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A segregação da liberdade como instrumento de controle social e o princípio da intervenção penal mínima

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Existe solução viável, adequada e justa para a problemática do controle social realizado através do direito penal em sua faceta instrumental mais extrema, qual seja a segregação da liberdade dos indivíduos?

INTRODUÇÃO

Ante o caos do sistema carcerário de nosso país, tornaram-se frequentes correntes doutrinárias que defendem a substituição da pena privativa de liberdade por outras que mantenham o condenado longe dos presídios, como forma de preservar-lhe dos efeitos maléficos do cumprimento de uma pena junto à “faculdade do crime”.

É inegável que a pena privativa de liberdade causa diversos males sociais e psicológicos ao apenado. No entanto, não há como livrar-se totalmente da aplicação desta medida de controle social, como defendem os abolucionistas, em um país em que as desigualdades sociais e econômicas são tão extremas e díspares.

O direito penal tem acima de tudo um caráter instrumental, qual seja, de realizar o controle social em última instância quando todos os outros meios de controle falharam com relação a determinado caso. Ocorre que a falência e superlotação dos estabelecimentos penitenciários apenas reflete a ausência do estado em proporcionar meios de subsistência e de trabalho aos cidadãos de seu país, bem como a prática de um direito penal simbólico e ineficaz, por que ao invés de se buscar dar uma solução ao problema da criminalidade o que se percebe é o endurecimento das penas e, consequentemente, a sofisticação e o aperfeiçoamento dos crimes.

Apesar da necessidade de se reconhecer os condicionamentos do sistema penal, de se saber que ele acaba quase sempre por selecionar pessoas de determinada classe social, a qual se encontra afastada do centro das decisões em uma estrutura de poder fechada e escalonada, é imprescindível também reconhecer que o homem é um ser livre e que pode escolher, é preciso se construir um direito penal que respeite a autonomia ética do homem e que o toma como fim e não o reverso. Portanto, não se deve apenas visar a ressocialização do condenado, mas, também, a retribuição pelo mal causado e a reparação do dano sofrido pela vítima, pois, a culpabilidade é ainda a medida da reprovabilidade da conduta do agente.

Ressalte-se que a pena privativa de liberdade deve ser aplicada como último recurso ao controle do crime. Na verificação da justeza e da necessidade da aplicação da pena privativa de liberdade, faz-se necessária uma avaliação crítica em cada caso da culpabilidade e da periculosidade do condenado, a fim de se evitar novas vítimas e o estado possa cumprir um direito penal garantista.

No atual cenário do nosso sistema penal é inócua a atribuição ao direito penal da responsabilidade pela ressocialização do condenado, quando, na verdade, este nem mesmo antes de delinqüir era integrado a um meio social saudável que lhe proporcionasse opções para coexistir pacificamente. Contudo, se o estado criou essa “aberração” deve proporcionar meios de corrigir esse mal e o que o direito penal pode e deve fazer é apenas permitir que isso ocorra, porém fora da área penal, ao mesmo tempo em que realiza o controle social necessário à coexistência pacífica.

Nunca se deve perder de vista o fundamento lógico do fenômeno do controle social que é a necessidade de regular condutas a fim de conciliar interesses individuais e coletivos com os interesses públicos da sociedade, garantindo-se a paz e o bem estar social. Porém, para se atingir este fim torna-se imprescindível à eficiência de outros meios de controle social.

Ante a constatação de que em toda sociedade existe o fenômeno dual “hegemonia-marginalização”, e que o sistema penal tende, geralmente, a torná-lo mais agudo, impõe-se exercitar a aplicação de soluções punitivas da maneira mais limitada possível. Daí a importância e benefícios da prática de um direito penal mínimo.

Ressalte-se que apesar das diferentes posições doutrinárias acerca do caráter que a pena deve exercer sobre o condenado, se deve neutralizar a periculosidade ou retribuir a culpabilidade, não há como adotar posição extremada, interpretando-se que uma exclui a outra, ao reverso disto, é necessário que se conciliem esses fatores quando da atividade legislativa, judiciária e executória da pena.

Somente com a adoção de um direito penal mínimo que se preocupa em preservar o cidadão excluído e marginalizado e, por conseguinte, condicionado em maior ou menor grau à prática de delitos, em sua maioria pessoas que vivem na miséria material, moral e cultural, ao mesmo tempo em que retribui com a pena os males causados pela ofensa a bens jurídicos alheios, e sempre tendo em vista o interesse público de proteger a população da criminalidade, esta última que muitas das vezes já perdeu o amor próprio e pelo próximo.


1. CONCEITO E FORMAS DE CONTROLE SOCIAL

O homem é um ser social nato. Reúne-se dentro da sociedade em grupos permanentes ou transitórios, onde eventualmente seus interesses são coincidentes ou antagônicos. Os conflitos entre esses grupos se resolvem de forma que, embora sempre dinâmica, visa e logra certa estabilização que vai configurando a estrutura de poder de uma sociedade, que é em parte institucionalizada e em parte é difusa.

O certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados do centro de decisão. De acordo com essa estrutura, se “controla” socialmente a conduta dos homens, controle que não só se exerce sobre os grupos mais distantes do centro do poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar sua própria conduta para não se debilitar (bote expiatório).

Deste modo, toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e econômico) com grupos mais próximos e grupos mais marginalizados do poder, na qual, podem distinguir-se graus de centralização e de marginalização. Há sociedades com centralização e marginalização extremas, e outras em que o fenômeno se apresenta mais atenuado, mas em toda sociedade há centralização e marginalização do poder.

Esta “centralização-marginalização” do poder arquiteta uma enorme estrutura de controle social, com diversificadas formas de atuação e manifestação delimitando o âmbito de conduta do indivíduo, conforme leciona o professor Eugênio Raúl Zaffaroni.

Diante disso, faz-se necessário refletir acerca desta estrutura do poder para se compreender e analisar o “fenômeno do controle social”, sendo que a escolha do caminho a ser percorrido nesta investigação não altera o produto das conclusões, pois estes elementos interagem, guardando estreita relação de causa e efeito entre si.

O âmbito do controle social é extremamente amplo, e em razão do enorme emaranhado das diversas formas que assume nem sempre se mostra evidente. É possível que se constate o seu ocultamento em graus mais ou menos intensos conforme se trate países centrais ou periféricos, uma vez que os conflitos sociais são mais manifestos nestes do que naqueles. Para ilustrar isso basta deter-se um pouco no papel dos meios de comunicação social de massa que introduzem padrões de conduta sem que a população, em geral, perceba isso como “controle social”, e sim como formas de recreação. Qualquer instituição social desempenha um papel de controle social, pois é de sua essência esta característica, mesmo que seja instrumentalizada com fins mais nobres do que os inerentes a sua essência.

O controle social se vale desde meios mais ou menos “difusos” e encobertos até meios específicos e explícitos, como é sistema penal (polícia, juízes, agentes penitenciários, etc.). A enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social demonstram que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explícito.


2. FUNDAMENTO LÓGICO DO FENÔMENO DO CONTROLE SOCIAL

Em todo Estado Democrático de Direito todo poder que este dispõe tem caráter puramente instrumental, na medida em que se justifica no dever de buscar sempre a realização do interesse público, prevalecendo este sobre interesses particulares, pois estes não sobrevivem sem aquele. Logo, em todo Estado de Direito há o dever de respeitar e fazer respeitar os interesses maiores da sociedade, os denominados interesses públicos, como exigência da paz e do bem estar social.

Em tempos em que o Estado se abstinha ao máximo de interferir nas relações estabelecidas na sociedade, ou seja, época de marcada ideologia liberal, implantada pela burguesia, buscava-se a plena liberdade nas relações que se travavam, afastando-se a presença do estado nestas para garantir o desenvolvimento tecnológico e econômico da sociedade capitalista. Com este e com a multiplicação de relações jurídicas, fonte de interesses particulares ora antagônicos, ora coincidentes com os interesses públicos, surge a necessidade de um estado com feição assumidamente social, abandonando a de neoliberal, por ser imprescindível à convivência pacífica entre os homens a interferência do estado com seus poderes instrumentais conferidos, ressalte-se, pelo próprio corpo social submetido a estes poderes no estado de direito, uma vez que neste todo poder emana do povo.

Esta necessidade de uma maior atuação do estado, restringindo a liberdade de atuação dos particulares, em prol dos interesses públicos, trouxe consigo a imprescindível regulamentação da utilização destes poderes instrumentais, que o estado não é titular, mas sim o povo. O Estado apenas detém o dever de buscar a realização do interesse publico e não uma prerrogativa de titularizar poderes simplesmente por ser o Soberano e usa-los da maneira que lhe aprouver sem qualquer limite. Logo, por isso se criaram garantias aos homens frente à atuação do estado, como forma de controle dos poderes a ele conferidos, em seu caráter instrumental, a exemplia gratia as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório que são filhos daquele, da presunção de inocência e, enfim, todas as garantias notadamente de estatus constitucional entre nós.

No entanto, inúmeras vezes, essas garantias que possuem por sua própria natureza e finalidade de proteger o cidadão frente a abusos praticados pelo Estado, são invocadas dolosamente por particulares para servirem de escudo à atuação da justiça e, em última instância, de escudo à consecução dos interesses públicos. Quando isso se dá, salta-se à evidência a inversão de valores e finalidades na utilização daquelas garantias conferidas aos particulares em detrimento da atuação licita e justa do estado na busca da realização dos interesses maiores.

