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Soberania popular e a limitação injustificada quanto à iniciativa nos Projetos de Emendas Constitucionais

Soberania popular e a limitação injustificada quanto à iniciativa nos Projetos de Emendas Constitucionais

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Todo o poder necessita de limites. O povo se submete aos limites que ele próprio estabeleceu através de seus representantes na Constituinte. A impossibilidade da iniciativa popular para PECs se mostra totalmente injustificável.

RESUMO: Todo o poder necessita de limites. O Poder Constituinte Originário possui limites. Temos na Constituição do Brasil limites circunstanciais, temporais, materiais e até implícitos ao poder de reforma. Tudo e todos devem obediência a esse sistema de proteção do Estado Democrático de Direito. Assim, submetendo-se também o povo às tais limitações, torna-se forçoso admitir ser injustificável a impossibilidade de iniciativa popular nos projetos de emendas constitucionais.

PALAVRAS-CHAVE: Poder Constituinte, cláusulas-pétreas, coto vedado, Ulisses e as Sereias.

Introdução. 1. Contribuições da filosofia. 2. Povo. 3. Sufrágio e voto. 4. A questão da maioria. 5. O Poder Constituinte 5.1Limites do Poder Constituinte a) Limites formais. b) limites circunstanciais.  c)  Limites materiais expressos. 5.3. Limites materiais implícitos e a ideia de Coto vedado. 7. Instrumentos de exercício de Soberania popular na Constituição Federal 8. Conclusão. 9. Referências bibliográficas.


Introdução

O Estudo da Soberania enquanto regra matriz de uma Democracia pode ser realizado sob dois aspectos, interno – soberania popular e externo – soberania nacional. O presente trabalho abordará o aspecto interno.

O conceito de soberania popular encontra seus elementos no parágrafo primeiro do artigo 1º da Constituição Federal e expressamente no art. 14. Trata-se de um poder fundamentado na vontade popular, que encerra valores estruturantes do próprio Estado Democrático de Direito.

O presente trabalho tem início com uma visão filosófica do tema, tendo como pano de fundo as contribuições dos filósofos Antonio Enrique Pérez Luño, que analisa de forma muito interessante a soberania popular sob a ótica da linguagem, o que também o faz quando analisa o “povo”. A seguir, o Poder Constituinte é examinado partindo-se das concepções de Sieyés, e a necessária participação popular na formação de um novo Estado, para então serem analisados os limites tanto do poder originário quanto do reformador. Ora, se o povo, titular do poder constituinte originário, através de seus representantes legitimamente eleitos, resolve estabelecer limites à atuação legislativa para a reforma do texto constitucional, não é razoável que ele próprio não se submeta a tais limites, pois o que se visa proteger é próprio Estado Democrático de Direito. Através das lições de Juan Carlos Moreso, a ideia de coto vedado trazida ao estudo é bastante oportuna, pois vem esclarecer que existe um limite mínimo (núcleo duro, mesmo que implícito) para além do qual não pode o legislador atuar. Justificativa também encontrada com a analogia que faz Jonh Elster entre “Ulisses e as Sereias” da mitologia grega e os limites do poder constituinte referindo-se a um pré-compromisso com as gerações futuras. Assim, a conclusão natural passa a ser no sentido de não haver justificativa razoável para que, por iniciativa popular, não possam ser apresentados projetos de emenda constitucional. Mesmo porque, o poder da criatura não pode ser maior que o do criador.


1.    Contribuições da filosofia

Não é possível entender a abrangência do sentido de soberania popular, sem uma análise sob o enfoque filosófico, já que existe um intrínseca relação entre a soberania e o poder. Temas afeitos à Ciência Política.

Segundo Machado (2002)[1], muito embora tenha sido Jean Bodin, no século XVI, o grande sistematizador do conceito de soberania, o termo já existia, pelo menos desde o século XII no direito canônico.

Para Bodin a soberania é entendida como uma condição indispensável para a existência da sociedade política, uma vez que é a única forma de poder capaz de assegurar ao grupamento social a necessária unidade e coesão.[2]

Essa condição indispensável vincula-se ao próprio conceito de poder. O detentor da soberania deve estar acima das leis civis com total liberdade de ação no direito positivo, podendo criar, alterar ou anulá-las sem necessidade de qualquer consentimento. No entanto, esse poder superior, caracterizado como perpétuo, irrevogável, uno, independente, incondicionado, ilimitado não deve ser arbitrário, submetendo-se a pouquíssimos limites.[3] Muitos deles questionáveis, pois deixam ao arbítrio do próprio soberano a valoração do que é justo:

Se o príncipe soberano não tem poder de infringir as leis naturais, postas por Deus, do qual ele é imagem, não poderá também tomar o bem de outrem, sem uma causa que seja justa e razoável.[4]

A teoria de Jean Bodin vem justificar, portanto, as monarquias absolutistas. (Os monarcas eram chamados soberanos em consideração ao poder supremo que detinham).

Com os ideais liberais da Revolução Francesa, é com Rousseau, que ocorre a ruptura desse paradigma. Rousseau retira o poder que está concentrado nas mãos do soberano e o transfere para o povo. A legitimidade do governo ou da lei está baseada no consentimento dos governados.

A soberania para Rousseau é o exercício da vontade geral, possuindo os seguintes atributos: é intransmissível, inalienável, indivisível, insuscetível de representação ou limitação. Cada cidadão tem uma parcela do poder que exerce diretamente.

A Revolução Francesa é um marco na construção do constitucionalismo moderno. A Declaração do Homem de 1789 e a Constituição americana de 1791 ficaram marcadas como divisores de águas para o constitucionalismo e para transferência da soberania do monarca para o seus súditos. Prevaleceu o ideal de que o Estado teria que ter limitações jurídicas e que a população teria direitos invioláveis, incluindo neste rol o direito de sufrágio, que será a seguir examinado.

