcançar todas as nuanças do princípio da proporcionalidade, cumpre destacar ainda a perspicaz abordagem erigida por Lênio Streck em relação à aplicação desse princípio, a qual caracteriza o que esse doutrinador designa como a “dupla face do princípio da proporcionalidade”.

Tratando de forma mais detida da questão do direito material penal (mas que, em diversas oportunidades, ele próprio estende à esfera processual, o que, de certo modo, afigura-se como óbvio), Streck procura ressaltar a

[...] dupla via que devem ter as análises acerca da validade de dispositivos penais, Ou seja, é preciso ampliar a perspectiva do Direito Penal [e, via de conseqüência, do Direito Processual Penal] da Constituição na perspectiva de uma política integral de proteção dos direitos, o que significa estender o garantismo não somente no sentido negativo como limite do sistema punitivo (proteção contra o Estado), mas, sim, também como garantismo positivo, o que [...] aponta para a resposta às necessidades de assegurar à todos os direitos, inclusive os de prestação por parte do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais), e não apenas aqueles que podem ser denominados de direitos de prestação de proteção, em particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas (STRECK, 2005, p. 199, grifo do autor).

Esse entendimento tem guarida na evidência de que, em que pese o processo de transformação pelo qual passou o Estado, deslocando-se de um modelo liberal-individualista para o modelo de Estado Democrático (e Social) de Direito (vide capítulo 1 supra), os juristas brasileiros continuam hoje a pautar sua atuação com base em construções axiológicas forjadas no início do século XIX (típicas do Estado Liberal então se germinação, e caracterizadas pela hegemônica função ordenadora da lei, voltada exclusivamente para a defesa do cidadão contra o Estado, e pelo antagonismo entre Estado e Sociedade), em detrimento da proteção de outras categorias de direitos e garantias reconhecidas constitucionalmente “[...] a partir da identificação de novos valores gerados em face das novas necessidades (individuais e sociais)[13]”, e que conferem à ordem constitucional vigente “[...] um papel decisivo nesse sentido”; (STRECK, 2005, p. 199).

Em outras palavras, em seu modelo atual, o Estado Democrático de Direito lida não apenas com direitos individuais, mas agrega também direitos de segunda e terceira gerações, competindo ao Estado o dever de protegê-los de forma conjunta. Conforme sustenta com propriedade Streck (2005, p. 201),

[...] analisar o Direito Penal [e o Direito Processual Penal] sob a ótica do Estado Democrático de Direito e do (neo)constitucionalismo que o engendrou implica, necessariamente, levar em conta as mudanças paradigmáticas ocorridas no campo do Estado e do Direito. Conseqüentemente, torna-se necessário romper com a idéia de que há uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e Indivíduo.

É neste ponto que reside a fragilidade das teses que não admitem a extensão da função de proteção penal aos bens de interesse da comunidade (bens transindividuais) [...] [grifo nosso].

A conclusão inevitável é que “[...] a tarefa do Estado é defender a sociedade, a partir da agregação das três dimensões [ou gerações] de direitos – protegendo-a contra os diversos tipos de agressões” (STRECK, 2007, grifo nosso). No novo modelo de Estado destacam-se assim dois componentes: o do Estado de Direito protetor da liberdade individual (que protege o indivíduo de uma intervenção desproporcional do próprio Estado), e do Estado Social preservador do interesse social (que “[...] protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo [...] mesmo à custa da liberdade do indivíduo” (STRECK, 2007)).

Fica patente, portanto (e a própria Constituição assim o determina, ainda que em alguns casos de forma implícita), que essa proteção estatal é ampla, e açambarca também a proteção dos direitos fundamentais[14] (a qual deve se processar em duas vertentes: protegendo tais direitos do cidadão (a) frente ao Estado, e (b) através do Estado, contra violações por parte de outros indivíduos); essa postura faz do Estado verdadeiro protetor dos direitos fundamentais, agente fomentador de seu desenvolvimento, abandonando sua postura antiga de potencial opositor (ou inimigo) desses direitos (STRECK, 2007).

Sistematizando esse entendimento, Streck (2007, grifo do autor) reitera que

[...] o Estado passou a ter a função de proteger a sociedade nesse duplo viés: não mais apenas a clássica função de proteção contra o arbítrio, mas, também a obrigatoriedade de concretizar os direitos prestacionais e, ao lado destes, a obrigação de proteger os indivíduos contra agressões provenientes de comportamentos delitivos, razão pela qual a segurança passa a fazer parte dos direitos fundamentais (art. 5º, caput, da Constituição do Brasil).

Por outro lado, na visão lúcida de Streck, uma avaliação mais detida em torno da superação do modelo clássico de garantismo negativo (focado exclusivamente na proteção do indivíduo contra o Estado) permite evidenciar que o mesmo é fruto de “[...] uma leitura unilateral do princípio da proporcionalidade, como se este fosse apenas voltado à proteção contra os excessos (abusos do Estado)” (STRECK, 2007, grifo nosso).

Contudo, conforme oportunamente sustenta Sarlet (2005, p. 107),

[...] a noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que abrange [...] um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal [...] [grifo nosso].

A proibição de insuficiência a que se refere Sarlet remete à outra face do princípio da proporcionalidade, que a doutrina comumente designa como proibição de proteção deficiente.

Conforme esclarece o mesmo Sarlet, quando, por outro lado, se aplica o “teste da proporcionalidade” para aferir a constitucionalidade de atos restritivos de direitos fundamentais, através da utilização daqueles subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (referidos anteriormente nesta seção) em que se desdobra o princípio da proporcionalidade, é a função precípua de proibição de excesso desse princípio que se faz presente (SARLET, 2005, p. 134).

Assim, no sopesamento necessário em face da colisão entre direitos fundamentais (tendo em vista que a própria Constituição não estabelece direitos fundamentais absolutos), notadamente quando a questão envolve interesses coletivos e direitos prestacionais de terceiros (garantismo positivo), é necessário ter em vista essa dupla face do princípio da proporcionalidade; dessa forma, a violação a este princípio tanto pode ocorrer a partir de um ato do Estado que se mostre arbitrário (ou seja, excessivo), ou então que se revele débil para prover a necessária proteção estatal a um determinado bem jurídico (em outras palavras, que configure uma proteção deficiente àquele bem) (STRECK, 2007).

Dessa forma, são passíveis de críticas as decisões que, abraçando tão somente a perspectiva do garantismo negativo (onde a proporcionalidade só será violada em caso de inobservância da proibição de excesso), deixam de considerar a “[...] relevante circunstância de que o Estado [...] pode vir a violar o princípio da proporcionalidade na hipótese de não proteger suficientemente direitos fundamentais de terceiros (garantismo positivo) [...]” (STRECK, 2007).

Conforme didaticamente esclarece Streck (2007)

A proibição de proteção deficiente pode ser definida como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, com cuja aplicação pode-se determinar se um ato estatal – [...] uma omissão – viola um direito fundamental de proteção. Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o restado do seu sopesamento [...] entre fins e meios; de outro lado, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da constituição e tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador [grifo nosso],

cátedra essa que Sarlet (2005, p. 131-132, grifo nosso) reitera de forma sempre magistral ao lecionar que 

No plano do direito penal (e isto vale tanto para o direito penal material, quanto para o processo penal) resulta [...] inequívoca a vinculação entre os deveres de proteção (isto é, a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais, como elemento legitimador da intervenção do Estado nesta seara, assim como não mais se questiona seriamente [...] a necessária e correlata aplicação do princípio da proporcionalidade e da interpretação conforme a Constituição. Com efeito, para a efetivação de seu dever de proteção, o Estado [...]  pode acabar por afetar de modo desproporcional um direito fundamental (inclusive o direito de quem esteja sendo acusado da violação de direitos fundamentais de terceiros). Esta hipótese corresponde às aplicações correntes do princípio da proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais que, nesta perspectiva, atuam como direitos de defesa, no sentido de proibições de intervenção (portanto, de direitos subjetivos em sentido negativo [...]). O princípio da proporcionalidade atua, neste plano (o da proibição de excesso), como um dos principais limites às limitações dos direitos fundamentais [...].

Por outro lado, o Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada [...] à problemática das omissões inconstitucionais. É neste sentido que – como contraponto à assim designada proibição de excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado [...]).

A proteção e preservação dos direitos e garantias fundamentais, no seio do ordenamento jurídico, levadas em conta as peculiaridades e características do caso concreto, é o caminho mais curto e infalível para assegurar que “[...] a democracia e a dignidade humana não serão atingidas de modo fatal e irreversível”. Em cada caso concreto alçado à barra dos tribunais deve a jurisdição buscar a “melhor resposta possível”, e para tanto deve a prestação jurisdicional ser pautada pelo princípio da proporcionalidade (VIZZOTTO, 2006, p. 152), “[...] peça essencial para a manutenção de direitos e garantias fundamentais no Estado Democrático de Direito” (VIZZOTTO, 2006, p. 151).

Essa importantíssima função desempenhada pelo princípio da proporcionalidade no âmbito do Estado Democrático (e Social) de Direito se ancora

[...] em dois pilares: a (ampla) possibilidade de sindicância de índole constitucional não somente de normas [...] violadoras da cláusula da proibição de excesso [...], como também das normas [...] que violem o princípio da proporcionalidade por proteção deficiente [...] (STRECK, 2005, p. 202).

2.5 PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

Conforme referido na seção supra, o princípio da razoabilidade integra o conjunto de princípios designados como princípios específicos (ou condicionais), e se constitui num princípio estruturador para a aplicação de outras normas, princípios e regras, com ênfase para estas últimas.

Sua aplicação se dá com base em três vertentes principais: eqüidade, congruência e equivalência. Pela primeira forma de aplicação (eqüidade), o princípio da razoabilidade atua como linha mestra para assegurar que a subsunção da norma geral ao caso individual, em concreto, se processe de forma harmoniosa. No dizer de Ávila (2008, p. 152), nesse sentido a razoabilidade é

[...] diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral.

Para obtenção desse resultado, dois cuidados devem orientar a aplicação das normas jurídicas: (a) a presunção de que as condutas e fatos manifestam-se, como regra geral, segundo seus aspectos considerados normais, típicos, padrão ou corriqueiros; e (b) a consideração de que se as especificidades do caso individual, em concreto, conferem-lhe tamanha diferenciação, a ponto de ser enquadrado como um caso anormal em face daquilo que seria legalmente aceitável como típico ou normal, então a norma geral não pode ser aplicada para um tal caso.

O primeiro cuidado pode ser sintetizado pela idéia de que, na interpretação das normas jurídicas, a presunção deve, em regra, orientar-se no sentido do que é considerado como normalidade ou percebido como sendo o que normalmente ocorre, e não no sentido do contrário, do extraordinário ou extravagante. Ávila (2008, p. 153) atalha, concluindo que

[...] a razoabilidade atua como instrumento para determinar que as circunstâncias de fato devem ser consideradas com a presunção de estarem dentro da normalidade. A razoabilidade atua na interpretação dos fatos descritos em regras jurídicas. A razoabilidade exige determinada interpretação como meio de preservar a eficácia de princípios axiologicamente sobrejacentes.

O segundo cuidado evoca, em última análise, para uma interpretação teleológica da norma jurídica, focada na finalidade almejada pelo legislador com a criação da própria norma; assim, identificado desvio dessa finalidade ou diante de um princípio que estabeleça uma finalidade contraposta, a norma jurídica não se aplica mesmo se as suas condições de aplicação estiverem presentes no caso concreto. Por essa via,

[...] a razoabilidade serve de instrumento metodológico para demonstrar que a incidência da norma é condição necessária mas não suficiente para sua aplicação. Para ser aplicável, o caso concreto deve adequar-se à generalização da norma geral. A razoabilidade atua na interpretação das regras gerais como decorrência do princípio da justiça (“Preâmbulo” e art. 3º da CF) (ÁVILA, 2008, p. 155).

A vertente da congruência, tal como a anterior, também trata da aplicação harmoniosa das normas, contudo numa outra instância; aqui, à luz da congruência, o relacionamento harmonioso que o princípio da razoabilidade requer deve se verificar entre as normas e suas condições externas de aplicação.

Para atingir essa harmonização, pela via da razoabilidade, dois aspectos importantes precisam ser observados: (a) as razões que motivam a elaboração das normas jurídicas devem ter vinculação com a realidade (é esse vínculo que determina as condições externas de aplicação das normas, e que nada mais são do que parâmetros externos que orientam a sua interpretação); e (b) ao eleger, na realidade (mundo fático) o seu campo de incidência, as normas devem valer-se de critérios de distinção que mantenham uma “coerência lógica”, plausível e aceitável, com as medidas que elas determinam. Aqui

[...] a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir (ÁVILA, 2008, p. 152).

Decorre daí o “dever de congruência e de fundamentação” na realidade (na essência das coisas), a que se refere Ávila (2008, p. 156), e que deve ser observado na produção legislativa, sob risco de violação de princípios basilares do ordenamento jurídico, todos de matriz constitucional. Assim é que, ao tomar a razoabilidade como exigência para a harmonia entre normas e condições externas de aplicação, Ávila (2008, p. 156) dispõe que

Os princípios constitucionais do Estado de Direito (art. 1º) e do devido processo legal (art. 5º, LIV) impedem a utilização de razões arbitrárias e a subversão dos procedimentos institucionais utilizados. Desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal.

Em seguida, ao tratar da razoabilidade pela ótica da harmonia que deve existir entre os critérios distintivos incorporados pelas normas e as medidas que elas adotam, Ávila (2008, p. 158) mais uma vez evoca princípios constitucionais como instrumentos de controle da razoabilidade ao concluir que

À eficácia dos princípios constitucionais do Estado de Direito (art. 1º) e do devido processo legal (art. 5º, LIV) soma-se a eficácia do princípio da igualdade (art. 5º, caput), que impede a utilização de critérios distintivos inadequados. Diferenciar sem razão é violar o princípio da igualdade.

Finalmente, a vertente da equivalência do princípio da razoabilidade impõe que a medida adotada e o critério utilizado para dimensioná-la devem manter entre si uma relação de equivalência. Talvez a mais clássica das situações onde esse prisma da razoabilidade deve se fazer presente é a que se verifica na etapa de dosimetria da sentença penal, quando a fixação do quantum da pena em concreto depende da culpabilidade do réu. Em tal situação, a pena fixada observa uma correspondência com a culpa, esta operando como critério de fixação daquela. Sob tal ótica, a punição deve ser equivalente ao delito praticado.

É nesse sentido que, ao abordar a razoabilidade como equivalência, Ávila (2008, p. 152) sintetiza seu pensamento afirmando que, nessa vertente, “[...] a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas.”

2.6 PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA

O princípio da eficiência foi consagrado constitucionalmente por intermédio da Emenda Constitucional nº 19/98 (que promoveu a chamada Reforma Administrativa), a qual alterou o texto do caput do art. 37[15], inserindo-lhe a referência a tal princípio. O fundamento dessa alteração tem clara relação com os reclamos de longa data da sociedade, dirigidos à baixa qualidade e deficiente prestação dos serviços públicos, de forma geral, que tantos prejuízos trazem à coletividade, e contra os quais não dispunham os cidadãos de instrumentos de controle e cobrança adequados e hábaoletividade e rança adequadosste, dos Poderes da Unieis para exigir, da administração pública, a qualidade das atividades públicas e serviços prestados, bem como exercer um efetivo controle da discricionareidade dos agentes públicos.

Meirelles (2008, p. 98) conceitua o princípio da eficiência como sendo

[...] o que se impõe a todo o agente público de realizar suas atribuiçõesadministraç com presteza, perfeição e rendimento profissional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço púbico e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.

Mais abrangente é o entendimento de Di Pietro (2007, p. 75), que sustenta que o princípio da eficiência

[...] apresenta-se sob dois aspectos, podendo tanto ser considerado em relação á forma de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições, para lograr os melhores resultados, como também em relação ao modo racional de se organizar, estruturar, disciplinar a administração pública, e também com o intuito de alcance dos resultados na prestação do serviço público [...].

O célebre doutrinador Carvalho Filho (2007, p. 23-24) sintetiza a essência desse postulado ao afirmar que “O núcleo do princípio é a procura de produtividade e economicidade e, o que é mais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro público, o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional”.

Cumpre destacar a estreita vinculação entre o princípio da eficiência e o princípio da legalidade; a rigorosa observância dessa inter-relação assegura que a busca da eficiência da atuação administrativa, a despeito da relevância social de uma tal atuação, não se faça a margem da lei, contrariando o ordenamento jurídico.

Decorre daí o caráter instrumental do postulado da eficiência, cuja aplicação deve estar integrada com a dos demais princípios que informam a atuação da administração pública (conforme elencados no caput do art. 37, CR/88); por maior que seja o clamor social pela prestação eficiente dos serviços públicos, em nome de tal clamor não pode o princípio da eficiência se sobrepor àqueles outros princípios e nem negar a validade dos mesmos. Neste exato sentido é o ensinamento de Mello (2008, p. 122), ao chamar a atenção para o fato de que “[...] tal princípio não ser concebido [...] senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais uma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência”; e, no entender desse doutrinador, a eficiência é, em verdade, apenas um dos aspectos inseridos no chamado “princípio da boa administração”, mais abrangente e há muito consagrado no ordenamento jurídico italiano.

De se notar ainda que o princípio em comento tem vasta abrangência, não se restringindo aos serviços públicos que a administração presta de forma direta à sociedade, alcançando igualmente os serviços internos relacionados à administração da própria “máquina pública” bem como das entidades a ela vinculadas. É dever do Poder Público zelar por uma boa administração, fazendo do aparelho estatal uma estrutura menos burocrática e mais aderente aos padrões modernos, sem contudo levar prejuízos à coletividade. Conforme esclarece Carvalho Filho

[...] Significa que a Administração deve recorrer à moderna tecnologia e aos métodos hoje adotados para obter a qualidade total da execução das atividades a seu cargo, criando, inclusive, novo organograma em que se destaquem as funções gerenciais e a competência dos agentes que devem exercê-las (CARVALHO FILHO, 2007, p. 24, grifo nosso).

No que tange ao direito processual penal, disciplina que mais de perto interessa aos objetivos do presente estudo, a observância do princípio da eficiência tornou-se um imperativo a partir da Emenda Constitucional nº 45/04, a qual promoveu a chamada “Reforma do Judiciário”, e introduziu, entre outras tantas alterações constitucionais, o inciso LXXVIII no art. 5º, com a seguinte redação: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Esse comando, ungido com a força de direito fundamental, traz a marca do postulado da eficiência, de forma imediata ao buscar a celeridade processual, e, de forma reflexa ao propiciar assim maior efetividade ao princípio do acesso à justiça para evitar lesão ou ameaça a direito (este também um outro princípio fundamental, estampado no art. 5º, XXXV[16]).

O princípio da eficiência, contudo, encontra dificuldades na consecução de seus fins. A primeira, de natureza prática, decorre de ser a eficiência um conceito jurídico indeterminado (como determinar se a atividade administrativa é eficiente?), e reclama uma regulamentação infraconstitucional para esse postulado que estabeleça, de forma precisa, os instrumentos à disposição do cidadão para assegurar seus legítimos direitos; a segunda, relacionada ao controle judicial da observância desse princípio, o qual possui restrições doutrinárias e que, no dizer de Carvalho Filho (2007, p. 25), “[...] sofre limitações e só pode incidir quando se tratar de comprovada ilegalidade”; complementando esse raciocínio, Vladimir da Rocha França (FRANÇA, 2008) destaca que “[...] o Poder Judiciário não pode compelir a tomada de decisão que entende ser de maior grau de eficiência”. A existência de tais limitações ao controle judicial do princípio da eficiência, ao contrário de buscar excluí-lo, visa evitar a intervenção legitimada do Judiciário na esfera de competência constitucional definida para os órgãos da Administração Pública.

Por fim, cumpre destacar que eficiência, eficácia e efetividade, não obstante serem termos empregados geralmente como sinônimos pelo senso comum, correspondem à conceitos jurídicos diferenciados. Uma distinção precisa entre esses conceitos pode ser enunciada da seguinte forma:

A eficiência transmite sentido relacionado ao modo pelo qual se processa o desempenho da atividade administrativa; a idéia diz respeito, portanto, à conduta dos agentes. Por outro lado, eficácia tem relação com os meios e instrumentos empregados pelos agentes no exercício de seus misteres na administração; o sentido aqui é tipicamente instrumental. Finalmente, a efetividade é voltada para os resultados obtidos com as ações administrativas; sobreleva nesse aspecto a positividade dos objetivos. O desejável é que tais qualificações caminhem simultaneamente [...] (CARVALHO FILHO, 2007, p. 25, grifo do autor).

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2.7 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Razões históricas de mesma natureza têm inspirado os constituintes de diversas nações a positivar a dignidade da pessoa humana em suas constituições. A pioneira foi a República Federal da Alemanha, que expressamente estabelece esse direito fundamental em seu art. 1º, nº 1 (“A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os Poderes estatais”); essa previsão constitucional foi motivada pelos horrores cometidos pelo regime nazista, em nome do Estado, contra a dignidade humana (SILVA, 1998, p. 89).

No Brasil,

[...] também a tortura e toda sorte de desrespeito à pessoa humana praticadas sob o regime militar levaram o Constituinte brasileiro a incluir a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil, conforme o disposto no inc. III do art. 1º da Constituição de 1988 (SILVA, 1998, p. 90, grifo do autor).

O referido dispositivo constitucional textualmente preceitua (BRASIL, 2010a, p. 7):

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

[...].

Considerada como o “valor supremo” que “dimensiona e humaniza” a democracia, “único regime político capaz de propiciar a efetividade” dos direitos fundamentais do homem, que por ela são catalisados (SILVA, 1998, p. 94), a dignidade da pessoa humana compreende dois valores jurídicos fundamentais: a pessoa humana e a dignidade (SILVA, 1998, p. 90).

Em relação ao primeiro desses conceitos fundamentais, destaca José Afonso da Silva (1998, p. 90, grifo do autor) que, a partir do pensamento kantiano, a racionalidade está na essência da pessoa humana a qual “[...] como ser racional, existe como fim em si, e não simplesmente como meio, enquanto os seres, desprovidos de razão, têm um valor relativo e condicionado, o de meios, eis por que se lhes chamam coisas [...]”. No dizer de Kant (apud SILVA, 1998, p. 90, grifo do autor),

ao contrário, os seres racionais são chamados de pessoas, porque sua natureza já os designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado simplesmente como meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o nosso arbítrio, por ser um objeto de respeito.

Assim, na precisa análise de José Afonso da Silva (1998, p. 90, grifo do autor), o ser humano “[...] se revela como um valor absoluto, porque a natureza racional existe como fim em si mesma”, para em seguida sintetizar com brilhantismo que

[...] só o ser humano, o ser racional, é pessoa. Todo ser humano, sem distinção, é pessoa, ou seja, um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores. [...] desconsiderar uma pessoa significa em última análise desconsiderar a si próprio. Por isso é que a pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar seu desenvolvimento.

Insere-se aí a idéia de dignidade, que Kant (apud SILVA, 1998, p. 91, grifo nosso) associa com o conceito de preço, de valor; se é possível associar um preço a algo, decorre que o mesmo pode ser substituído por outra coisa que possua igual preço ou valor, ou seja, que lhe seja equivalente; ínsito nesse raciocínio a idéia de valor relativo, de valor condicionado, já que sua existência tem característica de simples meio, que por isso tem atribuído um preço de mercado em função da necessidade e avaliação humanas. Por outro lado, “[...] aquilo que não é um valor relativo, e é superior a qualquer preço, é um valor interno e não admite substituto equivalente, é uma dignidade, é o que tem uma dignidade” (KANT, apud SILVA, 1998, p. 91, grifo do autor).

Ao correlacionar os dois valores jurídicos delineados acima, José Afonso da Silva (1998, p. 91) conclui que

[...] a dignidade é atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. Assim a dignidade entranha e se confunde com a própria natureza do ser humano.

Já Ingo Sarlet (2008, p. 63) faz ótima sistematização ao conceituar a dignidade da pessoa humana como

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

A partir do acima exposto, dois aspectos fundamentais relacionados com a dignidade da pessoa humana merecem destaque: o primeiro deles dá conta de sua irrenunciabilidade e inalienabilidade. De fato, como bem esclarece Sarlet (2008, p. 44), à medida que a dignidade da pessoa humana constitui

[...] elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado [...] não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Esta, portanto, compreendida como qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente.

O segundo aspecto fundamental da dignidade da pessoa humana remete ao seu caráter imanente, numa alusão ao fato de que a sua manifestação não exige a presença de quaisquer requisitos ou condicionantes; no dizer de Sarlet (2008, p. 46), a dignidade

[...] independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos.

Conforme muito bem esclarece esse doutrinador (SARLET, 2008, p. 46), a dignidade é uma característica intrínseca da pessoa humana, está na sua essência, como um traço característico inerente à espécie e que a distingue das demais, presente em todo e qualquer ser no qual se reconheça a condição de humano, determinante de seu valor absoluto; por isso, não é possível negar, ignorar ou por de lado a dignidade de quem quer que seja, mesmo daquelas pessoas que pratiquem as “ações mais indignas e infames”.

Longe de ser um entendimento solitário, muito pelo contrário, o pensamento de Sarlet encontra ecos, dentre outros, na concepção de José Afonso da Silva (1998, p. 93, grifo do autor), para quem a dignidade é “atributo intrínseco da pessoa humana; [...] um valor de todo ser racional, independentemente da forma como se comporte”. Afirma ainda Silva (1998, p. 93) que

[...] a Constituição tutela a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, de modo que nem mesmo um comportamento indigno priva à pessoa dos direitos fundamentais que lhe são inerentes [...].

Porque a dignidade acompanha o homem até sua morte, por ser da essência da natureza humana, é que ela não admite discriminação alguma e não estará assegurada se o indivíduo é humilhado, discriminado, perseguido ou depreciado [...].

Além disso, cumpre destacar que o entendimento acima compartilhado por esses doutrinadores também pode ser extraído dos fundamentos da Declaração Universal da ONU, de 1948, a qual, em seu art 1º, dispõe que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade” (SARLET, 2008, p. 46).

A partir do contexto aqui delineado, que pretende estabelecer de forma inconteste a dimensão da dignidade como valor absoluto da natureza humana, importa destacar que a dignidade da pessoa humana assume papel dúplice, operando simultaneamente como limitação do poder estatal (a qual busca coibir a violação da dignidade da pessoa pelo poder público) e, por outro lado, também como prestação que o poder estatal está obrigado a adimplir no sentido de tornar efetiva a dignidade (ou seja, fazer da “proteção, promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos” uma “meta permanente” do Estado), prestação essa que deve se estender à comunidade em geral, à todos e à cada um. Essa condição dúplice revela, por sua vez, a dimensão defensiva (enquanto limite) e prestacional (enquanto atribuição do Estado e da comunidade) da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2008, p. 49; p. 115).

A extensão dessa condição dúplice da dignidade pode ser alcançada a partir da precisa exposição de Sarlet (2008, p. 49-50) ao afirmar que

[...] na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (este sendo considerado o elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria, portanto, o elemento mutável da dignidade) [...].

Desdobramento do que acima se expõe é que, sempre na visão esclarecedora de Ingo Sarlet (2008, p. 115-116),

[...] todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência, vale dizer, inclusive contra agressões oriundas de outros particulares, especialmente – mas não exclusivamente – dos assim denominados poderes sociais (ou poderes privados). Assim, percebe-se, desde logo, que o princípio da dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção (respeito), mas também de condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos. [...] Em outras palavras [...], o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade.

Afirmar então que a dignidade da pessoa humana ostenta a condição de princípio fundamental do Estado democrático de Direito brasileiro significa dizer que, para além de uma declaração de conteúdo ético e moral, o inciso III do art. 1º da Constituição de 1988 apresenta-se como verdadeira norma jurídico-positiva dotada de status constitucional formal e material, que confere à dignidade da pessoa humana caráter jurídico-normativo, a qual, nessa condição, possui plena eficácia na ordem constitucional pátria (SARLET, 2008, p. 74-75).

Nesse viés, reconhece-se de pronto na dignidade um caráter de princípio e também de regra jurídica. Sob a feição de princípio, a dignidade constitui “mandado de otimização” que determina que se proteja e promova a dignidade da pessoa, da forma mais abrangente possível; já a feição de regra da dignidade, portadora de “prescrições imperativas de conduta”, por sua vez, aflora no “[...] processo de ponderação que se opera no nível do princípio da dignidade, quando cotejado com outros princípios, de tal sorte que absoluta é a regra (à qual, nesta dimensão, se poderá aplicar a lógica do “tudo ou nada”), mas jamais o princípio” (SARLET, 2008, p. 76).

Uma análise mais detida de toda a dogmática que fundamenta a condição da dignidade como valor intrínseco e fundamental da pessoa humana revelará a relação visceral que existe entre ela e os direitos fundamentais, estes assim entendidos como verdadeiras “[...] explicitações da dignidade da pessoa [...]”; não é exagero por isso afirmar que “[...] em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo, ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa”. (SARLET, 2008, p. 88).

É por essa razão que, conforme afirma o próprio Sarlet (2008, p. 88-89), os direitos fundamentais são concretizações da dignidade da pessoa humana, a qual

[...] exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade.

