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A segregação da liberdade como instrumento de controle social e o princípio da intervenção penal mínima

A segregação da liberdade como instrumento de controle social e o princípio da intervenção penal mínima

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Existe solução viável, adequada e justa para a problemática do controle social realizado através do direito penal em sua faceta instrumental mais extrema, qual seja a segregação da liberdade dos indivíduos?

INTRODUÇÃO

Ante o caos do sistema carcerário de nosso país, tornaram-se frequentes correntes doutrinárias que defendem a substituição da pena privativa de liberdade por outras que mantenham o condenado longe dos presídios, como forma de preservar-lhe dos efeitos maléficos do cumprimento de uma pena junto à “faculdade do crime”.

É inegável que a pena privativa de liberdade causa diversos males sociais e psicológicos ao apenado. No entanto, não há como livrar-se totalmente da aplicação desta medida de controle social, como defendem os abolucionistas, em um país em que as desigualdades sociais e econômicas são tão extremas e díspares.

O direito penal tem acima de tudo um caráter instrumental, qual seja, de realizar o controle social em última instância quando todos os outros meios de controle falharam com relação a determinado caso. Ocorre que a falência e superlotação dos estabelecimentos penitenciários apenas reflete a ausência do estado em proporcionar meios de subsistência e de trabalho aos cidadãos de seu país, bem como a prática de um direito penal simbólico e ineficaz, por que ao invés de se buscar dar uma solução ao problema da criminalidade o que se percebe é o endurecimento das penas e, consequentemente, a sofisticação e o aperfeiçoamento dos crimes.

Apesar da necessidade de se reconhecer os condicionamentos do sistema penal, de se saber que ele acaba quase sempre por selecionar pessoas de determinada classe social, a qual se encontra afastada do centro das decisões em uma estrutura de poder fechada e escalonada, é imprescindível também reconhecer que o homem é um ser livre e que pode escolher, é preciso se construir um direito penal que respeite a autonomia ética do homem e que o toma como fim e não o reverso. Portanto, não se deve apenas visar a ressocialização do condenado, mas, também, a retribuição pelo mal causado e a reparação do dano sofrido pela vítima, pois, a culpabilidade é ainda a medida da reprovabilidade da conduta do agente.

Ressalte-se que a pena privativa de liberdade deve ser aplicada como último recurso ao controle do crime. Na verificação da justeza e da necessidade da aplicação da pena privativa de liberdade, faz-se necessária uma avaliação crítica em cada caso da culpabilidade e da periculosidade do condenado, a fim de se evitar novas vítimas e o estado possa cumprir um direito penal garantista.

No atual cenário do nosso sistema penal é inócua a atribuição ao direito penal da responsabilidade pela ressocialização do condenado, quando, na verdade, este nem mesmo antes de delinqüir era integrado a um meio social saudável que lhe proporcionasse opções para coexistir pacificamente. Contudo, se o estado criou essa “aberração” deve proporcionar meios de corrigir esse mal e o que o direito penal pode e deve fazer é apenas permitir que isso ocorra, porém fora da área penal, ao mesmo tempo em que realiza o controle social necessário à coexistência pacífica.

Nunca se deve perder de vista o fundamento lógico do fenômeno do controle social que é a necessidade de regular condutas a fim de conciliar interesses individuais e coletivos com os interesses públicos da sociedade, garantindo-se a paz e o bem estar social. Porém, para se atingir este fim torna-se imprescindível à eficiência de outros meios de controle social.

Ante a constatação de que em toda sociedade existe o fenômeno dual “hegemonia-marginalização”, e que o sistema penal tende, geralmente, a torná-lo mais agudo, impõe-se exercitar a aplicação de soluções punitivas da maneira mais limitada possível. Daí a importância e benefícios da prática de um direito penal mínimo.

Ressalte-se que apesar das diferentes posições doutrinárias acerca do caráter que a pena deve exercer sobre o condenado, se deve neutralizar a periculosidade ou retribuir a culpabilidade, não há como adotar posição extremada, interpretando-se que uma exclui a outra, ao reverso disto, é necessário que se conciliem esses fatores quando da atividade legislativa, judiciária e executória da pena.

Somente com a adoção de um direito penal mínimo que se preocupa em preservar o cidadão excluído e marginalizado e, por conseguinte, condicionado em maior ou menor grau à prática de delitos, em sua maioria pessoas que vivem na miséria material, moral e cultural, ao mesmo tempo em que retribui com a pena os males causados pela ofensa a bens jurídicos alheios, e sempre tendo em vista o interesse público de proteger a população da criminalidade, esta última que muitas das vezes já perdeu o amor próprio e pelo próximo.


1. CONCEITO E FORMAS DE CONTROLE SOCIAL

O homem é um ser social nato. Reúne-se dentro da sociedade em grupos permanentes ou transitórios, onde eventualmente seus interesses são coincidentes ou antagônicos. Os conflitos entre esses grupos se resolvem de forma que, embora sempre dinâmica, visa e logra certa estabilização que vai configurando a estrutura de poder de uma sociedade, que é em parte institucionalizada e em parte é difusa.

O certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados do centro de decisão. De acordo com essa estrutura, se “controla” socialmente a conduta dos homens, controle que não só se exerce sobre os grupos mais distantes do centro do poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar sua própria conduta para não se debilitar (bote expiatório).

Deste modo, toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e econômico) com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na qual, podem distinguir-se graus de centralização e de marginalização. Há sociedades com centralização e marginalização extremas, e outras em que o fenômeno se apresenta mais atenuado, mas em toda sociedade há centralização e marginalização do poder.

Esta “centralização-marginalização” do poder arquiteta uma enorme estrutura de controle social, com diversificadas formas de atuação e manifestação delimitando o âmbito de conduta do indivíduo, conforme leciona o professor Eugênio Raúl Zaffaroni.

Diante disso, faz-se necessário refletir acerca desta estrutura do poder para se compreender e analisar o “fenômeno do controle social”, sendo que a escolha do caminho a ser percorrido nesta investigação não altera o produto das conclusões, pois estes elementos interagem, guardando estreita relação de causa e efeito entre si.

O âmbito do controle social é extremamente amplo, e em razão do enorme emaranhado das diversas formas que assume nem sempre se mostra evidente. É possível que se constate o seu ocultamento em graus mais ou menos intensos conforme se trate países centrais ou periféricos, uma vez que os conflitos sociais são mais manifestos nestes do que naqueles. Para ilustrar isso basta deter-se um pouco no papel dos meios de comunicação social de massa que introduzem padrões de conduta sem que a população, em geral, perceba isso como “controle social”, e sim como formas de recreação. Qualquer instituição social desempenha um papel de controle social, pois é de sua essência esta característica, mesmo que seja instrumentalizada com fins mais nobres do que os inerentes a sua essência.

O controle social se vale desde meios mais ou menos “difusos” e encobertos até meios específicos e explícitos, como é sistema penal (polícia, juízes, agentes penitenciários, etc.). A enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social demonstram que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explícito.


2. FUNDAMENTO LÓGICO DO FENÔMENO DO CONTROLE SOCIAL

Em todo Estado Democrático de Direito todo poder que este dispõe tem caráter puramente instrumental, na medida em que se justifica no dever de buscar sempre a realização do interesse público, prevalecendo este sobre interesses particulares, pois estes não sobrevivem sem aquele. Logo, em todo Estado de Direito há o dever de respeitar e fazer respeitar os interesses maiores da sociedade, os denominados interesses públicos, como exigência da paz e do bem estar social.

Em tempos em que o Estado se abstinha ao máximo de interferir nas relações estabelecidas na sociedade, ou seja, época de marcada ideologia liberal, implantada pela burguesia, buscava-se a plena liberdade nas relações que se travavam, afastando-se a presença do estado nestas para garantir o desenvolvimento tecnológico e econômico da sociedade capitalista. Com este e com a multiplicação de relações jurídicas, fonte de interesses particulares ora antagônicos, ora coincidentes com os interesses públicos, surge a necessidade de um estado com feição assumidamente social, abandonando a de neoliberal, por ser imprescindível à convivência pacífica entre os homens a interferência do estado com seus poderes instrumentais conferidos, ressalte-se, pelo próprio corpo social submetido a estes poderes no estado de direito, uma vez que neste todo poder emana do povo.