Na atualidade, ao discorrermos sobre o tema soberania popular é importante citar o trabalho Soberania popular y Estado de Derecho [5] de Antonio Enrique Perez Luño, filósofo espanhol. No citado estudo a seguir brevemente descrito, o autor aborda o tema sob o aspecto da linguagem.

Assim o faz partindo da constatação de que o termo soberania popular tem sido utilizado, ao longo da história, com vários significados, cheio de conotações ideológicas, muitas vezes em auxílio a demagogos e déspotas. Dessa forma, visando “limpar” dos discursos as noções ambíguas ou inúteis, esse autor propõe um estudo metodológico[6] de análise linguística do termo, contribuindo para esclarecer a pluralidade de significados acerca da soberania popular.

Então, seguindo a metodologia apresentada, o autor realiza a análise sintática, semântica e pragmática da expressão soberania popular:

Propondo uma análise sintática e, considerando o que ele denomina de dimensão genética, a expressão soberania popular se apresenta como um casamento infeliz de dois termos em princípios contraditórios.  De um lado a palavra que traduz a linguagem política do absolutismo e especialmente com Jean Bodin, (onde o termo soberania é definido como poder absoluto e perpétuo de uma República), ligado ao poder de um único homem. 

E, de outro lado, a palavra popular ligada a ideia de coletivo, de noção de povo. Nesse sentido, Rousseau teve um papel importante na democratização da ideia de soberania popular quando estabeleceu o conceito moderno de poder soberano como vontade geral. “Esta vontade geral como que a noção absolutista de soberania, será superior e transcendente às vontades individuais, consistindo num patrimônio inalienável do povo que terá sua titularidade e exercício.” [7]             

Realizando uma análise semântica, o autor vai considerar o usos linguísticos do termo soberania popular. Propõe então, agrupar os distintos significados do termo soberania popular em quatro categorias: I) Soberania popular como categoria lógica ou política; II) soberania no sentido descritivo e prescritivo; III) Soberania popular como titularidade ou exercício de poder e IV) Conceito de povo na formação da expressão soberania popular.

I) Soberania popular como categoria lógica ou política: nesta categoria, os significados de soberania popular procuram dar respostas para duas questões que se colocam:

Uma de natureza lógica e metodológica em que se busca a resposta para questões acerca do direito e política (como conhecê-los) e qual a origem de seus princípios. A resposta oferecida para ambas é que o direito e a política são problemas da ciência a que se chega mediante o exercício da razão (postura intelectualista) ou em termos voluntaristas enquanto produtos de atos de vontade e de decisão.

Com relação a natureza política em que se busca a resposta para qual a origem do poder, ou seja, quem deve mandar, o autor aponta a posição de Hegel que dizia ser absurda a pretensão de que todos os homens devam participar, porque nem todos entendem de tudo (sentido aristotélico: que reserva o poder às pessoas que possuem determinadas qualidades) e a posição democrática na qual o poder é reservado ao povo, cuja participação é essencial.

II) Soberania popular no sentido descritivo e prescritivo.: A discussão proposta gira em torno de que o termo soberania popular é empregado para designar algo que se espera que exista ou ao que se crê que deveria existir, ou seja, no plano doutrinário (um dever ser da sociedade) e no plano da práxis política (desempenhando um papel na mecânica política do País). Neste ponto, se desenvolve a ideia de que o povo está investido do poder constituinte (poder de estabelecer positivamente a Constituição do Estado). Isso se verifica claramente quando da leitura dos preâmbulos de várias Constituições, inclusive a brasileira[8].

O autor chama a atenção para o fato de que tais afirmações contidas nesses preâmbulos constitucionais não implica que na realidade exista uma posse efetiva da soberania pelo povo. Essas declarações, muitas vezes, tem um valor retórico, inserindo-se plenamente nas fórmulas constitucionais que Karl Lowenstein denomina semânticas. [9]

III) Soberania popular como titularidade ou exercício de poder:  A questão a ser enfrentada agora é que o termo soberania popular pode significar, em outras casos, a defesa da tese de que o povo não tem só a titularidade do poder constituinte do Estado , mas também o exercício do poder constituído.

Para o autor, a doutrina medieval tentou construir uma ponte entre a titularidade e o exercício do poder mediante a ficção da representação. Dessa forma, o povo titular, delegava a um príncipe seu próprio poder. Se tratando de uma presunção júri et de jure, tal doutrina, a ser privada de uma autentica base democrática, por ignorar a consulta popular, permitiu que o absolutismo monárquico fosse legitimado mais tarde como baseado numa representação permanente e irrevogável , transmitida por via hereditária ao soberano e aos seus súditos.

Já Rousseau defendia que a soberania não poderia ser representada pela mesma razão que não poderia ser alienada. Enquanto vontade geral não pode ser traduzida numa representação porque ou é uma coisa ou outra. Para Rousseau, a única solução coerente para a efetiva soberania popular é a democracia direta, que implica no reconhecimento estar no povo a titularidade e exercício do poder.

Contemporaneamente, filósofos como Burdeau estudaram o alcance da diferença entre soberania como titularidade ou como exercício de poder no marco das relações entre o que se denomina democracia governante e democracia governada.

A constatação é que tem se ocorrido uma transição da democracia governada à democracia governante diante da crescente utilização dos instrumentos de poder por parte do povo. Esse fenômeno também pode ser explicado pela crise de legitimidade que permeia toda a atividade parlamentar.

O que interessa realçar é o alcance diferente que assume o termo soberania popular segundo se queira significá-la como titularidade ou exercício do poder, formas de democracia direta ou representativa ou mesmo participativa.

IV) Quanto à quarta categoria de significados de soberania popular, o conceito de povo na formação da expressão soberania popular será melhor analisado a seguir ainda,  inclusive,  sob a ótica de Antonio Enrique Perez Luño.