Essa forte conexão entre os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana tem levado doutrina e jurisprudência, majoritariamente, a “[...] referir a dignidade da pessoa não como fundamento isolado, mas vinculado a determinada norma de direito fundamental”; nessa via, os direitos fundamentais acabam por se constituir em “[...] garantias específicas da dignidade da pessoa humana, da qual são – em certo sentido – mero desdobramento”. (SARLET, 2008, p. 107).

Essa constatação, contudo, não deve levar ao entendimento de que o princípio da dignidade da pessoa humana tenha “aplicação meramente subsidiária”, uma vez que, conforme destacado anteriormente, considerando que cada direito fundamental traz em si algum conteúdo da dignidade da pessoa, a violação de um dado direito fundamental pode significar a simultânea violação do seu correspondente “conteúdo em dignidade” (SARLET, 2008, p. 107). Conforme constata Sarlet (2008, p. 107), com a lucidez que lhe é peculiar,

[...] a relação entre a dignidade e os direitos fundamentais é uma relação sui generis, visto que a dignidade da pessoa assume simultaneamente a função de elemento e medida dos direitos fundamentais, de tal sorte que, em regra, uma violação de um direito fundamental estará vinculada com uma ofensa à dignidade da pessoa.

Por fim, cumpre também destacar um aspecto que será determinante para abordagem que será feita mais a frente, quando da consideração da constitucionalidade do emprego do teleinterrogatório no processo penal; diz respeito à concepção equivocada que confere à dignidade da pessoa humana a aura de princípio absoluto, o que determinaria sempre sua prevalência em relação à todos os outros princípios constitucionais. De fato, conforme esclarece Sarlet (2008, p. 77) fundamentado no pensamento de Alexy, tal concepção é “[...] improcedente [...] já que irremediavelmente o reconhecimento de um princípio absoluto [...] contradiz a própria noção de princípios [...]”.

Convém ressaltar que essa noção de princípios a que se refere Sarlet guarda íntima relação com sua natureza como mandamentos de otimização (vide seção 1.1 supra), conceito cunhado por Alexy do qual decorrem duas características basilares dos princípios, na teoria por ele proposta, a saber: (a) não existe entre os princípios uma relação absoluta de precedência (ou, em outras palavras, não existem princípios absolutos); e (b) os princípios se referem à ações e situações que não são quantificáveis (no sentido de que não é possível atribuir um peso quantiticável aos interesses contrapostos no caso concreto de uma colisão de princípios, e que permita sopesá-los para decidir qual princípio deve prevalecer e qual deve ceder) (ALEXY, 2008, p. 97; 99).

Neste passo, é conveniente consignar que ao abordar, em sua teoria dos princípios, a questão da inexistência dos princípios absolutos, Alexy acaba inevitavelmente por se deparar com a questão da dignidade da pessoa humana, a qual sem sombra de dúvidas aparenta notório caráter de princípio absoluto, mas que em verdade não passa de uma visão imprecisa desse princípio; para a formação dessa visão imprecisa, que enxerga esse princípio como absoluto, dois fatores contribuem: (a) a dupla dimensão da norma da dignidade da pessoa humana, sendo tratada em parte como regra e em parte como princípio; e (b) a constatação de que em muitas situações o princípio da dignidade de pessoa humana efetivamente prevalece sobre os demais princípios que com ele venham a colidir (ALEXY, 2008, p. 111-112).

De fato, ao enfrentar a questão com o objetivo de desqualificar esse aparente caráter absoluto do princípio da dignidade da pessoa, Alexy conclui que

[...] é necessário que se pressuponha a existência de duas normas da dignidade humana: uma regra da dignidade humana e um princípio da dignidade humana. A relação de preferência do princípio da dignidade humana em face de outros princípios determina o conteúdo da regra da dignidade humana. Não é o princípio que é absoluto, mas a regra [...]. O princípio da dignidade humana pode ser realizado em diferentes medidas. O fato de que, dadas certas condições, ele prevalecerá com maior grau de certeza sobre outros princípios não fundamenta uma natureza absoluta desse princípio, significando apenas que, sob determinadas condições, há razões jurídico-constitucionais praticamente inafastáveis para uma relação de precedência em favor da dignidade humana. [...] Por isso, é possível dizer que a norma da dignidade humana não é um princípio absoluto. A impressão de um caráter absoluto advém, em primeiro lugar, da existência de duas normas da dignidade humana: uma regra e um princípio; além disso, essa impressão é reforçada pelo fato de que há uma série de condições sob as quais o princípio da dignidade humana prevalecerá – com grande grau de certeza – em face de todos os outros princípios (ALEXY, 2008, p. 113-114, grifo nosso).

A cristalização desse entendimento se reveste de especial importância uma vez que ele serve de sustentáculo no qual se apoiarão os pilares da fundamentação da constitucionalidade do teleinterrogatório, como se verá mais adiante neste estudo (vide seção 4.3 infra).

Portanto, essa visão equivocada fica totalmente afastada pela evidência prática de que, na esteira do pensamento de Alexy, há diversos graus de realização do princípio da dignidade da pessoa humana, e que não raro se faz necessário solucionar os conflitos que se verificam entre a dignidade de diversas pessoas, ou até mesmo entre o direito à vida e o direito à dignidade titularizados pelo mesmo sujeito de direitos (SARLET, 2008, p. 78).

Por outro lado, saliente-se que negar à dignidade a condição de princípio absoluto não significa conceder carta branca para a sua violação, não se justificando, sob esse fundamento, quaisquer tentativas de relegá-la (SARLET, 2008, p. 78). Contudo, conforme brilhantemente destaca Sarlet com extrema lucidez,

No mínimo [...] impende reconhecer que mesmo prevalecendo em face de todos os demais princípios (e regras) do ordenamento, não há como afastar [...] a necessária relativização (ou, se preferirmos, convivência harmônica) do princípio da dignidade da pessoa em homenagem à igual dignidade de todos os seres humanos (SARLET, 2008, p. 78, grifo nosso).

Finalmente, reforçando todo o ideário que vai acima exposto contra a concepção de um caráter absoluto do princípio da dignidade da pessoa humana, cumpre assinalar o pensamento do jurista lusitano Jônatas Eduardo Mendes Machado, o qual ao discorrer sobre a dignidade da pessoa, sustenta com precisão que

[...] o conceito de dignidade humana apresenta-se desvinculado de qualquer concepção mundividencial fechada e heterónoma acerca do sentido existencial e ético da vida, não podendo servir para a imposição constitucional de qualquer absolutismo valorativo (MACHADO, 2002, p. 358, grifos do autor e nosso).


3 INTERROGATÓRIO E TELEINTERROGATÓRIO NO CONTEXTO DA TEORIA DAS PROVAS NO PROCESSO PENAL

3.1 A PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

De forma geral, a fase de instrução do processo tem por objetivo identificar e firmar a chamada verdade jurídica, condição essa que se mantém no caso específico do processo penal. Para que seja possível cumprir tal finalidade é necessário que sejam trazidas ao processo as provas, as quais, segundo a doutrina mais balizada, correspondem aos meios utilizados na busca para “[...] estabelecer a existência da verdade [...]” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 213).

Essa é precisamente a essência do ato de provar, no âmbito do rito processual: demonstrar a existência da verdade; para tanto se serve o processo das provas “[...] que se produzem e se valoram segundo as normas prescritas em lei” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 213).

É pacífico que no processo penal brasileiro impera o sistema do livre convencimento motivado ou persuasão racional do juiz para a apreciação das provas[17]; equivale dizer que, por tal sistema, tem o magistrado total liberdade na formação de seu convencimento, não se vinculando a qualquer raciocínio ou estratégia valorativos prévios em relação à prova, estando absolutamente livre para abraçar aquela que se mostrar mais convincente. Em outras palavras, o juiz atua livremente na valoração das provas, podendo, p.ex., prolatar sua decisão baseada em apenas um único depoimento desprezando dois outros testemunhos contrários ao primeiro; essa liberdade, entretanto, exige do magistrado que exponha os fundamentos nos quais baseou seu convencimento, discorrendo sobre “[...] as razões que o levaram a optar por tal ou qual prova, fazendo-o com base em argumentação racional, para que as partes, eventualmente insatisfeitas, possam confrontar a decisão nas mesmas bases argumentativas” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 328).

Fica claro, portanto, o fim último da prova, que é contribuir para a formação daquela convicção do juiz em relação aos aspectos fundamentais para a decisão da lide, conforme referida acima. “As partes, com as provas produzidas, procuram convencer o Juiz de que os fatos existiram, ou não, ou, então, de que ocorreram desta ou daquela maneira” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 214). O objetivo é claro: “[...] a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente ocorridos no espaço e no tempo” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 317, grifo do autor).

Visto por outro enfoque mais analítico e dissecante, mas sem conflitar com o entendimento acima, Malatesta (2005, p. 87) conceitua prova como

[...] o meio objetivo com que a verdade atinge o espírito; e o espírito pode, relativamente a um objeto, chegar por meio das provas tanto à simples credibilidade, como à probabilidade e certeza; existirão, assim, provas de credibilidade, de probabilidade e de certeza. A prova, portanto, em geral, é a relação concreta entre a verdade e o espírito humano nas suas especiais determinações de credibilidade, probabilidade e certeza.

Esse prestigiadíssimo doutrinador sustenta, contudo, que para o juízo penal somente as provas de probabilidade e de certeza são capazes de estabelecer a realidade dos fatos, uma vez que somente elas podem determinar no espírito humano “[...] uma preponderância de razões afirmativas para crer em tais realidades [...]”, já que as provas de credibilidade apenas levam o espírito “[...] a uma idéia de simples possibilidade [...]” em relação a um dado fato, com “[...] igualdade dos motivos para crer ou não [...]”, não havendo assim “[...] nenhuma razão preponderante para crer em sua realidade” (MALATESTA, 2005, p. 87)

Por essa razão, no entendimento de Malatesta (2005, p. 87), somente as provas de probabilidade (caracterizadas pela “[...] simples preponderância, maior ou menor, das razões afirmativas sobre as negativas [...]”) e as de certeza (onde tem-se o “[...] triunfo das razões afirmativas para crer na realidade do fato”) são  propriamente provas; deixa claro, porém, que as provas por excelência para o processo penal são as provas de certeza quando afirma que

[...] o fim supremo do processo judiciário penal é a verificação do delito, em sua individualidade subjetiva e objetiva. Todo o processo penal, no que respeita o conjunto das provas, só tem importância do ponto de vista da certeza do delito, alcançada ou não. Qualquer juízo não pode resolver senão em uma condenação ou absolvição e é precisamente a certeza conquistada do delito que legitima a condenação, como é a dúvida, ou, de outra forma, a não conquistada certeza do delito, que obriga à absolvição. O objeto principal da crítica criminal é, portanto, indagar como, da prova, pode legitimamente nascer a certeza do delito; o objetivo principal de suas investigações é, em outros termos, o estudo das provas de certeza (MALATESTA, 2005, p. 88),

para concluir então, numa frase, que a prova é “[...] a relação particular e concreta entre e verdade [objetiva] e a convicção racional [certeza subjetiva]” (MALATESTA, 2005, p. 90).

Polastri, contudo, é mais pragmático; ao fazer referência aqueles efeitos que a prova é capaz de induzir no espírito de quem a aprecia, identificados por Malatesta, alerta para o fato de que

[...] no processo dificilmente, ou nunca, se atingirá a certeza absoluta, pois como a instrução probatória equivale à busca do fato histórico deverá haver uma reconstrução dos fatos com dados do passado, através da prova, para se buscar a verdade e, conseqüentemente, a certeza, e esta forma de reconstrução não permite, em regra, uma certeza absoluta, mas meramente relativa, tendo em vista as próprias deficiências humanas. O que terá o juiz é uma aproximação, ou seja, uma probabilidade, significando que deve buscar algo mais que a simples possibilidade, algo mais próximo da certeza, e isto é que é, em maior ou menor grau, a probabilidade. É o que se chama de certeza possível (LIMA, 2009, p. 371-372, grifo do autor).

Em outros termos, a tarefa de reconstruir a verdade a partir das provas trazidas ao processo é extremamente árdua, e por não raras vezes, impossível; mas é empreitada que precisa ser enfrentada a todo custo, configurando um “[...] compromisso irrenunciável da atividade estatal jurisdicional”, haja vista ser o Estado o detentor do monopólio da jurisdição, não sendo tolerada qualquer outra forma de “[...] solução privada e unilateral dos conflitos (sociais, coletivos ou individuais) [...]” que não aquela que decorra da atuação do Direito (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318).

Nesse sentido, Pacelli firma posição em relação ao entendimento de que

[...] ainda que prévia e sabidamente imperfeita, o processo penal deve construir uma verdade judicial, sobre a qual, uma vez passada em julgado a decisão final, incidirão os efeitos da coisa julgada, com todas as suas conseqüências, legais e constitucionais. O processo, portanto, produzirá uma certeza do tipo jurídica, que pode ou não corresponder à verdade da realidade histórica (da qual, aliás, em regra, jamais se saberá), mas cuja pretensão é a de estabilização das situações eventualmente conflituosas que vêm a ser o objeto da jurisdição penal (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318, grifo do autor).

Para alcançar essa certeza jurídica, as partes e o juiz podem lançar mão, no processo, de uma série de meios ou métodos de prova; é por intermédio deles que se buscará a maior proximidade possível acerca da verdade dos fatos ocorridos (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318).

De acordo com Tourinho (TOURINHO FILHO, 2009, p. 217), o meio de prova é “[...] tudo quanto possa servir, direta ou indiretamente, à comprovação da verdade que se procura no processo: testemunhas, documentos, perícias etc”. Em outras palavras, mas mantendo a mesma essência do conceito, é o entendimento de Polastri para quem “Meios de prova são os elementos que podem justificar ou esclarecer os fatos que se apuram, através dos quais se irá adquirir o conhecimento de um objeto de prova” (LIMA, 2009, p. 380).

Para cumprir sua função precípua, os meios de prova se desdobram em atos processuais específicos praticados no processo penal, aos quais a doutrina genericamente se refere como atos de instrução e que compreendem os assim denominados atos probatórios e as alegações da parte. De modo mais específico, referindo à esfera processual penal, fala-se em instrução criminal a qual remete ao conjunto de atos processuais que permitem a coleta das provas necessárias para solucionar a questão penal, e também designada como instrução probatória (LIMA, 2009, p. 373).

Neste ponto é necessário destacar que não há que se falar em hierarquia entre as provas, como se houvesse uma ordem de prevalência entre elas que permitiria ao juiz simplesmente descartar uma determinada prova em face de outra que lhe seria hierarquicamente superior, ainda que ambas fossem igualmente admitidas. Nesse sentido se posiciona Pacelli (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330), que entende

[...] efetivamente não ser possível afirmar, a priori, a supremacia de uma prova em relação a outra, sob o fundamento de uma ser superior a outra, para demonstração de qualquer crime. Como regra, não se há de supor que a prova documental seja superior à prova testemunhal, ou vice-versa, ou mesmo que a prova dita pericial seja melhor que a prova testemunhal. Todos os meios de prova podem ou não ter aptidão para demonstrar a veracidade do que se propõem.

A jurisprudência é vasta em julgados que corroboram esse entendimento da inexistência de hierarquia entre as provas no processo penal (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330).

Deve ser admitida, por outro lado, a existência do que a doutrina refere como regra da especificidade da prova, e que decorre da identificação de meios de prova específicos que, em função de sua característica particular e da natureza da prova a ser produzida, se mostram mais aptos para a constatação de determinados fatos; a existência dessa regra da especificidade, contudo, nem de longe permite inferir sobre uma possível hierarquia de provas. A especificidade tem relação com o “[...] grau de convencimento resultante do meio de prova utilizado” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 329, grifo do autor), e, conforme esclarece Pacelli,

No caso da regra da especificidade, não haverá hierarquia, por exemplo, entre a prova pericial e a prova testemunhal. O que ocorrerá é que, tratando-se de questão eminentemente técnica, e ainda estando presentes os vestígios da infração, a prova testemunhal não será admitida como suficiente, por si só, para demonstrar a verdade dos fatos. Não se nega, contudo, qualquer valor à prova não específica, mas somente não se admite que ela seja a única e bastante para sustentar a ocorrência de um fato ou de uma circunstância desse fato (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330, grifo do autor).

A abordagem das questões alusivas à inexistência de uma hierarquização das provas e à regra da especificidade remete a um aspecto crucial em relação aos meios de prova, a saber, o fato de que a admissão desses meios pode sofrer restrições, uma vez que sua aplicação no processo requer a estrita observância “[...] a um limite previamente definido na Constituição Federal: o respeito aos direitos e às garantias individuais, do acusado e de terceiros [...]” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318). Nesse sentido, novamente é Pacelli quem traz luz à questão ao afirmar que

[...] toda restrição a determinados meios de prova deve estar atrelada (e, assim, ser justificada) à proteção de valores reconhecidos pela e positivados na ordem jurídica. As restrições podem ocorrer tanto em relação ao meio da obtenção da prova, no ponto em que esse (meio) implicaria a violação de direitos e garantias, quanto em referência ao grau de convencimento resultante do meio de prova utilizado (OLIVEIRA, E., 2009, p. 329, grifo do autor).

As restrições que se referem ao grau de convencimento conduzem à questão da especificidade da prova, aludida anteriormente, e não devem trazer maiores preocupações uma vez que “[...] funcionariam como verdadeiras garantias do acusado, na medida em que estabelecem critérios específicos quanto ao grau de convencimento e de certeza a ser obtido em relação a determinadas infrações penais” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330). Além disso, são restrições que, em regra, decorrem da lei, o que também não representa qualquer incoerência em relação ao já aqui referido sistema do livre convencimento motivado, uma vez que “[...] o juiz somente é livre na apreciação da prova enquanto prova válida, não podendo superar as restrições expressamente declinadas pelo legislador” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 330, grifo do autor).

É em relação àquelas restrições associadas à violação de direitos e garantias, decorrente do meio de obtenção da prova, que se verificam as situações de maior gravidade, uma vez que tais direitos e garantias estão constitucionalmente[18] “[...] protegidos pelo imenso manto da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 318, grifo do autor). A questão das provas ilícitas no processo penal é tão palpitante quanto extensa; sua abordagem em maior detalhe foge aos objetivos do presente estudo, razão pela qual não será aqui enfrentada.

Resta consignar ainda que o CPP, no intervalo compreendido entre os seus arts. 158 e 250, traz expressamente relacionados os meios de prova contemplados pelo legislador para a solução da lide levada à jurisdição penal. A corrente doutrinária majoritária entende que tal rol não é taxativo, posicionamento esse que finca pé na natureza pública do processo penal, de onde advém o caráter ilimitado do meio de prova (LIMA, 2009, p. 381); as únicas exceções seriam aquelas verificadas em casos extremos, tais como os que envolvem expressa restrição legal, ou meio de prova ilegítimo ou que “[...] atente contra a moralidade ou viole o respeito à dignidade humana” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 220).

Conforme esclarece Polastri (LIMA, 2009, p. 381, grifo do autor), “[...] desde que os meios de prova não sejam indignos, imorais, ilícitos ou ilegais, respeitando a ética e o valor da pessoa humana, poderão ser admitidos no processo, mesmo que não estejam legalmente relacionados no Código de Processo Penal”, e assim, “[...] não há nenhum impedimento à produção de outras provas além daquelas indicadas nos arts. 158 a 250 do estatuto processual penal” (TOURINHO FILHO, 2009, p. 220).

Entre os meios de prova expressamente contemplados pelo CPP (o qual abrange também o exame de corpo de delito e outras perícias, o depoimento da vítima, e o depoimento de testemunhas, dentre outros), o interrogatório do acusado tem seu regramento inserido nos arts. 185 à 196. É óbvio que sobre esse meio de prova em particular recaí o foco das atenções neste trabalho, dada a visceral relação desse procedimento com o objeto de estudo aqui esposado.

Por essa razão, a próxima seção deste capítulo se dedica à uma breve abordagem dos aspectos elementares do interrogatório do acusado, com base em sua consagrada concepção doutrinária, e ato contínuo apresenta também as principais características de sua “variante tecnológica”, o teleinterrogatório, uma nova modalidade de interrogatório, resultado da agregação deste procedimento à tecnologia de videoconferência, e objeto central deste estudo.

3.2 INTERROGATÓRIO E TELEINTERROGATÓRIO

Conforme já referido acima, o interrogatório é o ato judicial previsto e regulamentado nos arts. 185 a 196 do CPP. O procedimento que o diploma processual penal traz insculpido em tais artigos é presidido pelo juiz, e consiste basicamente em inquirir o acusado a respeito de sua pessoa e dos fatos que lhe são imputados, por queixa ou denúncia; com o interrogatório, busca-se atingir dois objetivos principais: (a) dar ciência ao acusado das acusações que pesam sobre ele; e (b) dar-lhe oportunidade de defender-se dessas acusações.

Não há qualquer exagero em afirmar que através do interrogatório, o acusado dá seu testemunho pessoal no tocante aos fatos delituosos que pesam sobre ele. É com base nesse raciocínio que o interrogatório também pode ser entendido como momento do testemunho do acusado; por esse motivo é possível afirmar que tal meio de prova é espécie que integra o gênero da prova testemunhal. Esta constatação tem suporte em Malatesta (2005, p. 414), o qual sustenta que

Ninguém, em boa-fé, pode negar que a palavra do acusado tem também, legitimamente, seu peso na consciência do juiz, para a formação do convencimento. E se assim é, sua palavra é, portanto, uma prova; e se é uma prova, não pode ser senão pessoal, e pois, nos limites da oralidade por nós determinados, um testemunho: é claro como a luz do sol.

E como afirma o próprio Malatesta, ainda que pairem suspeitas sobre a prova consubstanciada no testemunho proveniente da pessoa do próprio acusado, quando este encarna o papel de testemunha, tais suspeitas “[...] não valem para anular o valor probatório de sua palavra” (MALATESTA, 2005, p. 414).

Com efeito, quando fala sobre o “fato próprio” (isto é, os fatos que lhe são imputados), na hipótese de ser realmente culpado, o acusado é a pessoa que, melhor do que ninguém, conhece os elementos objetivos do delito por ele perpetrado, e pelo qual foi levado perante o juízo. E isso é óbvio, pois enquanto o máximo que se poderia esperar de outra testemunha qualquer é ter presenciado pessoalmente o fato, o acusado sabe do fato não apenas por tê-lo presenciado (enquanto fato exterior), “[...] mas também por tê-lo pensado e querido no íntimo de sua consciência e por tê-lo, por isso, produzido exteriormente” (MALATESTA, 2005, p. 434-435).

Essa condição se verifica ainda com maior intensidade quando se consideram os elementos subjetivos do delito cometido pelo acusado. Em relação a tais elementos, ele é o único que tem a sua exata e imediata dimensão. Somente o acusado “[...] conhece diretamente o que se desenvolveu no segredo de sua consciência e só dele se pode esperar uma prova direta da intenção” (MALATESTA, 2005, p. 435).

Esse raciocínio elaborado acima se mantém igualmente verdadeiro se considerada a hipótese de inocência do acusado: novamente é ele (o acusado) que, estando em posição privilegiada sobre o conhecimento do delito, reúne as melhores condições de apresentar fatos e coisas capazes de provar sua inocência (MALATESTA, 2005, p. 235).

Não é sem razão, portanto, que Malatesta (2005, p. 435) afirma que

O acusado [...], querendo, está sempre melhor do que qualquer outra pessoa, em posição de iluminar a justiça sobre o fato a ser julgado: é deste ponto de vista que aparece legítima a grande importância atribuída ao testemunho do acusado, diante de qualquer outra testemunha.

Por isso, também não é sem razão que, na visão de Tourinho Filho, não restam quaisquer dúvidas de que o interrogatório do réu constitui um dos mais importantes atos processuais a integrar o rito do processo penal (TOURINHO FILHO, 2009, p. 277).

A natureza jurídica que o CPP atribui ao interrogatório é a de meio de prova, posto estarem os artigos que disciplinam esse procedimento todos inseridos em capítulo do Título VII desse diploma, o qual trata da prova no processo penal. A doutrina mais autorizada e a jurisprudência “[...] mais sensível aos novos postulados ideológicos informativos do processo penal [...]”, contudo, vêm entendendo que o interrogatório tem também natureza de meio de defesa, uma vez que configura a chamada autodefesa, conferindo-lhe assim um caráter híbrido, de meio de prova e de defesa (condição essa corroborada pela Lei 11.719/08, a qual introduziu alterações no CPP que reforçam a natureza de meio de defesa do interrogatório); esse entendimento encontra fundamento no princípio da ampla defesa (vide seção 2.3 supra), constitucionalmente consagrado e elevado à condição de garantia fundamental (CAPEZ, 2009, p. 350). Nesse exato sentido, Fioreze (2008, p. 100-101) acentua que

[...] a Constituição Federal de 1988 vê o acusado como sujeito processual capaz de direitos, em especial o direito de defesa em oposição à pretensão penal, pois enuncia em seu art. 5º, inc. LV, o direito de o acusado exercer ampla defesa. Além da defesa técnica, é garantido ao acusado o oferecimento da autodefesa, por meio do interrogatório, que é o momento em que o acusado apresenta sua versão dos fatos ao juiz, ou simplesmente silencia, construindo, assim, a sua defesa.

Esse entendimento é compartilhado por Pacelli que, por um lado, não vê nenhum inconveniente em que o interrogatório continue a ser considerado como uma espécie de prova,

[...] até porque as demais espécies defensivas são também consideradas provas. Mas o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal como instaurado pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido fundamentalmente no princípio da ampla defesa.

Trata-se efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permitir que ele apresente a sua versão dos fatos [...] (OLIVEIRA, E., 2009, p. 366, grifo nosso).

Também Capez se filia a essa corrente doutrinária, ao afirmar que paralelamente à sua natureza de meio de defesa (autodefesa), o interrogatório

[...] constitui também um meio de prova, na medida em que, ao seu final, as partes poderão perguntar. [...] Em suma, o interrogatório constitui meio de autodefesa, pois o acusado fala o que quiser e se quiser, e meio de prova, posto que submetido ao contraditório (CAPEZ, 2009, p. 352-353).

O fato de o interrogatório ostentar também natureza de meio de defesa traz, pelo menos, três conseqüências importantes. A primeira delas é que, como meio de defesa, o interrogatório constitui uma prerrogativa da defesa, o que equivale dizer que a decisão de participar ou não desse ato processual fica sujeita à discricionariedade do acusado e de seu defensor, os quais passam a deter “[...] a titularidade sobre o juízo de conveniência e a oportunidade de prestar ele (o réu), ou não prestar, o seu depoimento” (OLIVEIRA, E., 2009, p. 366). Assim, conforme conclui Pacelli,

[...] a eles [réu e seu defensor] caberia, então, a escolha da opção mais favorável aos interesses defensivos. E é por isso que não se pode mais falar em condução coercitiva do réu, para fins de interrogatório, parecendo-nos revogada a primeira parte do art. 260 do CPP[19] (OLIVEIRA, E., 2009, p. 366, grifo do autor).

Destaque-se que precisamente nessa impossibilidade de condução coercitiva do réu para participar do interrogatório reside uma das principais características distintivas do seu testemunho em relação ao das demais testemunhas no processo penal. Na cátedra de Malatesta (2005, p. 414), “Enquanto qualquer outra testemunha pode ser obrigada ao cumprimento do dever cívico do testemunho, o acusado, ao contrário, como tal, é uma testemunha não-coercível”.

A segunda conseqüência relevante da natureza de meio de defesa do interrogatório é que, nessa condição, a não realização desse ato processual, privando o réu da oportunidade de prestar depoimento em interrogatório, é caso de nulidade absoluta do processo. Nas palavras de Pacelli (OLIVEIRA, E., 2009, p. 366), “Haveria, no caso, manifesta violação da ampla defesa, no que se refere à manifestação da autodefesa”.

A terceira conseqüência é sintetizada de forma primorosa por Capez, e consiste no fato de que

[...] nenhuma autoridade pode obrigar o indiciado ou acusado a fornecer prova para caracterizar a sua própria culpa, não podendo ele, por exemplo, ser obrigado a fornecer à autoridade policial padrões gráficos do seu próprio punho para exames grafotécnicos ou respirar em bafômetro para aferir embriaguez ao volante. Se não pode ser obrigado a confessar, não pode ser compelido a incriminar-se [...] (CAPEZ, 2009, p. 352).

Nunca é demais relembrar, por oportuno, que o art. 5º, LXIII[20] da Constituição Federal consagrou o direito ao silêncio, guindando-o à condição de direito fundamental, o qual foi posteriormente regulamentado a nível infraconstitucional no art. 186, caput do CPP[21], pela redação que lhe deu a Lei 10.792/03. Assim, dá leitura dos artigos do CPP que disciplinam o interrogatório é possível inferir que, durante a sua realização, é facultada ao réu a possibilidade de confessar, negar, silenciar ou até mesmo mentir (posto, neste último caso, que o réu não presta compromisso) (CAPEZ, 2009, p. 361).

