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A mensagem do cristianismo como fundamento histórico de institutos jurídicos contemporâneos

A mensagem do cristianismo como fundamento histórico de institutos jurídicos contemporâneos

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A influência cristã perpassou toda a história ocidental e marcou, irremediavelmente, a construção do Direito moderno.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a realizar uma análise do Direito sob uma perspectiva diferente da comumente abordada. Para tanto, procura-se averiguar a relação existente entre o Cristianismo e o Direito, bem como sobre a possibilidade de estabelecer referida relação.

Objetiva-se investigar a gênese de diversos institutos jurídicos constitucionalmente consagrados, os quais podem ser encontrados nos fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito.

Os institutos acima mencionados se tratam de mecanismos de controle social, apresentados dentro da ordem estatal brasileira, tais como a dignidade da pessoa humana, mecanismos que visam à promoção da paz, da solidariedade, igualdade, fraternidade, perdão, tolerância. E sobre estes valores consolidados na esfera jurídica, objetiva-se demonstrar que todos são oriundos do Cristianismo, constituindo-se um desmembramento do maior mandamento cristão de amar a Deus e ao próximo.

Para se chegar ao objetivo proposto, inicialmente, são apresentadas as fontes do Direito e suas modalidades, a fim de se demonstrar a origem da estrutura jurídica atualmente consolidada. Analisar-se-á quais são os fatores que motivaram a existência do sistema normativo.

Em seguida, aborda-se sobre a problemática indecisão do conceito de direito, realizando uma sistematização sobre diversas correntes de pensamentos que se dedicaram em encontrar um sentido ao Direito.

Prossegue-se com a investigação acerca dos critérios de validade do Direito, procurando evidenciar como estes critérios sofreram consideráveis mudanças de acordo com o contexto e a ótica em que estavam inseridos. Serão abordados os critérios de validade sob as perspectivas jusnaturalista, positivista e pós-positivista.

Logo em seguida, conceitua-se o que seria a doutrina cristã, explicando seu surgimento, informando qual a sua mensagem e explicitando como os ensinamentos cristãos trouxeram uma revolução nas ordens sociais e jurídicas.

A partir daí, passa-se a relacionar o Cristianismo e o Direito. Procura-se evidenciar que o Cristianismo nunca pretendeu se impor ao Direito, mas em virtude da grandeza de sua mensagem, aponta-se ele como um fator de peso que estabeleceu a dissociação entre a ordem estatal e a ordem religiosa no cenário ocidental. Contudo, mostra-se que, por conseguinte, mesmo sem esta pretensão, a mensagem evangelística promoveu grande e direta influência no arcabouço jurídico de todo o ocidente e, principalmente, no ordenamento jurídico brasileiro.

É importante esclarecer que as leis são elaboradas e constituídas a partir da autoridade da vontade humana, observado o devido processo legislativo. Porém, importa estabelecer como os valores transmitidos por meio da mensagem cristã estão presentes em vários institutos jurídicos contemporâneos.

Após esta explanação, percorre-se na história da humanidade, fazendo uma análise de como os ensinamentos cristãos serviram de inspiração para fenômenos que mudaram a história do Direito, tais como a Declaração de Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Depois de realizadas estas análises, volta-se a abordagem mais especificamente ao Direito brasileiro. Constata-se que são inelutáveis convergências entre Cristianismo e o ordenamento jurídico brasileiro, sendo imperioso ressaltar a anterioridade daquele, o que leva a entender que um serviu de fundamentação histórica para o outro.

Aborda-se como que mesmo com a constante negação da fé promovida pela modernidade, os valores cristãos estão presentes ordem estatal brasileira, consolidada através do Estado Democrático de Direito, através dos seus objetivos e fundamentos. Salienta-se, também, que a premissa de finalidade das sociedades tanto civil quanto a eclesial, é a busca pelo bem comum.

Assim, propõe-se a reflexão através deste trabalho sobre a relação entre os ensinamentos cristãos e a ordem jurídica ocidental e, mais especificamente, a brasileira, de forma a apresentar os desdobramentos e consequências desta relação.


2 AS FONTES DO DIREITO

A expressão “fonte”, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, significa “aquilo que dá origem; a matriz, o nascedouro” (HOUAISS; VILLAR, 2009a, p. 914) sendo compreendido, então, como tudo que serviu como ponto de partida para a criação de algo. É uma palavra do vocabulário latim fons, fontis, possuindo como significado nascente de água. (NADER, 2013, p.165)

Trazendo a palavra fonte para o mundo jurídico, tem-se a conceituação de Paulo Nader, citando Hubner Gallo, segundo o qual “remontar à fonte de um rio é buscar o lugar de onde as suas águas saem da terra; do mesmo modo, inquirir sobre a fonte de uma regra jurídica é buscar o ponto pelo qual sai das profundidades da vida social para aparecer na superfície do Direito.” (GALLO apud NADER, 2013, p. 165)