Quanto à análise pragmática da soberania popular

O exame dos significados da expressão soberania popular deve completar-se com a análise no plano pragmático (sua função na práxis política). Deste ângulo a soberania popular aparece antes de tudo como um princípio de legitimidade.  Constitui um denominador comum de todas as referências linguísticas do termo. Existe então, uma coincidência inicial nos diferentes usos da expressão soberania popular em ressaltar que o poder só é legítimo quando procede do povo e se baseia em seu consentimento.


2.    Povo

No plano filosófico, seguindo os ensinamentos de Luño, o termo povo entendido como totalidade orgânica se expressou nas noções de volksgeist e volksseele (espírito e alma popular) de Hegel, Shelling e a escola histórica. No entanto, é de se notar que o emprego do termo povo nesta concepção impulsionou com vigor mais as formas políticas autoritárias do que democráticas, já que atribuía a uma pessoa ou a um grupo a interpretação dessa ideia abstrata e totalitária de povo.

O autor também indica outra versão singular da noção de povo que é a encontrada na linguagem da ciência jurídica.  Segundo Luño, Kelsen, por exemplo, defende a tese de que a noção de povo não possui um fundamento psicológico, histórico, sentimental, ou de classe, e sim jurídico. O princípio de unidade dos homens que integram o povo de um estado e que lhes impõe determinadas regras de conduta não é outro que não o ordenamento jurídico vigente. O povo é neste sentido, o âmbito de validade pessoal (campo de validade) do ordenamento jurídico estatal.

Em sua acepção plural, o povo pode ser entendido como uma categoria sociológica com o que se refere a coletividade de pessoas físicas mensurável quantitativamente que integram um Estado. Nesta concepção o conceito de povo coincide com o de população.

Mas, contrariamente ao que se pode crer, dentro da teoria política tem sido mais frequente entender a dimensão plural de povo no sentido ideológico (aqui essa acepção não se emprega no sentido pejorativo e sim no sentido descritivo para denominar um conjunto de representações mentais). Desde este enfoque o povo não é visto como um conjunto de todos os indivíduos que formam o Estado, e sim como aquelas pessoas ou grupos que por professarem certas ideias ou possuem determinadas qualidades  e porque são ou se consideram majoritários, entendem que podem equivaler a povo. Há portanto, uma restrição ideológica do conceito de povo.

Para o filósofo, a origem desta tendência já é encontrada em Aristóteles, para quem o termo democracia era uma suposta forma política de perversão da politeia, - significava o governo dos pobres para seu próprio benefício isto é, enquanto classe social definida e no interessa da classe.

Retomando Rousseau, máximo teórico da soberania popular, o significados de povo incide numa tendência de análise sociológica. Assim no “o Contrato” parece que ele se inclina por uma noção de povo ao dizer que os associados pelo pacto social tomam coletivamente em nome do povo e em particular os chamados cidadãos, como partícipes da autoridade soberana e súditos como submetidos às leis do Estado.

Em Marx é perceptível a evolução progressiva desde uma visão sociológica de povo, até uma noção ideológica mais concreta. Segundo o autor, esta surge da fusão no conceito econômico- ideológico de proletariado, entendido como um setor da sociedade assalariado que participa do processo de produção.

Para Bonavides (2012) há três conceitos distintos de povo: o político, o sociológico e o jurídico.

No conceito político, povo seria o “quadro humano sufragante, que se politizou (adquiriu capacidade decisória), ou seja, o corpo eleitoral.”[10]

Sob o aspecto sociológico, o autor assim refere: “O povo é compreendido como toda continuidade do elemento humano, projetado historicamente no decurso de várias gerações e dotado de valores e aspirações comuns. (...) O povo neste sentido é a nação, e ainda debaixo desses aspecto pode tornar uma acepção tão lata que para sobreviver basta conservar acesa a chama da consciência nacional”.[11]

Sob o aspecto jurídico:  Povo é o corpo de cidadãos. “A cidadania é a prova de identidade que mostra a relação ou vínculo do indivíduo com o Estado. É mediante essa relação que uma pessoa constitui fração ou parte de um povo”[12] Neste aspecto confundir-se-ia com o conceito de nacionalidade.

A doutrina tem oferecido um conceito mais restrito. Cidadania é definida pelo gozo de direitos políticos. Assim, o nacional se distingue do cidadão pelo critério de direitos políticos.  E, povo, seria o conjunto de cidadãos, de eleitores.


3.    Sufrágio e voto

Embora utilizados comumente como sinônimos, os conceitos de sufrágio e voto são distintos. O próprio texto constitucional os trata de maneira diversa.

Art. 14 A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei(...)

Segundo José Afonso da Silva, transcrevendo as lições de Carlos S. Fayt [13]

O sufrágio é um direito público subjetivo, de natureza política, que tem o cidadão de eleger, ser eleito e de participar da organização e da atividade do poder estatal. É um direito que decorre diretamente do princípio de que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, (...)”. Constitui a instituição fundamental da democracia representativa, e é pelo seu exercício que o eleitorado-instrumento técnico do povo-outorga legitimamente aos governantes.

O sufrágio ainda se qualifica como universal quando se outorga o direito de votar a todos os eleitores, sem qualquer distinção, salvo os requisitos expressos na Constituição.

O voto pode ser conceituado como sendo o meio pelo qual se exerce o direito do sufrágio. É pelo voto que o sufrágio se exerce, se concretiza.

E, para que o voto constitua legítima expressão da vontade do povo, para que seja função efetiva da soberania popular, deve revestir-se de eficácia política e ainda que represente a vontade do eleitor, que seja cercado de garantias como a personalidade e a liberdade.[14]

A personalidade é necessária para se garantir a autenticidade. No sistema brasileiro não há possibilidade de nenhuma outra forma de votação que não seja com a presença física do eleitor.