O uso das prerrogativas de silenciar ou mentir não poderá se dar em desfavor do réu, de forma que não cabe qualquer sanção ao acusado caso venha este a adotar qualquer um desses comportamentos. Em função do direito de silenciar, não recaí sobre o réu qualquer obrigação em responder as perguntas a ele formuladas. Por outro lado, “[...] se o silêncio é direito do acusado e forma de realização de sua defesa, não se pode conceber que o exercício desta, através do silêncio, possa ser interpretado em prejuízo do réu“ (CAPEZ, 2009, p. 361-362), vedação essa que vem consignada no parágrafo único do art. 186, CPP.

Dessa forma, em cumprimento da determinação legal inscrita no caput e no parágrafo único desse artigo da lei processual, “[...] deve o juiz informar ao acusado do seu direito de permanecer calado sem que do exercício legítimo dessa prerrogativa constitucional possam advir restrições de ordem jurídica em desfavor dos interesses processuais do indiciado ou do acusado [...]” (CAPEZ, 2009, p. 362). E como esclarece com propriedade Tourinho Filho,

Qualquer insistência do Magistrado no sentido de exigir que o acusado falasse, sob pena de ser a sua defesa prejudicada, não teria nenhum valor, cabendo ao Advogado, se estivesse presente, fazer consignar o seu protesto ante esse manifesto abuso de autoridade. E, se ficasse provado que o réu falou diante da insistência e ameaça do Juiz, a prova colhida era supinamente ilícita (TOURINHO FILHO, 2009, p. 278).

Finalmente, conforme destaca Capez (2009, p. 354-356), o interrogatório tem ainda como características básicas: (a) pessoalidade (é ato personalíssimo, pelo que não é admitida a representação (nem sequer por seu defensor), substituição ou sucessão – somente o réu pode ser interrogado); (b) judicialidade (é ato exclusivo do juiz, a quem incumbe, com exclusividade, interrogar o acusado); (c) oralidade (é ato que se processa pela forma oral de comunicação, uma vez que a fala é “manifestação inequívoca do pensamento” (FIOREZE, 2008, p. 99)); e (d) é ato não preclusivo (dada a sua reafirmada característica de ser também um meio de defesa, o interrogatório não é alcançado pela preclusão, o que torna possível sua realização a qualquer momento). Além disso, convém destacar ainda que o interrogatório do réu também goza da característica da publicidade, uma vez que é ato que se desenvolve através de audiência pública, conforme preceituado pela Constituição Federal em seu art. 93, IX[22], e disciplinado pelo CPP, no art. 792[23].

Por outro lado, o teleinterrogatório, também designado como interrogatório on line, é, em essência, tão somente uma forma atualizada de se operacionalizar o interrogatório do acusado, pela incorporação dos recursos da moderna tecnologia de videoconferência. Esta caracteriza-se como um serviço de comunicação interativa audiovisual através do qual se processa uma troca bidirecional e em tempo real de sinais de áudio (som/voz) e vídeo (imagem), e que se estabelece entre dois ou mais grupos de usuários situados em locais distintos e, em regra, geograficamente dispersos (FIOREZE, 2008, p. 51). A “troca bidirecional e em tempo real” significa que os sujeitos em comunicação estabelecem uma conversação simultânea, como aquela que ocorre numa ligação telefônica comum (porém, com qualidade de som muito superior, como a que se tem numa transmissão de TV), ao mesmo tempo em que também suas imagens estão mutuamente disponíveis (com a mesma qualidade de imagem de uma transmissão de TV); ou seja, os participantes da comunicação têm, simultaneamente, a visão da(s) pessoa(s) com quem falam.

A videoconferência “[...] foi criada para facilitar a comunicação entre as pessoas, viabilizando uma interação rápida, fácil, e dinâmica, pois tem por objetivo colocar em contato, através de um sistema de vídeo e áudio, duas ou mais pessoas separadas geograficamente” (FIOREZE, 2008, p. 52).

É um recurso disponível desde a década de 70, mas que recebeu grande impulso nos dias atuais em função da incorporação de tecnologias digitais e do uso de canais de comunicação com altas taxas de transferência de informações, disponibilizados pelas concessionárias de telefonia, o que conferiu expressiva qualidade e elevado desempenho à comunicação entre os usuários, os quais podem hoje trocar dados, imagens e sons. A popularização da Internet e o advento da Internet em banda larga contribuíram sobremaneira para ampliar as possibilidades de utilização das facilidades da videoconferência (FIOREZE, 2008, p. 52-53).

A videoconferência encontra uma infinidade de aplicações práticas e que simplificam em muito a vida moderna; apenas para citar algumas: ela permite a comunicação eficiente e ágil entre as sedes das empresas e suas filiais para a realização de reuniões, evitando viagens desnecessárias, com economia de tempo e dinheiro; ela viabilizou a educação à distância, através do qual é possível à instituições de ensino oferecer cursos para alunos localizados remotamente (os quais podem participar de palestras e seminários, e onde até mesmo os professores que ministram as disciplinas podem situar-se em locais distantes); na medicina, ela tornou possível o telediagnóstico, pelo qual médicos localizados em centros de referência distantes podem intercambiar os prontuários de pacientes (inclusive os mais diversos exames, através de suas cópias digitalizadas), propiciando a discussão para alcançar um diagnóstico mais preciso e o tratamento mais eficaz (FIOREZE, 2008, p. 52).

O teleinterrogatório é, assim, apenas mais uma das aplicações práticas dessa moderna tecnologia, e que requer, para tanto, a utilização de um sistema que opera com hardware e software específicos. Esclarece Fioreze (2008, p. 107) que o teleinterrogatório consiste em

[...] um interrogatório realizado à distância, ficando o juiz em seu gabinete no fórum e o acusado em uma sala especial dentro do próprio presídio, onde há uma interligação entre ambos, por meio de câmeras de vídeo, com total imagem e som, de modo que um pode ver e ouvir perfeitamente o outro.

Os equipamentos que compõem o sistema consistem em câmeras de vídeo, telões, monitores de vídeo, microfones, microcomputadores e softwares de controle e monitoração; em cada ponto de comunicação é disponibilizada uma configuração similar a essa, porém, o usual é que o local onde o acusado será interrogado seja equipado com um número maior de câmeras, o que permitirá ao magistrado uma visão mais abrangente propiciada pelos diversos e simultâneos ângulos de visão disponibilizados. Um canal de comunicação exclusivo interliga os locais, conexão esta provida por linha telefônica, link de rádio-freqüência, e até via Internet, formando uma rede de comunicação digital de alta performance. Complementam o sistema equipamentos auxiliares como impressora (para impressão do termo de registro do interrogatório), scanner (para digitalização de documentos a serem transmitidos) e gravador de CD/DVD (para gravação digital da audiência) (FIOREZE, 2008, p. 53-54).

Outro aspecto a ressaltar é de que o juiz, de seu gabinete no fórum, tem o total controle do sistema, podendo, remotamente, ajustar o posicionamento das câmeras instaladas na sala onde se encontra o interrogado (visto, em geral, serem câmeras móveis, com controle PTZ – pan/tilt/zoom); isso permite ao magistrado que preside o interrogatório fazer o enquadramento de qualquer dos presentes na sala (acusado, agentes penitenciários, oficial de justiça, servidor do judiciário e, obrigatoriamente, o defensor do acusado), de acordo com o seu interesse.

A forma como o teleinterrogatório se desenvolve é basicamente a mesma do procedimento tradicional, com pequenas adaptações que visam adequar as características da nova ferramenta aos princípios e requisitos legais que regem o ato processual do interrogatório. O procedimento do teleinterrogatório pode ser sintetizado como segue:

O juiz, em seu gabinete, faz as perguntas ao acusado, as quais são digitadas pelo escrivão e simultaneamente aparecem na tela do computador instalado no presídio. No presídio, um servidor do Judiciário a apresentar as perguntas feitas pelo juiz e, em seqüência, a digitar as respostas oferecidas pelo preso. A imagem e o som são transmitidos para os monitores. Ao final da audiência o termo do depoimento é enviado diretamente para a impressora na sala em que se encontra o preso, que lê e assina o documento. Esse termo é encaminhado de volta para o Fórum por malote no dia seguinte. Tudo rápido, simples e econômico. (FIOREZE, 2008, p. 108).


4 A CONSTITUCIONALIDADE DO TELEINTERROGATÓRIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O presente capítulo busca demonstrar a constitucionalidade do procedimento do teleinterrogatório a partir do substrato doutrinário delineado anteriormente; isso porque para alcançar tal objetivo a abordagem a ser feita será de natureza preponderantemente principiológica. E assim deve ser uma vez que a artilharia de mais grosso calibre apontada contra o teleinterrogatório é abundantemente municiada com argumentos de cunho igualmente principiológico a sustentar a inconstitucionalidade desse procedimento.

Conforme disposto em passagem anterior neste estudo, o foco das críticas que sustentam a inconstitucionalidade do teleinterrogatório no processo penal ancora-se fundamentalmente na inobservância dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Na defesa da constitucionalidade do procedimento do teleinterrogatório, as seções que se seguem neste estudo enveredam para a desconstrução daquela argumentação contrária, sob a hipótese de que esta argumentação, além de vazia, desrespeita os princípios constitucionais da proporcionalidade, da razoabilidade e da eficiência. 

Não deve, portanto, causar nota o fato de que o enfrentamento da questão, por excelência, deva ser feito à luz de uma abordagem dita “principiológica”. Disso se ocupam as próximas seções.

4.1 O TELEINTERROGATÓRIO E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

A partir da sanção da Lei 11.900, de 08/01/2009 (publicada no DOU em 09/01/2009 com vigência a partir de sua publicação), as críticas que sustentavam a inconstitucionalidade do teleinterrogatório por inobservância do princípio do devido processo legal sofreram duro golpe. Por intermédio desse novo diploma legal, novos parágrafos foram acrescentados do art. 185[24], CPP, “[...] permitindo finalmente – de forma expressa – a realização de interrogatório por videoconferência” (BEDÊ JÚNIOR; SENNA, 2009, p. 199). Combinada com a reforma anterior do CPP, patrocinada pela Lei 11.690, de 2008 (que alterou a redação do art. 217[25], CPP, introduzindo expressamente o emprego da tecnologia de videoconferência para a realização do depoimento de testemunhas e da vítima), a nova lei ampliou, no processo penal brasileiro, a utilização de videoconferência para a realização de atos processuais (MENDONÇA, 2009, p. 303).

Cai assim por terra a argumentação de inconstitucionalidade do teleinterrogatório por violação do devido processo legal, fundada na ausência de previsão legal para a utilização desse procedimento; essa lacuna legal foi superada através da Lei 11.900/09, que disciplinou a realização, por videoconferência, não somente do interrogatório do acusado, mas de atos processuais de forma geral.

Ao abordar em particular a questão do interrogatório, Andrey de Mendonça (2009, p. 304) sintetiza a nova disciplina desse procedimento afirmando que

De maneira geral, pode-se dizer que a nova legislação determina que o interrogatório do réu preso deva ser realizada, preferencialmente, no próprio estabelecimento penal onde se encontra o réu, ou em caso de impossibilidade, em Juízo. A inovação é a permissão para que o réu seja interrogado por videoconferência em situações excepcionais, nas hipóteses legalmente previstas e desde que exista expressa fundamentação por parte do magistrado. Ou seja, o legislador admite a videoconferência como medida excepcional, desde que observados determinados requisitos e formalidades indicados.

Bedê e Senna (BEDÊ JÚNIOR; SENNA, 2009, p. 200) destacam esse mesmo aspecto da aplicação do interrogatório por videoconferência, pontuando que

Como é fácil notar pela nova regra, a realização do interrogatório por videoconferência configura uma medida excepcional, sendo, portanto, supletiva. Assim, somente se poderá lançar mão de tal meio de realização do interrogatório quando presente alguns [sic] dos requisitos (finalidades) previstos no § 2º do citado art. 185 do CPP, que, aliás, são alternativos.

E conforme observam esses mesmos diletos mestres, a partir da nova sistemática para a realização do interrogatório,

[...] uma vez determinado [sic] a realização de interrogatório por videoconferência, ainda que posteriormente se verifique que havia possibilidade de o interrogatório ser feito do modo tradicional – face to face –, não haverá que se falar em nulidade caso a decisão tenha sido devidamente fundamentada, e apoiada em fumus que indicasse há [sic] época a existência de uma das finalidades citadas no § 2º do art. 185 do CPP. (BEDÊ JÚNIOR; SENNA, 2009, p. 201).

Evidente, portanto, que a partir da Lei Federal 11.900/09 fica afastada a questão da inconstitucionalidade formal do teleinterrogatório a luz do princípio do devido processo legal, uma vez que o advento da nova regra preencheu a lacuna legal até então existente, esvaziando a discussão em torno da falta de previsão legal para a aplicação do teleinterrogatório. Mas e quanto ao aspecto material desse princípio? Haveria de fato ofensa ao seu conteúdo substantivo, decorrente da utilização de tal procedimento, que desembocaria na sua inconstitucionalidade material sob o prisma do devido processo legal?

O sentido material do devido processo legal guarda relação visceral com o princípio da proporcionalidade, conforme brilhantemente sintetiza Gomes (2000, p. 186-187, grifo do autor) ao afirmar que

O significado essencial do substantive process of law (aspecto material) previsto no art. 5º da CF consiste em que todos os atos públicos devem ser regidos pela razoabilidade e proporcionalidade, incluindo-se primordialmente a lei, que não pode limitar ou privar o indivíduo dos seus direitos fundamentais sem que haja motivo justo, sem que exista razão substancial. [...] A lei deve ser elaborada não só consoante o devido procedimento legislativo (aspecto formal), senão sobretudo conforme o valor “justiça” (aspecto substancial). Uma lei que não atenda a razoabilidade (reasonableness) é inconstitucional, por ferir a cláusula do due process.

Assim, é à luz desse princípio que deve ser abordada a questão da constitucionalidade material da aplicação do teleinterrogatório, tomando em conta os três subprincípios em que o mesmo se desdobra (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, conforme apresentado na seção 2.4 supra).

Num primeiro giro, cumpre destacar de pronto que tem-se aqui como ponto pacífico que “[...] o réu tem direito de presença e audiência, num processo penal contraditório (dialógico)” (ARAS, 2008, p. 287). Este posicionamento está alinhado, inclusive, com fundamentação perfilada pelo Ministro Celso de Mello que, na relatoria do habeas corpus HC 86.634/RJ, reconheceu o direito de conhecido traficante de estar presente aos atos processuais de ação penal na qual era réu, invalidando as audiências de instrução que, por razões de segurança decorrentes da indiscutível periculosidade do réu, já haviam sido realizadas sem a sua presença pessoal; em seu voto, o Ministro Celso de Mello sustenta que

Esse entendimento tem por suporte o reconhecimento fundado na natureza dialógica do processo penal acusatório, impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático [...], de que o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do “due process of law” e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu (BRASIL, 2007, grifo do relator).

Isso posto, e na esteira do pensamento de Aras (2008, p. 287-288), o fato é que da utilização do teleinterrogatório não decorre qualquer prejuízo para os referidos direitos de audiência do réu, e de comparecimento. Em relação ao primeiro, permanecem asseguradas a comunicação bilateral com o juiz (que decorre da essência do próprio ato processual) e a comunicação reservada com o defensor (esta, expressamente prevista no § 5º introduzido pela Lei 11.900/09 no art. 185, CPP).

No que toca ao direito de comparecimento, em Aras (2008, p. 288), este continua a ocorrer de modo direto e em tempo real, agora remotamente (à distância), mantendo-se incólume a prerrogativa do réu de intervir a qualquer momento no ato em curso, contrariando assim os opositores do teleinterrogatório que vêem no termo “comparecer” do caput do art. 185, CPP o obstáculo para a aplicação desse procedimento, equivocadamente abraçando uma interpretação gramatical ou literal dessa norma que, sabidamente, está longe de ser a melhor solução diante da complexidade da questão. Com muita propriedade, Aras (2008, p. 288) sustenta que

Na sistemática do CPP, “comparecer” nem sempre significa necessariamente ir à presença física do juiz, ou estar no mesmo ambiente que este. Comparece aos autos ou aos atos do processo quem se dá por ciente de intercorrência processual, ainda que por escrito, ou quem se faz presente por meio de procurador, até mesmo com a oferta de alegações escritas, a exemplo da defesa prévia e das alegações finais, Vide, a propósito, o art. 570 do CPP, que afasta a nulidade do ato, considerando-a sanada, quando o réu “comparecer” para alegar a falta de citação, intimação ou notificação. Evidentemente, aí não se trata de comparecimento físico diante do juiz, mas sim de comunicação processual, por petição endereçada ao magistrado.

para, logo em seguida, concluir com precisão que

[...] pode-se muito bem ler o “comparecer” do art. 185 do CPP, referente ao interrogatório, como um comparecimento remoto, mas direto, atual e real, perante o magistrado. Observemos que o direito do acusado de comparecimento diante de um magistrado foi estabelecido numa época em que não existiam meios tecnológicos para o telecomparecimento. Estes meios agora foram viabilizados, o que permite que essa apresentação ao juiz natural se dê até de forma mais rápida, com os mesmos efeitos do comparecimento em sala. (ARAS, 2008, p. 288-289).

O mesmo raciocínio acima presta-se para rechaçar as alegações de que o teleinterrogatório atentaria contra tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, que supostamente atribuiriam ao réu o direito de ser conduzido à presença física do juiz natural (a saber, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – Pacto de Nova Iorque –, em seu art. 9º, § 3º[26]; e a Convenção Americana de Direitos Humanos – mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica –, no § 5º[27] de seu art. 7º) (ARAS, 2008, p. 289).. Formuladas na década de 60 (a primeira foi assinada em 1966 e a segunda, em 1969), quando a ciência da tecnologia da informação praticamente ainda engatinhava e a videoconferência não passava de um devaneio de visionários futuristas[28] (os daquela geração talvez se recordem “sonho” do “telefone com imagem”), não há nessas duas regras referência expressa à obrigatoriedade de que o réu seja levado à presença física do juiz (no sentido de estarem ambos, simultaneamente, no mesmo recinto). Tais normas referem-se tão somente à condução do detido à “presença do juiz”. Ora, como salienta Aras, “[...] a telepresença, ao vivo, atual e simultânea, por meio da videoconferência, confere ao acusado as mesmas garantias que o comparecimento in personam, diante do magistrado” (ARAS, 2008, p. 289).

Em outro giro, é importante atentar para o fato de que, na sistemática estabelecida pelo novo regramento expresso nos parágrafos inseridos no art. 185, CPP para a aplicação do teleinterrogatório, tomou o legislador todos os cuidados para assegurar ao acusado as garantias legais que o assistem, e que conformam o devido processo legal. Assim é que ao considerar como regra a realização do interrogatório em sua forma tradicional (através da presença física do réu diante do juiz - § 1º, e corroborado pelo disposto no § 7º), a nova legislação torna excepcional a realização do teleinterrogatório (§ 2º), autorizando-o apenas para as hipóteses legalmente previstas nos incisos desse parágrafo. Fica afastado assim qualquer juízo discricionário do magistrado que, conforme expressa redação do § 2º, deverá fundamentar sua decisão de realizar o teleinterrogatório com base em alguma das hipóteses de admissibilidade daquele incisos (MENDONÇA, 2009, p. 304-307). Conforme a pertinente análise de Mendonça ao comentar o novo regramento,

[...] o legislador adotou posição intermediária, ou seja, somente é possível o interrogatório por videoconferência em situações excepcionais, em que haja demonstração da necessidade da medida. Busca-se um equilíbrio entre os direitos do acusado e o interesse da sociedade. Ademais, a motivação deve indicar o substrato fático que justifique a necessidade de adoção do sistema, não sendo suficiente a mera repetição dos dispositivos legais (MENDONÇA, p. 307, grifo nosso).

Cuidou também o novo dispositivo de determinar a intimação das partes com 10 (dez) dias de antecedência como requisito para a realização do teleinterrogatório (§ 3º), sob risco de ensejar a nulidade do processo caso não seja o mesmo observado. Conforme destaca Mendonça (2009, p. 311, grifo nosso), o objetivo de tal requisito é o de “[...] evitar a surpresa e permitir que as partes, especialmente a defesa, possam tomar as providências necessárias para atender as disposições legais [...]”.

Por seu turno, o novo § 4º do art. 185, CPP salvaguarda o direito de presença do réu valendo-se da mesma tecnologia de videoconferência, de modo que o acusado, antes mesmo de ser interrogado através do procedimento de teleinterrogatório, poderá acompanhar toda a produção probatória durante a instrução do processo utilizando esse mesmo sistema tecnológico. Tal orientação se alinha com o posicionamento que vem emanando do STF (vide acórdão do Min. Celso de Mello no HC 86.634/RJ, supra referido) sobre o direito do réu preso de acompanhar os atos da instrução probatória, expressão do direito de presença, cuja inobservância determina a nulidade absoluta do ato (MENDONÇA, 2009, p. 312-313).

Na nova redação que lhe deu a Lei 11.900/09, o art. 185, CPP, ao introduzir formalmente o teleinterrogatório no processo penal brasileiro, contempla uma série de formalidades para o ato que visam assegurar sua estrita legalidade, preservando as garantias do réu “teleinterrogado”. Assim é que o § 5º desse artigo manteve o direito de entrevista prévia e reservada entre o réu e seu advogado, sem a qual não poderá efetivar-se o ato do teleinterrogatório. (MENDONÇA, 2009, p. 314)

Além disso, o mesmo § 5º determina ainda que o sistema de videoconferência utilizado para o ato seja dotado de recursos técnicos que disponibilizem canais reservados (entenda-se, de uso exclusivo) de comunicação que serão utilizados para conversação entre o réu preso e seu advogado presente à sala de audiências no Fórum; atente-se para o fato de que a letra da lei vem reforçar o respeito ao sigilo profissional entre cliente e advogado, razão pela qual a tal conversação “[...] não poderá ter acesso nem o Ministério Público e sequer o juiz [...]” (MENDONÇA, 2009, p. 314). Além disso, materializa a observância ao “direito à comunicação livre e reservada entre o advogado e o acusado”, previsto pelo Pacto de São José da Costa Rica[29], configurando uma garantia que “[...] é essencial, inclusive, para a validade do ato, pois sem a possibilidade de assegurar um canal exclusivo e reservado entre o advogado e réu, a própria entrevista prévia estaria prejudicada” (MENDONÇA, 2009, p. 314-315).

O § 5º do art. 185, CPP traz também uma outra formalidade legal que constitui inovação importante para a operacionalização do interrogatório pelo sistema de videoconferência a partir do presídio em que o réu se encontra detido; é que, conforme expressamente determina a parte final desse parágrafo, o canal reservado que deve estar disponível destina-se não apenas a comunicação entre o réu e seu advogado, mas também para a comunicação entre o “[...] defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum [...]”. A partir desse comando, Mendonça (2009, p. 315, grifo nosso) sustenta que é “[...] necessário que dois advogados acompanhem o ato, um presente no fórum e outro no Presídio”, para logo a seguir concluir com propriedade que “A finalidade da presença de um advogado também no Presídio, em contato pessoal com o réu, é afastar qualquer risco de que este seja submetido a coerções”.

Essa nova formalidade desarticula por completo um dos mais recorrentes argumentos dos opositores do teleinterrogatório, pelo qual alegavam que com esse procedimento, assim realizado a partir do presídio, não teria o réu “[...] a segurança necessária para denunciar fatos de interesse pessoal, como os maus tratos no cárcere, ou de interesse para a causa, como a chamada de um co-réu que esteja cumprindo pena no mesmo estabelecimento” (DOTTI, 2008, p. 490), ou que perderia ele a garantia “[...] de poder manifestar-se livremente, sem sofrer de imediato os castigos fatalmente advindos de seu comportamento, pois findo o interrogatório, estará novamente em sua realidade, agora para sofrer as conseqüências de seu ato” (SALLES VANNI; MACHADO, apud DOTTI, 2008, p. 490).

Mesmo que, por mero amor ao debate, se admitam os argumentos acima como hipóteses pertinentes, não é razoável afirmar que o interrogatório realizado através da sistemática tradicional (ou seja, através do comparecimento do réu, fisicamente, diante do magistrado, que, relembre-se, mesmo após a Lei 11.900/09, continua a ser regra para a realização desse ato processual) incontestavelmente produza efeitos práticos distintos daqueles referidos por tal argumentação; atente-se para o fato de que o interrogatório é um ato regido pelo princípio da publicidade e, dessa forma, será sempre possível o acesso “de qualquer um do povo” a tudo o quanto nele for declarado pelo réu, independentemente de qual seja a modalidade em que se realizar esse ato processual.

Ora, sendo fato notório (dados os reincidentes casos freqüentemente divulgados na mídia) o estado caótico em que se encontra o sistema prisional brasileiro, se a corrupção que nele se espraia como uma praga nos mais diversos níveis e formas faz tarefa fácil e banal a entrada nos presídios até de drogas, armas, e telefones celulares, o que dizer das declarações e informações prestadas pelo interrogado. Como bem destaca Fioreze (2008, p. 124) ao abordar essa questão, “[...] quando o réu é interrogado no fórum, também policiais ou servidores do presídio o acompanham, sendo óbvio que o que ele narrasse ali seria por eles assistido”, para logo em seguida ponderar com lucidez que

[...] mesmo em  juízo, no fórum fisicamente, sempre deveria o réu estar desacompanhado de qualquer tipo de carcereiro ou mesmo de algemas, sozinho com o magistrado na sala. Inegável que o estado de espírito do acusado poderia estar mais calmo em tal situação, mas também é inegável que questões de segurança existem, e até os mais sonhadores disto sabem, que implica exatamente o uso de algemas, ou ainda, de escolta policial. Em suma, o aparelho repressivo também se faz presente, por necessidades fáticas inafastáveis, durante o ato do interrogatório, em qualquer situação.

Tendo em vista que, uma vez concluído o interrogatório em Juízo, o réu por óbvio retorna ao presídio, da mesma forma então ficará sujeito “aos castigos fatalmente advindos de seu comportamento”. Basta uma análise crítica imparcial e com base nos critérios do bom senso (“leia-se”, à luz dos critérios do princípio da razoabilidade – vide seção 2.5 supra) para concluir que aquela argumentação dos que querem afastar o telinterrogatório é vazia e insensata.

A despeito do acima exposto, a reforma promovida pela Lei 11.900/09 no regramento do art. 185, CPP que disciplina o interrogatório no processo penal estabeleceu outra formalidade legal que busca precisamente assegurar as garantias do preso e seu livre exercício do direito de expressão; trata-se do § 6º que estabeleceu a necessidade de fiscalização da sala reservada onde se realizam os atos processuais por videoconferência, localizada nas dependências do estabelecimento prisional. Na inteligência desse novo dispositivo, compete à Corregedoria, ao Juízo de cada causa, ao MP e à OAB a responsabilidade conjunta de efetivar tais fiscalizações, as quais, de acordo com doutrina abalizada, visam “[...] afastar qualquer alegação de mácula aos princípios constitucionais e para assegurar a segurança no ato [...]” (MENDONÇA, 2009, p. 316),

De tudo o quanto foi até aqui apresentado, é inarredável a conclusão de que também não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade material pela aplicação do procedimento de teleinterrogatório. De fato, na forma que lhe deu o novo art. 185, CPP, não há como negar que se trata de um procedimento regido pela proporcionalidade e razoabilidade, ocorrendo sua utilização somente em função de justo motivo, aspectos esses ligados à essência do sentido material do devido processo legal, conforme anteriormente referido. Assim é também o entendimento de Mendonça (2009, p. 322) quando sustenta a constitucionalidade material do teleinterrogatório à luz dos três subprincípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) que vertem do princípio da proporcionalidade, afirmando que a videoconferência

[...] atende à adequação, pois a restrição ao direito de presença física é apta a alcançar os fins desejados (evitar fugas, garantir a ordem pública, assegurar a participação do réu e evitar influência sobre a testemunha). Ademais, o subprincípio da necessidade também é observado, pois é a medida menos gravosa a ser adotada, somente se admitindo em situações excepcionais e subsidiariamente. Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito também se queda observada, pois as vantagens decorrentes da videoconferência são muito superiores às desvantagens trazidas, que são muito pequenas [...].

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Fioreze (2008, p. 184, grifo da autora) conclui que a utilização do teleinterrogatório  “[...] é permitida justamente com base nos critérios de razoabilidade e proporcionalidade [...], bem como, no critério de bom senso [...], uma vez que a lei deve adaptar-se às realidades sociais”; logo a seguir, ao pontuar o caráter coletivo dos objetivos almejados com esse procedimento (celeridade processual, segurança para a sociedade e para o próprio réu, dentre outras) essa autora sustenta que “[...] com base no princípio da proporcionalidade, permite-se o interrogatório on-line, pois os interesses em conflito são motivos justos e suficientes para a autorização de tal inovação tecnológica”.

Por fim, no dizer de Aras (2008, p. 289),

[...] desde que seja garantida a liberdade probatória ao acusado e que sejam assegurados ao réu os direitos de ciência prévia, participação efetiva e ampla defesa[30] (inclusive com o acompanhamento do ato in loco por seu defensor e/ou por um oficial de justiça[31]), não há razão para temer o teleinterrogatório, sob o irreal pretexto de violação a direitos fundamentais do acusado no processo penal.