No que tange ao conceito das fontes do Direito, Hans Kelsen possui o seguinte posicionamento:

fonte do Direito é uma expressão figurativa que tem mais de uma significação. [...] Por isso, pode por fonte de Direito entender-se também o fundamento de validade de uma ordem jurídica, especialmente o último fundamento de validade, a norma fundamental. No entanto, efetivamente, só costuma designar-se como “fonte” o fundamento de validade jurídico-positivo de uma norma jurídica, quer dizer, a norma jurídica positiva do escalão superior que regula a sua produção. Neste sentido, a Constituição é a fonte das normas gerais produzidas por via legislativa ou consuetudinária; [...] (KELSEN, 2006, p. 259)

Neste sentido, veja-se que para Kelsen,“num sentido jurídico-positivo, fonte do Direito só pode ser o Direito”. (KELSEN, 2006, p. 259) Contudo, o autor prossegue em seu discurso admitindo a existência de fontes não jurídicas, “quando com ela designamos todas as representações que, de fato, influenciam a função criadora e a função aplicadora do Direito” (KELSEN, 2006, p. 259). Kelsen entende ser necessária referida distinção, haja vista que as fontes genuinamente jurídicas são vinculantes enquanto as não jurídicas não possuem este caráter. (KELSEN, 2006)

Dentro desta perspectiva, passa-se a uma análise de onde o Direito busca seu modo de ser, onde encontra apoio, se origina e norteia, apresentando as fontes jurídicas, sendo tratadas neste capítulo como as fontes formais, bem como as fontes não jurídicas, que são as fontes materiais e históricas do Direito.

2.1 Fontes materiais do Direito

As fontes materiais são compostas pelos fatos ocorridos na sociedade, os quais motivam a criação de um instrumento de segurança e ordem jurídica, quais sejam, as regras de Direito. Constituem a manifestação da vontade de um todo social, tendo em vista que é neste meio que aparecem as relações sociais, e, via de consequência, os conflitos advindos destas relações, os quais fornecem ao legislador os elementos necessários para a formação do conteúdo normativo. São, pois, os valores sociais que formam o conteúdo das normas jurídicas.

As fontes materiais são condicionadas por alguns fatores inerentes à sociedade, tais como os fatos econômicos, políticos, religiosos, geográficos e morais. Frise-se que esta modalidade de fonte não configura o Direito pronto, mas é um formador deste.

Sobre esta modalidade de fonte, Paulo Nader assim conceitua:

O Direito não é um produto arbitrário da vontade do legislador, mas uma criação que se lastreia no querer social. É a sociedade, como centro de relações de vida, como sede de acontecimentos que envolvem o homem, quem fornece ao legislador os elementos necessários à formação dos estatutos jurídicos. Como causa produtora do Direito, as fontes materiais são constituídas pelos fatos sociais, pelos problemas que emergem na sociedade e que são condicionados pelos chamados fatores do Direito, como a Moral, a Economia, a Geografia etc. Hübner Gallo divide as fontes materiais em diretas e indiretas: Estas são identificadas com os fatores jurídicos, enquanto que as fontes diretas são representadas pelos órgãos elaboradores do Direito Positivo, como a sociedade, que cria o Direito consuetudinário, o Poder Legislativo, que constrói as leis, e o Judiciário, que produz a jurisprudência. (NADER, 2013, p. 166-167)

À título de exemplificação de fator inspirador do Direito, pode-se citar um fator econômico que foi a crise mundial ocorrida em 1929, a qual ocasionou uma depressão econômica, gerando, por conseguinte, uma reformulação de inúmeras normas jurídicas ao redor de todo o mundo.

Como exemplo de fator moral formador do conteúdo normativo, pode-se citar algumas virtudes morais como o decoro, a decência e o respeito ao próximo.

Para elucidar melhor o conceito, tem-se como exemplo de fatores religiosos, o Direito na antiguidade oriental e clássica, o qual era totalmente confundido com a religião, ambos eram um só, sendo, neste contexto, o pecado visto como crime. Como objeto de estudo deste trabalho, há de serem abordadas inúmeras fontes materiais do Direito que tiveram como inspirações fatores religiosos, mormente, os ensinamentos do Cristianismo.

A respeito desta modalidade de fonte, há uma discussão doutrinária no sentido de ser a expressão “fonte material” apropriada. Miguel Reale acredita ser impróprio o uso da expressão, justificando esta impropriedade com fundamento que a fonte material “não é outra coisa senão o estudo filosófico ou sociológico dos motivos éticos ou dos fatos que condicionam o aparecimento e as transformações das regras do Direito.” (REALE, 2001, p.130). Lado outro, Paulo Dourado de Gusmão defende a propriedade do termo, afirmando que “no sentido próprio de fontes, as únicas fontes do Direito são as materiais, pois fonte, como metáfora, significa de onde o Direito provém.” (GUSMÃO, 1978, p. 127)

Todavia, em que pese a discussão doutrinária, entende-se que as fontes materiais do Direito constituem a matéria prima de elaboração do Direito, concorrendo, também, como as fontes históricas e formais, que serão logo adiante tratadas.

2.2 Fontes históricas do Direito

As fontes históricas do Direito são os documentos jurídicos que, devido à importância e aplicabilidade destes na história, exerceram e continuam exercendo influência até os dias atuais em diversos ordenamentos jurídicos, eis que possuem em seu contexto um conjunto de ensinamentos e determinações dotados de sabedoria e eficácia.