A liberdade do voto é um dos atributos mais atacados pelos fraudadores do regime democrático. Essa não se limita a permitir-se ao eleitor se dirigir à urna ou manter-se o sigilo do voto concedendo-lhe a garantia de que a expressão de sua vontade não será objeto de qualquer constrangimento, mas acima de tudo,  está no controle das forças que agem subjetivamente na mente do eleitor vilipendiando sua vontade.


4.     A questão da maioria

Acompanhando a evolução do pensamento acerca da soberania popular, temos que a fundamentação de seu conteúdo está ligada historicamente ao conceito de “liberdade política”. Uma sociedade livre seria então, aquela que dá a si mesma as normas pelas quais se governa.

Dessa forma, seriam legítimas as normas resultantes de um processo de decisão por maiorias[15] e as derivadas delas e, ilegítimas as que resultem de outro procedimento, conforme já visto acima.

Fica claro então, que um sistema democrático pode ser identificado como aquele em que os destinatários da normas coincidem com seus autores.         

A decisão da maioria deve então corresponder a uma vontade geral, já que a unanimidade é impossível de se atingir. Castilho, referindo Rousseau assim destaca:

Para que uma vontade seja geral, nem sempre é necessário que seja unânime, mas é preciso que todas as vozes sejam levadas em conta: uma exclusão formal rompe com a generalidade. (...) A vontade geral exige levar todos em conta, dar-lhe opções de se manifestarem, outorgando-lhe não somente votos (o que já é importante) mas também voz[16]

O princípio da soberania popular se revela como  legitimador de certos tipos de decisões: das decisões sociais tomadas pela maioria dos indivíduos afetados por elas, entendida como a soma dos votos individuais emitidos pelos integrantes dessa maioria como expressão de sua livre vontade.[17]


5. Do Poder Constituinte

Quando se aborda a soberania popular, a primeira expressão de seu exercício que surge é o Poder Constituinte.

Muito embora a ideia de Poder Constituinte, como aquele que produz normas fundamentais de organização do Estado, permeie o pensamento político desde a antiguidade[18] é no século XVIII com Sieyés[19] que uma teoria própria do Poder Constituinte começa a se desenvolver. [20]

O livro de Sieyés não antecede nem se sucede à Revolução Francesa: sua dinâmica revela a perspectiva da própria revolução, com contradições, paixões e esperanças que envolveram esse momento histórico.

O autor inicia sua obra propondo três perguntas[21] para as quais já aponta a resposta e vai, ao longo da obra, desenvolver sua tese.

1) o que é o terceiro estado? – TUDO

2) o que tem sido ele, até agora, na ordem política? – NADA

3) o que se pede? – ser alguma coisa.

Para a terceira questão o autor apresenta então três petições:

a)    Que os representantes do Terceiro Estado sejam escolhidos apenas entre os cidadãos que realmente pertençam ao Terceiro Estado. (Cidadãos que não possuam quaisquer privilégios)[22]

b)    Que seus deputados sejam em número igual ao da nobreza e do clero.

“Todo cidadão que reúne as condições determinadas para ser eleitor, tem direito de se fazer representar, e sua representação não pode ser uma fração da representação de outro. Esse direito é uno; todos os exercem por igual, como todos estão protegidos igualmente pela lei que ajudaram a fazer. Como é possível sustentar-se por um lado, que a lei é expressão da vontade geral, quer dizer, da maioria, e querer, ao mesmo tempo, que dez vontades individuais possam contrabalancear mil vontades particulares? Isso não equivale a se expor a deixar a que a minoria faça a lei, o que é contrário, evidentemente, à natureza das coisas? [23]

c)     Que os Estados Gerais votem não por ordens, mas por cabeças. “para o Terceiro Estado essa demanda é consequência necessárias das outras duas”.[24]

Durante a obra vai construindo então uma teoria para o que seria o poder Constituinte, formado por integrantes do Terceiro Estado sem qualquer privilégio e que seria incondicionado e permanente para elaborar a constituição de uma nação. Para Sieyés, uma constituição não deve ser obra de um poder constituído e sim de um poder constituinte. O poder constituinte reproduz a vontade da nação enquanto que o poder constituído recebe sua existência e suas competências do primeiro. Daí porque limitado ao primeiro.

Somente a Assembleia Constituinte, onde os representantes comparecem desprovidos de seu privilégios tem as condições necessárias para fixar os novos limites da convivência social[25]

Trazendo a Teoria do Poder Constituinte para a atualidade, podemos conceituar o Poder Constituinte como “aquele que põe em vigor, cria ou mesmo constitui normas jurídicas de valor constitucional”[26]

Dessa forma, podemos diferenciar duas espécies de poder constituinte:

1)    Poder Constituinte Originário

2)    Poder Constituinte Derivado[27]

A doutrina ainda estabelece algumas características peculiares a cada um deles:

O Poder Constituinte Originário é superior (dada a natureza constitucional de suas normas), inicial (pois inicia uma nova ordem Constitucional), ilimitado[28] (pois não há direito anterior que o limite) e incondicionado (pois não há vinculação a qualquer procedimento anterior à ele), uno e indivisível pois não se partilha com outros poderes Constituídos – na realidade ele serve como fundamento para criação dos demais poderes e, finalmente, é permanente. Permanece latente quando a assembleia constituinte se dissolve após a promulgação da constituição. 

A questão que surge é qual sua implicação com a questão da soberania popular. A resposta surge quando analisamos quem é o titular do Poder Constituinte: o povo, que se expressa de forma direta ou por seus representantes através de sufrágio universal.

Em alguns desenhos institucionais, o povo, através de sufrágio universal elege representantes exclusivamente para concretizar por meio de uma assembleia constituinte os valores que entende mais relevantes para a vida social. Há no entanto, uma forma de participação mais ativa do povo no procedimento constituinte que é o de manifestar-se através de referendo, aceitando ou não aceitando a nova ordem constitucional.