Esta necessidade de uma maior atuação do estado, restringindo a liberdade de atuação dos particulares, em prol dos interesses públicos, trouxe consigo a imprescindível regulamentação da utilização destes poderes instrumentais, que o estado não é titular, mas sim o povo. O Estado apenas detém o dever de buscar a realização do interesse publico e não uma prerrogativa de titularizar poderes simplesmente por ser o Soberano e usa-los da maneira que lhe aprouver sem qualquer limite. Logo, por isso se criaram garantias aos homens frente à atuação do estado, como forma de controle dos poderes a ele conferidos, em seu caráter instrumental, a exemplia gratia as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório que são filhos daquele, da presunção de inocência e, enfim, todas as garantias notadamente de estatus constitucional entre nós.

No entanto, inúmeras vezes, essas garantias que possuem por sua própria natureza e finalidade de proteger o cidadão frente a abusos praticados pelo Estado, são invocadas dolosamente por particulares para servirem de escudo à atuação da justiça e, em última instância, de escudo à consecução dos interesses públicos. Quando isso se dá, salta-se à evidência a inversão de valores e finalidades na utilização daquelas garantias conferidas aos particulares em detrimento da atuação licita e justa do estado na busca da realização dos interesses maiores.

Retomando o tema a que me propus investigar neste tópico, o fundamento lógico do fenômeno do controle social é a necessidade de regular condutas a fim de conciliar interesses individuais e coletivos com os interesses públicos da sociedade, garantindo-se a paz e o bem estar social. E como visto no tópico anterior, o Estado se vale de variados métodos de controle social, difusos e institucionalizados, nesta categoria enquadram-se os meios ou métodos não punitivos (v.g. o direito civil) e os punitivos (v.g. sistema penal).


3. O SISTEMA PENAL E O CONTROLE SOCIAL INSTITUCIONALIZADO

Considerando-se que o sistema penal abrange a idéia de controle social punitivo institucionalizado, deve-se delimitar bem o campo a ser abordado ao tratar da via punitiva própria do direito penal, o meio punitivo que o diferencia das outras maneiras punitivas de que o estado se utiliza, embora às vezes o faça sem esse discurso, limite esse consubstanciado no seu caráter diferenciador, qual seja, a coerção penal como meio de prover a segurança jurídica.

Importante ressalva a ser feita é que a maioria dos sistemas penais dividem-se em três segmentos básicos que convergem na atividade institucionalizada do sistema e que não atuam estritamente por etapas, posto que têm um predomínio determinado em cada uma das etapas cronológicas do sistema, podendo seguir atuando ou intervindo nas restantes. São eles o policial, o judicial e o executivo.

Quero, com a ressalva da existência e da influência da atuação destes setores ou segmentos de grupos humanos que compõe o sistema penal, deixar bem assente a distinção de propósitos e fundamentos que norteiam a elaboração teórica de uma possível solução ao problema dos conflitos sociais que demanda uma atuação estatal, mais ou menos intensa conforme o conflito suscitado, quando se em tem vista os diferentes discursos que estes setores adotam. O Discurso Judicial é, regra geral, o garantidor; o discurso policial é predominantemente moralizante; o discurso penitenciário é o terapêutico ou de “tratamento”e de ressocialização.

O Discurso Judicial desenvolve sua própria cultura: pragmática, legalista, regulamentadora, de mera análise da letra da lei, com clara tendência à burocratização. Em geral, há uma manifesta separação de funções com contradição de discursos e atitudes, o que dá por resultado uma compartimentalização do sistema penal: a polícia atua ignorando o discurso judicial e a atividade que o justifica; a instrução, quando judicial ignora a atividade sentenciadora; a segunda instância ignora as considerações da primeira que não coincidem com seu próprio discurso de maior isolamento; o discurso penitenciário ignora todo o resto. Cada um dos segmentos parece pretender apropriar-se de uma parte do sistema, menos o judicial, que vê retalhadas as suas funções sem maior alarme. De qualquer maneira, a compartimentalização não impede os atritos e a imputação mutua de falhas é permanente, parecendo que o sistema não opera em condições satisfatórias devido às falhas dos outros compartimentos.

A importância da ressalva acima, quanto à distinção de fundamentos que se irá adotar no enfrentamento de questões teóricas sobre o controle social, mais especificamente do direito penal, está na detecção da influência dos diferentes discursos na elaboração das premissas de que resultam as proposições. Finalmente, após esse esboço, posso separar e frisar a distinção dos fundamentos e princípios que servirão de alicerce na estruturação lógica da solução ora buscada pelo presente trabalho de investigação científica e os discursos citados acima, os quais não podem ser, de maneira alguma, firmados em discursos que buscam somente dar uma resposta para fora do sistema, uma satisfação à opinião pública.

O Sistema Penal é, como vimos, compartimentalizado, sendo isto apenas uma característica sua que não deve influir, mas que por vezes aparece freqüentemente manifesta sua influência, principalmente, quando surgem casos de repercussão na mídia que demandam solução a ser dada pelo sistema de controle competente, na mentalização do objeto principal da investigação ora proposto, qual seja, o controle social realizado pelo direito penal com a sua peculiar característica de realizar-se mediante a coerção penal como última medida necessária de controle a fim de garantir a paz e a justiça.

Em suma, sendo o Sistema Penal o controle social institucionalizado realizado mediante a coerção penal, que opera materialmente interferindo na esfera individual, restringindo direitos e liberdades, é de se ter como corolário de uma elaboração justa princípios e normas construídas ao longo da história como fruto da experiência coletiva do homem na vida em sociedade, e não tão somente discursos advindos de segmentos de um todo.   


4. O CARÁTER DIFERENCIADOR DO DIREITO PENAL

O Direito Penal por ser “direito”, participa de todas as características do direito em geral: é cultura, é normativo, é valorativo, etc. Por ser “direito público” regula relações dos homens com o Estado como pessoa de direito público. Mas com isto não se conceitua ainda totalmente o direito penal. Já foi dito anteriormente, que o caráter diferenciador do direito penal é a coerção penal. Mas qual deve ser o conceito de coerção penal para que se possa ter uma noção do objeto que se pretende tratar? O que distingui a coerção penal das outras formas de coerção jurídica? O que distingue a pena das restantes sanções jurídicas (reparação civil, multa administrativa, nulidade processual, etc.)?

As respostas a essas perguntas resumem-se no fato de que a coerção penal distingue-se das restantes coerções jurídicas, porque aspira assumir caráter especificamente preventivo e particularmente reparador. No seu caráter preventivo especial procura evitar novos delitos e no particular reparador visa uma reparação extraordinária. O primeiro caractere cumpre então uma função simbólica frente ao corpo social por que com a punição de quem delinqüe cria-se um exemplo para os demais integrantes do corpo social ilustrando que a conduta praticada implica sempre na aplicação da uma pena, conduta essa antijurídica, logicamente, e reprovável da qual decorre uma sanção, uma punição.

Ademais, tratarei mais pormenorizadamente dos caracteres da pena quando houver relevância para o objeto e foco do presente trabalho, sem o que me estenderia por demais em virtude da amplitude deste tema e diversidade de respeitáveis opiniões advindas dos maiores especialistas que tratam do tema.


5. A COERÇÃO PENAL E O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO PENAL MÍNIMA

Considerando-se que o sistema penal acaba, inevitavelmente, por selecionar as pessoas marginalizadas à estrutura do poder, dever-se-ia evitar ao máximo a utilização desta via interventiva das esferas individuais, ou melhor, desta via punitiva, senão estar-se-ia adotando postura ainda mais injusta, gerando com a intervenção penal um mal maior do que o gerador da punição. É conseqüência lógica ineludível que a utilização máxima de um poder, que de certa forma possui forte dose de violência, para instrumentalizar um controle social que é manejado por uma classe social para controlar outra, os marginalizados da estrutura do poder, é um tanto autoritário e irracional do ponto de vista jurídico-científico.