A utilização do teleinterrogatório não ceifa qualquer direito nem restringe liberdades e garantias do réu; este continua no exercício do direito de manter-se em silêncio (não será impedido de calar-se, se assim o desejar). Da mesma forma, não será proibido de falar, se dessa forma se determinar. Enfim, sua comunicação com o magistrado e com a acusação não fica vedada ou sequer limitada. Permanece incólume a característica dialógica fundamental do ato do interrogatório. Por sua vez, o juiz conserva sua imparcialidade e o tribunal continua tendo acesso ao teor do interrogatório (acesso esse que com o teleinterrogatório passa a ser total, uma vez que com o sistema de videoconferência é possível a gravação, em DVD, de toda a audiência). Permanecem válidas todas as formalidades, indagações e procedimentos expressos nos arts. 186 a 196 do CPP, que juntamente com o “novo” art. 185 integram o Capítulo III, o qual disciplina o interrogatório do acusado (ARAS, 2008, p. 290-291).

Enfim, no literal dizer de Aras (2008, p. 291), “Todos os direitos são respeitados, na substância e na essência. A videoconferência não fará surdos os juízes nas causas criminais. Onde, então, estaria o problema?” Ou seja, não há prejuízo ao princípio do devido processo legal e nem a nenhum outro princípio constitucional”.

4.2 O TELEINTERROGATÓRIO E A AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO

Em que pese terem sido abordados separadamente em seções específicas (vide seções 2.2 e 2.3 supra, onde os aspectos genéricos que permeiam esses princípios foram apresentados), existe uma ligação de causa e efeito entre ampla defesa e contraditório, de modo que

Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório. (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2007, p. 87)

E essa íntima relação já se manifesta na própria Constituição Federal, que expressamente traz juntas essas garantias, no mesmo dispositivo constitucional, qual seja, o art. 5º, LV, CR/88 (“Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (BRASIL, 2010a, p. 10, grifo nosso)).

De Bechara e Campos (2005, p. 133) se extrai que o escopo do princípio da ampla defesa contempla

o direito a autodefesa, o direito a defesa técnica e o direito a prova, que é o direito de se defender provando. O direito a autodefesa abrange o direito a audiência ou de ser ouvido, o direito de presença nos atos processuais, o direito ao silêncio e o direito de se entrevistar com o advogado. Já o direito a defesa técnica engloba tanto a defesa exercida pelo defensor constituído, como a exercida pelo defensor dativo e o defensor ad hoc.[32], [33]

Ainda de acordo com esses mesmos doutrinadores, por sua vez o conteúdo do princípio do contraditório abrange

[...] tanto o direito a informação como o direito a participação. O direito a informação no direito de ser cientificado, que por sua vez é respeitado por meio dos institutos da citação, intimação e notificação. Já o direito a participação consiste tanto no direito a prova como no direito a atividade de argumentação, de natureza eminentemente retórica, que busca seduzir pelo poder da palavra, oral ou escrita (BECHARA; CAMPOS, 2005, p. 132-133).[34]

Dos aspectos acima expostos decorre intuitivamente que o interrogatório, expressão máxima da autodefesa, assim como o direito de presença estão abarcados pelo princípio da ampla defesa (BECHARA; CAMPOS, 2005, p. 133). Sustentam os opositores do teleinterrogatório que, com base na dimensão atribuída pela Constituição à esse princípio (a qual enseja as implicações acima delineadas), não há espaço para a utilização do sistema de videoconferência uma vez que este elimina a presença física do réu ao ato processual (BECHARA, 2005).

A questão, porém, não é tão simplista; tal ponto de vista decorre de uma análise hermética do princípio da ampla defesa, a qual não pode prevalecer. Como destaca Bechara

A interpretação mais adequada do ponto de vista constitucional não pode, porém, ser nesse sentido exclusivamente. Trata-se de uma leitura parcial e incompleta. Em que pese seja imperiosa a observância do princípio da [ampla] defesa nos parâmetros traçados, é absolutamente legítimo que o seu conteúdo sofra certa limitação [como toda e qualquer liberdade pública], em razão da necessidade de preservação de outros valores com igual índole constitucional que, porventura, possa confrontar (BECHARA, 2005, grifo nosso).

A partir dessa constatação, esse perspicaz doutrinador demonstra que a constitucionalidade da utilização do teleinterrogatório, no que toca ao pretenso prejuízo ao direito de presença alegado pela corrente contrária, desrespeitando, portanto, o princípio da ampla defesa, radica na solução do conflito que se estabelece entre este princípio (e, por conseguinte, também do contraditório) e o princípio da eficiência (BECHARA, 2005).

Com efeito, dentre as inúmeras vantagens e benefícios que decorrem da utilização do teleinterrogatório assume inegável destaque o fato de que esse procedimento propicia uma maior celeridade processual, um dos corolários do princípio da eficiência, e que, conforme destacado anteriormente (vide seção 2.6 supra), teve sua carga normativa consideravelmente potencializada ao adquirir o status de norma constitucional, encartada como garantia fundamental no inciso LXXVIII, art. 5º, CR/88 (“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (PINTO, 2008, p. 221, grifo nosso).

O sistema de videoconferência apresenta-se como um desses meios referidos pelo inciso LXXVIII (o teleinterrogatório, obviamente, inserido nessa categoria) com significativo potencial de contribuição para a agilização do trâmite processual das ações penais. Conforme desta Aras (2008, p. 275)

[...] a instrução de uma ação penal pode ser retardada por uma série de fatores. Precatórias e rogatórias são expedidas para ouvida de testemunhas em várias partes do Pais ou fora dele. Audiências são adiadas por impossibilidade material ou econômica de deslocamento de acusados ou testemunhas. Pautas são redefinidas e os processos vão se amontoando, fazendo letra morta o art. 5º, LXXVIII, da Constituição. Todos esses eventos repercutem diretamente sobre a duração do processo penal, prejudicando a celeridade da prestação jurisdicional e o encerramento da causa em prazo razoável, como determina a Carta Federal, causando também impunidade.

Por intermédio da videoconferência, é possível eliminar o expediente das precatórias e das rogatórias, procedimentos reconhecidamente morosos, para a efetivação de depoimentos e interrogatórios; na mesma linha, é possível alcançar uma expressiva redução na emissão de cartas de ordem. Por outro lado, como o deslocamento de réus, vítimas, testemunhas e peritos fica consideravelmente minimizado (na maioria casos, os deslocamentos se restringem ao perímetro urbano onde o depoente/interrogado é domiciliado; em outros tantos, não é necessário deslocamento algum, como no caso de réu preso), os adiamentos de audiências relacionados à percalços de viagens ou falta de recursos para custeá-las também se tornem menos freqüentes (ARAS, 2008, p. 275). E conforme sintetiza Fioreze, graças ao teleinterrogatório é possível reduzir

[...] substancialmente tais ônus e incômodos, valorizando, assim, o direito de participação do acusado na instrução criminal, direito este que hoje, sem a videoconferência criminal, fica grandemente prejudicado [...]. Respeita-se, pois, o princípio da eficiência e da brevidade do processo (FIOREZE, 2008, p. 216).

Como visto, é tarefa simples concluir que o teleinterrogatório fortalece de forma expressiva o princípio da eficiência processual penal, como o faz Pinto (2008, p. 222) ao afirmar que esse procedimento é uma inovação que

[...] privilegia, principalmente, a celeridade do processo. Celeridade, que é preciso se ressaltar, não é benéfica apenas à sociedade, que tem uma resposta mais eficaz frente ao delito cometido, mas, principalmente, ao réu que, preso, vê sua situação mais rapidamente definida.

Igualmente simples é entender então a via pela qual a utilização do teleinterrogatório colocou em rota de colisão os princípios da ampla defesa (que pretensamente exige a presença física do interrogado ao ato processual, como sustentam os críticos daquele procedimento) e da eficiência (cuja concretude passa pela supressão dessa exigência).

Bechara qualifica esse conflito a partir da consideração conjunta do acima referido inciso LXXVIII e do inciso XXXV[35] (que assegura o direito de acesso à jurisdição), ambos inseridos no art. 5º, CR/88; assim, todo indivíduo tem constitucionalmente assegurado o acesso à jurisdição, a qual deve responder-lhe com uma “[...] rápida prestação jurisdicional, que deve ser o mais pronta possível, a fim de conservar sua utilidade e a adequação ao interesse reclamado” (BECHARA; CAMPOS, 2005, p. 134).

Corrobora esse entendimento a norma igualmente constitucional disposta no caput do art. 37, CR/88 (“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...] (BRASIL, 2010a, p. 22, grifo nosso)) e da qual se extrai que a jurisdição colocada à disposição do cidadão, “[...] enquanto manifestação da soberania estatal, deve orientar-se pelo princípio da eficiência [...]” (BECHARA, 2005, grifo nosso); tal constatação se afigura uma evidência elementar “[...] pois a ineficiência do processo significaria a absoluta imprestabilidade do provimento jurisdicional” (BECHARA, 2005), e portanto colocaria a jurisdição na contramão do que preceituam as garantias fundamentais daqueles dois incisos.

Contudo, resultante dos mais diversificados fatores, cuja consideração e análise fogem aos objetivos deste estudo, atingem-se estágios em que institutos até então eficientes passam a se mostrar descompassados e inadequados para fazer frente às crescentes demandas sociais. De acordo com a lúcida análise de Bechara e Campos (2005, p. 134, grifo nosso), em conjunturas dessa natureza

[...] a função do processo pode se mostrar ameaçada, o que demanda a necessidade de aparelhamento do sistema a fim de evitar tal comprometimento. É exatamente nesse contexto de fundado receio de comprometimento da eficiência do processo que se insere a justificativa do emprego do sistema de videoconferência. O uso da tecnologia explica-se por razões de segurança ou ordem pública, ou ainda quando o processo possui particular complexidade que a participação a distância resulte necessária para evitar o atraso no seu andamento. É o receio da paralisia do processo.

Delineado assim o conflito que se estabelece entre os princípios constitucionais da ampla defesa e da eficiência, a partir da utilização do teleinterrogatório. Contudo, tal como fazem esses mesmos autores, é importante destacar desde logo que este procedimento constitui “[...] um tratamento processual diferenciado, não aplicável indiscriminadamente, mas somente aos casos que exijam procedimento especial” (BECHARA; CAMPOS, 2005, p. 134). Com efeito, foi isso exatamente o que fez a Lei 11.900/09 (vide seção 4.1 supra) que, alterando o art. 185, CPP, introduziu-lhe dentre outros o § 2º que expressamente traz as hipóteses de admissibilidade do teleinterrogatório, as quais estabelecem esses casos que exigem um procedimento especial.

Advirta-se que a adoção legal desse tratamento processual diferenciado feita pelo art. 185, CPP, a partir da reforma patrocinada pela Lei 11.900/09 não deve causar qualquer estranheza, uma vez que esse expediente não é novidade na legislação penal brasileira; outras situações há em que a lei cuidou de aplicar procedimento especial em virtude de circunstâncias específicas e peculiares. Exemplos do que aqui se afirma podem ser encontrados na Lei 9.034/95 (que trata da utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas), que, ao admitir a gravação ambiental[36], privilegiou a proteção da eficiência do processo através da aplicação de medida restritiva à direito fundamental, no caso, o direito à intimidade (BECHARA, 2005); e na Lei 9.807/99 (que disciplina o programa de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas), que dispondo sobre a proteção de acusados ou condenados colaboradores, prevê a concessão de perdão judicial e a redução de pena[37] em decorrência de efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal, contribuindo assim para a eficiência processual. Conforme brilhantemente leciona Bechara (2005)

A não-utilização do procedimento especial nesses casos significa a inoperância do sistema, assim como expressa a impunidade. O tratamento diferenciado constitui inequívoca manifestação do princípio da isonomia, pois concebe um tratamento desigual a situações indiscutivelmente desiguais

Dois outros bons exemplos encontram-se na Lei 11.690/08 (que altera dispositivos do CPP relativos à teoria geral das provas e das provas em espécie), encartados na nova redação dada aos arts. 201 e 217 do CPP, por essa lei; o art. 201 prevê a possibilidade de que seja determinado o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações a respeito da vítima constantes dos autos, e aos quais o réu tinha livre acesso até o advento daquela lei. O art. 217, por sua vez, estabelece a possibilidade do juiz retirar o réu da sala de audiências em situações excepcionais. Também nestas duas situações, tal como naquelas apresentadas mais acima, tem-se novamente a adoção de tratamentos processuais diferenciados, a comprovar que a questão que envolve o novo procedimento do teleinterrogatório não é um caso isolado. A diferença, nestes dois últimos exemplos, é que a adoção dos procedimentos especiais privilegia a proteção da intimidade, da vida privada, honra e imagem do ofendido (art. 201) (MENDONÇA, 2009, p. 188); e a preservação de sua integridade psíquica e a busca da verdade real (art. 217) (MENDONÇA, 2009, p. 195).

O teleinterrogatório é assim o tratamento processual diferenciado que o legislador concebeu, na forma da nova redação atribuída ao art. 185, CPP, para compatibilizar as garantias da ampla defesa e da eficiência do processo, compatibilização essa construída sob a rigorosa observância do princípio da proporcionalidade, conforme cabalmente demonstrado anteriormente (vide seções 2.4 e 4.1 supra) (BECHARA; CAMPOS, 2005, p. 134).

A argumentação elencada acima conduz à inevitável conclusão de que, com a utilização do teleinterrogatório,

[...] a participação a distância acarreta evidente mitigação do princípio da ampla defesa, notadamente do direito de presença, mas não o inviabiliza, já que o núcleo essencial [ou duro] está preservado [pelo princípio da proporcionalidade], diante da possibilidade do acusado intervir no ato processual por meio da tecnologia, mas não fisicamente, resguardado o contato com o defensor. O que deve autorizar o uso da técnica, contudo, é o fundado receio de comprometimento da eficiência do processo, seja por razões de segurança ou ordem pública, seja porque o processo guarde certa complexidade, e a participação a distância resulte necessária para evitar o atraso no seu andamento. É evidente que não se pode presumir que em todo e qualquer processo haverá tal receio, da mesma forma que o uso da técnica não pode ser feito aleatoriamente (BECHARA; CAMPOS, 2005, p. 134-135, grifo nosso).

Interessante ainda observar que Bechara, tratando dessa mesma questão em um outro artigo elaborado em 2005 (“Videoconferência: princípio da eficiência ‘versus’ princípio da ampla defesa (direito de presença”) já sustentava naquela ocasião que

[...] para que a participação a distância seja legítima do ponto de vista constitucional, é fundamental a observância da cláusula da reserva da jurisdição. Se a audiência a distância acarreta a dispensa da presença física do acusado no ato processual, mitigando a ampla defesa em nome da eficiência do processo, é necessária uma decisão judicial autorizando a providência (BECHARA, 2005).

Esse aspecto não foi esquecido pelo legislador de 2009, na reforma do CPP levada à cabo pela  Lei 11.900; ao prever formalmente o procedimento do teleinterrogatório no proceso penal brasileiro, o § 2º inserido por essa lei no art. 185 expressamente determina que “[...] o juiz, por decisão fundamentada [...], poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência [...]” (BRASIL, 2010b, p. 633). Não resta dúvida que, em consonância com o entendimento doutrinário, o legislador foi zeloso ao estabelecer no texto legal a estrita necessidade da observância da cláusula de reserva jurisdicional, pelo que também não haverá como se questionar a legitimidade constitucional da utilização desse procedimento.

Enfim, a partir do rigor metodológico exigido para a análise valorativa da ponderação entre os princípios da ampla defesa e da eficiência, feita à luz do princípio da proporcionalidade, conclui-se não ser idôneo falar em inconstitucionalidade do teleinterrogatório por inobservância ao direito de presença do réu (e, em decorrência, a ampla defesa), o qual não deixa absolutamente de existir, apenas passa a se operacionalizar por outro meio (o sistema de videoconferência), através da “telepresença”. Nesse sentido, conforme afirma Aras (2008, p. 291),

A telepresença do acusado, em videoconferência, é uma presença real. O juiz o ouve e o vê, e vice-versa. A inquirição é direta e a interação, recíproca. No vetor temporal, o acusado e o seu julgador estão juntos, presentes na mesma unidade de tempo. Atende-se a imediatidade. A diferença entre os dois, o réu e seu julgador, é meramente espacial. Mas a tecnologia supera tal distanciamento geográfico, fazendo com que os efeitos e a finalidade das duas espécies de comparecimento judicial sejam plenamente equiparados. Nisto, nada se perde. Nem a emoção do ato, se assim se quiser.

Confirmando a abordagem estritamente técnica da ponderação levada à cabo pelo princípio da proporcionalidade, e sintetizada acima, é notório que nada se altera na prática processual em relação às garantias e direitos que decorrem da ampla defesa e do contraditório[38], com a adoção do teleinterrogatório. Para chegar a esta conclusão não se faz necessário qualquer esforço argumentativo; de fato,

O interrogatório, momento culminante da autodefesa do réu, não é nulificado simplesmente porque se optou por este ou por aquele modo de captação e transmissão da mensagem. Destarte, tanto pode o réu falar diante do juiz, e ter o seu depoimento transcrito a mão, em máquina de escrever ou em computador, quanto pode fazê-lo em audiência gravada in loco, ou em interrogatório transmitido remotamente por vídeo-link. O meio utilizado não desnatura nem contamina o ato. O que importa é que, em qualquer das hipóteses, se assegure ao acusado o direito de ser acompanhado por defensor e os direitos de falar e ser ouvido, de produzir e contrariar prova e o direito de permanecer em silêncio quando lhe convier [...] (ARAS, 2008, p. 290, grifo nosso).

As evidências e argumentos entabulados até aqui demonstram com clareza, no exato sentido sustentado por Aras acima, que com o teleinterrogatório todos aqueles direitos e garantias que emanam dos princípios da ampla defesa e do contraditório restam amplamente preservados, não acarretando para o réu qualquer real prejuízo. Logo, na ausência de prejuízo não há que se falar em nulidade do ato praticado, regra essa que se extraí do próprio CPP, art. 563[39], e que combinada com aquela preceituada pela alínea ‘e’, inciso III do art. 564, também do CPP[40], conduz à percepção de que é a falta do interrogatório do réu (ou seja, a sua não realização) que tem o condão de, inexoravelmente, eivar o processo penal do vício da nulidade, em não a circunstância do mesmo operacionalizar-se por intermédio do sistema de videoconferência (ARAS, 2008, p. 291). Esse raciocínio, lastreado por todo arcabouço argumentativo engendrado até aqui conduz à constatação de que

[...] não há qualquer justificativa jurídica, nos planos da razoabilidade e do garantismo, para tolher ou proibir tal forma de interrogatório, em que o comparecimento continua a ocorrer, sendo o réu conduzido à presença virtual do juiz da causa, sem prejuízo do contraditório efetivo (Aras, 2008, p. 291).

Por outro lado, observe-se que não existe qualquer vinculação entre a sentença prolatada e a pretensa obrigatoriedade de “contato físico” (entenda-se, no mesmo ambiente) entre réu e julgador (prova cabal disso são os interrogatórios realizados por precatória, onde o juiz sentencia sem ter contato de qualquer natureza com o acusado, e as sentenças reformadas por tribunal, em sede de apelação, onde o acesso ao interrogatório judicial se dá somente “[...] através da letra fria impressa no papel, sem que nenhum contato visual com o réu tenha ocorrido” (PINTO, 2008, p. 218)).

Fica claro que a condução do réu à presença física do juiz para que este proceda ao interrogatório daquele não é, em si, uma formalidade que integre a substância desse ato processual; conforme já destacado anteriormente, a realização do interrogatório valendo-se da tecnologia de videoconferência não desnatura a essência desse ato nem tão pouco despreza ou omite qualquer das formalidades ou garantias mínimas do réu que, qualquer que seja a situação, tem efetivamente assegurada a ampla defesa e o contraditório (ARAS, 2008, p. 291).

Com o avançadíssimo estágio tecnológico atual em que se encontra o sistema de videoconferência é possível realizar, por telepresença, todas as formalidades e atos em que se desenvolve o procedimento do interrogatório[41], de forma eficiente e sem qualquer prejuízo para o interrogado, preservando-se, na pior das hipóteses, o conteúdo mínimo de suas garantias constitucionais, e sem risco de comprometimento para a segurança jurídica do ato; enfim, nenhuma exigência ou formalidade legal é omitida (ARAS, 2008, p. 291).

Assim, o que ocorre quando se realiza um teleinterrogatório é a mera substituição de um procedimento (aquele tradicional, na forma contemplada pelo CPP desde 1941) por outro (aquele que se utiliza da moderna tecnologia dos sistemas de videoconferência). Conforme bem enfatiza Pinto (2008, p. 222-223),

Mantida a solenidade do ato, seguindo-se o rito previsto no código ou na legislação extravagante, preservando-se a ampla defesa propiciada com a presença do advogado, etc., tratou-se apenas de regulamentar o mecanismo pelo qual é realizado o interrogatório. O uso da informática, assim, é simples meio, mero instrumento para a realização do ato e não representa um fim em si mesmo. Não vai muito além, para se tomar um exemplo, da utilização da estenotipia, tão criticada ao tempo de sua implantação, cujas inconveniências então apontadas hoje soariam ridículas (ou, pelo menos, desatualizadas), face aos benefícios verificados no sistema.

Ou seja, pode-se afirmar sem qualquer hesitação que, por intermédio da Lei 11.900/09, o legislador preservou o ato do interrogatório em sua integralidade, limitando-se a estabelecer, com o teleinterrogatório, tão somente um procedimento diferenciado para a coleta daquele ato processual (PINTO, 2008, p. 223). A conclusão é inevitável: qualquer alegação que aponte no sentido da nulidade do teleinterrogatório com base no disposto no art. 564, IV, CPP (vide nota 40), à luz do raciocínio acima, se revelará insensata e, portanto, não pode prosperar (ARAS, 2008, p. 291).

É possível que ainda assim os críticos do teleinterrogatório mantenham posição inarredável, entendendo que, de modo diverso ao até aqui sustentado, o comparecimento físico do réu diante do juiz constitui elemento essencial do ato e, portanto, estaria aquele procedimento eivado pelo vício da nulidade. Contudo, caso se admita como verdadeira essa hipótese (o que novamente aqui se faz apenas pelo amor ao debate), a conclusão inevitável é de que a nulidade dela advinda seria relativa; e essa conclusão vem da inteligência do art. 572, II, CPP[42], que fazendo direta remissão aos incisos III e IV do art. 564, CPP não deixa dúvidas quanto à natureza relativa dessa pretensa nulidade ao dispor que as nulidades referidas naqueles incisos serão consideradas sanadas “[...] se, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim” (ARAS, 2008, p. 291-292), preceito este que configura o chamado “princípio da instrumentalidade das formas”. Com este raciocínio, Aras conclui que “Aqui se lança uma pá de cal sobre o assunto. Se a finalidade do ato é atingida, não há nulidade alguma a declarar, preservando-se o teleinterrogatório” (ARAS, 2008, p. 292).

Finalmente, à guisa de sistematização de tudo o quanto aqui foi exposto, nunca é demais repisar:

a)    quando da realização do teleinterrogatório, à luz da sistemática estabelecida pelo art. 185, CPP, nenhuma formalidade legal ou garantia do réu fica esquecida; as partes se fazem (tele)presentes (defensores, Ministério Público ou querelante) ao ato; em conformidade com a praxe, o juiz cientifica o réu a respeito do seu direito de permanecer em silêncio (art. 186, CPP), advertindo-o contudo que o interrogatório é o momento processual por excelência para que ele apresente sua verdade sobre a acusação que lhe é imposta; procede-se à leitura da denúncia; as perguntas ao interrogado são realizadas de acordo com o preceitua o art. 187, CPP (ou seja, em dois blocos, um relativo à pessoa do acusado e outro aos fatos); as partes); as partes tem oportunidade de participar formulando perguntas sobre fatos que julguem ainda não esclarecidos (art. 188, CPP) (FIOREZE, 2008, p. 198). Ou seja, “A realização do interrogatório on-line não veta os procedimentos que a Justiça deve assegurar quanto à ampla defesa do acusado, posto que todos os atos impostos por lei são observados pelos magistrados” (FIOREZE, 2008, p. 199);

b)    Os atores no teleinterrogatório (acusado, defensor, magistrado, acusação etc) estão efetivamente presentes no mesmo instante temporal (em tempo real), ainda que separados espacialmente. Juiz e réu se ouvem e se vêem, reciprocamente, através de imagens e sons de elevado padrão de qualidade e eficiência, igualmente recíprocos, transmitidos simultaneamente, e livres de interferências ou falhas. A única diferença apreciável entre os dois procedimentos é a que diz respeito à natureza da presença do réu: no interrogatório tradicional, a presença é física; no teleinterrogatório, ela é virtual, que, contudo “[...] não traz prejuízos aos procedimentos a serem adotados e não tira do acusado a possibilidade de exercer a sua autodefesa, o seu silêncio, a sua ampla defesa” (FIOREZE, 2008, p. 199);

c)    Conforme assevera Fioreze (2008, p. 199),

Ao acusado deve-se dar a oportunidade, no interrogatório, de apresentar sua defesa de forma mais ampla possível. O sistema on-line faculta essa ampla defesa. Tudo que é dito é registrado. Não prejudica a qualidade da prova. A distância física entre réu e julgador não impede, na sistemática adotada, que os mesmos se avistem e mantenham diálogo em tempo real. O sistema garante a presença de um advogado e de um promotor junto ao magistrado, presenciando o ato. Garante, também, a presença de um advogado junto ao réu, na penitenciária [...], dando-se oportunidade do réu e seu advogado participarem ativamente dos atos processuais praticados. Não haveria, então, ofensa ao princípio da ampla defesa”

Ou seja, “O certo é que uma audiência ‘virtual’ é composta de partes concretas. Estas partes e o magistrado que a preside vivenciam um evento real, no qual o contraditório é total, permanecendo íntegras as garantias do acusado” (ARAS, 2008, p. 286, grifo nosso). Insofismavelmente, o teleinterrogatório acha-se inserido no conteúdo dos princípios da ampla defesa e do contraditório.

4.3 O TELEINTERROGATÓRIO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Na abordagem mais detida levada à cabo anteriormente neste estudo (vide seção 2.7 supra), a dignidade humana, dita como o valor supremo da democracia (SILVA, 1998, p. 89), aparece como um dos fundamentos do Estado democrático e social de Direito brasileiro, expressamente inserido no texto constitucional (art. 1º, III, CR/88[43]) no Título I que trata dos princípios fundamentais (SARLET, 2008, p. 69).

Mais do que fornecer um balizador, um referencial a partir do qual se extrai o sentido, a finalidade e a própria razão de ser do exercício do poder estatal e do próprio Estado, a consagração constitucional desse fundamento sinaliza o reconhecimento, por parte do legislador constituinte de 1988, de que “[...] é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (SARLET, 2008, p. 70). Não sem razão portanto a dignidade da pessoa humana pode ser considerada como “[...] critério aferidor da legitimidade substancial de uma determinada ordem jurídico-constitucional, já que diz com os fundamentos e objetivos, em suma, com a razão de ser do próprio poder estatal” (SARLET, 2008, p. 82).

Na esteira dessa evidência, não deve causar estranheza o fato de que aquele dispositivo constitucional que alberga o enunciado da dignidade da pessoa humana, mais do que a condição de princípio (e valor) fundamental, constitui norma que “[...] atua como elemento fundante e informador dos direitos e garantias fundamentais [...] da Constituição [...]” (SARLET, 2008, p. 84). Por essa razão, é possível identificar nos direitos e garantias fundamentais presentes na Carta Magna de 1988 uma vinculação com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que se manifesta em maior ou menor grau de intensidade dependendo do direito ou garantia considerado, uma vez que

[...] os direitos e garantias fundamentais podem – em princípio e ainda que de modo e intensidade variáveis –, ser reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas [...] (SARLET, 2008, p. 83).

Por outro lado, não deve passar desapercebido o fato de que a dignidade da pessoa humana foi expressamente referida em diversos outros pontos do texto constitucional (apenas para citar alguns exemplos, no art. 170, caput, ao estabelecer a finalidade da ordem econômica; no art. 226, § 7º,  lançando as bases do planejamento familiar na esfera do ordem social; e no art. 227, caput, disciplinando os direitos prioritários da criança e do adolescente) (SARLET, 2008, p. 66). Além disso, ao operar como “[...] diretriz material para a identificação de direitos implícitos (tanto de cunho defensivo como prestacional), e, de modo especial, sediados em outras partes da Constituição” (SARLET, 2008, p. 105), o princípio da dignidade da pessoa humana assume posição ainda mais destacada ao permitir identificar outros direitos fundamentais localizados fora do Título II, ampliando o rol dos direitos e garantias expressamente reconhecidos como tais pelo legislador constituinte (SARLET, 2008, p. 103).

O raciocínio tecido até aqui busca tão somente evidenciar a carga axiológica do princípio da dignidade da pessoa humana no seio do ordenamento jurídico pátrio; é pois um valor e princípio normativo fundamental que “[...] atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais [...] (SILVA, 1998, p. 92), e, se não o bastasse, que atua, no dizer de Sarlet (2008, p. 102), como “[...] critério para a construção de um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais [...].

Fica clara, assim, a razão pela qual a dignidade da pessoa humana acaba sendo guindado, à condição de princípio por excelência, dentre os demais princípios fundamentais constitucionais, para atuar como “[...] referencial inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente ao processo hermenêutico-sistemático [...]”, servindo de “[...] parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico” (SARLET, 2008, p. 84, grifo nosso).