Quanto ao poder constituinte derivado, mais especificamente o Poder Constituinte Reformador, temos que a questão da soberania popular fica significativamente mais afastada, tendo em vista que inexiste mecanismos de atuação mais direta da vontade popular. É justamente esse ponto que se discute no presente trabalho.

Uma questão bastante importante se coloca é sobre a legitimidade e limites do Congresso Nacional no tocante ao poder de reforma.

Os positivistas colocam de maneira bastante sucinta que, tendo em vista que a própria Constituição (elaborada através de Poder Constituinte Originário – cujo titular é o povo) estabelece que sua reforma deve seguir determinados parâmetros, uma vez observados, não há o que se debater acerca da legitimidade.

No entanto, o debate persiste. Ocorre, que a legitimidade embora decorra do próprio texto constitucional, também está relacionada intrinsecamente à legitimidade do constituinte .

 A doutrina é uníssona no sentido de atribuir maior legitimidade àqueles procedimentos de criação ou reforma constitucional em que o povo é chamado a participar. Dessa forma, aqui novamente surge o questionamento acerca da proibição de, por iniciativa popular, haver propostas de emendas constitucionais.

Outra questão que suscita embate é a limitação desse poder de reforma. Aqui também vale consignar a conexão entre o poder constituinte e a soberania popular.

E em que momento se entrecruzam ou deveriam se entrecruzar os conceitos de soberania popular e o poder de reforma. No caso brasileiro, a resposta é encontrada não só no § 4º do art. 60 da Constituição Federal, mais ao longo de todo o texto pode-se encontrar limitações implícitas decorrentes da própria alma constitucional.

5.1. Limites do Poder Constituinte

Como já mencionado anteriormente, muito embora comumente se diga que o poder constituinte ser ilimitado e que a própria soberania popular também goza desse atributo, há que reiterarmos a posição mais atual da doutrina no sentido de reconhecer a existência de determinados limites a ambos, ou seja, reconhecer a existência de limites ao poder constituinte implica em reconhecer em maior ou menor medida a limitação da soberania popular.

E estas limitações se concretizam tanto no poder constituinte originário quanto no Poder Constituinte Reformador.

Quanto aos limites do Poder Constituinte Originário, Jorge Miranda assim ensina:

Daqui não decorre, porém, que o poder constituinte equivalha a um poder soberano e que signifique capacidade de emprestar à constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. Não é poder soberano absoluto sobre a constituição – e isso à luz de uma visão jus naturalista ou na perspectiva do Estado de Direito como na perspectiva da localização histórica concreta que se tem de pronunciar o órgão nele investido. O poder constituinte está sujeito à limites.[29]

Canotilho também segue na mesma direção e de forma bastante clara assim diz :

Desde logo, se o poder constituinte se destina a criar uma constituição concebida como organização e limitação do poder, não se vê como esta “vontade de constituição pode deixar de condicionar a vontade do criador. Por outro lado, este criador, este sujeito constituinte, povo ou nação, é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como “vontade do povo”. Além disso as experiências humanas vão revelando a indispensabilidade de observância de certos princípios de justiça que, independentemente da sua configuração (como princípio suprapositivos ou como princípios supralegais mas intrajurídicos) são compreendidos como limites da liberdade e omnipotência do poder constituinte. Acresce que um sistema jurídico interno (nacional, estadual) não pode, hoje, estar out da comunidade internacional. Encontra-se vinculado a princípios de direito internacional (princípio da independência, princípio da autodeterminação, princípio da observância de direitos humanos).

Essa ideia de vinculação jurídica conduz uma parte da doutrina mais recente a falar da ‘jurisdicização’ e do carácter evolutivo do poder constituinte. Se continua a ser indiscutível que o exercício de um poder constituinte anda geralmente associado a momentos fractais ou de ruptura constitucional (revolução, autodeterminação de povos, quedas de regime, transições constitucionais), também é certo que o poder constituinte nunca surge num vácuo histórico-cultural. Trata-se antes, de um poder que, de forma democraticamente regulada, procede a alterações incidentes sobre a estrutura jurídico política de uma comunidade (P. Häberle, Baldassare)[30]

A questão de limitação do poder constituinte fica mais tormentosa quando se analisa o poder constituinte reformador, quando, em grande medida, a expressão da soberania popular se evidencia um pouco  mais afastada.

 Um conceito bastante conciso de poder reformador é o Calcini (2009)

O Poder Reformador consiste na entidade competente e constituída pelo poder constituinte originário, para, dentro dos parâmetros externados na Constituição, reforma-la a fim de atender aos anseios da atualidade e, inclusive, induzir a mudanças sociais, funcionando como um instrumento de adequação e de continuidade jurídica do estado, além de garantir a superioridade desta lei fundamental.[31]

Nos casos de desenhos institucionais em que são adotadas constituições rígidas, como o caso brasileiro, os limites constitucionais para a sua reforma se encontram no próprio texto, quer explicitamente quer implicitamente. Costuma-se dizer que as limitações para o poder de reforma são de três espécies: limites formais, limites circunstanciais e limites materiais.

a)    Limites formais:

A questão não oferece grande dificuldade. O texto constitucional estabelece no artigo 60, incisos I, II e III, §§ 2º, 3º e 5º, que:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

(...)

§ 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

(...)

§ 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.

b)        Limites circunstanciais

Neste ponto, não existe qualquer dificuldade no seu entendimento.

Art. 60 § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

c) Limites materiais expressos

Toda Constituição rígida possui um núcleo duro, ou seja, um  rol de princípios e disposições relacionados aos fundamentos e estrutura do Estado e direitos sem os quais a própria Constituição perderia sua razão de existência. Tais conteúdos que representam o cerne da Constituição ficam então, por disposição expressa ou tácita, impedidas de serem modificadas ou abolidas.