Em outras palavras, ante a constatação de que em toda sociedade existe o fenômeno dual “hegemonia-marginalização”, e que o sistema penal tende, geralmente, a torná-lo mais agudo, impõe-se exercitar a aplicação de soluções punitivas da maneira mais limitada possível. Igualmente, a constatação de que a solução punitiva importa sempre num grau considerável de violência, ou seja, de irracionalidade, além da limitação do seu uso, impõe-se, na hipótese em que se deva lançar mão dela, redução ao mínimo, dos níveis de sua irracionalidade.

Esta linha de limitação da intervenção punitiva e redução de sua irracionalidade (ou violência) é o que se denomina princípio da intervenção penal mínima.

Conforme assevera Claus Roxin, o direito penal é de natureza subsidiária. "Ou seja: somente se podem punir as lesões a bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se".

Estabeleceu-se, nessa ordem de idéias, que o direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social, demonstrando a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e, portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for pertinente a outros ramos do direito, ou melhor, só se cogita se é ou não necessária a intervenção penal sem qualquer influência de outras ciências do fenômeno social.

Bem ao contrário da política criminal e da recomendação doutrinária que ora se adota, vemos no Brasil um direito penal absolutamente desproporcional aos limites de seu âmbito científico, vale dizer, há muito no direito penal que não é, ou pelo menos não deveria ser, de direito penal.

A denominada inflação legislativa no âmbito do direito penal, desproporcional à realidade que a recebe, e desacompanhada de qualquer estruturação administrativa para a aplicação efetiva das normas, gerou o caos normativo e a desordem prática, de maneira que não se pode afirmar, com segurança, qual o pensamento do legislador penal brasileiro; qual a finalidade do direito penal brasileiro, e de conseqüência, qual a finalidade da pena no direito brasileiro.

É preciso delimitar o âmbito de interesse do direito penal, e saber que o sucesso da intervenção mínima pressupõe, também, um mínimo de condições de aplicabilidade das normas, o que reclama, no mínimo, uma legislação técnica e coerente, além da necessidade de estruturação dos órgãos de jurisdição, e aparelhamento dos mecanismos de execução das penas.

Também é fato que o direito penal desempenha importante papel na vida em sociedade, uma vez que justamente por possuir caráter instrumental a serviço da manipulação de condutas ofensivas à ordem e a paz social é que não se pode atribuir-lhe caricatura de vilão que somente visa oprimir os marginalizados da estrutura do poder, pois que, sem sua imprescindível atuação não haveria o controle necessário à vida em comunidade. Esse controle, por ser imprescindível, deve ser instrumentalizado sempre tendo em vista os interesses públicos, pois toda vez que uma conduta viola a norma penal proibidora presume-se que tenha havido ofensa a interesses públicos indisponíveis.

Só pelo simples fato de haver descrição proibitiva de uma conduta, já haveria, pelo menos teoricamente, justificação para atuação do sistema penal instrumentalizando os poderes de intervenção na esfera dos particulares da maneira como lhe é peculiar, ou seja, aplicando a pena cominada ao caso. Já é sabido que Poder Público deve sempre buscar soluções que atendam ao interesse público, que na esfera penal é em última análise a segurança jurídica, ou, se preferir a fuga de polêmicas quanto ao conteúdo desta, a tutela dos bens jurídicos indispensáveis à coexistência pacífica entre os homens.

Uma análise apressada do problema do aparente antagonismo existente entre a necessidade de se aplicar um direito penal pautado pelo princípio da intervenção penal mínima, como forma de se evitar o recurso da violência, e a demanda por soluções que atendam aos interesses públicos e que sempre devem prevalecer sobre os interesses particulares ou individuais, como pressuposto de existência destes, poderia levar a conclusões equivocadas de que são posturas opostas e inconciliáveis que habitam pólos opostos. A primeira vista, há uma aparente contradição entre uma atuação estatal que se abstenha em criminalizar, por se saber que o direito penal acaba selecionando os marginalizados da estrutura do poder, com uma atuação estatal garantista dos bens jurídicos, quanto mais quando coincidentes diretamente com os interesses supremos da coletividade.

Contudo, o próprio direito penal fornece a fórmula para conciliar a atuação do sistema penal visando-se atingir o escopo da justiça e da segurança jurídica através da aplicação efetiva do princípio da individualização da pena, que permite a atribuição da sanção penal, ou extra-penal, adequada aos casos concretos que demandam soluções heterogêneas. A individualização da pena é ferramenta e pressuposto para se concretizar a segurança jurídica dos bens indispensáveis à paz e ao bem estar sociais, vez que é instrumento inafastável para aplicar a cada caso a medida adequada à sua culpabilidade e periculosidade.


6. REFLEXÕES ACERCA DA REALIDADE DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

 Com arguta visão e notável poder de síntese, Jorge Henrique Schaefer Martins assim descreve a realidade nacional do nosso direito penal: "... a criminalidade tem raízes muito mais profundas que uma análise rápida pode expor: a problemática social, a perspectiva de ascensão célere no meio marginal, impensável com o dispêndio de trabalho honesto, a excessiva procura por drogas, a ganância, o desprezo pelas gerações futuras, tudo produzindo o crescimento desordenado da marginalidade, em contraposição às dificuldades do Estado em preservar a segurança dos cidadãos, seja pelo não aparelhamento e pela má remuneração daqueles dela encarregados, como pela visão míope do problema. Acresce-se a isso o fato de o sistema carcerário brasileiro ser considerado como um dos piores do mundo, devido à superlotação nas prisões e à violação dos direitos humanos".

Por isso, correta a afirmação de Marco Antonio de Barros no sentido de que "a dignidade do Direito Penal está seriamente abalada em nosso País".

Não são poucas, evidentemente, as causas que concorrem para o descontrole dos índices de criminalidade, que só fazem crescer.

A maior razão da propalada crise de efetividade da jurisdição, e da pena, no direito penal brasileiro, decorre da ausência de uma adequada visão do problema e da ausência de uma política criminal acompanhada de uma legislação que corresponda ao problema. Conforme advertência de Claus Roxin, "...o direito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica".

As estatísticas revelam o aumento da população, o baixo aproveitamento em todos os graus de ensino, a ausência de capacitação profissional da maioria, os índices de desemprego. A educação é falha e os estímulos para uma boa formação moral são quase inexistentes, restam pequenos oásis. A má formação das crianças e adolescentes, a desesperança, os exemplos de impunidade, a ausência de punição severa em relação aos crimes graves, os domínios do crime organizado, do crime globalizado e do narcotráfico, os incontáveis problemas sociais, são só alguns fatores, que aliados ao descaso para com a Justiça, contribuem de forma decisiva para a elevação dos índices de criminalidade.


7. ALGUMAS MEDIDAS NECESSÁRIAS AO APERFEIÇOAMENTO DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO

Adotando-se o modelo do direito penal de intervenção mínima para o direito penal brasileiro, é imprescindível a necessidade de se proceder a uma análise profunda, providenciando-se uma proposta em termos de codificação dos tipos penais e processuais penais, e o necessário no âmbito político-legislativo para as adequadas modificações, que não podem emergir do pântano atual sem a adoção de muita cautela.

Como já advertia Cesare Beccaria "uma boa legislação não é mais do que a arte de propiciar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência". E arrematava o ilustre filósofo: "Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e evidentes".

Tais mudanças reclamam uma exata compreensão dos limites e do alcance que se deve dar ao direito penal, deixando para as demais áreas de atividades do Estado aquilo que a cada uma couber com exclusividade.

A cada ramo do direito o que lhe pertence, com as sanções correspondentes, onde houver.

Não basta, contudo, a mudança na prática legislativa, que se deve pautar por um melhor rigor técnico e científico, de forma a reduzir o âmbito de atuação do direito penal aos limites de seu efetivo interesse enquanto ciência, sem provocar aqueles indesejados e evitáveis debates estéreis decorrentes da prática oposta.

Tais mudanças, se desacompanhadas da necessária reflexão e tomada de postura frente ao problema da falta de estrutura dos órgãos do Poder Judiciário e de execução penal (que fazem muito pelas condições de que dispõem), de nada adianta. Faz-se necessário mais do que simplesmente a adoção e implementação de ideologias, contudo, antes de mais nada, deve-se ter assente que a elaboração teórica é apenas o marco inicial para se atingir soluções empíricas demandadas pelas relações decorrentes da vida em sociedade.