Nessa linha de atuação, conforme destaca Sarlet (2008, p. 119),  “[...] o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por justificar (e até mesmo exigir) a imposição de restrições a outros bens constitucionalmente protegidos [...]”, condição essa que evidencia ainda mais a “[...] destacada primazia desfrutada pela dignidade da pessoa no âmbito da arquitetura constitucional [...]”, e que exige a

[...] necessária ponderação (e, acima de tudo, hierarquização) dos bens em causa, com vistas à proteção eficiente da dignidade da pessoa, aplicando-se também o princípio da proporcionalidade, que, por sua vez, igualmente [...] encontra-se conectado ao princípio da dignidade (SARLET, 2008, p. 122, grifo nosso).

A referência feita por Sarlet ao princípio da proporcionalidade (vide seção 2.4 supra) é bastante oportuna e merece ser destacada, dado o indispensável papel que desempenha esse princípio no processo de ponderação/hierarquização que deve ser levado à cabo quando confrontada a dignidade pessoal com os demais direitos e garantias constitucionais. A adequada aplicação do princípio da proporcionalidade permite determinar a proporcional extensão das restrições que devem ser impostas aos demais direitos fundamentais, configurando um “[...] rigoroso controle material e procedimental das restrições [...]”, e que, em última análise, importa em limitação da atividade jurisdicional; sem esse imprescindível controle, e impulsionado pela natureza aberta e abstrata da noção de dignidade, haveria sempre o risco de se estabelecerem limites abusivos aos demais bens fundamentais (e nunca é demais relembrar, a eficiência processual aí incluída também!), uma vez que se estaria à mercê da “[...] imposição unilateral e arbitrária de determinadas concepções do bem e da justiça [...]” (SARLET, 2008, p. 122).

A importância da aplicação da proporcionalidade assume tons ainda mais fortes quando se constata que a efetivação da “indispensável hierarquização” anteriormente referida invariavelmente se faz às custas da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como aquele que apresenta a maior hierarquia (em termos absolutos) do ordenamento jurídico pátrio. No entender de Sarlet (2008, p. 87, grifo nosso) essa circunstância “[...] remete ao problema de uma eventual relativização da dignidade e da necessidade de uma ponderação (e, por conseguinte, também de uma hierarquização) de bens [...]”.

A referência feita no parágrafo anterior ao problema de se relativizar ou ponderar a dignidade da pessoa humana não é um exagero; isso porque admitir que esse princípio seja dotado de feições absolutas tem como decorrência imediata o fato de que ele sempre prevalecerá em relação aos demais princípios, qualquer que seja o caso em concreto. Significa dizer que a norma que consagra a dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro (a saber, o referido art. 1º, III, CR/88) não admite “[...] uma ponderação no sentido de uma colisão entre princípios, já que a ponderação acaba sendo remetida à esfera da definição do conteúdo da dignidade” (SARLET, 2008, p. 77).

Com efeito, conforme discorrido nos parágrafos finais da seção 2.7 supra, a idéia de um princípio da dignidade da pessoa humana absoluto é considerada pela melhor doutrina como improcedente, visto que

[...] irremediavelmente o reconhecimento de um princípio absoluto [...] contradiz a própria noção de princípios [...]. Além disso, resta a evidência, amplamente comprovada na prática, de que o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser realizado em diversos graus, isto sem falar na necessidade de se resolver eventuais tensões entre a dignidade de diversas pessoas [...], ou mesmo da possível existência de um conflito entre o direito à vida e à dignidade, envolvendo um mesmo sujeito (titular) de direitos (SARLET, 2008, p. 77, grifo nosso).

Ignorar o entendimento acima para admitir o princípio da dignidade da pessoa humana como absoluto pode contribuir para a própria derrocada da noção de dignidade humana como valor fundamental. E a razão para isso é simples: por ser um conceito jurídico significativamente indeterminado e que abriga vários sentidos, é possível demonstrar, por exercício de argumentação, que o valor da dignidade da pessoa é o ponto fulcral para o qual convergem todos os dispositivos constitucionais; ou sejá, a dignidade da pessoa humana é o valor que subjaz a toda a Constituição. Ora, a utilização desse princípio como critério para identificação de outros direitos e garantias fundamentais localizados fora do rol previsto pelo constituinte levaria a considerar qualquer direito ou garantia fora desse rol como sendo um dispositivo materialmente fundamental, com base em seu pretenso conteúdo de dignidade da pessoa humana. A idéia central que se busca firmar a partir deste raciocínio, e que reconduz à improcedência de um princípio absoluto, encontra-se bem sintetizada nas palavras precisas de Sarlet (2008, p. 104-105, grifo nosso), ao sustentar que

[...] a dignidade [...] não deve ser tratada como um espelho no qual todos vêem o que desejam ver, pena de a própria noção de dignidade e sua força normativa correr o risco de ser banalizada e esvaziada. Com efeito [...], quanto mais elevado o valor que tem sido atribuído à dignidade, mais triviais os objetivos para os quais tem sido invocada. Assim, resulta evidente [...] que nem mesmo em nome da dignidade, se pode dizer (ou fazer) qualquer coisa.

Esse entendimento é de primordial importância, uma vez que é o ponto de partida para demonstrar que são improcedentes as alegações de inconstitucionalidade do teleinterrogatório fundamentadas no argumento da pretensa ofensa à dignidade da pessoa humana, a partir da utilização desse procedimento no âmbito do processo penal brasileiro.

E a linha de raciocínio que leva a essa constatação tem como vetores norteadores: o entendimento pacificado quanto a inexistência de direito absoluto (ou seja, não existe direito ou garantia que seja absolutamente imune à qualquer modalidade de restrição) (SARLET, 2008, p. 123); o “[...] consenso quanto ao fato de que, em princípio, nenhuma restrição de direito fundamental poderá ser desproporcional e/ou afetar o núcleo essencial do direito objeto da restrição”, o qual é complementado pelo entendimento de que “[...] uma violação do núcleo essencial [de um direito fundamental] [...] sempre e em qualquer caso será desproporcional” (SARLET, 2008, p. 123-124, grifo nosso); a evidência de que se, por um lado “[...] o princípio da dignidade da pessoa humana serve como importante elemento de proteção dos direitos contra medidas restritivas e, portanto [...] também contra o uso abusivo dos direitos”, por outro lado “[...] também serve como justificativa para a imposição de restrições a direitos fundamentais, acabando, nesse sentido, por atuar como elemento limitador destes” (SARLET, 2008, p. 129); e a possibilidade de se impor eventual relativização à dignidade da pessoa, isto é,  “[...] de se estabelecerem restrições (limites) à própria dignidade da pessoa” (SARLET, 2008, p.129, grifo nosso).

Não há como negar, contudo, que a chave de toda a fundamentação que autoriza afirmar a constitucionalidade do teleinterrogatório sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, reside de forma mais eloqüente na questão da eventual relativização da dignidade e da forma em que a mesma se processa. Isso porque, conforme já pontuado anteriormente, a incisiva argumentação dos opositores do teleinterrogatório advoga que a utilização desse procedimento colocaria em rota de colisão os princípios da dignidade da pessoa humana, que aqueles entendem restaria desrespeitado, e o princípio da eficiência, que o teleinterrogatório prestigia de modo especial.

É certo, por outro lado, que cada direito fundamental constitucionalmente consagrado se revela como materialização ou emanação, em maior ou menor proporção, da dignidade da pessoa, a tal ponto que leva Sarlet a afirmar que “[...] os direitos e garantias fundamentais constituem garantias específicas da dignidade da pessoa humana, da qual são – em certo sentido – mero desdobramento” (SARLET, 2008, p.107). Assim, não há como fugir à evidência que admitir a colisão entre aqueles dois princípios significa, em última análise, admitir a colisão entre dignidades, por contrapor a dignidade da pessoa do acusado (abalada pela utilização do teleinterrogatório que não permite que ele seja conduzido à presença física do juiz), e a dignidade da comunidade (das pessoas que a constituem), a qual emana do princípio da eficiência e que restará ofendida caso não se assegure a razoável duração do processo penal e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.[44]

Essa questão da colisão de dignidades e da possibilidade de relativização da dignidade da pessoa é abordada por Sarlet (2008, p.129), o qual entende não ser

[...] desarrazoado indagar, se, para assegurar a dignidade e os direitos fundamentais de uma determinada pessoa (ou grupo de pessoas) não se acaba, por vezes, afetando (limitando) a dignidade de outra pessoa, seja considerando a dignidade como bem jurídico autônomo, seja em se tomando-a como representando o conteúdo de determinado direito fundamental. Em suma, cuida-se de saber até que ponto a dignidade da pessoa, notadamente na sua condição de princípio e direito fundamental, pode efetivamente ser tida como absoluta, isto é, completamente infensa a qualquer tipo de restrição e/ou relativização.

A hipótese referida anteriormente da colisão entre a dignidade do acusado e a dignidade das diversas pessoas da sociedade, mais focada no objetivo aqui almejado, ilustra bem a questão acima. O fato é que, genericamente falando, sempre é possível imaginar situações cotidianas em que a salvaguarda da dignidade de um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos seja motivo de violação da dignidade de terceiros, quando então faz-se necessária a hierarquização ou ponderação da dignidade atribuída em concreto aos respectivos titulares envolvidos no conflito; conforme destaca Sarlet, essa situação é idêntica aquela que se verifica nos casos em que a dignidade de determinado indivíduo ou grupo pode sofrer restrições em favor de valores sociais mais relevantes, em específico para o fim de proteger a vida e a dignidade pessoal dos demais integrantes da comunidade (SARLET, 2008, p. 130).

Nesses casos, assumir que a dignidade da pessoa configura bem jurídico absoluto (e, nessa condição, ungida pela inalienabilidade, irrenunciabilidade e intangibilidade) se revelará uma solução por demais simplista, visto que não contribuirá para a solução do referido problema de colisão de dignidades, tornando sua abordagem consideravelmente complexa (SARLET, 2008, p. 131). Contudo, conforme já assinalado acima, são situações que não podem ser ignoradas uma vez que

[...] sempre se põe o problema – teórico e prático – de saber se é possível, com o escopo de proteger a dignidade de alguém, afetar a dignidade do ofensor, que, pela sua condição humana, é igualmente digno, mas que, ao menos naquela circunstância, age de modo indigno e viola a dignidade dos seus semelhantes [...] (SARLET, 2008, p. 131).

Tendo em mente que todo direito fundamental traz em si um conteúdo mínimo em dignidade, os indicadores para a solução que se mostrará alinhada com os ditames constitucionais para problemas dessa natureza são aqueles obtidos a partir da imprescindível análise do caso em concreto; ali, a norma de direito fundamental será tomada em consideração, avaliando-se a natureza e intensidade da ofensa perpetrada, quando se buscará identificar qual é exatamente a dimensão daquele conteúdo mínimo e se o mesmo é abrangido ou não pelo núcleo essencial do direito fundamental em questão (SARLET, 2008, p. 130).

Observe-se, por outro lado, que a Constituição Federal não traz de forma expressa e categórica a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana; conforme sustenta Sarlet, o postulado da intangibilidade da dignidade em verdade evoca

[...] a experiência de que esta dignidade é, de fato, violável e que por esta razão necessita ser respeitada e protegida, especialmente pelo poder que, apesar de muitas vezes ser o agente ofensor, ainda acaba sendo a maior e mais efetiva instância de proteção da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2008, p. 131, grifo nosso).

É possível imaginar uma infinidade de situações (que não são fruto da imaginação, mas episódios com os quais é comum se deparar rotineiramente) nas quais, em face da inegável violabilidade concreta da dignidade da pessoa humana, se coloca o imperativo concreto de solucionar conflitos que surgem ao se buscar a proteção da igual dignidade das partes envolvidas, e onde ainda subjaz a questão do confronto entre o cunho absoluto da dignidade e a possibilidade de se admitir eventuais limitações à dignidade pessoal (SARLET, 2008, p. 132-135).

O sempre citado Sarlet propõe alguns casos emblemáticos; num deles, a indiscutível violação da dignidade pessoal de indivíduo que, condenado por crime de extrema gravidade, é encarcerado em presídio superlotado (uma realidade brasileira!), é contraposta à também evidente violação da dignidade dos demais indivíduos, que decorria de sua exposição aos horrores da violência se a pena de prisão imposta (e que visa justamente, dentre outros, a proteção à vida, à liberdade e a dignidade dos cidadãos) não fosse aplicada, com base na alegação de impossibilidade de prisão do condenado, já que esta determinaria a limitação de sua dignidade (SARLET, 2008, p. 132).

Em tal situação, tem-se como patente o poder-dever do Estado em assegurar a proteção, através de condutas positivas, dos direitos fundamentais e dignidade dos particulares (SARLET, 2008, p. 132); no entanto, o que importa destacar enfaticamente a partir do caso exposto é que

[...] a dignidade, ainda que não se a trate como o espelho no qual todos vêem o que desejam, inevitavelmente já está sujeita a uma relativização [...] no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz, legislador, administrador ou particular) sempre irá decidir qual o conteúdo da dignidade e se houve, ou não, uma violação no caso concreto (SARLET, 2008, p. 134, grifo nosso).

Em outro caso, clássico e ainda mais palpitante, Sarlet apresenta a contraposição entre os valores dignidade e vida; trata-se da questão da eutanásia, em que o direito de doente terminal, sem qualquer expectativa de cura, a ter uma morte digna (ancorado na idéia de que é melhor morrer com dignidade diante da impossibilidade de realizar o direito à uma vida com dignidade, tendo em vista o martírio decorrente da enfermidade) é contraposto ao direito (incondicional) à vida (ainda que à reboque da vontade expressa do doente ou em nítido desrespeito à sua dignidade pessoal) (SARLET, 2008, p. 134). A abordagem da situação aqui apresentada conduz forçosamente à constatação de que

[...] em se admitindo uma prioridade da vida [...], no âmbito de uma hierarquização axiológica, estar-se-á fatalmente dando margem à eventual relativização, e, neste passo, também admitindo (como decorrência lógica) uma ponderação da dignidade, de tal sorte que desde logo (embora não somente por este motivo) merece ser encarada com certa reserva a assertiva de que a dignidade não se encontra sujeita, em hipótese alguma, a juízos de ponderação de interesses. No mínimo, parece-nos que a realidade da vida (e da dignidade) oferece situações-limite, diante das quais dificilmente não se haverá de pelo menos questionar determinados entendimentos (SARLET, 2008, p. 134-135, grifo nosso).

Com fulcro na lição de Alexy já referida anteriormente, quando afirma que “O princípio da dignidade humana pode ser realizado em diferentes medidas” (ALEXY, 2008, p.113-114), os casos exemplificados acima forçosamente levam à constatação de que “[...] até mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana (por força de sua própria condição principiológica) acaba por sujeitar-se, em sendo contraposto à igual dignidade de terceiros, a uma necessária relativização [...]”, uma vez que “[...] mesmo em se tendo a dignidade como o valor supremo do ordenamento jurídico, daí não segue, por si só e necessariamente, o postulado de sua absoluta intangibilidade” (SARLET, 2008, p. 135, grifo nosso).

O que importa neste giro é a percepção de que mesmo nos embates do convívio social rotineiro, em que indivíduos igualmente dignos ficam em contraposição, não há como negar que a solução da divergência no caso concreto exigirá um juízo de ponderação ou uma hierarquização para estabelecer os distintos níveis de dignidade colocados em conflito, ou seja, não será abrir mão de uma análise valorativa (uma ponderação!) para determinar se houve ou não ofensa à dignidade e qual a dimensão dessa ofensa; ainda que se adote alguma metodologia ou protocolo sistemátizado para a solução do caso concreto, ainda assim estar-se-á, por via indireta, lançando mão de uma hierarquização entre dignidades, posto que metodologias ou protocolos são em verdade critérios abstratos pré-estabelecidos e que invariavelmente resultam de uma atividade valorativa subjetiva (isto é, uma hierarquização!) (SARLET, 2008, p. 135-136).

Para tal hierarquização e/ou ponderação será de grande utilidade a noção, já firmada anteriormente, de que “[...] os direitos fundamentais não possuem [...] o mesmo conteúdo em dignidade, já que dela constituem exigências e concretizações em maior ou menor grau de intensidade [...] (SARLET, 2008, p. 136).

Outro aspecto que assume relevância na questão da relativização da dignidade da pessoa humana é obtido a partir da observação prática da realidade dos relacionamentos sociais hodiernos, e não fugiu à agudeza da análise de Sarlet; na avaliação desse doutrinador, não é possível negligenciar o fato de que

[...] qualquer pessoa, ao cometer uma ofensa à dignidade alheia [um ato indigno], acaba por colocar, a si mesma, numa condição de desigualdade na sua relação com os seus semelhantes, que, para além de serem igualmente dignos por serem pessoa [sic], são também – pelo menos para efeito do caso concreto em que se está a fazer a ponderação – dignos nas suas ações (e, exatamente neste particular, diferentes) (SARLET, 2008, p. 136).

Com base nessa evidência, Sarlet elabora um raciocínio absolutamente brilhante e crucial para a abordagem da questão envolvendo teleinterrogatório e a dignidade da pessoa humana; lançando mão do princípio isonômico, conclui ele que

[...] considerando que também o princípio isonômico (no sentido de tratar os desiguais de forma desigual) é, por sua vez, corolário direto da dignidade, forçoso admitir – pena de restarem sem solução boa parte dos casos concretos – que a própria dignidade individual acaba, ao menos de acordo com o que admite parte da doutrina constitucional contemporânea, por admitir certa relativização, desde que justificada pela necessidade de proteção da dignidade de terceiros, especialmente quando se trata de resguardar a dignidade de todos os integrantes de uma determinada comunidade (SARLET, 2008, p. 137, grifo nosso).

Salta aos olhos a evidência de que o entendimento de Sarlet grafado acima se ajusta perfeitametne ao embate que, no entender dos seus opositores, se estabelece entre o teleinterrogatório e a dignidade da pessoa do interrogado, e que, conforme já discorrido mais acima nesta seção, deságua na colisão das dignidades do acusado e dos demais indivíduos da sociedade.

Relembrando a questão, ao privilegiar a eficiência processual, a utilização do teleinterrogatório também opera como instrumento de salvaguarda da dignidade da pessoa humana, posto que, constitucionalmente consagrado como direito fundamental, a eficiência processual como visto apresenta-se como uma exigência e concretização da dignidade da pessoa humana (não apenas do acusado, mas também de todos os demais integrantes da sociedade). A intensidade com a qual a eficiência se vincula à dignidade da pessoa deve ser aferida no caso concreto, mas certamente guarda estreita correlação com todas as mazelas socialmente ponderáveis e aferíveis que decorrem de um processo ineficiente e letárgico.

Assim, se a utilização do teleinterrogatório pode levar a algum nível de violação da dignidade da pessoa do interrogado, como entendem os críticos desse procedimento, por embaçar o seu pretenso direito de presença física diante do juiz que o interroga, certamente não se pode pretender que, sistematicamente, se decrete a nulidade do ato ou se busque até a declaração de sua inconstitucionalidade, já que em face da indiscutível violabilidade concreta da dignidade e porque esta não se consubstancia num princípio absoluto (aspectos já evidenciados anteriormente), poderá ser admissível a relativização da dignidade pessoal do interrogado, a qual seria justificada a partir da necessidade de resguardar a dignidade de todos os demais membros do corpo social, situação que se harmoniza com a conclusão de Sarlet, acima referida.

Nesse diapasão, impende afirmar que não se sustenta a argumentação dos opositores do teleinterrogatório de que sua aplicação invariavelmente representa uma afronta à dignidade da pessoa do interrogado e, nessa via, seria tal procedimento inconstitucional.

Para aqueles ainda resistentes em aceitar a lógica desta argumentação e que insistem em ter a dignidade como um bem jurídico absoluto, convém alertar que a percepção do que é absoluto acaba por revelar-se como resultado de um processo interpretativo, e, nessa condição, “[...] da vontade do intérprete e de uma construção de sentido cultural e socialmente vinculada” (SARLET, 2008, p. 139).

Em todo o caso, sempre se exigirá do intérprete (seja ele o legislador ou o operador do direito) que oriente sua atividade interpretativa pelos ditames que emanam dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade (vide seções 2.4 e 2.5 supra), de modo que o conteúdo do conceito adotado para a dignidade não se mostre por demais restritivo nem demasiadamente extensivo.

Isso porque, a vigorar o primeiro cenário (de uma formulação restritiva da dignidade pessoal), uma efetiva violação da dignidade somente se configuraria para os casos em que fosse constatada uma “[...] grave violação da condição de pessoa [...]”, vale dizer “[...] somente na hipótese de uma desconsideração inequívoca de seu valor intrínseco como ser humano [...]”; essa condição restringe consideravelmente o universo das condutas ofensivas que caracterizam restrições à dignidade, as quais passam a ser caracterizadas como ofensas a outros direitos fundamentais, e assim regidas pelo regime jurídico específico que cuida das violações aos direitos fundamentais em geral. Neste cenário, dada a estreiteza do conteúdo da dignidade, cuidado especial deve ser atribuído ao chamado conteúdo mínimo em dignidade e ao núcleo essencial dos direitos fundamentais, cuja ofensa em qualquer caso permanece vedada (SARLET, 2008, p. 140).

Por outro lado, a adoção daquele segundo cenário, ao abraçar uma formulação da dignidade da pessoa humana que alargue excessivamente a abrangência do conteúdo de suas garantias, poderá tornar os demais direitos fundamentais meras figuras de retórica que, esvaziados, teriam consideravelmente prejudicada sua função protetiva específica, que estaria sempre eclipsada pelo largo manto da dignidade. Também este cenário não é recomendável uma vez que a interpretação extensiva atribuída ao conteúdo da dignidade teria como conseqüência a constante vulnerabilidade das garantas da própria dignidade (SARLET, 2008, p. 143).

Para selar esta discussão, valiosa é a argumentação de Sarlet que, fazendo referência ao doutrinador alemão Winfried Brugger, destaca que

[...] no embate entre dignidade e dignidade, a tese de acordo com a qual a dignidade da pessoa humana constitui direito fundamental de feições absolutas (no sentido de absolutamente infenso a qualquer relativização), além de revelar-se como sendo de difícil compatibilização com o caráter não-absoluto de todos os demais direitos fundamentais (e com os quais a dignidade encontra-se umbilicalmente ligada), [...] acabaria por esvaziar a proteção que se pretendeu imprimir à própria dignidade. [...] proteger de modo absoluto a igual dignidade de todas as pessoas apenas será possível enquanto se estiver falando na dignidade como a capacidade (ou seja, a potencialidade) para a autodeterminação [...] (SARLET, 2008, p. 137-138).

Evidente que não se tem a pretensão aqui de sustentar que, qualquer que seja a situação com a qual se venha a confrontar, sempre será verossímil a relativização da dignidade do interrogado como forma de legitimar a utilização do teleinterrogatório; é imperativo deixar claro que, qualquer que seja a hipótese, essa relativização

[...] jamais poderá resultar – e esta a dimensão efetivamente absoluta da dignidade – no sacrifício da dignidade, na condição de valor intrínseco e insubstituível de cada ser humano que, como tal, sempre deverá ser reconhecido e protegido, sendo portanto – e especificamente neste sentido – imponderável (SARLET, 2008, p.136, grifo nosso).

e que uma

[...] eventual relativização da dignidade na sua condição de princípio (de norma jurídica) não significa [...] que se esteja a transigir com o caráter inviolável da dignidade considerada como qualidade inerente a todas as pessoas, que as torna sujeitos de direitos e merecedoras de igual respeito e consideração no que diz com sua condição humana (SARLET, 2008, p. 137, grifo nosso).

De forma genérica (e que decerto também se aplicará aos casos que abarcam a questão do teleinterrogatório), isso significa que é igualmente possível identificar a existência de um núcleo essencial também no princípio da dignidade da pessoa (ou seja, enquanto norma jurídica fundamental), analogamente ao que se verifica em todos os demais direitos fundamentais; destarte, somente tal núcleo essencial gozará da intangibilidade quando se fizer necessário harmonizar a dignidade de diversas pessoas. Assim, afirmar que desse processo de harmonização, que encerra em si uma relativização de dignidades, redundou em sacrifício da dignidade equivale à constatação de que os limites extremos de proteção da dignidade foram ultrapassados, entenda-se, aquele núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa foi desrespeitado (SARLET, 2008, p. 140).

Nesse sentido, são perfeitas as palavras de Sarlet que, sistematizando todo o entendimento em torno da questão, esclarece que

[...] ainda que se possa reconhecer a possibilidade de alguma relativização da dignidade pessoal e, nesta linha, até mesmo de eventuais restrições, não há como transigir no que diz com a preservação de um elemento nuclear intangível da dignidade, que justamente [...] consiste na vedação de qualquer conduta que importe em coisificação e instrumentalização do ser humano (que é fim, e não meio). [...] vale lembrar que com isto não se está a sustentar a inviabilidade de impor certas restrições aos direitos fundamentais, ainda que diretamente fundadas na proteção da dignidade da pessoa humana, desde que, à evidência, reste intacto o núcleo em dignidade destes direitos (SARLET, 2008, p. 142).

De volta à questão específica do teleinterrogatório, é razoável imaginar que eventuais circunstâncias poderão se fazer presentes a tal ponto de determinar a efetiva agressão da dignidade do interrogado, em função da utilização desse procedimento; o legislador que reformou o art. 185, CPP, por intermédio da Lei 11.900/09, ofereceu alguns indícios (através das hipóteses que autorizam a realização do teleinterrogatório, legalmente previstas no § 2º desse artigo), os quais se mostram úteis na atividade de identificação das “situações de risco”. Assim, é possível sustentar o entendimento de que as hipóteses de admissibilidade inseridas nos incisos do § 2º tipificam situações que comportam uma relativização, sem que isso repercuta em sacrifício da dignidade da pessoa do interrogado, razão pelo que restaria autorizado o procedimento do teleinterrogatório em tais casos.

Convém destacar que, ao admitir em tais hipóteses a relativização da dignidade do interrogado, para legitimar a realização do teleinterrogatório, pretendeu o legislador buscar uma harmonização, “[...] um equilíbrio entre os direitos do acusado e o interesse da sociedade” (MENDONÇA, 2009, p. 307). Por outro lado, ao fazer do teletinterrogatório um procedimento excepcional, adotando assim uma posição intermediária (isto é, a realização do teleinterrogatório somente será autorizada nas situações excepcionais previstas naqueles incisos do § 2º, art. 185, CPP, e devidamente fundamentada), e estabelecendo limites nítidos à aplicação desse procedimento, o legislador demonstra clara preocupação e empenho em evitar que essa relativização se torne uma prática banalizada, o que contribuiria para fazer letra morta o princípio da dignidade da pessoa humana.

Evidente que, a contrario sensu, as situações que não se subsumam àquelas hipóteses de admissibilidade do art. 185, CPP configuram casos potenciais em que a tentativa de relativização ou ponderação da dignidade pessoal do interrogado, com boa dose de certeza, repercutirá em sacrifício para a dignidade, o que torna ilegítima a utilização do teleinterrogatório.

Todavia, qualquer que seja o caso, o enfrentamento da questão passará sempre pela análise detida e isenta do caso em concreto, feita à luz “[...] do que se considera como protegido em termos de dignidade pessoal e do que se possa ter (e vir a ter) como efetiva agressão [...]” (SARLET, 2008, p. 139-140), única forma apta a identificar a existência de real violação da dignidade e a extensão dessa ofensa. Constatado o sacrifício da dignidade pessoal, certamente estar-se-á diante de situação em que o núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa foi abalado, e negligenciado o seu conteúdo mínimo em dignidade.

Nunca é demais rever as conclusões do raciocínio engendrado nos parágrafos anteriores, de modo que não restem dúvidas em relação à questão da possibilidade de relativização da dignidade da pessoa humana. Essa relativização é admitida quando, para a solução do caso concreto, se faz necessária a harmonização da dignidade enquanto norma-princípio (que, no ensinamento de Alexy, “[...] pode ser realizado em diferentes medidas” (ALEXY, 2008, p. 13-114)) com os demais princípios e direitos fundamentais; tal necessidade de harmonização em hipótese alguma se confunde com a necessidade de respeito, proteção e promoção que reclama a dignidade de todas as pessoas indistintamente, enquanto valor intrínseco do ser humano, e que, nessa condição, pré-existe à sua concepção como norma jurídica (SARLET, 2008, p. 143-144).

Assim, novamente à guisa de sistematização (e aqui com o intuito de rematar a discussão sobre o tema), é que Sarlet, sempre de forma precisa, constata

[...] que – no concernente à eventual relativização da dignidade por força de sua dimensão necessariamente relacional e intersubjetiva – cumpre distinguir o princípio jurídico-fundamental (a dignidade na condição de norma) da dignidade da pessoa propriamente dita, isto é, com o valor intrínseco de cada pessoa, objeto de reconhecimento e proteção pela ordem jurídica. Que cada ser humano é, em virtude de sua dignidade, merecedor de igual respeito e consideração no que diz com a sua condição de pessoa, e que tal dignidade não poderá ser violada ou sacrificada nem mesmo para preservar a dignidade de terceiros, não afasta, portanto – e convém repisar este aspecto – uma certa relativização ao nível jurídico-normativo. Tal relatividade – e pelo menos esta não nos parece ser contornável – já decorre da necessidade de se averiguar, em cada caso concreto, a existência, ou não, de uma ofensa à dignidade, bem como a de definir qual o âmbito de proteção da norma que a consagra, não se podendo olvidar que, em última análise, irá depender dos órgãos competentes a decisão sobre tal matéria. [...] É preciso retomar aqui a noção de que a dignidade, sendo um conceito necessariamente aberto, relacional e comunicativo e, para além disso, histórico-cultural, não pode servir como justificação para uma espécie de fundamentalismo (ou tirania) da dignidade [...] (SARLET, 2008, p. 144-145).