  As limitações expressas na Constituição brasileira, estão basicamente contempladas no § 4º do art. 60.

Tais disposições são chamadas de cláusulas pétreas. A própria designação já indica a natureza de imutabilidade ou inamovibilidade que possuem.

Poderíamos então citar o art. 60 § 4 º da Constituição que assim dispõe:

 § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Bem como também podemos incluir dentre o rol de cláusulas pétreas os dispositivos que tratam da Polícia Federal e Ministério Público com instituições permanentes.

Seguindo neste raciocínio, os próprios artigos que dispõe sobre cláusulas pétreas, também são cláusulas pétreas, desta vez, implícitas, pois caso contrário, uma simples manobra legislativa tendente a modificar o artigo poderia, em tese, quebrar a rigidez pretendida pelo poder constituinte originário.

d)   Limites materiais implícitos e a ideia do coto vedado

Ainda com relação aos limites tácitos, a doutrina espanhola desenvolveu a ideia do coto vedado, que poderia ser conceituado como uma forma de limitação implícita ao poder de reforma constitucional que implique prejuízos ao próprio regime democrático. Assim, alarga-se o leque de intangibilidade das normas constitucionais.  Neste ponto, cumpre ressaltar o papel do Poder Judiciário no controle jurisdicional de constitucionalidade.[32]         

 Nos trabalhos de Thiago Setti Xavier da Cruz e José Juan Moreso a ideia do coto vedado aparece, inclusive, nas reflexões acerca da razoabilidade de um poder constituinte originário impedir que gerações futuras possam optar por desenhos constitucionais diferentes daquele desenhado originalmente.

Neste sentido, assim os autores dizem que Coto Vedado pode ser conceituado como uma forma de limitação implícita ao poder de reforma constitucional que implique prejuízos ao próprio regime democrático. A pergunta é: Como impedir que o povo se auto destitua de seu poder erigido constitucionalmente, em prol de um grupo totalitário? Vale dizer:  O que impede que a maioria possa decidir, de forma irretratável, que não deve mais ter a democracia a seu favor, abdicando do poder de decidir? Se a democracia é o método de tomada de decisões pela maioria, a primazia constitucional implica precisamente em restringir ao que a maioria pode decidir, daí as cláusulas pétreas).  Neste sentido, a teoria do o coto vedado retrata um compromisso com a estrutura institucional que é o constitucionalismo.

Jon Elster elaborou uma analogia entre determinados mecanismos do que denomina – racionalidade imperfeita de caráter individual- e o caso do paradoxo da democracia. O exemplo utilizado é o de Ulisses e as Sereias. Sua situação – ser vulnerável - e saber-se – é o que o impulsionava a criar instrumentos de racionalidade imperfeita com o objetivo de superar a fragilidade da vontade. Esse mecanismo de Ulisses[33] é um mecanismo de pré-compromisso, um modo de vincular-se a si mesmo.  A ideia de pré-compromisso vem adequadamente expressada na ideia de Democracia Constitucional, conforme ensina o filósofo. Determinadas matérias estão fora da agenda política cotidiana,  não estando sujeitas a regra de maioria.[34]

Pode-se concluir que o problemas acerca das mencionadas limitações, sob a forma de pré-compromissos assumidos pelo Constituinte Originário tem sua fundamentação maior na proteção das gerações futuras. Tal tese encontra opositores logicamente mas, há que reconhecer-se que, o constitucionalismo forte é construído a partir da ideia de constituições rígidas dotadas, portanto, de mecanismos de auto proteção e proteção das instituições que estruturam o Estado.

Retornando ao caso brasileiro, a ideia de coto vedado é bastante útil, pois  diante da enorme produção de emendas constitucionais e tentativas de rompimentos do próprio sistema lógico constitucional, parece salutar um horizonte maior de limitação ao poder de reforma o que vem em auxílio da própria manutenção do Estado Democrático de Direito.[35]


6. Instrumentos de exercício  da Soberania Popular na Constituição Federal de 1988 e suas limitações

O termo soberania popular enquanto expressão sugestiva da ideia de um governo do povo, exige hoje para sua realização alguns instrumentos que garantam e tutelem a participação efetiva das pessoas e dos grupos na atividade política. Expressamente, a  Constituição de 1988 estabeleceu em seu art. 14 :

  A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

Plebiscito e referendo merecem ser analisados conjuntamente. Ambos são bastantes similares quando analisados sob a característica básica que os estrutura consistente na consulta popular. A diferença existe no momento em que é realizada. No plebiscito a consulta é prévia  e no referendo é a posteriori.

No Brasil, embora estejam previstos o referendo e o plebiscito entre os instrumentos de participação mais direta, há que se consignar que a competência para decidir sobre a sua pertinência é exclusiva do Congresso Nacional, não constando a possibilidade de iniciativa popular (art. 49, XV).

No texto constitucional consta uma única hipótese de plebiscito obrigatório prevista no art. 18 § 4º. Trata-se dos casos de fusão, criação, incorporação ou desmembramento de municípios. Nestes casos, as populações envolvidas são chamadas a se manifestar.

 Quanto ao referendo, instrumento utilizado, muitas vezes, para conferir legitimidade à ação do Poder Constituinte Reformador, no Brasil, sua utilização tem se mostrado quase nula.