O Poder Judiciário deve ter – e é este ponto que saliento e que entendo ser um grande desafio – a coragem necessária para esse enfrentamento para que possamos confiar em nossos juízes. Acredito que o Poder Judiciário deveria ter aumentado as suas prerrogativas na execução penal, dando vigor ao princípio da individualização da pena, deixando ao seu alvitre, ao seu bom senso e ao seu equilíbrio, somente quando indispensável, a realização do exame criminológico para a mudança de regime, e permitindo ao juiz até mesmo a antecipação de benefícios durante a fase de execução, como a liberdade condicional ou a conversão da pena em liberdade vigiada com a prestação de serviços para a comunidade, o que significa conceder dinamismo à execução da pena. É preciso coragem para fazê-lo. O que se pretende com isso é manter no cárcere somente o criminoso perigoso, que não pode conviver conosco, por representar um perigo físico, gerar estímulos para aquele que se pretende reaproveitar como cidadão e enxugar o sistema penitenciário e, principalmente, por ser notável o seu alto grau de culpabilidade pelo delito cometido, considerando-se o homem dentro de uma visão antropológica que o considera capaz de escolher entre o bem e o mal. Não precisamos de cadeia para, de vez em quando, demonstrar que a democracia existe, e nela colocarmos um preso padrão da classe alta, que nos possibilite afirmar que cadeia também é para o rico, reafirmando o caráter simbólico da pena; o que se deve buscar é punição para todos, mas gradualmente, de acordo com o necessário para que a reprimenda seja justa, levando em conta o grau de culpabilidade do criminoso e, atendendo ao interesse público de segurança pública, neutralizando sua periculosidade.

A atuação do sistema penal deve sempre buscar a efetivação máxima da individualização da pena com vistas ao escopo da justiça e da segurança jurídica, pois só dessa maneira haver-se-á a implantação de um direito penal mínimo, lógico e coerente com a realidade social. A implantação e aparelhamento de equipes para realização e acompanhamento cuidadosos do exame criminológico dos condenados, visando à adequação da pena e o controle e prevenção do crime organizado dentro dos estabelecimentos de cumprimento das penas privativas de liberdade, mediante implantação de serviços de inteligência nestes estabelecimentos.


8. A LEI PENAL E SEU CARÁTER PROGRAMÁTICO

É na lei penal que encontramos o limite dentro do qual o sistema penal pode selecionar e criminalizar pessoas, apesar deste às vezes ultrapassar este limite, na realidade social, com outros pretextos que pretendem ser “não-penais” (contravencionais, averiguação de antecedentes, etc.). A lei penal deve determinar um âmbito orientador, mas o sistema penal atua em grande parte com uma orientação que é própria e diferente, excedendo a orientação em um sentido e, outro, desinteressando-se do espaço demarcado, reprimindo o que o direito penal não autoriza e deixando de reprimir o que o direito penal lhe ordena.

Daí decorre que, na realidade, tenha mais importância a função da atividade policial que a do legislador penal. Em geral, pois, a criminalização que produz o funcionamento do sistema penal nunca coincide com a orientação e medida que determina abstratamente a lei penal. Historicamente, pode-se afirmar que o direito penal é o resultado de uma estrutura de poder na sociedade e é inevitável para qualquer das estruturas de poder conhecidas e realizadas até o presente.

O raciocínio acima aludido nos leva a crer que o direito penal (legislação penal) não pode ser interpretado como um objeto que se esgota em si mesmo, e sim como um objeto que se realiza, com caráter programático. Daí que não se pode cair no pensamento mágico de que a simples institucionalização formal realiza o programa, quando simplesmente o enuncia. É necessária uma crítica permanente em confrontação com a realidade e a capacidade do direito penal para realizar os Direitos Humanos. As soluções interpretativas concretas não podem ficar fora do contexto total do sistema e devem buscar fazer do saber penal um instrumento de integração e não de marginalização. Responde à confiança na possibilidade de uma organização social que não seja ideal, mas que faça diminuir os níveis de marginalização mediante uma integração comunitária dos setores marginalizados e da conseqüente diminuição dos níveis de injustiça em suas estruturas de poder.

Para isto se faz necessário reconhecer que o direito penal sempre “aspira”, “tende”, “procura”, mas não realiza magicamente, posto que esta realização deve ser alcançada mediante a interpretação adequada que, munida do dado real, proponha à jurisprudência soluções concretas e coerentes com o marco geral dos objetivos do direito penal, sempre tendendo à intervenção mínima e mais racional (menos violenta).

Nesse diapasão de idéias, o fenômeno social do delito deve ser enfrentado sem chegar à confusão de que a interpretação do direito penal aludida deva conduzir a uma aplicação do direito penal que tão somente leve em consideração a injustiça que assola aos marginalizados da estrutura do poder, como forma de equidade e justiça e de garantia de respeito aos direitos humanos, esquecendo-se da importância da eficácia do direito penal e do seu papel social, e ainda, mais especificamente da pena, de controle social necessário à coexistência pacífica entre os homens, à garantia dos bens jurídicos da pessoa humana, ao desenvolvimento da prosperidade e da sociedade como um todo dentro da estrutura de organização social adotada pelos agrupamentos humanos.

Torna-se ilógico não punir sob o pretexto de se aplicar um direito penal mínimo quando, na realidade, este ordena que seja aplicada a sanção em casos nos quais todos os outros meios de “controle social” falharam, quando não bastou ou não se fez presente quando deveria os outros meios de controle social, restando tão somente o direito penal como medida de garantia à segurança jurídica, à paz social e à justiça em última análise.


9. A PENA COMO MEIO PREVENTIVO DE CONTROLE SOCIAL

Mesmo as tendências ideológicas a favor da implantação e ampliação do direito penal mínimo, admitem não ser possível, dentro de uma construção teórica racional e coerente, a abolição total da pena como instrumento de defesa da paz social, isto por que o que se busca com aquele é um controle social necessário, porém justo e que leva em consideração as nascentes sociológicas do fenômeno da penalização e da criminalização de condutas. Não é lógico, mesmo que desejável por alguns, simplesmente perdoar quem ofende bens jurídicos alheios, aplicando-se penas alternativas, ou despenalizando condutas a fim de se corrigir seqüelas de uma estrutura de poder “defeituosa”, que não implanta métodos eficazes de regulamentação de condutas, por isso falhos, e que deveriam atuar antes do direito penal quando o fato exigi a coerção penal como único meio de prover segurança e estabilidade social.

Quando o direito penal é chamado a atuar, e o que se segue é perfeitamente coerente com o direito penal mínimo, não resta outra saída senão a coerção materialmente penal como forma de prevenir novos danos sociais, novas manifestações de desrespeito às normas e aos bens jurídicos alheios. Não cabem ao direito penal indagações de natureza puramente sociológicas ou psicológicas, apenas quando indispensáveis à verificação da periculosidade do agente, ou seja, apenas para se medir o grau e a natureza da coerção a ser aplicada ao fato submetido ao instrumento de controle. A justiça social, fatores psicológicos e, ou, exclusivamente morais não devem influir isoladamente na política criminal, mas apenas quando surgirem como elementos imprescindíveis para a constatação da culpabilidade do agente, e não como fator de ponderação primordial de política criminal.

A efetividade da pena como meio preventivo de controle social deve ser entendida levando-se em consideração a função da prevenção especial da pena, entendida esta como o resultado da influência desta na motivação da conduta das pessoas ao sentirem-se privadas de bens jurídicos valiosos para si mesmas em decorrência de condutas reprovadas pela norma jurídica. Não se deve buscar com a pena apenas a prevenção geral, consistente em exercer papel simbólico frente aos que ainda não delinqüiram, ou seja, não se deve utilizar-se da pena com vistas a torná-la exemplo aos demais integrantes do corpo social, apesar de que inevitavelmente isso ocorrer às vezes. A tese da prevenção geral da pena já foi suficientemente criticada pelos estudiosos da ciência penal, dispensando-se novas considerações.

