4. O CARÁTER DIFERENCIADOR DO DIREITO PENAL
O Direito Penal por ser “direito”, participa de todas as características do direito em geral: é cultura, é normativo, é valorativo, etc. Por ser “direito público” regula relações dos homens com o Estado como pessoa de direito público. Mas com isto não se conceitua ainda totalmente o direito penal. Já foi dito anteriormente, que o caráter diferenciador do direito penal é a coerção penal. Mas qual deve ser o conceito de coerção penal para que se possa ter uma noção do objeto que se pretende tratar? O que distingui a coerção penal das outras formas de coerção jurídica? O que distingue a pena das restantes sanções jurídicas (reparação civil, multa administrativa, nulidade processual, etc.)?
As respostas a essas perguntas resumem-se no fato de que a coerção penal distingue-se das restantes coerções jurídicas, porque aspira assumir caráter especificamente preventivo e particularmente reparador. No seu caráter preventivo especial procura evitar novos delitos e no particular reparador visa uma reparação extraordinária. O primeiro caractere cumpre então uma função simbólica frente ao corpo social por que com a punição de quem delinqüe cria-se um exemplo para os demais integrantes do corpo social ilustrando que a conduta praticada implica sempre na aplicação da uma pena, conduta essa antijurídica, logicamente, e reprovável da qual decorre uma sanção, uma punição.
Ademais, tratarei mais pormenorizadamente dos caracteres da pena quando houver relevância para o objeto e foco do presente trabalho, sem o que me estenderia por demais em virtude da amplitude deste tema e diversidade de respeitáveis opiniões advindas dos maiores especialistas que tratam do tema.
5. A COERÇÃO PENAL E O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO PENAL MÍNIMA
Considerando-se que o sistema penal acaba, inevitavelmente, por selecionar as pessoas marginalizadas à estrutura do poder, dever-se-ia evitar ao máximo a utilização desta via interventiva das esferas individuais, ou melhor, desta via punitiva, senão estar-se-ia adotando postura ainda mais injusta, gerando com a intervenção penal um mal maior do que o gerador da punição. É conseqüência lógica ineludível que a utilização máxima de um poder, que de certa forma possui forte dose de violência, para instrumentalizar um controle social que é manejado por uma classe social para controlar outra, os marginalizados da estrutura do poder, é um tanto autoritário e irracional do ponto de vista jurídico-científico.
Em outras palavras, ante a constatação de que em toda sociedade existe o fenômeno dual “hegemonia-marginalização”, e que o sistema penal tende, geralmente, a torná-lo mais agudo, impõe-se exercitar a aplicação de soluções punitivas da maneira mais limitada possível. Igualmente, a constatação de que a solução punitiva importa sempre num grau considerável de violência, ou seja, de irracionalidade, além da limitação do seu uso, impõe-se, na hipótese em que se deva lançar mão dela, redução ao mínimo, dos níveis de sua irracionalidade.
Esta linha de limitação da intervenção punitiva e redução de sua irracionalidade (ou violência) é o que se denomina princípio da intervenção penal mínima.
Conforme assevera Claus Roxin, o direito penal é de natureza subsidiária. "Ou seja: somente se podem punir as lesões a bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se".
Estabeleceu-se, nessa ordem de idéias, que o direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social, demonstrando a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e, portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for pertinente a outros ramos do direito, ou melhor, só se cogita se é ou não necessária a intervenção penal sem qualquer influência de outras ciências do fenômeno social.
Bem ao contrário da política criminal e da recomendação doutrinária que ora se adota, vemos no Brasil um direito penal absolutamente desproporcional aos limites de seu âmbito científico, vale dizer, há muito no direito penal que não é, ou pelo menos não deveria ser, de direito penal.
A denominada inflação legislativa no âmbito do direito penal, desproporcional à realidade que a recebe, e desacompanhada de qualquer estruturação administrativa para a aplicação efetiva das normas, gerou o caos normativo e a desordem prática, de maneira que não se pode afirmar, com segurança, qual o pensamento do legislador penal brasileiro; qual a finalidade do direito penal brasileiro, e de conseqüência, qual a finalidade da pena no direito brasileiro.
É preciso delimitar o âmbito de interesse do direito penal, e saber que o sucesso da intervenção mínima pressupõe, também, um mínimo de condições de aplicabilidade das normas, o que reclama, no mínimo, uma legislação técnica e coerente, além da necessidade de estruturação dos órgãos de jurisdição, e aparelhamento dos mecanismos de execução das penas.