 Jose Afonso da Silva assim refere ao comentar a lei o que regulamentou o art. 14 da Constituição Federal:

(...) Neste sentido, a lei foi duplamente restritiva, ao dispor que, nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um terço no mínimo, dos membros que compõem qualquer casa do Congresso Nacional. Restritiva em primeiro lugar, porque só previu referendo e plebiscito de iniciativa parlamentar, sequer admitiu o referendo de iniciativa do Presidente da República, e menos ainda o de iniciativa popular.  Restritiva ainda, porque submete essa convocação a uma condição subjetiva: questão de relevância nacional. Além disso, a lei mudou um pouco a dicção do art. 49, XV, da Constituição que dá competência exclusiva do Congresso Nacional para autorizar o referendo e convocar o plebiscito, reduzindo tudo em convocar; com isso liquidou a possibilidade de iniciativa presidencial ou popular do referendo, pois “autorizar” supõe ato de outrem, se bem que isso tenha pouca importância , desde que, em qualquer caso, fica tudo submetido ao alvedrio do Congresso Nacional e à sua má vontade em relação  a esses institutos.[36]

Com relação à iniciativa popular, o art. 60  da Constituição Federal, além da impossibilidade de se propor referendo e plebiscito, a Constituição brasileira não traz o cidadão eleitor (mesmo que  em conjunto com milhões de outros cidadãos)  no rol de legitimados para proposta de  emenda à Constituição[37].

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

   A lei 9709/98, que regulamentou o art. 14 da Constituição Federal, circunscrevendo a iniciativa popular somente à apresentação de projetos de lei[38] (e outra não poderia ser a previsão legal, tendo em vista o art. 60 da Constituição) estabeleceu a possibilidade de saneamento de qualquer vício formal, restringindo ao final, os limites de “saneamento”[39], o que pacifica a questão, ou seja, no Estado brasileiro, o cidadão não pode apresentar projetos de emendas constitucionais.

Que não seja possível ao cidadão comum, isoladamente, por si só já causa, no mínimo, estranheza, tendo em vista que a cidadania vem destacada no texto constitucional como um dos fundamentos da República (art. 1, II).

O povo foi excluído do processo de legitimação do poder constituinte reformador, tanto na iniciativa, quanto na ratificação ( a depender esta da conveniente do Congresso Nacional, conforme acima comentado).


CONCLUSÃO

Se o conceito de Democracia vincula-se ao ideal de um regime de governo baseado na liberdade, igualdade e supremacia da vontade do povo exercida direta ou indiretamente através do voto periódico, universal, secreto e direto, temos que a Soberania Popular é regra mãe da  Democracia.

Dessa forma, se a intenção é manter e fortalecer as instituições democráticas, o caminho, forçosamente, deve passar pelo fortalecimento dos instrumentos que viabilizam o exercício desse poder.

 No entanto, todo o poder deve sofrer algum tipo de limitação e , quando se fala em regra da maioria, a questão que se põe é o da legitimidade e extensão dessas limitações. Poderia a maioria decidir pela aniquilação de um sistema anteriormente criado por “outra” maioria? Não haveria necessidade da existência de freios a que todos devessem se submeter visando proteger o próprio Estado?

Por essa razão que existem esses limites e os mecanismos para impor sua obediência como ocorre através do Controle de Constitucionalidade. Os limites para a maioria que representa a vontade geral são oportunos e necessários. Valem para todos - cidadãos comuns e representantes eleitos.

Assim, não parece justificável nem razoável que no Brasil, não seja permitido ao povo, no exercício do seu poder, através de iniciativa popular, propor projetos de emenda constitucional. Neste particular, temos a paradoxal situação da criatura (Congresso Nacional – Poder constituído) exercer poderes maiores que o de seu criador (povo – titular do poder constituinte inclusive originário). A hermenêutica constitucional deve harmonizar portanto, essa aparente incoerência. Diz-se aparente, pois na Constituição não é possível haver incoerências.

Para o desenho institucional brasileiro escolhido pelo Constituinte, a existência de limites é perfeitamente adequada.  No entanto, há que se ajustar a coerência do sistema para que corresponda aos anseios sociais, racionalizando-se os instrumentos existentes de participação e legitimação do poder.

O canto das sereias sempre existirá.


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VARGAS, Alexis Galiás de Souza. O Princípio da Soberania Popular : seu Significado e Conteúdo Jurídico. São Paulo, 2009 Dissertação de mestrado em direito – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Notas

[1] MACHADO, Marcelo Forneiro. A evolução do conceito de soberania e a análise de suas problemáticas interna e externamente. p. 25

[2] BARROS, Alberto Ribeiro. A teoria da soberania de Jean Bodin.p. 28

[3] Bodin defendia a tese da soberania seria limitada, mas não arbitrária. O poder do soberano encontra limites nas leis Deus e da natureza a  certas leis humanas  comuns a todos os povos – que não podem ser entendidas como freios morais. op cit. P. 30

[4]  BODIN, Jean . República, I,8, p. 222 apud  BARROS, Alberto Ribeiro. A teoria da soberania de Jean Bodin.p. 252

[5] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Soberania popular y Estado de derecho. IN: LAPORTA, Francisco J. (org). Constituición : problemas filosóficos. Madrid: centro de estúdios políticos y constitucionales, 2003

[6] Perez Luño inicia citando a observação de Charles Morris, segundo o qual a palavra pode ser estudada em relação a outras palavras (nível sintático); em relação aos objetos que designa (nível semântico) e em relação aos sujeitos que a empregam ou são influenciados por ela (nível pragmático). Soberania popular y estado de derecho. IN: LAPORTA, Francisco J. (org). Constitución: problemas filosóficos

[7] Idem, p. 47, O autor citando NEGRI, A. Sovranitá, Milano, 1970, “ Dicha voluntad general, al igual que la noción absolutista de soberania, será superior y transcendente a las voluntades individuales, pero em lugar de recaer em solo hombre será patrimônio inalienable del Pueblo, a quien corresponderá su titularidade y ejercicio”

[8] Preâmbulo da Constituição  Brasileira. Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

[9] José Afonso da Silva em Comentário contextual à Constituição indica o valor dos Preâmbulos como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais.