O ideal é que o caráter de prevenção especial da pena deva ser tido como meio de prover a segurança jurídica na sociedade, adaptando-se para atuar como medida suficiente a motivar a conduta do indivíduo, e não simplesmente coagir-lo materialmente, pois isto fere a autonomia ética do homem. Contudo, o direito penal como ciência que de um lado regula condutas e que de outro protege bens jurídicos, enfrenta casos em que deve, ou pelo menos deveria (e essa é a minha tese frente ao fenômeno do controle social), utilizar-se da pena para apenas, enquanto necessário à segurança jurídica, constranger materialmente neutralizando o perigo manifestado pela conduta tipificada e reprovada pela culpabilidade do criminoso.

A pena, como prevenção especial, possui inegavelmente um caráter retributivo ou reparador do mal causado ao autor do dano, como meio de compensar os males gerados pela conduta delituosa, sendo que, o certo e o racional, é não se admitir a utilização da pena que gere um maior do que o que se pretende reparar ou retribuir. Posto que cada delito tem um significado social diferente e que a criminalização é produto de um processo seletivo, a prevenção especial penal  não pode ser rígida, mas deve adaptar-se a cada situação real. Socialmente, cada criminalização é uma forma de manifestar um conflito e cada conflito tem particularidades próprias. A prevenção especial deve ser um meio prático de resolver tais conflitos, pois toda rigidez apodíctica tende a cair na ficção e a mascarar o conflito.

A plasticidade da prevenção especial penal deve permitir uma pluralidade de soluções que possibilite selecionar o sentido mais adequado às características do conflito manifestado na criminalização.

Contudo, a prevenção especial penal não deve ser tida como um fim em si mesma, e sim um meio de prover a segurança jurídica, pois do contrário a periculosidade seria o único limite para a quantificação da pena. Em um Estado em que a prevenção deva ser um meio de prover a segurança jurídica, o limite da prevenção é imposto pelo próprio sentimento de segurança jurídica e é plasmado pela lei penal.


10. A FINALIDADE DA PENA DA PRIVATIVA DE LIBERDADE

10.1. Panorama Geral das Principais Teorias

A doutrina penal tradicional justifica a existência e necessidade da pena sob três teorias: absolutas, relativas e mistas. As primeiras justificam a pena em si mesma, consistindo o castigo numa retribuição ou compensação pelo mal praticado, conforme explicitado em tópicos acima. As relativas, subdivididas em prevenção geral e prevenção especial, atendem há outros fins posteriores a sua execução, cujo cunho é desencorajar outros membros da comunidade da prática de condutas lesivas (prevenção geral) e o desestímulo ao infrator para que não volte a cometer crimes (prevenção especial). Por fim, as teorias mistas não acentuam a retributividade e tampouco a prevenção negativa como fundamento, assinalando a pena como prevenção positiva, a qual visa à obediência ao direito e o estrito cumprimento da norma pelos membros da sociedade, a fim de assegurar a harmonia e integridade social. Severas críticas são feitas a todas elas o que pode ser sintetizado na aversão à legitimação e efetiva finalidade da pena. A umas, porque padecem de legitimidade na medida em que pretendem a retribuição (castigo = falta), ou seja, compensar o mau na mesma proporção. Obviamente é situação impossível, posto que a pena houvesse de ser aplicada no quantum equivalente ao delito cometido e isso nunca será atingido. Seria a própria reinstituição da Lei de Talião - olho por olho; dente por dente. Ademais, nesta concepção, o Estado assume literalmente o papel de carrasco e vingador das demandas e ofensas particulares, não se comprometendo com a situação de seus membros. Apresentado os defeitos da prevenção geral negativa, descreve Maria Lúcia Karam que "a ameaça, mediante normas penais, não evita a prática de delitos ou a formação de conflitos; ao contrário, eles se multiplicam e se sofisticam. O efeito dissuasório não se comprovou, estando ao contrário, demonstrado que a aparição do delito não está relacionada com o número de pessoas punidas, ou com a intensidades das penas impostas". E acrescenta : "O ponto mais grave da idéia de prevenção geral negativa, porém, é que esta, como a proposta de prevenção geral positiva, encerra a consagração da alienação da subjetividade e da centralidade do homem em benefício do sistema, deslocando o homem de sua posição de sujeito e fim de seu próprio mundo, para torná-lo objeto de abstrações normativas e instrumento de funções sociais". Mesmo a idéia da prevenção especial, cujo fim é a ressocialização do infrator, encontra repúdio, já que a tônica do nosso sistema é a prisão. É um contra-senso então, buscar a reinserção do infrator no convívio social com a segregação de sua liberdade e seu afastamento deste meio. Sobre esta contradição, diz ainda Maria Lúcia Karam: "A idéia de ressocialização, com seu objetivo declarado de evitar que o apenado volte a delinqüir, é absolutamente incompatível com o fato da segregação. Um mínimo de raciocínio lógico repudia a idéia de se pretender reintegrar alguém à sociedade, afastando-a dela". Isso confirma a tese de que a pena inegavelmente se mede, em grau e extensão, pela periculosidade, uma vez que só se deve penalizar, ou ainda, só se deve privar a liberdade, quando estritamente necessário a neutralizar a periculosidade como meio garantir a segurança da sociedade e de preservar o bem estar social.

Ainda assim, se a pena é um mal necessário, é premente que se lhe dê uma concepção mais suavizada, voltando-se maior atenção ao condenado, seu destinatário, assegurando-lhe os direitos que lhe são inerentes, propiciando, destarte, sua preparação para o retorno à vida na sociedade. O direito penal não deve ocupar-se da ressocialização ou da cura do apenado, mas apenas permitir que outros segmentos e aparatos do Estado o façam, pois aquele só deve ser acionado quando imprescindível à neutralização do perigo resultante da falha de outros meios de controle social e, ou a inclinação à prática de delitos mesmo quando exigível conduta e personalidade diversa por parte do condenado, e nesta exigência reside a culpabilidade do delinqüente que é medida pela prática do delito com todas os motivos e circunstâncias que o cercam.

10.2. A Importância da Ressocialização do Condenado

É inquestionável que a coerção penal é punitiva pela sua própria natureza. O delinqüente é condenado e preso por imposição da sociedade, ao passo que recuperá-lo é um imperativo de ordem moral e lógica, do qual ninguém deve se escusar. A sociedade somente se sentirá protegida quando o preso for recuperado. A prisão existe por castigo e não para castigar, é a afirmação cujo conteúdo não se pode perder de vista. O Estado, enquanto persistir em ignorar que é indispensável cumprir a sua obrigação no que diz respeito à recuperação do condenado, deixará a sociedade desprotegida.

A intervenção estatal visa sempre o bem estar da coletividade, propiciando aos seus membros meios e condições bastantes para atendimento deste primado. Na medida em que interfere para reprimir o delinqüente, aplicando-lhe uma sanção penal, busca corrigi-lo para o convívio harmônico com os demais integrantes da sociedade, pois reprova sua conduta na medida de sua culpabilidade. Por conseqüência, estará também promovendo a defesa social. Se o fim maior, portanto, é a ressocialização do infrator para retorno à convivência fraterna no seio social, é fundamental que se faça opção por uma sanção que melhor atinja estes objetivos - dependendo da situação, é até mesmo a ausência de pena que propiciará a readaptação do infrator, eis que sua própria consciência será o tormento a apená-lo. Assim, haverá de ser a pena privativa de liberdade a medida alternativa - no sentido de última hipótese possível - e não o reverso. Porém, aficionados com a pena de prisão, os juízes desvalem das brechas que permite outras modalidades de pena senão o encarceramento. Já é tempo e há condições legais para tal, de se adotar a prisão apenas como última via, preferindo sempre outros "modus puniendi". Este é o processo de despenalização que o Judiciário a muito deveria ter encampado.

Porém, a pena de prisão , ninguém mais contesta, é um remédio opressivo e violento, de conseqüências devastadoras sobre a personalidade, e só deve ser aplicada, “última ratio”, aos reconhecidamente perigosos, considerando-se o homem em sua autonomia ética com capacidade de escolha entre o bem o mal, ou seja, considerando-se sua culpabilidade na dosimetria da pena. É iniludível que o encarceramento do homem não o melhora, nem o aperfeiçoa, nem corrige a falta cometida, nem o recupera para o retorno à vida da sociedade que ele perturbou com a sua conduta delituosa, porém é nalguns casos é medida imprescindível à segurança dos demais integrantes do corpo social.