Toda a abordagem feita até aqui ao longo desta seção esmerou-se em delinear o percurso gerativo de sentido pelo qual se demonstra ser absolutamente cabal a relativização do princípio da dignidade da pessoa humana para harmonizá-lo com o princípio da eficiência; tal condição faz do teleinterrogatório um procedimento legítimo, não havendo assim fundamento na alegação de que o mesmo seria inconstitucional sob o pretexto de que sua utilização violaria a dignidade da pessoa do interrogado, a qual, conforme exaustivamente disposto, inexiste.

Notadamente para os casos que se amoldam às hipóteses de admissibilidade do § 2º do art. 185, CPP tem-se aqui como pacífica a possibilidade de relativização da dignidade pessoal para autorizar, em tais casos e mediante a observância dos requisitos e formalidades legais, a aplicação do teleinterrogatório, privilegiando-se dessa forma a eficiência processual, um direito fundamental não só da sociedade, mas do interrogado também. Pela utilização do teleinterrogatório em tais situações, fica assegurado o conteúdo mínimo em dignidade do princípio da dignidade, restando também preservado o núcleo essencial desse princípio; patente, portanto, que em tal cenário não há como prosperar a pecha de inconstitucionalidade desse procedimento.

Exatamente nessa linha é o pensamento de Bechara que, ao sublinhar o papel do princípio da proporcionalidade como critério de ponderação para a solução do conflito entre os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da eficiência, que se estabelece com a adoção do teleinterrogatório, afirma que

[...] é possível identificar uma solução de compromisso em relação à admissibilidade constitucional do sistema de videoconferência, que preserva e afirma o conteúdo essencial da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal, na medida em que acomoda os princípios da ampla defesa e da eficiência do processo (BECHARA, 2005).

A corroborar toda essa fundamentação doutrinária, algumas evidências de cunho prático deixam claro que o teleinterrogatório, além de não levar à ofensa da dignidade do interrogado, pelo contrário, constitui instrumento de salvaguarda da mesma, pois permite que “[...] o Estado, ao realizar o jus puniendi em busca da paz social e da segurança pública, atue de maneira a garantir as faculdades jurídicas necessárias à condição humana do acusado”, uma vez que “Em que pese a gravidade da conduta delituosa que se pretende investigar, não se pode admitir que o acusado (ou talvez ainda investigado), seja privado de um tratamento digno” (FIOREZE, 2008, p. 229). Nessa linha de atuação, Fioreze traz uma típica situação que permite constatar de que forma o teleinterrogatório propicia um tratamento mais humano e digno ao interrogado:

A prática normal é que os presos deixem a casa de detenção dentro de um camburão e sejam entregues como mercadorias nas lojas de departamentos, ou carne, no açougue. Muitos ficam nos camburões, estacionados em frente ao fórum, em praça pública, expostos à execração pública. [...] É um quadro deprimente que deve ser extinto o mais pronto possível. E, uma das soluções encontradas é a possibilidade de reallização do interrogatório on-line (FIOREZE, 2008, p. 229).

Outra evidência: conforme repisado anteriormente, todos os demais direitos e garantias fundamentais são, em essência, exigências e concretizações, em maior ou menor nível, do princípio da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2008, p. 136). Vale dizer que o Estado, ao propiciar a concretização de determinado direito ou garantia fundamental, estará também via de conseqüência assegurando a dignidade individual a quem quer que assista tal direito ou garantia. Ora, é notório o fato de que o teleinterrogatório atua como instrumento que assegura o acesso à Justiça, por alargar a abrangência do direito constitucional previsto no art. 5º, XXXV, CR/88 (“A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito” (BRASIL, 2010a, p. 9)); basta que se imagine as várias situações nas quais o réu não tenha condições de comparecer ao fórum para ser interrogado (seja por questões financeiras pessoais, ou decorrentes de problemas de saúde ou mesmo por indisponibilidade de viaturas policiais para o seu transporte). Nesse caso, ao garantir ao interrogado o acesso à Justiça, afastando possíveis situações de revelia e de condenações injustas, permitindo o exercício da ampla defesa de forma rápida e segura, estará o teleinterrogatório via de conseqüência (por força da vinculação acima pontuada) enaltecendo a dignidade pessoal do interrogado (FIOREZE, 2008, p. 230; 235).

Por fim, numa linha igualmente pragmática, Mendonça (2009, p. 321-322) também comunga do entendimento de que, uma vez observados os requisitos e formalidades previstos em lei, não se evidencia desprezo ou ofensa à dignidade da pessoa do interrogado com a realização do teleinterrogatório; e para reforçar seu posicionamento faz alusão à jurisprudência afirmando que “[...] não se conhece decisões dos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos considerando que a videoconferência viola os Direitos Humanos”.

4.4 TELEINTERROGATÓRIO: CONSTITUCIONALIDADE OU INCONSTITUCIONALIDADE?

No ponto em que se encontra aqui este estudo, o título desta seção parece até soar como uma provocação; isso porque, considerando toda a fundamentação colacionada nas seções anteriores deste capítulo, não há como chegar à outra conclusão que não seja a da constitucionalidade do procedimento de teleinterrogatório (desde que, obviamente, este se realize em conformidade com a sistemática prevista em lei e em observância aos requisitos e formalidades legais, tal como preceitua o art. 185, CPP na redação que lhe deu a Lei 11.900/09).

Através de construções argumentativas legitimamente fundamentadas, foi possível constatar que a utilização do teleinterrogatório não viola os princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, e dignidade da pessoa humana; são todos eles princípios constitucionais caros ao processo penal, e por isso, a artilharia de mais grosso calibre direcionada contra esse procedimento é fortemente municiada com argumentações que sustentam a sua inconstitucionalidade sob alegação de suposta violação à tais princípios fundamentais. Em todos os casos, porém, evidenciou-se nas seções anteriores que, pela via do teleinterrogatório, mantém-se preservado o núcleo essencial desses princípios, ao mesmo tempo em que ficam assegurados os seus conteúdos mínimos. Em suma, não há qualquer inconstitucionalidade na utilização do procedimento do teleinterrogatório.

Na tentativa de desqualificar esse procedimento e ver decretada a sua inconstitucionalidade, seus opositores lançam mão de argumentos que, submetidos a uma análise isenta e criteriosa e ao crivo da proporcionalidade e da razoabilidade, não se sustentam. Apenas para citar um exemplo, atente-se para o argumento polêmico que, objetivando caracterizar ofensa ao princípio do devido processo legal, aborda a questão do direito de presença do réu, alegando a necessidade de que essa presença, por ocasião do interrogatório, se faça próxima ao juiz (entenda-se, no mesmo ambiente) para que este possa captar todas as reações do interrogado, “[...] interpretar sua postura, detectar o rubor da face do que mente ou a sinceridade espontânea do que diz a verdade” (PINTO, 2008, p. 218). Ora, sem dúvida é argumentação estéril e que não pode prosperar, pois, como oportunamente destaca Pinto (2008, p. 219),

Primeiro que não se tem notícia de interrogatório no qual o juiz tenha feito consignar que, ao formular determinada pergunta, viu-se o réu acometido de intenso rubor facial ou de tremor nas mãos. Segundo que essa espécie de constatação viria carregada por tamanho subjetivismo que a tornaria incapaz de conter algum valor probatório ou de prestar-se como elemento de defesa em favor do réu.

Assim, conforme arremata esse mesmo autor, “[...] a crítica ao interrogatório on line, no que diz respeito à impossibilidade cominada ao juiz de sentir as reações do réu [...], não procede em vista do absoluto subjetivismo de eventuais reações verificadas no transcurso do ato” (PINTO, 2008, p. 219, grifo do autor).

Como esse, uma série de outros argumentos (alguns nitidamente equivocados, como o que protesta quanto ao fato de que o interrogatório feito por videoconferência violaria o princípio que garante a publicidade dos atos processuais, ou ainda, o que alega que a utilização desse procedimento levaria à criação de uma verdadeira indústria de confissões (!) – (PINTO, 2008, p. 220; 221)) têm sido assacados contra o teleinterrogatório, sempre com o mesmo firme propósito de inviabilizar essa modalidade de interrogatório como instrumento à disposição do magistrado, e afastá-lo por completo da práxis jurisdicional.

Contudo, mais do que refutar com veemência tais argumentos, é oportuno assinalar também os expressivos benefícios que advém da adoção da tecnologia de videoconferência para a efetivação do interrogatório de acusados, estejam estes presos ou não.

Com efeito, são inúmeras as vantagens que a utilização do teleinterrogatório propicia; a maior delas, sem sobra de dúvida, reside no aspecto dele imprimir maior celeridade ao processo penal, sobre o que já se discorreu anteriormente. Afinal, conforme lembra Pinto (2008, p. 216), são incontáveis as

[...] protelações verificadas no processo pela não apresentação do acusado para o interrogatório (por problemas de escolta, falta de combustível, dificuldades no trânsito, etc.) [no caso de acusado em liberdade, até mesmo por dificuldades financeiras para custear as despesas com a locomoção até o local do interrogatório], a impor redesignações das audiências, tudo em prejuízo do rápido andamento do feito.

Analogamente, Aras (2008, p. 275) destaca que

Audiências são adiadas por impossibilidade material ou econômica de deslocamento de acusados [...]. Pautas são redefinidas e os processos vão se amontoado [sic], fazendo letra morta o art. 5º, LXXVIII, da Constituição. Todos esses eventos repercutem sobre a duração do processo penal, prejudicando a celeridade da prestação jurisdicional e o encerramento da causa em prazo razoável, como determina a Carta Federal, causando também impunidade.

Também não se pode esquecer do sensacional impacto no andamento do processo representado pela expedição de precatórias e rogatórias para a oitiva de acusados em outras partes do território nacional ou no exterior, o mesmo se verificando para a questão das cartas de ordem. Enfim, o impacto de todas essas situações pode ser evitado a partir da realização do interrogatório por videoconferência, o que certamente contribui para a tramitação mais célere das ações penais (ARAS, 2008, p. 275).

No caso específico das rogatórias, ao eliminar seu moroso procedimento de expedição e cumprimento, o teleinterrogatório opera ainda como “mecanismo facilitador da cooperação internacional penal”, para a persecução criminal no combate à criminalidade globalizada, porque

[...] permite a formação da prova oral perante as autoridades competentes [juiz e promotor naturais da causa] do Estado requerente (locus delicti), segundo a lex fori (lei processual local) [...], sob a presidência da autoridade brasileira e sem a intermediação de terceiros, como acontece com as rogatórias tradicionais (ARAS, 2008, p. 279; 280).

Praticamente na esteira do raciocínio acima, verifica-se que a aplicação do teleinterrogatório também permite ampliar o princípio do juiz natural (garantia constitucional prevista no art. 5º, LIII, CR/88[45]), oportunizando ao réu reais condições de acesso mais eficaz ao juiz natural da causa; a questão das cartas precatórias, rogatórias e de ordem, abordada acima, deixa claro tal benefício: esses expedientes deixam de ser necessários para o interrogatório de réus uma vez que “[...] o próprio juiz da causa ouvirá diretamente o acusado, onde quer que ele esteja, encarcerado ou solto, no País ou no exterior. Vale dizer: todos os atos processuais serão praticados pelo juiz natural da causa, o único competente para julgar o réu” (ARAS, 2008, p. 276).

Outra vantagem reside no fato de se promover, com o teleinterrogatório, a ampliação do acesso à justiça, outra garantia constitucional estampada no art. 5º, XXXV, CR/88; superando o fator distância que se coloca entra o interrogado e a sala de audiências no fórum, o procedimento enaltece esse direito fundamental constitucional na medida em que propicia ao acusado em liberdade e sem condições materiais de comparecer fisicamente em juízo, a oportunidade de exercer seu direito à autodefesa para expor suas razões e sua versão sobre os fatos que lhe são imputados (ARAS, 2008, p. 275).

Da conjugação dos aspectos referidos nos parágrafos acima, vislumbram-se outros benefícios (em especial, para o réu) oriundos da adoção do interrogatório por videoconferência; é que, ampliando o acesso à jurisdição e ao juiz natural, é possível reduzir-se drasticamente os casos de revelia e todos os demais desdobramentos processuais a ela associados, efeitos esses que seriam inevitáveis nas situações em que o réu, por problemas financeiros ou de saúde, estivesse impossibilitado de comparecer fisicamente diante do juiz. Nessa linha, é esclarecedor o comentário de Aras (2008, p. 276) quando afirma que

O teleinterrogatório reduzirá as hipóteses de aplicação do art. 366 do CPP: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”. Ora, se o réu telecomparecer ao processo não haverá porque suspender o andamento da ação penal e o curso do prazo prescricional. Nem haverá motivo para a decretação de prisão preventiva do acusado, que “não comparecer”, o que é sem dúvida uma grande vantagem processual e material para o réu.

Outro aspecto bem lembrado por Aras refere-se ao fato de que, sendo realizado por sistema digital de videoconferência, tudo o que se passa durante o interrogatório (imagem e som) pode ser instantaneamente gravado em CD ou DVD, nada se perdendo, garantindo a absoluta fidelidade de todos os diálogos travados e das declarações do interrogado; caso se deseje reduzir à termo todo o teor da audiência realizada (o que a partir da adoção do teleinterrogatório deverá ser uma excepcionalidade, visto tornar-se desnecessário tal registro escrito em face da disponibilidade da mídia digital gravada com todo o áudio e vídeo da audiência), obter-se-á uma transcrição fiel de tudo o que foi inquirido e respondido, ao contrário do que ocorre no interrogatório realizado pelo procedimento tradicional, cujo registro é obtido a partir da intervenção do juiz que interpreta as respostas do interrogado e as dita para o registro do escrivão. Nessa via, o registro digital do teleinterrogatório propicia uma compreensão muito melhor de tudo o que ocorreu durante a audiência.

Uma vantagem adicional é que o DVD, contendo a gravação de todo o ato, pode ser juntado aos autos (ou seja, anexado ao processo), como um “[...] registro permanente do que foi dito e das imagens da audiência, que poderiam ser examinadas e reexaminadas, vistas e revistas pelas partes, pelo juiz da causa, pelo seu sucessor e pelos tribunais, em grau de recurso” (FIOREZE, 2008, p. 153). Isso permite, por exemplo, que ao julgar a apelação o tribunal possa “[...] com facilidade, sentir a reação do acusado ao ser interrogado [...] tendo, dessa forma, um contato visual com o réu, situação impensável quando se adota o modelo tradicional” (PINTO, 2008, p. 219).

Fica evidente que na hipótese de um futuro recurso de apelação da sentença, a dimensão do efeito devolutivo dessa apelação alcançará uma profundidade jamais imaginada antes com o procedimento tradicional, uma vez que a partir da mídia digital gravada todo “O fenômeno sensorial vivenciado pelo juiz da instrução poderá ser compartilhado pelos juízes de apelação [...]”. Isso significa que os magistrados, por ocasião do julgamento das apelações nos tribunais de apelação, terão pleno acesso a todos os acontecimentos verificados durante a efetivação do (tele)interrogatório, os quais poderão ser revistos da forma como ocorreram. É possível afirmar portanto que a modalidade de interrogatório por videoconferência promove a plena devolução da causa aos tribunais de apelação e, via de conseqüência, é um instrumento que permite maior proximidade com a verdade real (processual). (ARAS, 2008, p.277).

Continuando na vasta seara das vantagens do teleinterrogatório, o fato dos equipamentos que integram o sistema de videoconferência se utilizarem da mais moderna tecnologia digital de informação leva à uma extraordinária potencialização do princípio da publicidade, princípio esse também de matiz constitucional inserido no art. 5º, LX[46] e no art. 93, IX[47], da CR/88. Graças à digitalização de imagens e sons, o interrogatório realizado por videoconferência pode ser disponibilizado na Internet, de modo que

[...] um número virtualmente infinito de pessoas pode tomar conhecimento do processo penal, [...] assegurando-se deste modo o princípio da publicidade geral e o controle social sobre os atos do Poder Judiciário, ampliando-se também o acesso à informação (ARAS, 2008, p. 278-279).

As características inerentes ao sistema de videoconferência permitem que, com o teleinterrogatório, a publicidade do ato seja plena, uma vez que, além da facilidade do acesso via Internet (permitindo que qualquer pessoa, não importa em que ponto do planeta esteja, acompanhe o interrogatório[48]) (ARAS, 2008, p. 279), é franqueado também a qualquer do povo o acesso ao fórum, onde poderá assistir, através de um aparelho de TV, ao interrogatório do réu (PINTO, 2008, p. 221).

Outros dois princípios correlatos que emergem privilegiados pela adoção do teleinterrogatório no processo penal são o princípio da imediação e o princípio da identidade física do juiz, que materializam vantagens indiscutíveis para o réu. É fácil entender o porquê disso: o princípio da imediação do juiz com as partes estabelece que o juiz, como responsável pela condução do processo, deve exercer seu mister na mais estreita proximidade com os sujeitos processuais e com a prova produzida, o que leva à pressupor que a atividade jurisdicional se desenvolva em face das partes; por essa via, o contato direto possibilita ao juiz averiguar se o que réu diz ao ser interrogado é verossímil, propiciando uma posterior avaliação mais balizada da prova oral coletada. Conforme destaca Fioreze (2008, p. 218), “O princípio da imediação visa, em última análise, aproximar o magistrado da prova oral, para que no momento da prolação da sentença tenha condições de chegar o mais próximo da verdade [...]”.

Já o princípio da identidade física do juiz, com o qual o princípio da imediação guarda estreito vínculo, até recentemente não vigorava no sistema processual penal brasileiro; foi somente a partir da Lei 11.719/08 que esse princípio foi expressamente consagrado pelo CPP, o qual passou a contemplá-lo no § 2º de seu art. 399[49]. Contudo, sempre prevaleceu na doutrina o entendimento quanto à importância desse princípio para que se obtivesse uma sentença mais justa para a causa; nesse sentido, Portanova (2003, p. 241) assevera que

[...] o interesse do princípio [da identidade física do juiz] é obrigar o juiz que ouviu a prova oral a sentenciar. O julgador, que por certo criou laços psicológicos com as partes e as testemunhas, deve usar esse conhecimento. Aproveitam-se as impressões do juiz obtidas de forma tão direta e concentrada [...] na sentença.

Esse também é o pensamento de Sirvinskas (1987, p. 260), o qual destaca “[...] a conveniência de o interrogatório ser realizado pelo próprio julgador da causa, vinculando-o desde o interrogatório, a fim de que possa melhor apreciar a demanda, em todas as suas nuanças”.

Em linhas gerais, da nova redação dada ao art. 399, § 2º, CPP, o princípio da identidade física do juiz determina que ao juiz que presidir a instrução da causa cabe a responsabilidade de julgá-la prolatando a sentença. Conforme destaca Mendonça (2009, p. 278-279),

O princípio da identidade física significa que o juiz que colher a prova fica vinculado ao julgamento da causa. Resguardam-se, assim, a própria imediatidade e concentração, pois de nada adiantaria que o juiz tivesse contato com a prova se não ficasse vinculado ao julgamento do feito.

Do exposto, é evidente que o procedimento do teleinterrogatório amplia consideravelmente as possibilidades de contato direto entre magistrado e partes no processo penal, e, por extensão, propicia condições significativamente maiores de que o juiz sentenciante tenha estado na efetiva condução (entenda-se, de forma direta, imediata) da instrução probatória; conforme oportunamente afirma Fioreze,

O princípio da imediação e, por sua vez, o princípio da identidade física do juiz, são, sem dúvida, os dois principais princípios a obterem benefícios com o uso da videoconferência na interrogatório dos réus. Ora, as audiências e os interrogatórios on-line podem ser gravados em meio digital [...]. Esta facilidade permite ao julgador da causa, o mesmo que realizar o ato ou o que vier a sucedê-lo, aproximar-se fundamentalmente da prova produzida, ao ver ou rever as gravações audiovisuais, permitindo, inclusive, a observação repetidas vezes dos mecanismos não-verbais de linguagem que comumente ocorrem numa audiência judicial. Os gestos, os movimentos corporais, a postura, as faces do réu [...], tudo enfim, pode ser captado pelas câmeras de vídeo e pelos aparatos microfônicos e submetido à análise sistemática e apurada do julgador [...] (FIOREZE, p. 222-223).

A agregação da tecnologia digital ao procedimento do interrogatório confere-lhe características tão substancialmente inovadoras e distintas em relação à sua sistemática tradicional que já era de imaginar que as vantagens advindas do teleinterrogatório não ficariam restritas unicamente à esfera (processual) jurídica. Evidência disso é que, a partir desse novo procedimento, é possível afirmar sem qualquer exagero que se dá um passo efetivo em favor de um maior provimento da segurança pública (e de forma abrangente, abarcando não somente a sociedade em geral, mas também réus e agentes públicos).

Isso porque, sendo desnecessário deslocar os interrogados até o fórum, em especial no caso de réus presos (muitos deles de alta periculosidade!), fica consideravelmente minimizado o risco de fugas ou de ações (empreendidas por comparsas ou grupos rivais) para o resgate de presos, e que obviamente têm maior probabilidade de ocorrer durante o transporte entre presídio e sala de audiências para o interrogatório tradicional.

Durante tais deslocamentos, o contingente policial alocado é invariavelmente dotado de significativo poder de fogo e reação contra eventuais investidas por parte de tais grupos, no que fica inevitavelmente exposta a integridade dos cidadãos comuns, de policiais e agentes envolvidos na escolta até o fórum, e dos próprios acusados, riscos que deixam de existir com a adoção do teleinterrogatório (FIOREZE, 2008, p. 166).  Concordando com esse raciocínio, porém num enfoque ligeiramente modificado, Pinto (2008, p. 216) destaca que o benefício para a segurança versa

Não apenas da segurança da população que fica sujeita às constantes fugas de presos durante o trajeto ao fórum, arrebatados que são, ainda nas viaturas, por membros de suas facções criminosas. Mas na segurança também do réu que, dispensado de se dirigir ao fórum, não fica à mercê de toda sorte de infortúnios, como acidentes automobilísticos, resgate promovido por rivais, etc.

Outra expressiva demonstração dos benefícios que a utilização do teleinterrogatório projeta para além das fronteiras da esfera jurídica reside na economia de recursos que ela proporciona. Estados e União despendem anualmente quantias significativas com o deslocamento de réus presos para a participação em procedimentos judiciais criminais diversos, dentre eles os interrogatórios. São despesas com mobilização de recursos e pessoal (policiais e agentes penitenciários, dentre outros) para a escolta (que pode envolver custos com diárias para alimentação e hospedagem, no caso de deslocamentos maiores, e até mesmo pagamento de horas extras, e demandar um planejamento e logística complexos para a sua viabilização); com viaturas e helicópetros (considerados aí os dispêndios com itens de consumo como combustível, óleo, e pneus, com manutenção e a depreciação da frota); e até, não raro, com passagens aéreas ou fretamento de aeronaves nos casos em que é necessário vencer distâncias em escala nacional. Conforme destaca Aras (2008, p. 273),

Grandes contingentes de policiais e agentes de segurança têm de ser desviados de suas funções ordinárias para a realização do que se vem chamando de “turismo judiciário”. Presos detidos em presíios [sic] de segurança máxima [...] têm de ser deslocados, às vezes por via aérea, para seus interrogatórios em juízo [...]. São dezenas de milhares de escoltas todos os anos, em todo o Brasil, a um altíssimo custo.

Apenas para se ter uma idéia aproximada da dimensão dos números e valores envolvidos, de acordo com dados coletados junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, somente na primeira quinzena de junho de 2003 (entre os dias 1º e 15) foram realizadas 27.186 escoltas de réus presos, as quais mobilizaram 73.744 policiais militares em 23.240 viaturas policiais, consumindo recursos que atingiram o montante de R$ 4.572.961,94 (NALINI, 2005). De acordo com Fioreze (2008, p. 160-161),

[...] no mês de agosto de 2004, para o universo de 120.750 presos, o quadro de dispêndio semanal no Estado de São Paulo era o seguinte: 7.151 escoltas efetivadas, 4.818 policiais envolvidos nas escoltas, 1.774 veículos em operação de escoltas, 260.000 Km rodados só para escoltas. Tudo isso sem contar que as despesas se multiplicam em razão dos constantes adiamentos das audiências causados por atrasos e acidentes inesperados com as viaturas, ou por outras situações que demandam a redesignação do ato.

Num levantamento mais recente a partir de dados fornecidos pela Polícia Civil do Distrito Federal, constata-se que o deslocamento de um preso entre o Presídio da Papuda e o Fórum de Brasília tem um custo que varia entre R$ 200,00 e R$ 7.000,00 (a depender do tipo de escolta utilizada, simples ou complexa). Os dados coletados dão conta de que, somente em 2008, foram realizadas 13.500 escoltas até o Fórum de Brasília. Por outro lado, o investimento inicial para a implantação de um sistema de videoconferência atendendo a todos os requisitos legais (tal como expressos no novo art. 185, CPP) é da ordem de R$ 500.000,00, considerado ínfimo diante da economia estimada com o seu emprego na reallização de teleinterrogatórios e outros atos processuais à distância a qual, se contabilizadas todas as escoltas efetuadas para os demais fóruns do Distrito Federal, é superior a R$ 2.000.000,00 anuais (INTERROGATÓRIO..., 2009). 

Em suma, as cifras são altíssimas, contudo tais gastos podem ser significativamente reduzidos a partir da utilização do teleinterrogatório, notadamente para os casos em que os interrogados são presos de alta periculosidade; sem a necessidade de deslocamentos dispendiosos, todo o contingente de policiais e viaturas desviados para dar suporte às escoltas pode ser empregado na promoção mais efetiva da segurança pública, reforçando o policiamento ostensivo e intensificando o combate à violência, o que dá aos cidadãos a tranqüilizadora sensação de proteção (ARAS, 2008, p. 273).

Por outro lado, a economia de recursos públicos gerada pode viabilizar investimentos em áreas igualmente críticas e sensíveis, como saúde, educação, transporte, saneamento básico etc, e em uma série de programas sociais, todos objetivos precípuos do Estado e essências para assegurar o bem estar da coletividade.

Não se conclua com isso que, sob toda a argumentação que defende aqui a utilização do procedimento do teleinterrogatório, se esconde uma motivação de cunho meramente utilitarista; em todo e qualquer caso, o emprego dessa modalidade deve ser feito na estrita observância dos ditames e formalidades legais (conforme estabelece o art. 185, CPP), respeitadas sempre “[...] as garantias da ampla defesa e do contraditório e assegurando-se um canal de comunicação exclusiva e sigilosa entre o réu e seu defensor”, propiciando assim “[...] aplicação concreta ao princípio da eficicácia [sic], previsto no art. 37 da Constituição Federal” (ARAS, 2008, p. 273). Dito isto, não há como negar que esse procedimento enseja expressiva economia de recursos públicos, a qual, pela amplitude dos ganhos sociais que descortina, não pode jamais ser desprezada no balanço de benefícios que advém de sua adoção.

Ainda em relação à economia propiciada pelo teleinterrogatório, convém destacar que a mesma não se manifesta apenas nos cofres públicos; seu efeito também é sentido no bolso dos réus. Com efeito, a maioria dos réus em ações penais responde aos processos em liberdade e, nessa condição, devem se deslocar às suas próprias expensas até as comarcas onde tramitam tais processos; no mais das vezes são acompanhados por seus advogados, cujos custos de deslocamento são igualmente suportados (ainda que de forma indireta) pelos próprios réus. É evidente, conforme destaca Aras (2008, p. 274), que diante desse quadro a utilização do teleinterrogatório “[...] reduz as despesas processuais do acusado e, por conseguinte, uma das muitas agruras do processo: o seu custo econômico”.

Seria possível enumerar ainda um extenso rol de benefícios que decorrem do teleinterrogatório. Ao concluir seu excelente artigo Videoconferência, persecução criminal e direitos humanos, Vladimir Aras (2008, p. 306-307) sintetiza uma lista com 18 vantagens predominantes atribuíveis a esse procedimento[50], dentre elas algumas das referidas acima. Contudo, a abordagem exaustiva de todas as vantagens vislumbradas, além de extensa, revela-se desnecessária uma vez que é patente que o teleinterrogatório configura um avanço sem precedentes na sistemática processual do procedimento do interrogatório.

Assim, conforme bem destaca Aras (2008, p. 307-308), observados todos os requisitos e características técnicas que asseguram a qualidade e adequação do sistema de videoconferência ao ato processual (imagens em full motion, estáveis e com nitidez; emprego de câmeras e monitores de vídeo de alta definição; áudio claro e em perfeito sincronismo com a imagem; transmissão sem retardos, interrupções ou perda de informações; controle de pan-tilt e zoom das câmeras feito remotamente pelo juiz que conduz o ato; canal de voz exclusivo para defesa; etc), não há motivos com o que se preocupar em relação ao teleinterrogatório; na sistemática em que se processa essa nova modalidade de interrogatório, tudo é feito “[...] de modo a assegurar o interesse público e a verdade real, com pleno respeito às garantias individuais no processo penal” [grifo nosso].