Também é fato que o direito penal desempenha importante papel na vida em sociedade, uma vez que justamente por possuir caráter instrumental a serviço da manipulação de condutas ofensivas à ordem e a paz social é que não se pode atribuir-lhe caricatura de vilão que somente visa oprimir os marginalizados da estrutura do poder, pois que, sem sua imprescindível atuação não haveria o controle necessário à vida em comunidade. Esse controle, por ser imprescindível, deve ser instrumentalizado sempre tendo em vista os interesses públicos, pois toda vez que uma conduta viola a norma penal proibidora presume-se que tenha havido ofensa a interesses públicos indisponíveis.
Só pelo simples fato de haver descrição proibitiva de uma conduta, já haveria, pelo menos teoricamente, justificação para atuação do sistema penal instrumentalizando os poderes de intervenção na esfera dos particulares da maneira como lhe é peculiar, ou seja, aplicando a pena cominada ao caso. Já é sabido que Poder Público deve sempre buscar soluções que atendam ao interesse público, que na esfera penal é em última análise a segurança jurídica, ou, se preferir a fuga de polêmicas quanto ao conteúdo desta, a tutela dos bens jurídicos indispensáveis à coexistência pacífica entre os homens.
Uma análise apressada do problema do aparente antagonismo existente entre a necessidade de se aplicar um direito penal pautado pelo princípio da intervenção penal mínima, como forma de se evitar o recurso da violência, e a demanda por soluções que atendam aos interesses públicos e que sempre devem prevalecer sobre os interesses particulares ou individuais, como pressuposto de existência destes, poderia levar a conclusões equivocadas de que são posturas opostas e inconciliáveis que habitam pólos opostos. A primeira vista, há uma aparente contradição entre uma atuação estatal que se abstenha em criminalizar, por se saber que o direito penal acaba selecionando os marginalizados da estrutura do poder, com uma atuação estatal garantista dos bens jurídicos, quanto mais quando coincidentes diretamente com os interesses supremos da coletividade.
Contudo, o próprio direito penal fornece a fórmula para conciliar a atuação do sistema penal visando-se atingir o escopo da justiça e da segurança jurídica através da aplicação efetiva do princípio da individualização da pena, que permite a atribuição da sanção penal, ou extra-penal, adequada aos casos concretos que demandam soluções heterogêneas. A individualização da pena é ferramenta e pressuposto para se concretizar a segurança jurídica dos bens indispensáveis à paz e ao bem estar sociais, vez que é instrumento inafastável para aplicar a cada caso a medida adequada à sua culpabilidade e periculosidade.
6. REFLEXÕES ACERCA DA REALIDADE DO DIREITO PENAL BRASILEIRO
Com arguta visão e notável poder de síntese, Jorge Henrique Schaefer Martins assim descreve a realidade nacional do nosso direito penal: "... a criminalidade tem raízes muito mais profundas que uma análise rápida pode expor: a problemática social, a perspectiva de ascensão célere no meio marginal, impensável com o dispêndio de trabalho honesto, a excessiva procura por drogas, a ganância, o desprezo pelas gerações futuras, tudo produzindo o crescimento desordenado da marginalidade, em contraposição às dificuldades do Estado em preservar a segurança dos cidadãos, seja pelo não aparelhamento e pela má remuneração daqueles dela encarregados, como pela visão míope do problema. Acresce-se a isso o fato de o sistema carcerário brasileiro ser considerado como um dos piores do mundo, devido à superlotação nas prisões e à violação dos direitos humanos".
Por isso, correta a afirmação de Marco Antonio de Barros no sentido de que "a dignidade do Direito Penal está seriamente abalada em nosso País".
Não são poucas, evidentemente, as causas que concorrem para o descontrole dos índices de criminalidade, que só fazem crescer.
A maior razão da propalada crise de efetividade da jurisdição, e da pena, no direito penal brasileiro, decorre da ausência de uma adequada visão do problema e da ausência de uma política criminal acompanhada de uma legislação que corresponda ao problema. Conforme advertência de Claus Roxin, "...o direito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica".