10.3. Possibilidades de Política Criminal do Direito Brasileiro

A política criminal do nosso tempo deve encaminhar-se para uma gradual eliminação da pena de prisão, com o encontro de outros substitutivos ou alternativas. Para se chegar a esse objetivo, que representa o pensamento dominante, preconiza-se a descriminalização, ou seja, a retirada das leis penais de infrações que não mais devem ser catalogados como crimes de acordo com os costumes de nossa época; a despenalização, isto é, a aplicação de sanções outras, que não a pena de prisão ou a de segregação da liberdade, para condutas que, embora ainda devam estar contempladas na legislação penal, não oferecem maior gravidade ou ofensa às regras de manutenção do convívio social; a desjuridiciarização, ou seja, a supressão da competência do poder jurisdicional penal de ações cuja solução melhor situada ficaria na esfera civil ou administrativa. A prisão deve ficar resguardada para os delitos mais graves, aqueles que atentam contra normas protetoras de direitos cujo desrespeito atinge os princípios de coesão social.

Evandro Lins e Silva, com brilhante e notável lucidez e competência no assunto, assim expõe seu ponto de vista sobre a política criminal adequada e correta: “A política criminal hoje dominante no pensamento científico dos estudiosos do direito penal é: prisão só ultima ratio, só em último caso. Só deve haver segregação de quem é perigoso (grifo meu). O cidadão não sendo perigoso, vamos encontrar uma maneira de permitir que ele volte à sociedade. Ainda há mais argumentos em favor dessa posição: é que o preso custa muito dinheiro, de três a sete salários mínimos por mês. Se você der esse dinheiro ao preso, em muitos casos ele não vai cometer crime nenhum. Nos casos, por exemplo, de crime contra a propriedade sem violência, por que a prisão? Muito melhor é encontrar uma fórmula de ressarcimento do dano, de prestação de serviço gratuito à sociedade, uma sanção qualquer que não leve sobretudo o mais jovem para a prisão, que é uma universidade às avessas, que, em vez de recuperar, vai formar um delinqüente. A prisão oferece um mau contágio, e quem reconhece isso é a própria lei, que manda dar o sursis, a suspensão condicional da pena, nas infrações menos graves. (§) Nos casos em que a prisão é desnecessária para a recuperação do indivíduo, o justo, o correto, o inteligente, o racional, é que não haja prisão.”

Não é razoável utilizar-se da segregar a liberdade do condenado sem qualquer preocupação com a vítima, se foi efetivamente reparado o dano sofrido ou, se ao menos foi viabilizada essa possibilidade mediante normas imperativas. Deve-se, primeiramente, buscar a reparação do dano social gerado pela conduta infratora, o que, no mais das vezes, pode ser realizado sem a segregação direta da liberdade do agente.

Nos casos em que a prisão é desnecessária para a recuperação do indivíduo, o justo, o correto, o inteligente, o racional, é que não haja prisão. Existem outras fórmulas: suspensão de direitos, proibição de morar em determinados lugares, necessidade de prestar contas à Justiça do que se está fazendo... Mesmo porque essa criminalidade que aumenta, que é motivo de revolta, de indignação pública, é resultado de quê? Em grande parte do desemprego, da fome, da miséria, ou seja, da ausência de outros meios de controle social, como a educação, a família bem estruturada, o convívio e o aprendizado das relações profissionais, etc. Na medida em que isso aumenta, aumenta a criminalidade, ainda que não haja uma correspondência absolutamente intrínseca e inexorável de causa e efeito.

Não se pense que a criminalidade vai acabar se se introduzir a pena de morte, a pena mais grave. Absolutamente! Isso é uma ilusão, é uma fantasia, é uma falácia! Na verdade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente. Não é essa a tendência universal! Todo mundo procura encontrar uma maneira de substituir a prisão, todos os estudos que se fazem no mundo hoje são nesse sentido. No Brasil, infelizmente, a propaganda de jornais e de televisão é no sentido do agravamento das penas.

Para que não se caia no equívoco de se pensar que a criminalidade aumenta na medida da “impunidade”, é preciso que se tenha em mente as circunstâncias e condicionamentos sociais que geram ou, no mínimo, aumentam a determinação ou, a inclinação, à prática de crimes, pois criminalidade não tem relação com impunidade e sim com fatores anteriores ao momento em que se mostra a cara ao direito penal.

Ressalte-se que corrente que adota o direito penal de intervenção mínima não contradiz em nada com a aplicação de penas ou medidas severas (necessárias) de segregação da liberdade quando essas se fazem imprescindíveis, ao reverso, vem a confirmar e a subsidiar esta maneira de atuação quando a defesa do interesse público o exigir. A pena privativa de liberdade em primeira análise exerce o papel fundamental de garantir e prover a segurança jurídica quando o condenado agiu com culpabilidade na prática de conduta típica, sendo esta característica o elemento a ser analisado pelo legislador ao criminalizar, restando ao judiciário impor a pena que baste a prover a segurança e reparação dos bens jurídicos que se encontram lesados ou ameaçados. Não raro, a medida que se impõe é única e exclusivamente a privação da liberdade em níveis mais ou menos intensos conforme a culpabilidade e periculosidade do condenado.


11. DIREITO PENAL DE CULPABILIDADE E DE PERICULOSIDADE

As teorias da pena que tentam justificar a sanção penal conferem ao direito penal um caráter com predominância de atuação com vistas na culpabilidade ou na periculosidade, conforme se ache em uma ou noutra inclinação. É a partir do conceito da pena que se pode estabelecer dedutivamente todo o sistema penal e todo o mundo conceitual do direito penal.

Se se seguir as linhas dos falsos dilemas, ver-se-á que os partidários da segurança jurídica e da teoria retributiva da pena dizem defender um “direito penal de culpabilidade”, enquanto os partidários da defesa social e da teoria reeducadora ou ressocialiazadora da pena, dizem defender um “direito penal de periculosidade”.

Segundo a teoria da culpabilidade a reprovabilidade da conduta consistente na exigência de conduta diversa da praticada pelo autor do ato é a própria culpabilidade. Essa exigência é sempre dependente das circunstâncias e, portanto, é um conceito graduável, pois ainda quando se possa juridicamente exigir de um sujeito outra conduta, sempre se lhe poderá exigir mais ou menos, segundo as circunstâncias do caso. Isto nos dará sempre um grau distinto de reprovabilidade e, portanto, de culpabilidade.

Para os partidários da teoria retributiva da pena, esta é a medida da culpabilidade. De alguma maneira a pena retributiva imita a idéia de “pagamento”.

Para admitir a possibilidade censura a um sujeito, é necessário pressupor que o sujeito tem a liberdade de escolher, isto é, de autodeterminar-se. Isso implica que esse direito penal pressupõe ser o homem capaz de escolher entre o bem e o mal. Em síntese, esse direito penal concebe o homem como pessoa, com autonomia ética.

Por outro lado, conforme a teoria da periculosidade, quando se sustenta que o homem é um ser que somente se move por causas, isto é, determinado, que não goza de possibilidade de escolha, que a escolha é uma ilusão e que, na realidade, sempre atuamos movidos por causas, sem que nossa conduta se distinga dos outros fatos da natureza. Chegaríamos a esta concepção de determinismo se analisássemos isoladamente os condicionamentos sociais e as falhas dos meios de controle social, sem se considerar que jamais o homem perde totalmente sua autodeterminação, a não ser em casos anômalos de perturbação da saúde psíquica.

É inegável a influência e condicionamentos exercidos pela falha dos meios de controle social que contribuem para a socialização do homem, no aumento ou diminuição da tendência à personalidade criminosa, mas tomar esse dado isoladamente na determinação da pena corre-se o risco de praticar injustiças na tentativa de se restabelecer uma situação (ressocialização) que nunca sequer existiu na medida e tempo em que era necessária.

O crime deve ser reprovado em decorrência da culpabilidade inerente à conduta criminosa, contudo não pode a culpabilidade, ser tida como a única medida da pena, como defendem os seguidores da teoria da culpabilidade, pois é da própria essência do direito penal exercer o controle em última instância, dando solução, ou, menos tendo em vista esse fim, ao problema social do delito que representa, conforme o caso, um maior ou menor perigo, mediante a coerção penal.