Retomando o tema a que me propus investigar neste tópico, o fundamento lógico do fenômeno do controle social é a necessidade de regular condutas a fim de conciliar interesses individuais e coletivos com os interesses públicos da sociedade, garantindo-se a paz e o bem estar social. E como visto no tópico anterior, o Estado se vale de variados métodos de controle social, difusos e institucionalizados, nesta categoria enquadram-se os meios ou métodos não punitivos (v.g. o direito civil) e os punitivos (v.g. sistema penal).


3. O SISTEMA PENAL E O CONTROLE SOCIAL INSTITUCIONALIZADO

Considerando-se que o sistema penal abrange a idéia de controle social punitivo institucionalizado, deve-se delimitar bem o campo a ser abordado ao tratar da via punitiva própria do direito penal, o meio punitivo que o diferencia das outras maneiras punitivas de que o estado se utiliza, embora às vezes o faça sem esse discurso, limite esse consubstanciado no seu caráter diferenciador, qual seja, a coerção penal como meio de prover a segurança jurídica.

Importante ressalva a ser feita é que a maioria dos sistemas penais dividem-se em três segmentos básicos que convergem na atividade institucionalizada do sistema e que não atuam estritamente por etapas, posto que têm um predomínio determinado em cada uma das etapas cronológicas do sistema, podendo seguir atuando ou intervindo nas restantes. São eles o policial, o judicial e o executivo.

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Quero, com a ressalva da existência e da influência da atuação destes setores ou segmentos de grupos humanos que compõe o sistema penal, deixar bem assente a distinção de propósitos e fundamentos que norteiam a elaboração teórica de uma possível solução ao problema dos conflitos sociais que demanda uma atuação estatal, mais ou menos intensa conforme o conflito suscitado, quando se em tem vista os diferentes discursos que estes setores adotam. O Discurso Judicial é, regra geral, o garantidor; o discurso policial é predominantemente moralizante; o discurso penitenciário é o terapêutico ou de “tratamento”e de ressocialização.

O Discurso Judicial desenvolve sua própria cultura: pragmática, legalista, regulamentadora, de mera análise da letra da lei, com clara tendência à burocratização. Em geral, há uma manifesta separação de funções com contradição de discursos e atitudes, o que dá por resultado uma compartimentalização do sistema penal: a polícia atua ignorando o discurso judicial e a atividade que o justifica; a instrução, quando judicial ignora a atividade sentenciadora; a segunda instância ignora as considerações da primeira que não coincidem com seu próprio discurso de maior isolamento; o discurso penitenciário ignora todo o resto. Cada um dos segmentos parece pretender apropriar-se de uma parte do sistema, menos o judicial, que vê retalhadas as suas funções sem maior alarme. De qualquer maneira, a compartimentalização não impede os atritos e a imputação mutua de falhas é permanente, parecendo que o sistema não opera em condições satisfatórias devido às falhas dos outros compartimentos.

A importância da ressalva acima, quanto à distinção de fundamentos que se irá adotar no enfrentamento de questões teóricas sobre o controle social, mais especificamente do direito penal, está na detecção da influência dos diferentes discursos na elaboração das premissas de que resultam as proposições. Finalmente, após esse esboço, posso separar e frisar a distinção dos fundamentos e princípios que servirão de alicerce na estruturação lógica da solução ora buscada pelo presente trabalho de investigação científica e os discursos citados acima, os quais não podem ser, de maneira alguma, firmados em discursos que buscam somente dar uma resposta para fora do sistema, uma satisfação à opinião pública.

O Sistema Penal é, como vimos, compartimentalizado, sendo isto apenas uma característica sua que não deve influir, mas que por vezes aparece freqüentemente manifesta sua influência, principalmente, quando surgem casos de repercussão na mídia que demandam solução a ser dada pelo sistema de controle competente, na mentalização do objeto principal da investigação ora proposto, qual seja, o controle social realizado pelo direito penal com a sua peculiar característica de realizar-se mediante a coerção penal como última medida necessária de controle a fim de garantir a paz e a justiça.

Em suma, sendo o Sistema Penal o controle social institucionalizado realizado mediante a coerção penal, que opera materialmente interferindo na esfera individual, restringindo direitos e liberdades, é de se ter como corolário de uma elaboração justa princípios e normas construídas ao longo da história como fruto da experiência coletiva do homem na vida em sociedade, e não tão somente discursos advindos de segmentos de um todo.   

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Sobre o autor
Paulo Henrique Mendonça de Freitas

Promotor de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça Substituto do Estado do Acre. Ex-analista Judiciário da Justiça Federal, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Aprovado em 6 (seis) concursos de Analista Judiciário em Tribunais Federais, 4 (quatro) concursos de Técnico Judiciário de Tribunais Federais, Ex-Agente de Polícia Científica, ex-servidor do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Paulo Henrique Mendonça. A segregação da liberdade como instrumento de controle social e o princípio da intervenção penal mínima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4656, 31 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34297. Acesso em: 25 abr. 2024.

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