Portanto, cumpre reiterar categoricamente: tem-se aqui como falsa a afirmação de que o teleinterrogatório viola o direito do réu à ampla defesa (ARAS, 2008, p. 307), ou qualquer outro direito ou garantia fundamental deste, no que concordam Bedê e Senna ao destacarem que

[...] é impossível demonstrar empiricamente qualquer prejuízo real a ampla defesa pela utilização da videoconferência, respeitosamente, não se deve aceitar alegações genéricas, desprovidas de comprovação. Não será a videoconferência, em si, que determinará uma condenação ou a absolvição de nenhum réu (BEDÊ JÚNIOR; SENNA, 2009, p. 203).

Certamente não é nessa nova modalidade de interrogatório judicial que a inconstitucionalidade deve ser perquirida, pois, como visto, não há nada nesse procedimento que evidencie tal vício; ao contrário, o que se mostra patentemente inconstitucional é todo o conteúdo argumentativo que seus adversários arrolam com o objetivo de impedir que o mesmo seja acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Com efeito, conforme foi possível constatar ao longo deste capítulo, na contenda travada entre a corrente que defende a utilização do teleinterrogatório e a corrente que lhe é contrária são colocados em rota de colisão princípios constitucionais fundamentais: o princípio da eficiência (e, intimamente ligado a este, o princípio da razoável duração do processo), que emerge especialmente prestigiado com a adoção do teleinterrogatório; e os princípios do devido processo legal, ampla defesa, contraditório e dignidade da pessoa humana que, como sustentam os opositores desse procedimento, sofreriam severas violações com a sua utilização.

Assim, numa abordagem objetiva, o que a argumentação que se opõe ao teleinterrogatório pretende, à contrario sensu, é salvaguardar o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, e a dignidade humana, mantendo a incolumidade desses princípios às custas da proibição do teleinterrogatório (pretensamente eivado do vício da inconstitucionalidade).

Contudo, como dispara Fioreze (2008, p. 173-174), em tom desafiador,

[...] é muito fácil ser contra o interrogatório à distância, com argumentos genéricos de que viola a ampla defesa, o contraditório etc. Mas é preciso mostrar “em que” exatamente estaria essa violação, pois tudo o que se obtém com o interrogatório presencial, obtém-se também com o virtual [grifo da autora].

Ou seja, exsurge assim o entendimento aqui esposado de que tais argumentos, por envolverem potenciais restrições à determinados direitos fundamentais em contrapartida ao fortalecimento de outros, devem ser submetidos ao crivo do princípio da proporcionalidade (vide seção 2.4 supra), para que seja possível avaliar esses pontos de conflito, sopesando os meios utilizados e os fins almejados a partir daquela linha argumentativa contrária ao teleinterrogatório. É com base nessa análise ponderativa entre meios e fins que se torna possível inferir o grau de legitimidade dessa argumentação.

A referida análise ponderativa deve ser levada à cabo considerando-se os três subprincípios (abordados anteriormente neste estudo) em que se desdobra o princípio da proporcionalidade, a saber: adequação; necessidade; e proporcionalidade em sentido estrito. Os meios em consideração compreendem o universo de argumentos que pretendem banir o teleinterrogatório do sistema processual penal brasileiro; por sua vez, os fins perscrutados consistem na proteção e preservação de todos aqueles direitos que assistem ao réu decorrentes do devido processo legal, da ampla defesa e contraditóiro, e da dignidade da pessoa.

É oportuno destacar que, a priori, não haveria sequer necessidade de aplicar o “teste da proporcionalidade” para constatar que a argumentação contrária ao teleinterrogatório não é proporcional. Isso porque, conforme ensina Ávila (2008, p. 162-163), a aplicação do princípio da proporcionalidade tem como requisito básico e inarredável a “[...] existência de uma relação meio/fim intersubjetivamente controlável”; em outras palavras, “[...] a aplicabilidade do postulado da proporcionalidade depende de uma relação de causalidade entre meio e fim”.

Ora, de acordo com a linha de pensamento sustentada neste estudo, os fins indicados acima são obtidos tanto pelo interrogatório tradicional quanto pela modalidade baseada em sistema de videoconferência; dessa forma, padece de imprecisão a afirmativa de que existe uma relação causal entre a decretação da inconstitucionalidade do teleinterrogatório (meio adotado) e a proteção e preservação dos direitos fundamentais indicados (fins pretendidos); ou seja, uma eventual decretação de inconstitucionalidade do teleinterrogatório não redundaria no fortalecimento daqueles princípios fundamentais considerados, uma vez que a utilização desse procedimento não deixa de realizar tais princípios, inexistindo assim algum prejuízo para os mesmos que devesse ser reparado a partir de eventual proibição do teleinterrogatório. Senão, atente-se que:

-       Como visto, a Lei 11.900/09 afastou por completo a crítica quanto à violação do devido processo legal (tanto formalmente, porque agora o teleinterrogatório possui expressa previsão legal; quanto materialmente, uma vez que restou demonstrado de forma cabal que não há que se falar em restrição ao direito de presença, que continua preservado e potencializado em sua forma virtual);

-       Ficou também evidenciado, com base na sistemática prevista em lei para a operacionalização do teleinterrogatório, que não há qualquer prejuízo para a autodefesa do réu; este tem preservado seu direito de se manifestar e contraditar, bem como de comunicar-se reservadamente com seu defensor; mantém-se igualmente, e com vantagens, o pleno avistamento (face to face) entre juiz e réu, o que vai ao encontro do clamor dos críticos que entendem que tal possibilidade é fundamental para a formação do convencimento do magistrado quanto à verdade dos fatos. Restam portanto intactos a ampla defesa e o contraditório;

-       Por fim, ficou patente não existir qualquer prejuízo para a dignidade da pessoa do réu a partir da utilização do teleinterrogatório; pelo contrário, o novo procedimento incorpora características que caminham na direção da realização desse princípio fundamental (relembre-se, p.ex., a questão da celeridade processual, que interessa também ao réu por reduzir-lhe os efeitos das mazelas do processo penal; ou então do fato de não haver mais necessidade de conduzir o réu até o fórum, situação invariavelmente degradante e que o expõe ao escárnio de populares, além de pôr em risco sua própria segurança). Mesmo no caso daqueles mais relutantes em aceitar o teleinterrogatório, insistindo na referência à frieza que caracterizaria essa modalidade de interrogatório[51], ressalte-se que ainda assim é pacífico o entendimento na doutrina e na jurisprudência de que a dignidade da pessoa humana não constitui um princípio absoluto, admitindo alguma flexibilização, desde que preservado seu núcleo essencial e respeitado seu conteúdo mínimo, ambos assegurados pelo teleinterrogatório (o que igualmente se observa também em relação ao devido processo e à ampla defesa e contraditório).

Em outras palavras, afastar a prática do teleinterrogatório não implica em alterar o status de atendimento daqueles fins almejados, como se que aqueles direitos e garantias do réu estivessem até então prejudicados pela utilização do sistema de videoconferência, e somente a partir da prática exclusiva do interrogatório tradicional (corolário do meio adotado) passassem a ser efetivamente protegidos e observados.

É nesse sentido que se sustenta aqui que entre o meio adotado pelos críticos do teleinterrogatório e os fins que buscam em suas investidas contra esse procedimento não existe uma relação meio/fim devidamente estruturada.

Isto posto, mesmo com respaldo de um tal entendimento que dá conta da ausência dos elementos necessários para a aplicação do princípio da proporcionalidade, em homenagem ao debate procede-se a seguir ao “teste da proporcionalidade” para a linha argumentativa de oposição ao teleinterrogatório. Nesse teste, excepcionando o entendimento acima erigido para a relação meio/fim em análise, em rigorosa observância à toda conceituação formulada por Ávila, em sua excelente Teoria dos Princípios, a respeito da sistemática para aplicação dos “exames inerentes à proporcionalidade” (ÁVILA, 2008, p. 165-173), será considerada a existência de causalidade entre o meio e os fins em cotejo, admitindo-se que a concretização do meio (decretar a inconstitucionalidade do teleinterrogatório) promove os fins almejados (realização dos direitos fundamentais elencados). Esse posicionamento tem como viés a evidência de que a proibição do teleinterrogatório, em virtude de eventual declaração de inconstitucionalidade, determina que o ato processual seja executado segundo a modalidade tradicional a qual, conforme já abordado, é igualmente hábil para promover aqueles direitos e garantias fundamentais que integram os fins almejados.

 Assim, a efetivação do referido “teste” permite vislumbrar os seguintes aspectos:

a)    À luz do subprincípio da adequação, que investiga se o meio promove o fim, admitida a existência de uma relação causal entre o meio e os fins, é possível afirmar que uma eventual declaração de inconstitucionalidade do teleinterrogatório (do que decorre, como um corolário, a obrigatoriedade de utilização da modalidade tradicional do interrogatório sempre que se realizar esse ato processual) constitui meio idôneo para promover o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, e a dignidade da pessoa humana (ou seja, a partir da formulação de Ávila (2008, p. 165), a eficácia do meio adotado contribui para a “promoção gradual” do fim perseguido).

É oportuno salientar que, na aplicação do exame da adequação, não importa como um dado meio promove o fim (se da forma mais intensa, ou melhor, ou mais segura), interessa apenas que o meio considerado simplesmente promova (mesmo que minimamente) o fim (ÁVILA, 2008, p. 166).

Sintetizando, verifica-se que a argumentação em análise satisfaz o exame da adequação.

b)    A análise sob o prisma do subprincípio da necessidade não oferece maiores dificuldades: conforme leciona Ávila (2008, p. 171),

[...] a verificação do meio menos restritivo deve indicar o meio mais suave, em geral e nos casos evidentes. Na hipótese de normas gerais o meio necessário é aquele mais suave ou menos gravoso relativamente aos direitos fundamentais colaterais, para a média dos casos.

Ora, foge ao bom senso a idéia de que o meio defendido pelos opositores do teleinterrogatório (ou seja, a decretação de sua inconstitucionalidade) seja o menos gravoso para se atingir os fins pretendidos (a promoção daqueles princípios elencados acima). A contrario sensu, isso é o mesmo que afirmar que a modalidade tradicional do interrogatório seria o meio mais suave, ou seja, aquele que restringe “[...] em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados” (ÁVILA, 2008, p. 170).

Esse raciocínio, contudo, colide frontalmente com a constatação irrefutável de que o interrogatório tradicional faz letra morta o princípio da eficiência processual, o qual, por outro lado, sai prestigiadíssimo com a adoção do teleinterrogatório, que, via de conseqüência, promove também o princípio da razoável duração do processo. Destaque-se ainda que, conforme Mendonça (2009, p. 322), preocupado em fazer do teleinterrogatório um procedimento o menos gravoso possível, na sistemática que estabeleceu para ele o legislador somente admite a sua utilização de forma subsidiária e em hipóteses excepcionais.

Definitivamente, portanto, o meio considerado não satisfaz o exame da necessidade, já que ele se mostra mais gravoso do que o meio alternativo disponível, qual seja, o interrogatório por videoconferência.

c)    Por fim, o exame da proporcionalidade em sentido estrito busca determinar se as vantagens auferidas a partir da efetivação dos fins pretendidos compensam as desvantagens decorrentes do meio adotado (ÁVILA, 2008, p. 173). A resposta à esta indagação apresenta-se óbvia: na eventualidade de se concretizar o meio (isto é, decretar-se a inconstitucionalidade do teleinterrogatório), os fins então alcançados a partir da prática continuada do interrogatório tradicional conduziriam de pronto a proteção/promoção do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da dignidade da pessoa humana, contribuindo para a realização do interesse público, e de fundamental importância para a solidez da democracia e perpetuação do Estado democrático de direito (Ávila, 2008, p. 175).

Os ganhos, entretanto, se resumiriam a apenas esses direitos e garantias fundamentais acima relatados; tal solução deixaria para trás toda a extensa lista de vantagens (exemplificadas anteriormente nesta seção) que somente pela via do teleinterrogatório é possível realizar; esse rol de benefícios abrange também aquele mesmo lugar comum dos direitos e garantias então promovidos pela modalidade tradicional, contudo, vai muito mais além na persecução de outros direitos e garantias fundamentais (eficiência e celeridade processuais; razoável duração do processo; identidade física do juiz; juiz e promotor naturais; publicidade etc) bem como de interesses coletivos (segurança pública, economia) também de importância capital por conformarem avanços concretos que conduzem à efetivação dos direitos fundamentais e das finalidades precípuas do Estado, fortalecendo em decorrência o princípio democrático (ÁVILA, 2008, p. 175).

Em síntese, é patente que a utilização do teletinterrogatório carreia um universo de vantagens indiscutivelmente mais abrangente e expressivo do que aquele que se pode obter com a modalidade tradicional do ato processual; forçoso concluir então que o interrogatório tradicional (corolário do meio adotado) falha também no exame da proporcionalidade em sentido estrito.

A partir dos resultados obtidos com o “teste de proporcionalidade” performado acima é inevitável a conclusão de que a argumentação utilizada pelos adversários do teleinterrogatório não é proporcional, haja vista que a mesma falha em dois (necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) dos três exames que compõem o “caráter trifásico” do princípio da proporcionalidade (ÁVILA, 2008, p. 162); equivale dizer que, sob tais condições, essa argumentação viola o princípio da proporcionalidade.

Convém destacar neste ponto que a conclusão acima foi alcançada tomando o princípio da proporcionalidade a partir de uma abordagem que considera uma das duas vertentes em que se desdobra esse princípio, que corresponde ao chamado plano da proibição de excesso. Como visto anteriormente (vide seção 2.4 supra), a cláusula da proibição de excesso reflete a função exercida pela proporcionalidade que busca limitar o efeito de medidas restritivas que impõem limites a direitos fundamentais, notadamente quando tais direitos caracterizem direitos de defesa do indivíduo contra a intervenção estatal (categoria em que se inserem o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, e que remete ao garantismo negativo, referido na seção 2.4).

Dessa forma, mesmo sendo uma abordagem que a priori privilegiaria o acusado, na medida em que busca evitar os pretensos excessos advindos da utilização do teleinterrogatório, observe-se que o “teste de proporcionalidade” falha para a argumentação que defende a inconstitucionalidade desse procedimento; as razões para isso são claras: tal argumentação não é proporcional porque não há excessos com a adoção do teleinterrogatório, ou seja, conforme já amplamente alardeado aqui, não há violação dos direitos fundamentais do réu.

Por outro lado, é oportuno destacar também que a abordagem da questão do teleinterrogatório a partir da outra vertente do princípio da proporcionalidade, a saber, o plano da vedação da proteção deficiente se revela igualmente pertinente uma vez que o caso concreto em tela coloca em rota de colisão direitos fundamentais subjetivos (do réu) e direitos fundamentais transindividuais (da coletividade). A vedação da proteção deficiente ganhou significativo impulso a partir da era do Estado Democrático (e Social) de Direito, e que a atual Constituição Federal consagrou; ele remete ao chamado garantismo positivo, através do qual, para além da proteção do indivíduo contra o arbítrio do Estado, prevê a Constituição que devam ser assegurados os direitos de todos, incluídos aí os direitos prestacionais do Estado (segurança, saúde, educação, dentre tantos outros).

O garantismo positivo leva forçosamente à concepção de que

A liberdade individual deve estar sujeita a condições mínimas, razoáveis, de modo que o exercício deste direito não colida com o interesse público. Nesse passo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estatui: “Art. 29: §1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. §2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas por lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências (...) da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática” (STRECK, 2007, grifo do autor).

Assim, diante da colisão entre direitos individuais e o direito da comunidade (transindividual), ocorre que os primeiros “[...] por vezes, devem dar lugar aos valores comunitários, a fim de que a ordem possa ser mantida na comunidade [...] (VIZZOTTO, 2006, p. 146). Para tanto, é preciso que os institutos processuais (em particular aqui, o interrogatório criminal) e todos os preceitos em que se fundamentam sejam “[...] relidos em conformidade com a complexidade social que conforma não mais os velhos direitos de índole liberal-individualista, mas que hoje são agregados aos direitos de novas dimensões [ou gerações] (sociais e transindividuais)” (STRECK, 2007).

Pois bem, de acordo com Sarlet (2005, p. 132, grifo nosso) a idéia da vedação da proteção deficiente (que esse doutrinador designa como proibição de insuficiência) se originou do entendimento de que

o legislador, ao implementar um dever de prestação que lhe foi imposto pela Constituição (especialmente no âmbito dos deveres de proteção) encontra-se vinculado pela proibição de insuficiência, de tal sorte que os níveis de proteção (portanto, as medidas estabelecidas pelo legislador) deveriam ser suficientes para assegurar um padrão mínimo  (adequado e eficaz) de proteção constitucionalmente exigido . A violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão [...].

Ora, conforme já amplamente tratado aqui, na eventualidade de que lograsse êxito a crítica contrária ao teleinterrogatório, permanecendo tão somente o interrogatório tradicional como única forma desse procedimento, de pronto ter-se-ia violado o princípio da eficiência processual com o decorrente prejuízo para a razoável duração do processo, ambos de interesse público (transindividuais) e de natureza prestacional; de forma reflexa, não há qualquer exagero em afirmar que ficaria desprestigiada a segurança pública, em face do comprometimento de expressivo contingente de policiais, agentes penitenciários e viaturas, desviados de suas precípuas funções de proteção à população para viabilizar as escoltas dos acusados presos.

Vislumbram-se ainda impactos em programas sociais relacionados à saúde e educação (dentre outros) que, sem os recursos financeiros advindos da economia propiciada pelas escoltas não realizadas, não teriam como expandir sua abrangência para alcançar camadas maiores da população. Em todos esses casos estão em jogo autênticos interesses sociais extremamente sensíveis e importantes para a comunidade, que configuram direitos positivos (prestacionais) cuja proteção é constitucionalmente exigida, mas que com a proibição do teleinterrogatório perderiam grande oportunidade de fomento.

Ora, fica evidente que a decretação da inconstitucionalidade do teleinterrogatório estaria violando o princípio da proporcionalidade no plano da proibição de proteção deficiente, pelo que se tem novamente como desproporcional a argumentação que fundamenta tal proibição.

Sabe-se que o princípio da proporcionalidade é um princípio constitucional implícito; a abordagem acima permitiu concluir que os argumentos dos adversários do teleinterrogatório são desproporcionais, o que equivale a dizer que violam aquele princípio constitucional. A singeleza desse raciocínio lógico conduz à uma conclusão insofismável: o procedimento do teleinterrogatório não tem nada de inconstitucional; caso se deseje perquirir sobre o vício da inconstitucionalidade, esta deverá ser pesquisada na argumentação que pretende impedir a utilização desse procedimento. É aí que se aninha autêntica inconstitucionalidade.

Por todo o exposto é que se afirma de forma taxativa que o teleinterrogatório, modalidade de interrogatório criminal que se utiliza da tecnologia de videoconferência, expressamente previsto pelo art. 185 do CPP na nova redação que lhe foi dada pela Lei 11.900/09, quando aplicado às hipóteses legalmente estabelecidas e respeitadas as formalidades legais, é procedimento absolutamente constitucional, não havendo, dentro de tais parâmetros, quaisquer óbices à sua utilização no curso do processo legal. Conforme atesta Mendonça (2009, p. 322-323), a Lei 11.900/09

[...] foi equilibrada e compatibilizou os interesses da sociedade com os do réu. Não nos parece, portanto, que a videoconferência viole qualquer direito do réu, a priori ou de maneira abstrata. A análise deve ser contextual, ou seja, à luz da situação concreta trazida ao Juízo. Nada impede que o magistrado, em determinado caso concreto e tendo em conta sua sensibilidade, entenda necessário realizar o ato pessoalmente ou que o Tribunal declare algum interrogatório nulo, por violação a algum direito do réu. Isto pode acontecer em casos concretos e será plenamente admissível, afastando-se qualquer risco de se tornar mecânica a atividade judicial. Neste sentido, o que não nos parece admissível é o preconceito com a nova tecnologia.

Conforme pondera Barros (2003, p. 432), a atitude mais sensata é aquela que busque afastar tal preconceito, evitando posições extremadas que radicalizem a questão em torno da utilização do teleinterrogatório, uma vez que

[...] a rejeição liminar e absoluta à adoção do sistema não satisfaz às exigências de nosso tempo. Com efeito, o interrogatório judicial presencial não se tornou um ato processual arcaico. De fato, este é e continuará sendo o meio mais apropriado de se preservar a liberdade de manifestação do interrogando[52] [...]. Sem embargo disso, rejeitar ad nutum a realização do interrogatório on line é algo que extrapola a razoabilidade. Não se pode aprisionar o Judiciário nem marasmo constante, como se os magistrados não tivessem a mínima capacidade de conciliar adequadamente o uso progressivo de meios eletrônicos com o sagrado dever constitucional de zelar pelo fiel cumprimento das regras que compõem o devido processo penal [grifo nosso].

Com muita propriedade Pinto (2008, p.220) observa que a adoção do teleinterrogatório na prática processual penal não deve ser encarada como uma “[...] apressada adesão ao modernismo e às facilidades tecnológicas que tanto nos seduzem. É, antes, uma nova realidade que se abre, gostemos ou não, cujas conseqüências estão postas de forma irreversível”.

Contudo, é de se esperar que durante um bom período de tempo haverá que se conviver ainda com as críticas dos que se opõem ao teleinterrogatório, repetindo comportamentos passados que, posteriormente, com a prática forense, se revelaram insofismáveis erros históricos de descrentes diante dos avanços da modernidade (BEDÊ JÚNIOR; SENNA, 2009, p. 204).

Um desses casos mais clássicos envolveu a polêmica que se formou a partir de 1920 com a introdução das primeiras máquinas de escrever no Judiciário brasileiro (atualmente já completamente obsoletas pelo advento dos microcomputadores). Alguns juristas da época, “ciosos de princípios jurídicos só por eles vislumbrados”, firmaram posição contrária à utilização desses equipamentos sob o fundamento de que a redação de sentenças em máquinas de escrever (ao invés de redigidas de próprio punho pelo juiz) produziria insegurança quanto à autoria dos atos judiciais (ARAS, 2008, p. 309).

Ao publicar, em 1942, seus Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, então recém promulgado, e que em seu art. 388[53] expressamente contemplou a previsão do emprego facultativo da máquina de escrever, Antônio Luiz da Câmara Leal incluiu citação ao professor Jorge Americano, o qual criticava a novidade trazida pelo CPP. O fragmento apresentado a seguir exibe o teor dessa crítica; a referência a ela feita aqui vale para ilustrar a linha argumentativa utilizada pelo eminente professor para fundamentar sua posição de repulsa àquela inovação:

A sentença deve ser escrita do próprio punho, datada e assinada por seu prolator. São considerados essenciais estes requisitos porque servem para fiscalizar a autenticidade da sentença, e ao mesmo tempo asseguram o sigilo que sobre ela se deve manter até a respectiva publicação.

É essencial, para a dignidade da magistratura, que o juiz mantenha sigilo quanto à sua opinião sobre a demanda, até o momento de lavrar a sentença. Qualquer conversação sobre ela travada conduziria à discussão com as partes, com grave prejuízo da austeridade a até da honra do magistrado [...] Ora, permitir que a sentença seja datilografada é tolerar o seu conhecimento pelo datilógrafo, antes de publicada. É certo que a sentença, enquanto em estado de rascunho, pode ser modificada, e só adquire força depois de publicada. Basta uma hesitação da parte do juiz, em presença do datilógrafo, um erro que corrija, uma modificação que introduza, para criar no espírito desse auxiliar uma suspeita sobre a integridade do juiz ou, quando tal não se dê, trazer a público incidentes curiosos ou anedóticos quanto à maneira de lavrar a sentença.

[...] Eis porque parece mais sábio manter a tradição, segundo a qual o juiz lavra, data e assina a sentença do próprio punho (LEAL apud PINTO, 2008, p. 223-224, grifo do autor)

Mantidas as devidas proporções, verifica-se essa mesma construção semântica nas atuais críticas ao teleinterrogatório, ou seja, com argumentos pífios, sem estrita conexão com uma realidade fática, mais permeados por uma carga emotiva daquele que critica do que impregnados por um substancial teor jurídico que os fundamente. Como bem ponderou Aras (2008, p. 309), ao abordar o episódio da máquina de escrever, “[...] é hora de olhar para frente e não repetir erros do passado [...]. Felizmente, ninguém deu ouvidos a esses senhores da lei e hoje já podemos assinar digitalmente documentos, fazer petições eletrônicas e usar computadores...”.

À luz do seu regramento, relativamente recente, o teleinterrogatório com toda certeza se firmará e prosperará, e, muito provavelmente num futuro próximo terá sua aplicação ampliada como procedimento que contribui de modo efetivo para a concretização da eficiência e celeridade do processo penal.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem exageros, vive-se um frenesi da era digital. Em uma velocidade cada vez mais alucinante, e alavancadas pelas modernidades da tecnologia digital, quase que diariamente surgem novidades que, se nem sempre encantam pela elegância, sutileza ou sofisticação, invariavelmente impressionam pelo poder de seus recursos, pela eficiência operacional e, principalmente, pela sua capacidade inovadora ao disponibilizarem facilidades até então inimagináveis ou então por implementarem novas soluções que alteram radicalmente a sistemática das soluções até então vigentes, suplantando-as em muito, principalmente no que diz respeito à produtividade e à qualidade dos resultados que proporcionam.

Os avanços tecnológicos exercem verdadeiro fascínio sobre os indivíduos. Aparelhos celulares que fazem muito mais que simplesmente ligações telefônicas, “notebooks” e “palmtops” cada vez mais poderosos e ao mesmo cada vez mais reduzidos, televisão digital de altíssima definição, diminutos tocadores de música com qualidade sonora superior aos sistemas de som de alguns anos atrás, automóveis equipados com sistemas digitais que lhes conferem maior segurança e eficiência... A lista é praticamente infindável! “HDTV”, “Blu-ray”, “Bluetooth”, “GSM”, “CDMA”, “3G”, “GPS”, “MP3”, “iPOD”, são apenas algumas das siglas que remetem à essas tecnologias, e que praticamente já se incorporaram ao vocabulário pátrio. E isso sem mencionar os sistemas baseados na Internet e o acesso de alta velocidade proporcionado pelas conexões em banda larga, que tornam possível o acesso a informações e serviços praticamente ilimitados.

São inovações que, inegavelmente, proporcionam maior conforto e comodidade, criam facilidades que simplificam enormemente a vida cotidiana, e assim, se revelam muito mais adaptadas ao dinamismo das transformações sociais da modernidade. É por isso que tais sistemas e dispositivos estão hoje irreversivelmente entranhados em praticamente todas as áreas da atividade humana; tanto é verdade que algumas dessas inovações se tornaram indispensáveis para o exercício de determinadas atividades, que só se viabilizaram graças aos avanços da tecnologia digital.

Por todas essas razões, é praticamente impossível resistir ao crescente avanço dessas inovações tecnológicas da era digital, marca característica dos tempos que correm. Infelizmente, não é o pensa expressiva parcela do Judiciário brasileiro e importante corrente doutrinária formada por alguns expoentes do pensamento jurídico pátrio. Esses segmentos se identificam com uma já conhecida linha conservadora do Direito nacional, responsável desde há muito por certa letargia na renovação do pensamento jurídico, e que tem como resultado o retardo na evolução das técnicas e dos procedimentos.

Por intermédio dessa índole conservadora, é pródigo o cenário jurídico brasileiro em episódios que contribuíram sobremaneira para acentuar a morosidade da justiça do país; evocando um passado próximo, apenas para citar alguns exemplos, relembre-se da questão da introdução da estonotipia, das máquinas de escrever (como referido em passagem neste trabalho) e dos microcomputadores. Agora, a artilharia dessa corrente doutrinária se volta contra os sistemas de videoconferência, com o objetivo de inviabilizar o teleinterrogatório criminal.

Não que tal conservadorismo seja de todo negativo; como bem observa Juliana Fioreze (2008, p. 176), em seu pioneiro Videoconferência no Processo Penal Brasileiro: Interrogatório “On-line”, por um lado essa linha conservadora denota “[...] uma prudência desejável [...]”, uma vez que privilegia o princípio da segurança jurídica, o qual “[...] é imprescindível para evitar que a discricionariedade do juiz sobrepuje a norma escrita e, via de conseqüência, a vontade dos representantes do povo”. Contudo, o que é inadmissível é que se prossiga indefinidamente fazendo uma leitura cega da norma positivada, adotando antigas interpretações restritivas que se tornaram flagrantemente descontextualizadas em face da realidade do tempo presente, e perpetuando práticas que, por relegarem ferramentas modernas e inovadoras ao arrepio da razão, em verdade revelam a insensibilidade às transformações sociais, e a aversão míope aos progressos tecnológicos.