A pode ter, pois, como objeto a prevenção especial, sem com isso negar ao autor a sua autonomia moral. O que a pena não pode ter como limite é a periculosidade isoladamente, pois é inadmissível que um ser que se autodetermina possa ser privado de bens jurídicos, usando-se como único limite a necessidade de prevenção. Nesse ponto, o sentimento de segurança jurídica exige outro limite, que a lei traduz pela imposição de guardar a pena certa relação com a gravidade da lesão aos bens jurídicos ou, mais precisamente, com a magnitude do injusto e com o grau de culpabilidade. A pena não retribui o injusto nem sua culpabilidade, mas deve guardar certa relação com ambos, como único caminho pelo qual pode aspirar a garantir a segurança jurídica e não se afrontá-la.

11.1. A Importância da Culpabilidade na Determinação da Pena

O sentimento de segurança jurídica não aceita que a pessoa (isto é, um ser capaz de autodeterminar-se), seja privada de bens jurídicos, com a finalidade puramente preventiva, numa medida imposta tão-somente pela sua inclinação pessoal ao delito, sem levar em conta a extensão do injusto cometido, e o grau de autodeterminação que foi necessário atuar. Isso não significa que com a pena nada é retribuído, e que apenas se estabelece um limite à ação preventiva especial ressocializadora que se exerce sobre uma pessoa. De outra parte, a inclinação ao delito, além de não ser totalmente demonstrável, possui o sério inconveniente de, muito freqüentemente, ser resultado da própria ação prévia do sistema penal, com o que cairia na absurda conclusão de que o efeito aberrante da criminalização serve para agravar as suas próprias conseqüências, e em razão disso, para aprofundar ainda mais a sua aberração.

Assim sem sairmos do direito penal de culpabilidade e de uma concepção antropológica que afirma a capacidade da escolha humana, reconheço na pena a finalidade preventiva especial, embora negue que tenha por único limite a necessidade de prevenção.

Não se pode admitir que homem se encontre completamente determinado, porque há sempre uma margem de autonomia. O que é evidente é que, nalguns casos, a margem de autonomia se acha reduzida, estreitada pelo condicionamento criado pela própria ação do sistema penal ou da ausência de outros sistemas de controle social eficazes. Esse é um dado da realidade, que não pode ser ignorado pelo direito penal e, portanto, quando ocorrer, a sua correta valoração indicará que, no caso manifesta-se um grau menor de culpabilidade.

É tão arbitrário afirmar que o processo de condicionamento criminalizante está presente em todos os casos, como negá-lo em qualquer caso. Por isso se faz necessário o abandono de concepções radicais que visam à adoção de uma ou outra forma de penalização, em que uma exclui a outra, ou seja, mesclar reprovação e retributividade com prevenção penal quando da aplicação e determinação da pena.

Penalizar considerando a capacidade de escolha do homem é construir um direito penal que respeita a realidade, que respeita a ordem que deve existir entre os fins e os meios, é o chamado direito penal antropológico em que o homem é tido como um ser que pensa e que se autodetermina, que pode escolher entre o bem e o mal.

A sociedade apenas deve ser protegida dos reconhecidamente perigosos, o que se faz pela efetiva aplicação e funcionamento dos órgãos do sistema penal, em especial na fase de excussão da pena em que o exame criminológico desempenha função de instrumento de verificação da capacidade de ser reintegrado ao meio social aqueles que delinqüiram e, que por isso foram afastados do mesmo.


12. DAS PENAS ALTERNATIVAS

A miséria econômica e cultural em que vivemos é, sem dúvida, a responsável por este alto índice de violência existente hoje em nossa sociedade; tal fato se mostra mais evidente (e mais chocante) quando se constata o número impressionante de crianças e adolescentes infratores que já convivem, desde cedo e lado a lado, com um sistema de vida diferenciado de qualquer parâmetro de dignidade, iniciando-se logo na marginalidade, na dependência de drogas lícitas e ilícitas, na degenerescência moral, no absoluto desprezo pela vida humana (inclusive pela própria), no ódio e na revolta. É preciso despertar a atenção para a relevante questão do adolescente infrator, conscientes de que, enquanto não se estabelecer eficaz e efetiva política pública de enfrentamento dos problemas verificados nessa área, será inútil continuar punindo a população adulta, como também continuará sendo inútil, para os juristas, a construção de seus belos sistemas teóricos.

Já há um consenso entre nossos juristas das vantagens de se adotar as penas alternativas à pena privativa de liberdade, tendo em vista os efeitos maléficos do sistema carcerário sobre o condenado a crimes de pequena monta. No entanto, o que não se pode esquecer são a periculosidade e a culpabilidade do condenado por que é para isso que foi construído e institucionalizado o sistema penal, ou seja, para realizar o controle social em última ratio.

O enfrentamento da criminalidade não pode ser relegado exclusivamente ao direito penal, antes deve ser combatida com programas sociais que atendam às necessidades básicas dos excluídos do centro das decisões, programas governamentais que incluam econômica e socialmente os que foram excluídos pela estrutura do poder. Somente com justiça social é que haverá chances de diminuição da criminalidade. As penas alternativas deveriam seguir uma orientação que preserve os caracteres de retributividade e prevenção ao mesmo tempo em que operam como válvula de escape à privação da liberdade do condenado nos casos em que tal medida não seja recomendável.


13. FUNDAMENTO DE PUNIR E OS FINS DA PENA

Temos três correntes Doutrinárias, que nos explicam o fundamento de punir e os fins da pena, são elas: as absolutistas, as relativas ou utilitárias e as mistas.

As teorias absolutistas baseiam-se numa exigência de justiça, ou seja, ao mal do crime, deve-se aplicar o mal da pena, imperante entre eles a igualdade. "Só o que é igual é justo". Negam os fins utilitários da pena defendendo a aplicação de um mal justo oposto ao mal injusto do crime.

As teorias relativas atribuem à pena um fim prático; a prevenção. Esta seria a aplicação da pena para a intimidação de todos para que não cometam o crime. A pena é considerada um mal para o indivíduo, que a sofre, e para a coletividade, que lhe suporta o ônus. Entretanto, justifica-se, por sua utilidade.

Por fim, as teorias mistas, estas sustentam o caráter retributivo da pena, mas agregam os fins da reeducação e da prevenção do delinqüente.


14. O PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

Nossa Constituição consagrou a individualização da pena, em seu inciso XLVI do artigo 5º, como garantia individual. Tal princípio afigura-se extremamente útil e necessário à implantação de um direito penal mínimo e eficaz, pois é através de sua aplicação que se pode atribuir a cada caso concreto a medida adequada e eficaz.

Em brilhante exposição de fundamentos nosso Ex-Ministro do STF, Sepúlveda Pertence, expõe com suscinta clareza a maneira como deve ser aplicada a individualização da pena entre nós: “(...) Individualização da pena, Senhor Presidente, enquanto as palavras puderem exprimir idéias, é a operação que tem em vista o agente e as circunstâncias do fato concreto e não a natureza do delito em tese.

 Estou convencido também de que esvazia e torna ilusório o imperativo constitucional da individualização da pena a interpretação que lhe reduza o alcance ao momento da aplicação judicial da pena, e o pretende, de todo, impertinente ao da execução dela.

De nada vale individualizar a pena no momento da aplicação, se a execução, em razão da natureza do crime, fará que penas idênticas, segundo os critérios da individualização, signifiquem coisas absolutamente diversas quanto à sua efetiva execução.” (RTJ 147/608).

Nesse diapasão de idéias, de como deve ser aplicado o princípio da individualização da pena entre nós, resta evidente seu papel na construção de um direito penal eficaz, justo e coerente com o texto constitucional que assim preceitua:

“XLVI — a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes (...); 

XLVIII — a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado.”

É, pois, norma constitucional que a pena deve ser individualizada, ainda que nos limites da lei, e que sua execução em estabelecimento prisional deve ser individualizada, quando menos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado.