Não obstante ser o Direito mutável em decorrência dos fatores inerentes ao tempo e espaço, de acordo com o contexto vivenciado por cada sociedade, torna-se imperioso ressaltar que há pensamentos e ideias que se mantêm no decorrer de todas estas mudanças sócio-jurídicas. Tratam-se de pensamentos consolidados, permanentes, que mesmo diante da mutabilidade da sociedade e dos ordenamentos normativos, se conservam na esfera jurídica em virtude de um consenso social.

Sobre a fonte histórica, assim define Paulo Nader:

Apesar de o Direito ser um produto cambiante no tempo e no espaço, contém muitas idéias permanentes, que se conservam presentes na ordem jurídica. A evolução dos costumes e o progresso induzem o legislador a criar novas formas de aplicação para esses princípios. As fontes históricas do Direito indicam a gênese das modernas instituições jurídicas: a época, local, as razões que determinaram a sua formação. A pesquisa pode limitar-se aos antecedentes históricos mais recentes ou se aprofundar no passado, na busca das concepções originais. Esta ordem de estudo é significativa não apenas para a memorização do Direito, mas também para a melhor compreensão dos quadros normativos atuais. No setor da interpretação do Direito, onde o fundamental é captar-se a finalidade de um instituto jurídico, sua essência e valores capitais, a utilidade dessa espécie de fonte revela-se com toda evidência. (NADER, 2013, p.166)

Neste diapasão, Paulo Nader apresenta lição de Theodoc Sternberg, o qual leciona que “aquele que quisesse realizar o Direito sem a História não seria jurista, nem sequer um utopista, não traria à vida nenhum espírito de ordenamento social consciente, senão mera desordem e destruições.” (STERNBERG apud NADER, 2013, p.166)

A fim de exemplificar, como fonte histórica do Direito, pode-se citar a Bíblia Sagrada, o livro mais conhecido no mundo Ocidental, o qual possui em seu contexto, inúmeros ensinamentos éticos apresentados por Jesus Cristo e seus discípulos, a Lei de Moisés, que teria sido, segundo os escritos bíblicos, enviada por Deus, dentre outros institutos jurídicos. Pode-se citar, também, o Direito Romano, o Direito Canônico, as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas como fonte histórica do Direito Brasileiro.

Neste sentido, percebe-se que as fontes históricas do Direito indicam a gênese dos atuais institutos jurídicos, constituindo-se de extrema importância, a busca pelo conhecimento de tais fontes, tendo em vista que é a partir delas que se é possível descobrir a finalidade e essência de determinada norma, bem como compreender o atual contexto legal.

2.3 Fontes formais do Direito

As fontes formais se apresentam como a forma de exteriorização das normas jurídicas, o meio pelo qual elas se tornam conhecidas, expressando o Direito. Diante deste conceito, pode-se claramente perceber, dentro do contexto jurídico, que tais fontes tratam-se das leis, dos costumes, da doutrina e da jurisprudência.

Segundo Paulo Nader, as “fontes formais são os meios de expressão do Direito, as formas pelas quais as normas jurídicas se exteriorizam, tornam-se conhecidas. Para que um processo jurídico constitua fonte formal é necessário que tenha o poder de criar o Direito.” (NADER, 2013, p. 167)

O Estado apresenta-se como legitimado para criação de leis, bem como para conferir aos costumes, doutrinas e jurisprudência, força legal. Esta legitimação se dá através dos órgãos próprios, que objetivam regular as relações dos indivíduos, destes com o Estado, e de um ente soberano com outro ou outros.

A Lei se caracteriza como um conjunto de regras jurídicas ditadas pela autoridade estatal, as quais se tornam de observância obrigatória para toda a sociedade, sob pena de incorrer em sanções, caso não observadas. O caráter de obrigatoriedade torna-se essencial, considerando o objetivo de manter a ordem e o desenvolvimento social.

O costume consubstancia-se em práticas reiteradas de determinada sociedade, formada espontaneamente, e liberta do caráter formal, uma vez que não é regulado através de trâmites legais, tal como a lei escrita é. Contudo, por se caracterizar como uma conduta praticada constante e uniformemente pela sociedade, o costume é carregado de obrigatoriedade. Segundo Silvio Venosa (2014), os costumes podem ser classificados como secundum legem, praeter legem e contra legem. Os costumes secundum legem são aqueles segundo a lei, os quais já foram transformados em lei e, portanto, deixou de ser costume propriamente dito. O costume praeter legem, significa aquela conduta reiterada prevista além da lei, a qual é prevista no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, onde prevê que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” (BRASIL, 1942) Por sua vez, o costume contra legem é o que se pratica, contudo é contrário à lei. Esta última modalidade de costume é questionada no campo doutrinário, tendo em vista que a admissão de um costume que vai contra a lei poderia tornar o sistema instável.

A doutrina pode ser conceituada como o universo de estudos e opiniões realizados pelos estudiosos do Direito, com o objetivo de se analisar todo o contexto jurídico, realizando uma análise teórica, apontando sugestões, elaborando críticas e apresentando um estudo mais aprofundado de todo o arcabouço jurídico. Através da doutrina obtêm-se um instrumento de interpretação de normas e orientação quanto à aplicação destas.