[10] BONAVIDES, Paulo. Ciencia política. p. 75

[11] Idem,  ibidem, p78

[12]  Idem, ibidem . P. 77

[13]  SILVA, José Afonso da . Comentário contextual à constituição.. p. 217-218

[14] Idem, ibidem p. 222

[15] A ideia central é de que diante da impossibilidade de uma unanimidade é justificável que entenda adequado atender a vontade da maioria.

[16] Tradução livre do original: “”para que uma voluntad sea general, no siempre es necessário que sea unánime; pero es preciso que todas las vocês sean tenidas em cuenta: uma exclusión formal rompe la generalidade(Rousseau, p. 52, nota 1) (...)La voluntad eneral exige tener a todos em cuenta, darles opción de manifestar-se, otogarles no sólo voto (que ya es importante) sino también voz. CASTILHO, Rafael Herranz. La justicacion de la democracia y la obligacion moral de obedecer el derecho., in revista derechos y liberdades  del instituto bartolome de las casas, p. 231.

[17] El principio de la soberania popular (...) se revela como um principio legitimadore de certo tipo de decisiones : las decisiones socieales tomada por la mayoria de los indivíduos afectados poe ellas, entendidas como la suma de los votos individuales emitidos por los integrantes de esa mayoria em exprressión de su libre vluntad(laporta , p. 51; Diaz, 1984, pp.67-70)

[18] Segundo apontamentos de Fábio Pallaretti Calcini na obra “Limites ao poder de reforma da Constituição: o embate entre as gerações, citando Manoel Gonçalves Ferreira Filho, já no período helêniico na Antiguidade , Aristóteles , na obra Política, discorre sobre a hierarquia entre leis superiores (o que para nós seriam a Constitucionais) e a inferiores (atualmente denominadas ordinárias ), tendo-se notícia até mesmo de “ação de inconstitucionalidade” para combater as leis que afrontassem as tidas por fundamentais para organização da cidade estado.

[19] Emmanuel Joseph  Sieyés autor do manifesto  Qu’est-ce que Le tiers État? (o que é o terceiro Estado?) – Traduzido para o portugues por Norma azeredo – recebendo o nome de A Constituinte Burguesa. , 1997

[20]  Paulo Bonavides no Curso de direito Constitucional . , 27ª ed. , 2012, p. 148 assim ensina : “ poder constituinte sempre houve, porque jamais deixou de haver o ato de uma sociedade estabelecendo os fundamentos de sua própria organização.”

[21] SIEYÉS, Emmanuel Joseh. A constituinte burguesa. Tradução  norma Azeredo. Título original QU’est-ce que le Tier État? 3ª ed. Ed. Lumen juris 1997. P. 51

[22] Idem, ibidem, p. 65

[23] Idem, ibidem p. 70-71

[24] Idem, ibidem , p. 74

[25] Idem, ibidem. p.45

[26] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 20-24

[27] O poder constituinte derivado ainda pode ser subdividido entre poder constituinte reformador e decorrente. O poder decorrente é atribuído elaboração das Constituições dos Estados da federação brasileira. dessa forma, por se afastar do objeto do presente trabalho (democracia e soberania popular) questão do poder decorrente  não será abordada.

[28] Parte da doutrina , no entanto, entende que existe limitação ao poder constituinte originários. Ele estaria no direito natural, na ética. A Constituição positiva os valores que sociedade elege como importantes. Não possui portanto, somente  natureza constitutiva (quando disciplina competências, estrutura o Estado) . A constituição tem uma dimensão valorativa. Assim, é forçoso admitirmos a existência de uma limitação moral. Também há fundados questionamentos acerca da limitação do poder constituinte originário á normas de direito internacional). Tais questionamentos ficam superados , no entanto, caso seja esse poder instaurado por movimentos revolucionário.)

[29] Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional, 3ªed. Coimbra, 1996 apud. CACCINI, fabio pallaretti, op. Cit, p. 37

[30] CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição 7ª ed. Almedina: Coimbra 2003, p. 81-82

[31] Calcini, Fábio Pallaretti, op.cit. p 38

[32] Sugere-se a leitura da obra  Dayse de Vasconcelos Mayer.A democracia capturada: a face oculta do poder: um ensaio jurídico-político. São Paulo: Método, 2010

[33] A analogia proposta por Jonh Elster refere-se inicialmente ao poder constituinte de reforma quando se apresenta a questão: O fato de Ulisses prender-se ao mastro lhe daria o direito de impor aos seus sucessores os próprios grilhões que o mantinham preso? Não seria mais razoável deixar que cada geração assumir o destino e reescrever o direito à sua vontade?

Ulisses, reconhecendo sua fragilidade diante do canto inebriante das sereias, decide tapar os ouvidos de seus marinheiros e atar-se ao mastro para poder submeter-se ao encanto, sem levar à embarcação à sua ruina. Os grilhões o prendem Ulisses ao mastro para evitar a destruição, como as limitações para o poder de reforma limitam o legislador .

[34] MORESO, José Juan. Direitos e Justiça Procedimental Imperfeita.

[35] Trabalho bastante interessante relacionado às clausulas pétreas é o de Alexis Galiás De Souza Vargas. Em sua dissertação de mestrado defendida perante a Banca da PUC/SP – O princípio da soberania popular : seu significado e conteúdo jurídico –o autor,  considerando que o poder do povo (soberano) é maior que o do Congresso nacional, o povo  poderia , em  tese, apresentar projeto de emenda constitucional (suprindo-se a lacuna existente no art. 49, para deliberar sobre o conteúdo e extensão das cláusulas pétreas, através do denominado  processo de legitimação ótima.

[36] SILVA, José Afonso, Comentário contextual à Constituição, p. 222/227

[37] Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

[38] Art. 13. A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

[39] Art. 13 § 2º O projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BECHELLI, Andrea. Soberania popular e a limitação injustificada quanto à iniciativa nos Projetos de Emendas Constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4212, 12 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30740. Acesso em: 26 abr. 2024.