As estatísticas revelam o aumento da população, o baixo aproveitamento em todos os graus de ensino, a ausência de capacitação profissional da maioria, os índices de desemprego. A educação é falha e os estímulos para uma boa formação moral são quase inexistentes, restam pequenos oásis. A má formação das crianças e adolescentes, a desesperança, os exemplos de impunidade, a ausência de punição severa em relação aos crimes graves, os domínios do crime organizado, do crime globalizado e do narcotráfico, os incontáveis problemas sociais, são só alguns fatores, que aliados ao descaso para com a Justiça, contribuem de forma decisiva para a elevação dos índices de criminalidade.
7. ALGUMAS MEDIDAS NECESSÁRIAS AO APERFEIÇOAMENTO DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO
Adotando-se o modelo do direito penal de intervenção mínima para o direito penal brasileiro, é imprescindível a necessidade de se proceder a uma análise profunda, providenciando-se uma proposta em termos de codificação dos tipos penais e processuais penais, e o necessário no âmbito político-legislativo para as adequadas modificações, que não podem emergir do pântano atual sem a adoção de muita cautela.
Como já advertia Cesare Beccaria "uma boa legislação não é mais do que a arte de propiciar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência". E arrematava o ilustre filósofo: "Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e evidentes".
Tais mudanças reclamam uma exata compreensão dos limites e do alcance que se deve dar ao direito penal, deixando para as demais áreas de atividades do Estado aquilo que a cada uma couber com exclusividade.
A cada ramo do direito o que lhe pertence, com as sanções correspondentes, onde houver.
Não basta, contudo, a mudança na prática legislativa, que se deve pautar por um melhor rigor técnico e científico, de forma a reduzir o âmbito de atuação do direito penal aos limites de seu efetivo interesse enquanto ciência, sem provocar aqueles indesejados e evitáveis debates estéreis decorrentes da prática oposta.
Tais mudanças, se desacompanhadas da necessária reflexão e tomada de postura frente ao problema da falta de estrutura dos órgãos do Poder Judiciário e de execução penal (que fazem muito pelas condições de que dispõem), de nada adianta. Faz-se necessário mais do que simplesmente a adoção e implementação de ideologias, contudo, antes de mais nada, deve-se ter assente que a elaboração teórica é apenas o marco inicial para se atingir soluções empíricas demandadas pelas relações decorrentes da vida em sociedade.
O Poder Judiciário deve ter – e é este ponto que saliento e que entendo ser um grande desafio – a coragem necessária para esse enfrentamento para que possamos confiar em nossos juízes. Acredito que o Poder Judiciário deveria ter aumentado as suas prerrogativas na execução penal, dando vigor ao princípio da individualização da pena, deixando ao seu alvitre, ao seu bom senso e ao seu equilíbrio, somente quando indispensável, a realização do exame criminológico para a mudança de regime, e permitindo ao juiz até mesmo a antecipação de benefícios durante a fase de execução, como a liberdade condicional ou a conversão da pena em liberdade vigiada com a prestação de serviços para a comunidade, o que significa conceder dinamismo à execução da pena. É preciso coragem para fazê-lo. O que se pretende com isso é manter no cárcere somente o criminoso perigoso, que não pode conviver conosco, por representar um perigo físico, gerar estímulos para aquele que se pretende reaproveitar como cidadão e enxugar o sistema penitenciário e, principalmente, por ser notável o seu alto grau de culpabilidade pelo delito cometido, considerando-se o homem dentro de uma visão antropológica que o considera capaz de escolher entre o bem e o mal. Não precisamos de cadeia para, de vez em quando, demonstrar que a democracia existe, e nela colocarmos um preso padrão da classe alta, que nos possibilite afirmar que cadeia também é para o rico, reafirmando o caráter simbólico da pena; o que se deve buscar é punição para todos, mas gradualmente, de acordo com o necessário para que a reprimenda seja justa, levando em conta o grau de culpabilidade do criminoso e, atendendo ao interesse público de segurança pública, neutralizando sua periculosidade.
A atuação do sistema penal deve sempre buscar a efetivação máxima da individualização da pena com vistas ao escopo da justiça e da segurança jurídica, pois só dessa maneira haver-se-á a implantação de um direito penal mínimo, lógico e coerente com a realidade social. A implantação e aparelhamento de equipes para realização e acompanhamento cuidadosos do exame criminológico dos condenados, visando à adequação da pena e o controle e prevenção do crime organizado dentro dos estabelecimentos de cumprimento das penas privativas de liberdade, mediante implantação de serviços de inteligência nestes estabelecimentos.