A jurisprudência se apresenta como o conjunto de decisões exaradas pelos Tribunais de todo o país, quando da aplicação da Lei. Trata-se do entendimento dos magistrados quando da interpretação das normas jurídicas e a aplicação ao caso concreto.

As fontes formais se caracterizam, então, como o instrumento que exterioriza o Direito, por meio de seus legitimados.


3 A PROBLEMÁTICA INDECISÃO CONCEITUAL DE DIREITO

“Os juristas ainda estão buscando uma definição para seu conceito de direito.” (KANT apud GOYARD-FABRE, 2002, p. XIII). Assim Simone Goyard-Fabre (2002) inicia a temática ora posta questão, complementando a ideia ao afirmar que “nos trabalhos sobre filosofia do direito, que se multiplicam atualmente de modo inflacionário, continua sendo difícil encontrar uma definição que permita arrancar o direito do magma das dúvidas.” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XIII)

Há uma discussão acerca da problemática que se impõe na tentativa de conceituação do Direito. A autora traz a conceituação do termo realizada por renomados doutrinadores no século XVI, os quais apresentavam o Direito como sendo uma mistura dos mandamentos da lei divina e natural com os preceitos humanos, tais como usos e costumes. Lado outro, a corrente clássica apresenta outra conceituação para o tema. Defende que o Direito se encontra em um campo de compreensão multidimensional e complexo, já que o mesmo abrange a metafísica, pois o direito natural clássico possui uma perspectiva cosmológica. Abarca, também, a teologia, considerando a existência de um direito divino. Possui, ainda, uma perspectiva ética ao passo que o Direito impõe às pessoas uma faculdade moral, e, por fim, defende que o Direito adentra na seara da antropologia, pois se apresenta como um direito soberano do estado. (GOYARD-FABRE, 2002)

Sobre esta pluralidade de sentidos do Direito, a autora afirma:

Em sua persistência, o pluralismo semântico da palavra direito não é acidental. Ele corresponde à ambiguidade essencial de seu conceito: na verdade, a multiplicidade de relações que o direito mantém com outros campos da existência humana mostra a dimensão da dificuldade existente para circunscrever seu campo próprio, o que obsta a um empreendimento de definição rigorosa. (GOYARD-FABRE, 2002, p. XVIII)

A autora apresenta, ainda, as mudanças pelas quais o sentido do Direito atravessou, de acordo com o contexto em que era inserido. Para tanto, divide o pensamento em três partes, as quais conceitua como as três ondas de maturação semântica do Direito, realizando um paralelo sobre a mudança do sentido do Direito em diferentes épocas.

A proposta da maturação semântica é buscar retirar do conceito de direito todas as interferências externas e, é apresentada em três ondas sucessivas: “seu conceito, primeiro emancipado de suas implicações teológicas e depois de sua ressonância moral, pretendeu a neutralidade axiológica.” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XIX) A problemática, segundo a autora, consiste em “saber se estas três ondas, por mais intensas que tenham sido, libertam o termo direito do peso de seus equívocos.” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XIX). E é o que será tratado a seguir.

3.1 A primeira onda de maturação semântica ou dessacralização

Esta corrente de pensamento apresenta o Direito através de uma ótica científica, trazendo uma abordagem sistemática do direito que até então era visto como universal. Inicia-se, então, uma incessante busca pela razão, utilizando a experiência e a ciência para definir o conceito de Direito.

Corroborando com a nova corrente de pensamento, a autora traz, no bojo de sua obra, o posicionamento de Hugo Grotius, o qual considerava a “independência do conceito de Direito, desde que seja reportado à razão humana como verdadeira fonte.” (GROTIUS apud GOYARD-FABRE, 2002, p.XXIII). Nesta esteira de pensamento, o autor reconhece três acepções de direito, quais sejam, o direito vinculado ao valor de justiça; o direito subjetivo que significa uma “capacidade” da pessoa; e o direito como lei, estabelecendo regras obrigatórias que visam regular toda uma sociedade. (GROTIUS apud GOYARD-FABRE, 2002)

Demonstrando claramente em seu conceito a defesa dessa corrente, tem-se o posicionamento de J. Bodin, citado por Goyard-Fabre:

As razões seminais do direito e da justiça colocadas na alma de cada um pelo Deus imortal não tardam em ser despertadas pela razão; e, tendo a razão se desenvolvido em nós até a plenitude, ela engendra esse conhecimento do direito que tomamos por objeto, cujos limites a experiência e a ciência nos permitem definir. (BODIN apud GOYARD-FABRE, 2002, p. XX)

De acordo com esta corrente, defende-se abertamente a emancipação do conceito de direito da teologia, considerando-a como necessária. Sobre esta emancipação, assim se posicionam os defensores desta onda de pensamento:

O sentido e o valor do termo direito não devem ser procurados em alguma transcendência incompreensível para o homem. Só podem proceder da razão que construiu seu conceito. Conseqüentemente, apenas uma análise realizada segundo os procedimentos da razão humana é capaz de depreender a compreensão do termo direito. (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXII)

A partir daí passa-se a ter outra interpretação do sentido que o Direito até então possuía, dividindo-o entre as suas fontes divinas e humanas, suas raízes naturais e seu caráter legal, entre o contexto moral e a função técnica, entre a retidão até então idealizada e a prática concreta das condutas de cada indivíduo. Através desta interpretação, ocorre uma divisão no conceito de Direito. (GOYARD-FABRE, 2002)

Verifica-se uma mudança da visão teocêntrica para antropocêntrica, ao passo que a ordem jurídica não mais se encontrava sob o controle de uma natureza cósmica, mas era dirigida pela razão humana.