 Evidente, assim, que, perante a Constituição, o princípio da individualização da pena compreende: a) proporcionalidade entre o crime praticado e a sanção abstratamente cominada no preceito secundário da norma penal; b) individualização da pena aplicada em conformidade com o ato singular praticado por agente em concreto (dosimetria da pena); c) individualização da sua execução, segundo a dignidade humana (art. 1°, III), o comportamento do condenado no cumprimento da pena (no cárcere ou fora dele, no caso das demais penas que não a privativa de liberdade) e à vista do delito cometido (art. 5º, XLVIII).

Penso que será atingida, ou no mínimo, se chegará perto de um direito penal mínimo e eficaz se for respeitado os três planos acima expostos quando da aplicação da pena, sempre individualizando-a. Ante os diversos casos concretos que se apresentam, surge a necessidade de se medir o grau de culpabilidade e, num segundo momento, o de periculosidade do individuo, tendo-se em vista a aplicação de uma pena adequada e que atenda aos anseios de justiça e segurança social.


15. O PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA E DIREITO PENAL MÍNIMO

Para que se chegue a concretizar um direito penal mínimo que deixe de aplicar a pena privativa de liberdade nalguns casos, substituindo-a por penas alternativas, despenalizando, ou descrimilizando, imprescindível é a aplicação efetiva da individualização da pena como única forma de dar efetividade ao controle social exercido pelo direito penal, de forma garantista e eficaz.

Exerce papel de compatibilizar a pena privativa de liberdade em um sistema penal minimalista, pois mesmo admitindo-se as vantagens de sua adoção é imprescindível que haja a pena privativa de liberdade nalguns casos, porque do contrário a sociedade ficaria em mãos do crime organizado e da violência urbana.

Cada caso concreto é que exigirá a pena privativa de liberdade ou a sua substituição por outros tipos de pena. Apresenta-se não só compatível como também absolutamente necessário à sobrevivência do direito penal mínimo a aplicação da pena privativa de liberdade em delitos que a exijam.

A individualização da pena adquire maior importância quando da dosimetria da pena e quando da sua execução, pois naquele momento o que se busca é a medida da pena com base nas circunstâncias particulares do caso sub judice e neste observar-se-á o comportamento do condenado, sua capacidade e vontade de reintegrar-se à vida em comunidade, enfim todo o seu mérito para que possa voltar a conviver em sociedade sem oferecer risco à integridade do corpo social.


16. REFLEXOS DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM NOSSO SISTEMA PENAL

O Sistema de execução penal brasileiro, e o mesmo ocorre a nível mundial, conserva desde sua origem, a privação da liberdade como seu maior elemento estruturador. De longa data pensadores, juristas, pessoas e instituições defensoras dos direitos humanos alertam para o que hoje vemos acontecer, a falência da estrutura de execução penal.

Os efeitos desta falência atingem tanto às pessoas que estão envolvidas no combate ao crime, quanto àquelas que são responsáveis pela aplicação e execução das penas. As recentes rebeliões e mortes, mais uma vez, mostram em mídia nacional seu evidente caos e ineficiência.

Maiores e menores infratores, sujeitos da execução penal fundada na privação da liberdade, são retirados do convívio social e da vida de pequenos delitos, na grande maioria dos casos, e submetidos à miséria moral, à criminalidade maior, ao crime organizado, à perda do respeito próprio e pelos outros, às drogas, à promiscuidade, à violência, à tortura, à morte, às doenças, muitas delas letais, à ociosidade, à distância da família, à insalubridade, à superlotação, ao desespero, à desesperança e, ainda, à perda da liberdade.

Diante deste quadro, a sociedade reage admitindo que o atual sistema lhe é prejudicial, e vê na descriminação (exclusão da antijuridicidade ) de determinadas condutas e na alternatividade das penas um novo caminho a seguir. Quanto à alternatividade de penas, desde muito assistimos sua aplicação e, nosso estado, mantendo a tradição de vanguarda no panorama jurídico nacional, já as tem utilizado em larga escala, proporcionando que muitos apenados, ao invés de superlotarem os presídios cumpram suas penas em regime de liberdade, exercendo atividades laborais junto a empresas e instituições integrantes ou não do governo.

O que sempre se deve ter consciência é que coisa é punir com esse tipo de pena um adulto ou um menor bem formado, com família, com emprego ou com capacidade de obtê-lo, onde a punição se afiguraria como mera punição e capaz, por si só de fazer repensar sua conduta. Outra coisa é aplicá-la às pessoas que já perderam o respeito a si e aos outros, que não possuem esperança nem potencial de integração social. Nestes casos, quase sempre resta inócua a substituição da pena privativa de liberdade.

A consciência, não só por parte de que pune mas de quem é punido, de que a pena será eficaz, deverá constituir-se o elemento principal de sua determinação.

Contudo, é inegável que nalguns casos a privação da liberdade, ou o isolamento, é o único meio de se garantir a segurança social, pois do contrário o infrator continuaria ofendendo inocentes desprotegidos.


CONCLUSÃO

O sistema penal brasileiro como instrumento de controle social, em última ratio, vem adotando um modelo de política criminal minimalista, à exceção de leis isoladas de caráter simbólico e oportunista editadas para agradar a opinião pública e promover políticos demagogos, como meio de minorar e evitar os efeitos aberrantes da pena privativa de liberdade cumprida em estabelecimentos penais super lotados e sem condições mínimas de existência compatível com a dignidade da pessoa humana.

No entanto, é indubitável que o sistema penal somente deva atuar quando todos os outros meios já falharam, o que nos leva a conclusão de que a pena deve cumprir antes de tudo seu papel de controle social sobre os que ainda não assimilaram o espírito de como viver em comunidade, de como coexistir pacificamente e sem lesionar os que estão a sua, ou porque na maioria das vezes já perderam o amor a si mesmo ou porque não tiveram nem mesmo a chance de assimilar tais valores.

À pena privativa de liberdade assegura que pessoas que se encontram completamente desprovidas de valores mínimos necessários à coexistência pacífica entre os homens sejam impedidas, ao menos provisoriamente, da prática de condutas que causem lesão ao seu semelhante, e nisto se encontra a inegável presença da periculosidade na determinação da pena. Contudo, não basta somente a periculosidade como elemento de medida e determinação da pena, pois se assim fosse estaria se dando muito crédito ao caráter seletivo de pessoas e não de condutas que o direito penal acaba por realizar, logo, não se deve afastar a incidência da culpabilidade como forte e imprescindível instrumento de dosagem do mérito da conduta do condenado e, consequentemente, de reprovabilidade da mesma.

Muitos crimes podem ser evitados com aplicação de um direito penal mínimo que, ao invés de submeter o condenado à privação da liberdade em meio a outros condenados reconhecidamente perigosos e degenerados, e muitas vezes pelo próprio sistema penal, irá submete-lo a penas alternativas que lhe proporcionem a oportunidade de refletir sobre seu erro tornando-se eficaz.

Da mesma forma, inúmeros problemas seriam evitados com a execução da pena, fase onde o crime organizado muitas vezes se utiliza de oficina para seus planos e ataques contra a ordem social, se fossem aplicadas penas privativas de liberdade eficazes, que realmente segregasse a liberdade dos reprovados por suas condutas e reconhecidamente perigosos que representam uma ameaça à sociedade e ao Estado Democrático. A construção de presídios de segurança máxima que se utilizam da tecnologia para combater o crime dentro dos estabelecimentos penais é exemplo de segregação da liberdade que isolam condenados que representam ameaça à ordem.

É absolutamente compatível com a prática de um direito penal mínimo a aplicação e execução da pena privativa de liberdade quando o interesse público o exigir e na medida em que este ditar.  


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal – Parte Geral.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral.


Autor

  • Paulo Henrique Mendonça de Freitas

    Promotor de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça Substituto do Estado do Acre. Ex-analista Judiciário da Justiça Federal, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Aprovado em 6 (seis) concursos de Analista Judiciário em Tribunais Federais, 4 (quatro) concursos de Técnico Judiciário de Tribunais Federais, Ex-Agente de Polícia Científica, ex-servidor do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Paulo Henrique Mendonça de. A segregação da liberdade como instrumento de controle social e o princípio da intervenção penal mínima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4656, 31 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34297. Acesso em: 27 abr. 2024.