Em situações assim, esse conservadorismo arraigado invariavelmente acaba se tornando campo fecundo onde hábeis semeadores, empunhando a bandeira da proteção aos direitos fundamentais (neste estudo, em especial, aqueles que concretizam os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e contraditório, da dignidade humana), fazem florescer exageros e absurdos de toda a sorte (como, p.ex., o que pretende banir o procedimento do teleinterrogatório do sistema processual penal brasileiro), emperrando a modernização do Judiciário e impedindo uma prestação jurisdicional mais célere e eficiente. Exageros e absurdos dessa natureza devem ser evitados a todo o custo.

É imperativo ressalvar neste ponto, para que não restem quaisquer dúvidas a respeito, que não se faz aqui qualquer apologia que busque menosprezar o catálogo constitucional de direitos e garantias fundamentais, seja em relação à sua abrangência genérica, e muito menos no que tange à particular condição da pessoa do réu no processo penal (condição esta que se insere intimamente no objeto deste trabalho). Assumir tal posicionamento equivaleria a chancelar aqui verdadeiro atestado de estupidez, um indiscutível “suicídio ideológico”. Longe disso, e muitíssimo pelo contrário! Não há como olvidar que os direitos e garantias fundamentais constituem um dos pilares sobre os quais se assenta o Estado Democrático e Social de Direito brasileiro, o qual tem na realização desses direitos e garantias o seu veículo por excelência para a persecução de sua tarefa fundamental, qual seja, assegurar a justiça social. Finca-se pé aqui de forma categórica na posição inarredável quanto ao reconhecimento da supremacia constitucional desses direitos e garantias fundamentais como forma de um Estado fundado na dignidade da pessoa humana.

O que se advoga aqui, isso sim, e com veemência, é a necessidade, igualmente imperiosa, de que a realização desses princípios constitucionais se faça à luz da boa razão e na justa medida dos valores carreados pelo caso concreto, o que, na contenda que envolve o teleinterrogatório, infelizmente tem sido esquecido. Em outras palavras, é imprescindível que os operadores do Direito, ao sopesar os princípios constitucionais que inevitavelmente são postos em colisão quando da abordagem de questões palpitantes como a do teleinterrogatório, o façam sempre orientados pela proporcionalidade e razoabilidade, e não simplesmente lançando mão de soluções prontas, quase sempre fundadas em premissas deficientes já que, de forma equivocada, consideram como absolutos princípios sensíveis do ordenamento, para chegar à conclusão enganosa de que, por isso, tais princípios não admitiriam qualquer nível de flexibilização (como é o caso da dignidade humana!).

No caso particular deste estudo ficou inequivocamente demonstrado que é o teleinterrogatório a solução que prima pela indispensável proporcionalidade em face dos bens jurídicos colocados em colisão, na medida em que se revela como um procedimento adequado, necessário e estritamente proporcional para a compatibilização entre os direitos e garantias do acusado e os também legítimos direitos e interesses da coletividade (estes, consubstanciados na eficiência e celeridade processuais, na segurança, saúde, educação etc).

Nunca é demais relembrar que a proposta de um ordenamento jurídico decorreu da necessidade de se disciplinarem as relações entre os indivíduos, quando estes, “animais sociais” que são, optaram por viver em sociedade; por esse “contrato social” buscou-se estabelecer as condições que assegurassem minimamente a paz, mantendo a coesão do corpo social. E esse é um ponto que não se pode perder de vista. Obviamente que jamais poderá se desprezar o fato de que a sociedade deve ser também o veículo por intermédio do qual se realiza a plenitude da dignidade da pessoa humana, através da edificação de uma sociedade mais fraterna e mais justa, na qual se concretizem os elevados valores da justiça social.

Contudo, é preciso evitar que a persecução de tais valores se faça a qualquer preço, se lançando os operadores do direito numa busca frenética e pródiga em produzir entendimentos e soluções que depois se revelam desarrazoados e desproporcionais, se distanciando assim dos princípios que impulsionaram o surgimento das primeiras sociedades, e correndo-se o grave risco de caminhar na direção da desagregação social. A pacificação das relações entre os indivíduos, que o Estado deve perseguir e assegurar, exige, antes de tudo, bom senso e soluções na justa proporção do peso, no caso concreto, dos bens jurídicos conflitantes. Oportuno aqui lembrar o brilhante raciocínio de Luciano Oliveira, professor do mestrado em Ciência Política e da pós-graduação em Direito da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), que, ao tratar da questão da segurança pessoal como um direito humano expressamente assegurado (em tratados internacionais de direitos humanos, e, inclusive na Constituição Federal), afirma que

[...] a segurança pessoal é uma variável das mais importantes a serem consideradas nas estratégias de respeito aos direitos humanos. E segurança – tanto quanto saúde, educação, trabalho etc. – é um benefício que um Estado democrático deve aos seus cidadãos. Sem ela, voltamos ao chamado “estado de natureza” – que talvez seja menos idílico do que pintaram os contratualistas da nossa predileção. Ou seja: lemos tanto Rousseau, que esquecemos Hobbes... (OLIVEIRA, L., 2000).

Dos operadores do direito, quando da consideração dos avanços tecnológicos para aplicação na atividade jurisdicional, o que se espera é que o façam de espírito desarmado e mente aberta, o que, aliás, parecem ser atributos essências para o adequado exercício das atividades legislativa e judicante. É importante que se convençam de que tais inovações não são males dos tempos modernos, como se elas buscassem “[...] substituir o cérebro pelo computador [...]” e o “[...] pensamento pela digitação”[54]. É imperioso que entendam que sistemas, tais como o da videoconferência utilizado para implementar o teleinterrogatório, não são meras frivolidade superficiais e sem confiabilidade, típicas dos produtos descartáveis que subitamente se transformam em modismo consumista para logo em seguida desaparecerem; pelo contrário, são o resultado de vultosos investimentos em pesquisa e desenvolvimento da mais moderna tecnologia digital.

A incorporação desses sistemas às práticas processuais não deve ser vista, então, como arrebatada adesão ao modernismo inconseqüente e às facilidades e confortos tecnológicos que a todos seduzem, como afirmado no início desta seção. ”É antes, uma nova realidade que se abre, gostemos ou não, cujas conseqüências estão postas de forma irreversível” (PINTO, 2008, p. 220).

A tecnologia da informação, que faz uso de sistemas digitais de processamento e de comunicação de dados, sons e imagens cada vez mais poderosos e eficientes, transformou o mundo numa verdadeira “aldeia global”. Aury Lopes Jr. (2005, p. 6) é preciso quando afirma que

Vive-se numa sociedade em que a velocidade, inegavelmente, é um valor. O ritmo social cada vez mais acelerado impõe uma nova dinâmica na vida de todos. Que dizer então da velocidade da informação? Agora passada em tempo real, via internet, sepulta o espaço temporal entre o fato e a notícia. O fato, ocorrido no outro lado do mundo, pode ser presenciado virtualmente em tempo real. A aceleração do tempo nos leva próximos do instantâneo, com profundas conseqüências na questão tempo/velocidade. Também encurta, ou mesmo elimina, distâncias.

E preciso que aqueles segmentos mais conversadores do cenário jurídico nacional se rendam a essas evidências, uma vez que o avanço dessa onda tecnológica é irrefreável, e certamente alcançará todas as searas do Direito.

Tais evidências se fazem sentir por toda parte, em todos os setores da atividade humana, até mesmo nos mais recônditos cantos do planeta, e por certo não haverá de ser diferente com o Judiciário brasileiro.

Uma demonstração inequívoca do que aqui se afirma: em seu belíssimo Êxodos, o premiado fotógrafo mineiro Sebastião Salgado, reconhecido e aclamado internacionalmente, apresenta um documentário fotográfico primoroso com imagens que, a um só tempo, encantam pela beleza e sensibilidade, e perturbam pela crueza escancarada e sem retoques com que exibem aquilo que é um dos flagelos humanos dos tempos modernos. Ao longo de 7 anos, Salgado percorreu mais de 40 países documentando através da fotografia o fenômeno global dos movimentos migratórios populacionais, verdadeiras hordas de retirantes que deixam sua terra natal fugindo da guerra, da fome e da miséria, em busca de dias melhores. Um documentário que o próprio Salgado define como a “história da humanidade em trânsito”. Pois bem, na introdução de Êxodos, onde relata suas impressões colhidas durante o período em que foi testemunha ocular do movimento dos retirantes e dos campos de refugiados, Salgado escreve em dado momento:

Aonde quer que eu fosse o impacto da revolução da informação se fazia presente. Há não mais de meio século o mundo podia afirmar que “não sabia” da ocorrência do Holocausto. Hoje, a informação – ou ao menos a ilusão da informação – está disponível para praticamente todas as pessoas. Mesmo assim, as conseqüências de “saber” nem sempre são previsíveis. A televisão informava o mundo acerca dos massacres em Ruanda ou das expulsões em massa de bósnios, sérvios e kosovares quase simultaneamente ao desenrolar desses fatos, o que não impedia que esses horrores prosseguissem. Por outro lado, quando se pensa que os norte-americanos têm acesso à televisão francesa, os mexicanos à americana, os albaneses à italiana, e os vietnamitas à CNN ou à BBC, tamanho é o impacto das imagens permeadas pela idéia de consumo que fica difícil criticar esses povos por sonharem com a emigração (SALGADO, 2000, p. 10).

Das palavras de Sebastião Salgado, acima, evidencia-se que o fenômeno da abrangente disseminação e penetração da era da informação, e da velocidade com a qual esta varre o globo, não passou despercebido pelas sensíveis lentes do festejadíssimo fotógrafo brasileiro. Esse fenômeno descrito por Salgado em seu livro, ainda que à época se revestisse de caráter extraordinário (Êxodos foi publicado em 2000), não deve causar surpresa nos dias atuais, já que os sistemas baseados nas tecnologias da informação e comunicação (ou simplesmente, TIC), nos quais se inserem os sistemas digitais de videoconferência, vêm experimentado forte impulso desde o final do século passado[55], de maneira que hoje

A interconexão das pessoas, facilitada pela convergência tecnológica e pelo progresso das TIC, não encontra igual na história da humanidade. O ciberespaço é um conceito inteiramente novo que traduz uma realidade inimaginável há pouco mais de cinqüenta anos [...]. É hora de rever conceitos e assimilar as novas situações propiciadas pelas tecnologias da informação. Interagir, mesmo à distância, é a regra na sociedade cibernética (ARAS, 2008, p. 309).

Diante de tantas evidências cabais é essencial que os adversários do teleinterrogatório se conscientizem de que é preciso abandonar as críticas ácidas e afetadas, fundadas muito mais na paixão dogmática do que na racionalidade ponderada e lúcida, e que só fazem construir verdadeiros “cavalos de batalha” em torno dos significados dos termos “presença” e “comparecer” (ARAS, 2008, p. 309).

Ao invés de insistir nessa linha argumentativa, melhor seria conjugar esforços na busca da solução que se revele, no caso concreto, como a melhor resposta possível, e que só é possível alcançar pela via da proporcionalidade (VIZZOTTO, 2006, p. 152). Na abordagem realizada ao longo deste estudo, ficou claro que o teleinterrogatório se consubstancia nessa melhor resposta possível, como nova forma de realizar o procedimento do interrogatório criminal, pela agregação da tecnologia digital da videoconferência, sem, contudo, alterar a essência daquele ato processual. É por essa razão que o

Fundamental, portanto [...], não é difundir “bolsões de resistência mental” contra uma determinada “forma”, senão saber defini-la com precisão, delimitá-la, para dela extrair o máximo de utilidade possível e sem abusos. O planeta globalizou-se, os continentes já não tem fronteiras; por que só a Justiça deve ficar excluída de toda essa revolução comunicacional? (FIOREZE, 2008, p. 342-343, grifo da autora).

O jornalista Marcelo Coelho, em seu artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em março de 2006 (Duas ou três idéias sobre a internet), desenvolve uma análise interessante e muito oportuna em relação os efeitos da Internet sobre o comportamento cotidiano das pessoas.

A partir da observação da forma como as pessoas interagem com algumas das possíveis facilidades decorrentes da utilização das tecnologias digitais de informação e comunicação (Internet, webcams, telefonia celular etc...) e do contexto em que se dá essa utilização (nos lares, nas escolas, nos presídios, no trabalho, nas ruas), Coelho conclui que os avanços tecnológicos acabaram por subverter os significados dos termos “presença” e “ausência”.

É o que acontece com os pais que, através de webcams instaladas nas creches, acompanham seus bebês pela Internet (situação análoga ocorre com os presidiários, cujo comportamento é monitorado à distância diretamente a partir de suas celas); com os alunos que se dispersam em sala de aula sob o efeito dos torpedos, jogos e outros recursos de seus poderosos celulares; com os funcionários que desperdiçam parte de seu tempo produtivo em frente aos computadores da empresa, em acessos à Internet que nada tem haver com o trabalho.

Torna-se evidente, conforme pontua Coelho, que hodiernamente, seja no trabalho, seja nas escolas,

[...], a presença física do funcionário ou do aluno não garante nada no que diz respeito à sua dedicação real.

Do mesmo modo, vai ficando antiquada a idéia de que guardar alguém entre quatro paredes equivale a extinguir sua periculosidade. [...] aos poucos, a liberdade humana deixa de estar associada ao poder de entrar e sair de um lugar qualquer. Mais do que encarcerar um ser humano dentro de um cubículo, privá-lo da liberdade hoje em dia significa desconectá-lo, isolá-lo do espaço virtual.

[...]

Por toda parte, circulam pessoas com fones de ouvido, ligadas a um iPod [...], mentalmente alheios ao espaço físico que compartilham com seus semelhantes. Com o celular não é diferente. (COELHO, 2006).

Mais do que simplesmente darem concretude aos já propalados efeitos do progresso tecnológico (a saber, o encurtamento das distâncias e a impressionante velocidade com que as informações trafegam entre os mais longínquos pontos do globo), as situações descritas por Coelho descortinam um desdobramento bem mais sutil, mas não por isso, menos significativo: o fato de que, a partir dessas inovações tecnológicas

[...] os próprios conceitos de “presença” e de “ausência” se tornaram problemáticos. Uma pessoa pode estar sentada ao nosso lado e ser, simultaneamente, inencontrável. Paralelamente, os pais que se ausentam de uma escolinha não deixaram de estar, o tempo todo, plugados nas atividades de seus filhos.

O desaparecimento da distância, assegurado pelos meios eletrônicos, faz com que ninguém, na verdade, esteja totalmente separado nem totalmente próximo dos seus semelhantes; não está ausente, quando se afasta, nem presente, quando está junto (COELHO, 2006, grifo nosso).

E a essência desse brilhante raciocínio do jornalista Marcelo Coelho está também presente no pensamento do genial Vladimir Aras (2008, 309), aspecto que se faz notório quando este sustenta que

“Estar presente” hoje não significa apenas estar no mesmo ambiente físico. [...] A telepresença é também um “estar aqui” real. O ciberespaço permeia todos os ambientes do planeta onde exista um computador, um telefone celular, um palmtop ou um equipamento eletrônico de comunicação. [...] No mundo cibernético, “estar aqui” é também “estar aí” e “estar lá”.

Em face de fundamentos tão cristalinos e insofismáveis, aos operadores do direito, e, principalmente, àqueles que se colocam sistematicamente contra o teleinterrogatório cumpre ter bom senso e olhar voltado para a frente. Com serenidade, abandonando os caprichos dogmáticos e superando o “ceticismo tecnológico”, é preciso avançar e não repetir os erros do passado, na convicção de que a tecnologia, quando empregada com racionalidade, converte-se em ferramenta valiosa na persecução dos ideais de cidadania, justiça e igualdade com que toda a sociedade brasileira aspira. Enfim, é chegado o tempo da travessia, tal como referenciada pela epígrafe nas primeiras páginas deste trabalho. E para fazê-la, é preciso ter coragem e ousadia, sob o risco de ficar o povo brasileiro à margem de si próprio...


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VIZZOTTO, Vinícius Diniz. Restrição de direitos fundamentais e segurança pública: uma análise penal-constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, ano 14, n. 57, p. 132-154, out./dez. 2006.


Notas

[1] Art. 8º, CLT: As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. (BRASIL, 2010d, p. 875-876).

[2] Art. 4º, LICC: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (BRASIL, 2010c, p. 131).

[3] Art. 126, CPC: O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (BRASIL, 2010e, p. 398).

[4] Interessante observar que a partir desse entendimento de Alexy é plausível inferir, subjacente a ele, a possibilidade de relativização dos princípios colidentes, visando harmonizá-los para a solução da colisão no caso concreto. Essa possível relativização será determinante na fundamentação da constitucionalidade do teleinterrogatório, que se empreenderá mais a frente neste estudo (vide seção 4.3 infra).

[5] Na visão de Alexy, a necessidade de um modelo diferenciado se verifica particularmente em relação às regras as quais podem experimentar restrições decorrentes de cláusulas de exceção que lhes sejam impostas para a solução de um caso concreto. Em face da cláusula de exceção, a regra em questão perde, para a solução do caso, seu caráter definitvo estrito (ALEXY, 2008, p. 104).

[6] Art. 5º, LIV, CR/88: Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. (BRASIL, 2010a, p. 10).

[7] Art. 5º, LVI, CR/88: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. (BRASIL, 2010a, p. 10).

[8] Art. 5º, LV, CR/88: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório [...].(BRASIL, 2010a, p. 10).

[9] É o caso, por exemplo, dos arts. 261, 263 e 265, do CPP.

[10] Art. 5º, XXXIX, CR/88: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. (BRASIL, 2010a, p. 9).

[11] Art. 5º, LV, CR/88: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. (BRASIL, 2010a, p. 10).

[12] Humberto Ávila define a idéia de fim como um “[...] ambicionado resultado concreto (extrajurídico); um resultado que possa ser concebido na ausência de normas jurídicas e de conceitos jurídicos, tal como obter, aumentar ou extinguir bens, alcançar determinados estados ou preencher determinadas condições, dar causa a ou impedir a realização de ações. [...] Fim significa um estado desejado de coisas” (ÁVILA, 2008, p. 163, grifo do autor).

[13] Juntamente com aquela função ordenadora, o Estado Democrático de Direito abarca agora além de uma função promovedora do Direito (decorrente da função social do Estado e, portanto, própria do modelo de Estado Social), também a “função de potencial transformação social” (STRECK, 2007).

[14] Nunca é demais destacar que é a própria Carta Magna do Brasil que estabelece, em seu art. 3º, que o Brasil é uma República que tem como objetivos fundamentais a erradicação da pobreza, a construção da justiça social etc.

[15] Art. 37, CR/88: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]. (BRASIL, 2010a, p. 22).

[16] Art. 5º, XXXV, CR/88: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito (BRASIL, 2010a, p. 9).

[17] O sistema do livre convencimento motivado está consagrado no art. 155, CPP, na redação que passou a ter a partir da reforma introduzida pela Lei 11.690/08, a saber: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” (BRASIL, XXXX, p. XX, grifo nosso).

[18] Art. 5º, LVI, CR/88: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (BRASIL, XXXX, p. XX). A reforma do CPP, patrocinada pela Lei 11.690/08, imprimiu ao seu art. 157 redação que reproduz aquela norma constitucional (Art. 157, CPP: Art. 157: São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais (BRASIL, XXXX,  p. XX).

[19] Art. 260, CPP: Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença (BRASIL, 2010b, p. 638).

[20] Art. 5º, LXIII, CR/88: o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado [...] (BRASIL, 2010a, p. 10).

[21] Art. 186, CPP: Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa (BRASIL, 2010b, p. 633-634).

[22] Art. 93, IX, CR/88: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação (BRASIL, 2010a, p. 38).

[23] Art. 792, caput, CPP: As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados (BRASIL, 2010b, p. 678).

[24] Art. 185, CPP: O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. § 1º O interrogatório do réu preso será  realizado, em sala própria, no estabelecimento em que estiver recolhido, desde que estejam garantidas a segurança do juiz, do membro do Ministério Público e dos auxiliares bem como a presença do defensor e a publicidade do ato. [Redação dada pela Lei nº 11.900, de 2009] § 2º  Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades: [Redação dada pela Lei nº 11.900, de 2009] I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento; [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código; [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] IV - responder à gravíssima questão de ordem pública. [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] § 3º Da decisão que determinar a realização de interrogatório por videoconferência, as partes serão intimadas com 10 (dez) dias de antecedência. [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] § 4º Antes do interrogatório por videoconferência, o preso poderá acompanhar, pelo mesmo sistema tecnológico, a realização de todos os atos da audiência única de instrução e julgamento de que tratam os arts. 400, 411 e 531 deste Código. [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] § 5º Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por videoconferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum, e entre este e o preso. [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] § 6º A sala reservada no estabelecimento prisional para a realização de atos processuais por sistema de videoconferência será fiscalizada pelos corregedores e pelo juiz de cada causa, como também pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil.[Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] § 7º Será requisitada a apresentação do réu preso em juízo nas hipóteses em que o interrogatório não se realizar na forma prevista nos §§ 1º e 2º deste artigo. [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] § 8º Aplica-se o disposto nos §§ 2º, 3º, 4º e 5º deste artigo, no que couber, à realização de outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, e inquirição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido. [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] § 9º Na hipótese do § 8º deste artigo, fica garantido o acompanhamento do ato processual pelo acusado e seu defensor. [Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009] (BRASIL, 2010b, p. 633, grifo nosso).

[25] Art. 217, CPP: Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. [Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008] Parágrafo único. A adoção de qualquer das medidas previstas no caput deste artigo deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram. [Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008] (BRASIL, 2010b, p. 635, grifo nosso).

[26] Art. 9º, § 3º: Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais [...]. (BRASIL, 1992a, grifo nosso).

[27] Art. 7º, § 5º: Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, á presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais [...]. (BRASIL, 1992b, grifo nosso).

[28] Mesmo existindo desde os anos 70, o conceito da videoconferência na forma como a conhecemos hoje só foi proposto em agosto de 1992 (“serviço de teleconferência audiovisual de conversação interativa que provê uma troca bidirecional, e em tempo real, de sinais de áudio (voz) e vídeo (imagem) entre grupos de usuários em dois ou mais locais distintos”), através da Recomendação F.730 do ITU-T (International Telecommunication Union – Telecommunication Standardization Sector), e posteriormente substituído pela Recomendação F.702, de julho de 1996, que a incluiu entre os serviços de telecomunicação não telefônicos, na subcategoria de serviços de conferência multimídia (FIOREZE, 2008, p. 51).

[29] Art. 8º, 2: Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor (BRASIL, 1992b, grifo nosso).

[30] Vide seção 4.2 infra.

[31] O acompanhamento do teleinterrogatório in loco pelo defensor é um direito assegurado ao réu na sistemática legalmente adotada para a realização desse procedimento, conforme deflui da redação do § 5º do art. 185, CPP.

[32] Em excelente artigo publicado no site do Complexo Jurídico Damásio de Jesus, o próprio Bechara aduz, complementando esse entendimento, que o direito de presença “[...] implica o direito de estar presente nos atos processuais, de participar ativamente durante a sua realização e de ter entrevista, pessoalmente, com o Juiz de Direito, a fim de que este possa extrair suas valorações e impressões pessoais” (BECHARA, 2005).

[33] De acordo com Aras, a ampla defesa pressupõe as seguintes garantias mínimas ao réu: “[...] a) o conhecimento claro e prévio da imputação; b) a faculdade de apresentar contra-alegações; c) a faculdade de acompanhar a produção da prova; d) o poder de apresentar contraprova; e )a possibilidade de interposição de recursos; f) o direito a juiz independente e imparcial; g) o direito de excepcionar o juízo por suspeição, incompetência ou impedimento; h) o direito a acusador público independente; e i) o direito a assistência de defesa técnica por advogado de sua escolha” (ARAS, 2001).

[34] Aras novamente leciona que o contraditório tem como corolários: “[...] a) a igualdade das partes ou isonomia processual; b) a bilateralidade da audiência e a ciência bilateral dos atos processuais (audiatur et altera pars); c) o direito à ciência prévia e a tempo da acusação, podendo o acusado "dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa"; d) o direito à ciência precisa e detalhada dessa acusação; e) direito à compreensão da acusação e do julgamento, ainda que por meio de tradutor ou intérprete; f) o direito à ciência dos fundamentos fático-jurídicos da acusação; g) a oportunidade de contrariar a acusação e de apresentar provas e fazer ouvir testemunhas; h) a liberdade processual de especificar suas provas e linha de defesa, escolher seu defensor e mesmo de fazer-se revel” (ARAS, 2001).

[35] Art. 5º, XXXV, CR/88: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. (BRASIL, 2010a, p. 9).

[36] Art. 2º: Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: [...] IV – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial [...] (BRASIL, 2010f, p. 1565).

[37] Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal [...] (BRASIL, 2010g, p. 1674).

    Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de 1 (um) a  2/3 (dois terços) (BRASIL, 2010g, p. 1674).

[38] Vide notas 33 e 34 supra.

[39] Art. 563, CPP: Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa (BRASIL, 2010b, p. 662).

[40] Art. 564, CPP: A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: [...] III - por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: [...] e) a citação do réu para ver-se processar, o seu interrogatório, quando presente, e os prazos concedidos à acusação e à defesa; [...] g) a intimação do réu para a sessão de julgamento, pelo Tribunal do Júri, quando a lei não permitir o julgamento à revelia; [...] IV - por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato (BRASIL, 2010b, p. 662).

[41] Ao abordar a questão do teledepoimento (utilização de videoconferência para inquirição de peritos, vítimas ou testemunhas) em face do direito ao contraditório do réu, o sempre preciso Vladimir Aras ressalta que é “[...] certo que a dinâmica de perguntas e reperguntas não sofre qualquer limitação no teledepoimento. Do mesmo modo, o juiz não deixa de exercer controle sobre influências externas ao depoimento” (ARAS, 2008, p. 294). Com os necessários ajustes contextuais decorrentes da natureza distinta dos procedimentos (depoimento x interrogatório), é evidente que esse mesmo entendimento aplica-se ao procedimento do teleinterrogatório.

[42] Art. 572, CPP: As nulidades previstas no art. 564, Ill, d e e, segunda parte, g e h, e IV, considerar-se-ão sanadas: [...] II - se, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim (BRASIL, 2010b, p. 572).

[43] Art. 1º, CR/88: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana [...] (BRASIL, 2010a, p. 7).

[44] Destaque-se neste ponto, por necessário, que a eficiência do processo é também uma concretização da dignidade da pessoa do réu, já que a este também é assegurado o direito de que o processo em que é parte tenha duração razoável e que nele se utilizem os meios que garantam a celeridade da tramitação processual. Em suma, também a dignidade da pessoa do acusado restará ofendida pela inobservância do princípio da eficiência do processo.

[45] Art. 5º, LIII, CR/88: ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (BRASIL, 2010a, p. 10).

[46] Art. 5º, LX, CR/88: a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (BRASIL, 2010a, p. 10).

[47] Art. 93, CR/88: Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: [...]; IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação (BRASIL, 2010a, p. 37-38).

[48] Na modalidade tradicional do interrogatório, o acompanhamento da audiência (p.ex., por parte de familiares do acusado) pode exigir longas viagens, demandando recursos muitas vezes escassos, o que acaba por inviabilizar tal acompanhamento (ARAS, 2008, p. 279).

[49] Art. 399, CPP: Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). [...] § 2º: O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008). (BRASIL, 2010b, p. 648).

[50] Cumpre relembrar neste ponto que a abordagem ao longo deste estudo esteve sempre focada no teleinterrogatório, seu objeto; contudo, a tecnologia de videoconferência pode ser igualmente utilizada com vantagens em uma série de outras intervenções processuais (como o teledepoimento, para oitiva de vítimas, testemunhas e peritos, ou a tessustentação, para a sustentação oral remota por advogados, defensores e memsbor do MP, dentre outras) (ARAS, 2008, p. 272).

Consideradas essas modalidades de atos processuais, as vantagens advindas da utilização de sistemas de videoconferência crescem quase que exponencialmente; contudo, tal consideração, conforme relembrado, foge ao objeto por excelência deste trabalho.

[51] Como nas palavras de René Ariel Dotti, um dos mais ferrenhos opositores do teleinterrogatório, ao defender a importância da presença física do réu no interrogatório tradicional, sustentando que “É preciso ler nos lábios as palavras que estão sendo ditas; ver a alma do acusado através dos seus olhos; descobrir a face humana que se escondera por trás da máscara do delinqüente” (DOTTI, 2008, p. 492).

[52] Tanto é assim, que o art. 185, § 2º, CPP deixa claro que o teleinterrogatório tem caráter excepcional, supletivo, e será utilizado somente nas hipóteses de admissibilidade ali previstas; em todo o caso, a regra é a realização do interrogatório em sua modalidade tradicional.

[53] Art. 388, CPP: A sentença poderá ser datilografada e neste caso o juiz a rubricará em todas as folhas (BRASIL, 2010b, p. 647). (Obs.: esta redação se mantém inalterada até os dias atuais).

[54] Numa alusão aos pretensos temores que René Ariel Dotti (DOTTI, 2008, p.492), um dos mais fervorosos críticos do teleinterrogatório, manifesta em relação aos efeitos da tecnologia na atividade jurisdicional.

[55] A TV digital, que agora começa a se popularizar, é uma de suas mais recentes inovações.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULO, José Manuel de Abreu. A constitucionalidade do teleinterrogatório no processo penal brasileiro . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4030, 14 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30205. Acesso em: 26 abr. 2024.