Não obstante a apresentação do sistema jurídico com uma roupagem reguladora e normativa, a construção racional das normas jurídicas por um Estado, seu único legislador, por si só, fora insuficiente para se alcançar o sentido do Direito. Apenas com o caráter racional, estudiosos do Direito encontram óbice em apresentar um conceito, que ainda estava submetido a uma análise que ultrapassava as jurisprudências e as formas convencionais de avaliação, ou seja, ao horizonte metajurídico. Neste sentido, a autora assim dispõe:

O certo é que sobrecarregado por um excesso de glosas, o conceito de direito fica dividido entre suas fontes divinas e sua feitura humana, entre suas sementes naturais e sua forma legal, entre sua vocação moral e sua função técnica, entre um ideal de retidão e a prática concreta das espécies singulares... Em suma, o conceito de direito está dividido: por um lado, impõe-se as perspectivas racionais de uma eventual codificação que lhe implicaria homogeneização; por outro, o pluralismo dos costumes regionais resiste, com sua carga de pitoresco e eficácia. Portanto, embora haja um despertar da racionalidade jurídica, que busca a especificidade irredutível subsumida no termo direito, ela está às voltas com duas tendências antagônicas – a sistematização e a casuística -, que dão ao direito duas feições incompatíveis. Como a multiformidade do direito engedra-lhe multivocidade, seu conceito permanece indefinido e incerto. (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXI)

Nesta perspectiva, nota-se que embora haja, neste contexto, uma notável distinção entre o direito natural e o direito positivo, “tudo se embaralha quando se sabe que o direito “voluntário” é estabelecido ou por Deus ou pelo homem e que, ademais, sua observância confere “valor moral” às ações.” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXIII)

Destarte, constata-se que mesmo com a dessacralização do conceito do Direito, este ainda se apresentava com significados exteriores que, segundo a visão da autora, continuavam a obscurecer seu sentido.

3.2 A segunda onda ou o hiato entre o Direito e a moral

Através desta onda semântica, a autora propõe, com base nos pensamentos apresentados por Kant e Fichte, uma nova reflexão sobre o conceito do Direito, que neste momento já se mostrava como um conjunto de normas reguladoras de toda a sociedade. (GOYARD-FABRE, 2002)

A reflexão trazida por esta nova corrente se propunha a questionar acerca do caráter prescritivo das normas jurídicas, as quais vinham acompanhadas de uma obrigação a ser cumprida por seus destinatários. Possuindo este caráter, a segunda onda de maturação semântica propunha a autonomia do Direito em relação a moral mediante o questionamento sobre o dever-ser que a norma jurídica impunha. Sobre esta autonomia, assim coloca:

Apesar das modificações mais ou menos moduladas, em linhas gerais a escola do direito natural moderno permaneceu fiel às categorias epistemológicas defendidas por Grotius. Contudo, a conotação do termo direito, que passa a designar principalmente um corpus de regras que administram a sociedade, suscita um novo tipo de reflexão. Com efeito, por ser prescritiva, uma regra impõe sendo acompanhada de obrigação; portanto, para esclarecer o conceito de direito, tornava-se necessário interrogar-se sobre o dever-ser que a regra impõe. Essa interrogação iria provocar a autonomia do direito em relação à moral. (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXV)

Estabelecida a autonomia entre o direito e a moral, há, por conseguinte, a diferenciação do que seriam e em quais campos das relações humanas atuam. Através das teses Kantianas, Goyard-Fabre apresenta esta distinção:

Segundo Kant, toda a filosofia prática remete ao factum rationis da lei moral, o que significa que, no ser racional que o homem é, a vontade tem poder de legislar. Mas a “lei moral” exprime-se segundo as duas figuras do direito e da virtude. Ora, embora o direito e virtude tenham um mesmo princípio e um mesmo fim, não têm a mesma natureza, de sorte que “mesmo um povo de demônios” obedece as regras de direito. Portanto, mesmo quando o direito e a moral se articulam em torno dos três conceitos comuns de dever, obrigação e imputação, eles não se confundem: enquanto as regras morais comandam in foro interno e fazem do dever um móbil suficiente da ação, as regras de direito comandam in foro externo e, por não integrar o móbil do dever à lei, são acompanhadas de coerção. (KANT apud GOYARD-FABRE, 2002, p. XXV)

Em outras palavras, aponta-se a moral como as regras que comandam o foro interno de cada indivíduo, dotados de autonomia. Lado outro, as regras do direito são conceituadas como aquelas capazes de regular as ações externas das pessoas, as quais estão passíveis de coerção quando não observadas. Sobre esta distinção, Goyard-Fabre pontua:

O fato de as perspectivas teleológicas do direito e da moral lhes serem comuns, pois ambos estão a serviço da realização da humanidade no homem, em nada altera a irredutibilidade deles. Eles operam, cada qual à sua maneira, a síntese entre a natureza e a liberdade: assim, num contrato, a palavra dada acarreta, em conformidade com a letra do contrato, o cumprimento da promessa e a execução de um dever exterior; em contrapartida, toda promessa, moralmente considerada, obriga em consciência. O direito situa a ação do sujeito de direito sob o signo da heterenomia; a moral implica a autonomia da pessoa. (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXVI)

Com fundamento nas teses de Kant e de Fichte, Goyard-Fabre “vê no direito a única coisa que torna possível a coexistência das liberdades, ou seja, o que permite inserir a liberdade no mundo sensível.” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXVI)

Para Kant é a lei moral que determina o bem e o mal, ou em outros termos, o que vale e o que não vale. Segundo ele “o conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (à qual, na aparência ele deveria servir de fundamento), mas apenas (como também aqui acontece) segundo ela e por ela.” (KANT apud GOMES, 2004, p. 148)

Os valores, na perspectiva kantiana, decorrem da lei moral, e esta decorre da liberdade, um valor hierarquicamente superior. É da liberdade, considerada um valor transcendental para Kant, que a lei moral e o direito retiram seu fundamento de validade. O fundamento do direito, por sua vez, é a liberdade entendida como autonomia da razão, segundo os pensamentos kantianos. O direito é, então, segundo Kant, a liberdade exteriorizada. (GOMES, 2004)

Sob esta ótica, a moral, por si só, se apresentava como um valor subjetivo que poderia ser encontrado no interior da consciência de cada indivíduo, e, sendo estes dotados de liberdade e livre arbítrio, seria “impossível definir o direito em função da moral.” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXVI)

Diante deste quadro, a segunda onda trouxe para o mundo jurídico a separação entre o direito e a moral, os quais eram anteriormente vislumbrados em um mesmo contexto. Afirma-se colocando que como “o direito não poderia proceder da “boa vontade”, o criticismo operou um aclaramento conceitual que tem algo de definitivo” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXVII)

A esse respeito, tem-se ensinamento do Edgar de Godoi da Mata-Machado:

Fácil é rastrear as influências do kantismo na própria elaboração da ciência jurídica positiva. Decerto será preciso dizer que a separação entre Moral e Direito, tão rigorosamente afirmado pelo idealismo ético, libertou a ciência jurídica e lhe precipitou a secularização. Na medida em que tal libertação e tal secularização significam aquisição de autonomia, não se pode deixar de reconhecer-lhes o mérito. Mas a distinção entre as duas ordens, em si mesma necessária e útil, representaria em breve desunião e, não raro, conflito, expressos, antes de tudo, pela quase universal e radical negação de qualquer fundamento superior do Direito, cujas origens materiais, fenomenais, sensíveis, viriam a ser procuradas ou no mandato do soberano, tal como o sustentaram Austin e toda Escola Analítica Inglesa, ou na alma do povo, segundo Savigny e a Escola Histórica, ou numa consciência coletiva hipostasiada, de acordo com a Sociologia de filiação durkeimeana, ou numa ‘constituição hipotética primeira’, engenhosamente imaginada por Kelsen, o que tudo iria redundar no mais desencantado ceticismo ou no relativismo desconexo, cuja base única de sustentação se alicerçaria, tão só, na força, atuando através do poder coercitivo do Estado. (MATA-MACHADO, 1958, p.13)

Contudo, mesmo diante desta autonomia estabelecida, alguns doutrinadores ainda entendiam que o direito ainda estava encoberto por raízes metajurídicas, e, por tal motivo, deram prosseguimento em busca de libertar a esfera jurídica destas interferências. A esta posterior investigação, dá-se o nome de terceira onda ou a retratação do horizonte axiológico do Direito, a qual será a seguir tratada.

3.3 A terceira onda ou a retratação do horizonte axiológico do Direito

Segundo Goyard-Fabre (2002), a terceira onda ou a retratação do horizonte axiológico do Direito, se apresenta com a ideia de alguns teóricos que defendem a possibilidade de libertação do conceito do Direito de qualquer interferência metajurídica dos valores.

Como propulsores desta corrente de pensamento têm-se os positivistas jurídicos, os quais apresentavam dois fundamentos para o conceito do Direito, quais sejam, o Estado como o detentor do poder de legislar e a neutralidade do Direito em relação à filosofia dos valores. Simone Goyard-Fabre explica a proposta destes teóricos:

A axiomática básica dos positivismos jurídicos resume-se, não obstante seus variados sotaques, a dois postulados: o legicentrismo estatal e a neutralidade axiológica do direito. Sobre essa base de trabalho, a intenção metodológica da doutrina é clara: o positivismo quer ser uma teoria do direito positivo. A vacuidade axiológica do direito e sua indiferença por qualquer horizonte metajurídico devem possibilitar seu tratamento científico, de certo modo imunizado contra toda tentação filosófica. A teoria positivista do direito descreve o direito independentemente de toda problemática de constituição: só lhe interessa o direito tal como é “estabelecido” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXVII)

Para a teoria positivista, a ordem jurídica se apresentava independente de toda a problemática de constituição já que para eles só interessava o Direito na forma em que ele é posto. Assim, não interessava, na ideologia positivista, a análise da gênese das normas jurídicas, embora eles considerem que o Direito é criado e definido pelo Estado.

Nesta visão, Kelsen apresenta a perspectiva positivista em relação aos métodos adequados para a interpretação jurídica, ao afirmar que “a questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a correta, não é sequer uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de Teoria do Direito, mas um problema de política do Direito.” (KELSEN apud MACHADO, 2006, p. 69)

No que tange a dissociação dos valores e da moral em face do Direito, segundo a visão positivista, Roberto Denis Machado apresenta a seguinte constatação:

Os positivistas em geral, defendem a autonomia do Direito em relação à moral, reconhecendo que há relação entre eles, mas não aceitando nem a tese da identidade nem a tese da subordinação. E, por ter como principais argumentos a pluralidade de sistemas morais e a impossibilidade de determinar um conteúdo axiológico comum a todos eles, o positivismo tem sido apontado como uma corrente que estuda o Direito avalorativamente. (MACHADO, 2006, p.74)

Sobre este direito definido, criado pela lei do Estado, a teoria positivista, em busca de uma explicação para a vontade estatal no processo de elaboração do direito positivo, se apoiou em um determinismo explicativo, onde, segundo eles, “são os fatos sociais ou a conjuntura dos acontecimentos que levam o legislador a decidir sobre o que é direito.” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXVIII)

Neste diapasão, Goyard-Fabre entende que os positivistas entram em contradição, conforme explica:

Mas, na vertente sociologizante ou historicista por que ela envereda, a teoria positivista do direito cai em contradição: ao passo que no princípio ela considerava que o direito deveria ser estudado como um objeto auto-suficiente, acaba por tornar o direito heteronômico, pois este parece ser produto de condições socioeconômicas ou históricas. (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXVIII)

A autora considera que, ao contrário do que inicialmente pretendia os positivistas, eles acabaram por trazer ao conceito de direito inúmeras semelhanças com tudo aquilo que eles mesmos consideravam como “não-direito”. Sobre esta problemática, assim discorre:

Se examinamos o positivismo jurídico em seu alcance filosófico, ele levanta dois problemas dos mais espinhosos. Com efeito, para permanecer fiel à sua postulação e à sua vontade de pura neutralidade, ele tem de considerar que o direito é alheio tanto ao valor do justo como a qualquer horizonte de idealidade. Ora, as consequências dessa atitude são terríveis. Por um lado, como compete à lei definir o justo – a lei é justa porque é a lei -, ela encerra as normas do direito na ordem positiva estabelecida hic et nunc pela autoridade estatal e corre o risco de pender para a anexação do direito pela política. Por outro lado, a recusa de um horizonte de idealidade leva a situar o direito numa perspectiva horizontal em que ele só tem dimensão técnica e instrumental: o direito é assimilado às estruturas administrativas da sociedade e tende a se confundir com uma técnica gerencial. (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXVIII-XXIX)

Ainda na questão da problemática estabelecida pelos positivistas, vislumbra-se que pela objetividade de sua proposta, o positivismo nega qualquer juízo de valor ou apreciação crítica.

Conclui afirmando que “reduzir as regras e as prescrições jurídicas à positividade das decisões do legislador – mesmo quando estas não são pura arbitrariedade e encontram sua razão de ser na conjuntura social ou no acontecimento histórico – decorre do “medo normativo [...]” (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXIX) Desta forma, desprovidos da dimensão ideal de normatividade, a teoria positivista acaba indo na contramão de sua pretensão, de forma que atola a concepção de direito a um “objetivismo rasteiro que a esvazia de seu sentido específico”. (GOYARD-FABRE, 2002, p. XXX)

Assim, segundo a autora, o positivismo foi considerado como um antijuridismo, pois, com um discurso de neutralidade, o conceito de direito por ele apresentado acaba por negar o próprio direito, já que não lhe permite maiores abrangências.

3.4 O Direito em busca do seu sentido

Diante das ideias apresentadas por diferentes correntes em busca de qual seria o sentido do Direito, apresenta-se na esfera jurídica uma ausência de convergência sobre qual seria este sentido.

De acordo com Simone Goyard-Fabre (2002), enquanto há o reconhecimento de que cada indivíduo é dotado de direitos naturais, intrínsecos ao ser humano, e independente do Estado e da sociedade, tais como liberdade, propriedade e igualdade, possuindo um caráter universal, percebe-se, em contrapartida, que tais direitos, embora já consolidados no interior dos indivíduos, não possuem efetividade jurídica por estarem desprovidos de garantia e sanções por parte do Direito positivado.

Neste diapasão, a autora conclui que os direitos naturais, embora dotados de validade, buscavam sua efetividade jurídica no direito positivo, a fim de obterem força jurídica efetiva para se fazer respeitar.

Prosseguindo na busca pelo conceito do Direito e a razão de suas normas, estudiosos se debruçaram no estudo do tema que, segundo Simone Goyard-Fabre (2002), é, por sua natureza, confuso e impreciso, já que dotado de um pluralismo semântico, por reger condutas diversificadas e por possuir a característica de mutabilidade.

Para se obter uma resposta, a autora apresenta como solução a inversão do método até então utilizado, propondo que, ao invés de buscarem a análise do sentido do Direito através dos princípios e posteriormente às suas consequências, deve-se remontar através do que já existe e buscar qual a razão de ser como é. Em outras palavras, a autora propõe a análise da realidade objetiva do direito em conjunto com a idealidade normativa que ele veicula, procurando onde o Direito encontra os seus alicerces.

Nesta incessante busca de uma certeza a autora conclui: são os fundamentos do Direito que o tornam possível e válido. Impõe-se, desta forma, a busca pela razão de ser do Direito, redirecionando o pensamento para a sua transcendentalidade, fugindo, assim, das discussões sobre as normas que já estão postas, e voltando-se às razões que serviram e servem até hoje como alicerce do Direito.

E é sobre esta reflexão que o presente trabalho se propõe a realizar, buscando averiguar a possibilidade da afirmação do Cristianismo como um dos alicerces históricos que fundamentou o Direito tal como é atualmente concebido.


4 O PROBLEMA DA VALIDADE DO DIREITO

Segundo Alexandre Travessoni Gomes “a busca do fundamento de validade do direito sempre foi objeto das indagações dos grandes pensadores ocidentais. Desde a Antiguidade o homem se pergunta por que deve obedecer ao direito positivo e qual deve ser o conteúdo deste direito.” (GOMES, 2004, p. 23)

Por sua vez, Alexy considera, em sentido estrito, que “uma norma é juridicamente válida se foi promulgada por um órgão competente para tanto, segundo a forma prevista, e se não infringe um direito superior; resumindo: se foi estabelecida conforme o ordenamento” (ALEXY, 2009, p. 104).

De acordo com o dicionário Houaiss, a validade possui como significadoqualidade ou condição de algo que se encontra em condições de produzir os efeitos dele esperados.” (HOUAISS; VILLAR, 2009b, p. 1.919) Na conceituação do mesmo dicionário, a validade vem apresentada como termo jurídico que significa “característica presente no ato jurídico que não possui nenhuma causa de nulidade, que foi concluído com observância de todas as determinações e formalidades exigidas por lei.” (HOUAISS; VILLAR, 2009b, p. 1.919)

Neste diapasão, os conceitos de validade serão apresentados sob a ótica de diversas teorias, as quais defendem, cada qual, suas ideias acerca de qual seria o fundamento que legitima a norma jurídica, tornando-a válida.

O objetivo é justamente buscar um conceito coerente e prático para a validade. Para alcançar este objetivo, abordar-se-á o conceito de validade material defendido pelos jusnaturalistas, de validade formal pelos positivistas e, em seguida, o conceito de validade procedimental apresentado no contexto pós-positivista.

4.1 O Jusnaturalismo

O Jusnaturalismo, também conhecido como Doutrina do Direito Natural, pode ser compreendido sob diversos enfoques. De acordo com Alexandre Travessoni Gomes, o Jusnaturalismo foi compreendido em diversas manifestações do pensamento jurídico. Fundamenta tal assertiva, considerando que o direito natural já foi apresentado como reflexo da ordem natural, oriundo da vontade divina. Em outro momento, fora vista como reflexo da ordem natural, contudo, deriva da razão. Em que pese a diversidade de manifestações desta corrente, entende que todas elas defendem a crença em um direito superior que vincula o conteúdo do direito positivo. (GOMES, 2004)

No mesmo sentido, tem-se o conceito apresentado por Paulo Nader, o qual chama de “Jusnaturalismo a corrente de pensamento que reúne todas as idéias que surgiram, no correr da história, em torno do Direito Natural, sob diferentes orientações.” (NADER, 2013, p.262) Complementa o conceito com a seguinte assertiva:

A corrente jusnaturalista não se tem apresentado, no curso da história, com uniformidade de pensamento. Há diversos matizes, que implicam a existência de correntes distintas, mas que guardam entre si um denominador comum de pensamento: a convicção de que, além do Direito escrito, há uma outra ordem, superior àquela e que é a expressão do Direito justo. É a idéia do Direito perfeito e por isso deve servir de modelo para o legislador. É o Direito ideal, mas ideal não no sentido utópico, mas um ideal alcançável. A divergência maior na conceituação do Direito Natural está centralizada na origem e fundamentação desse Direito. Para o estoicismo helênico, localizava-se na natureza cósmica. No pensamento teológico medieval, o Direito Natural seria a expressão da vontade divina. Para outros, se fundamenta apenas na razão. O pensamento predominante na atualidade é o de que o Direito Natural se fundamenta na natureza humana. (NADER, 2013, p. 436-437)

Conforme se pode observar, o jusnaturalismo é apresentado, ao longo da história, sob diversos enfoques, todavia, todas as correntes de pensamentos convergem ao defender o Direito emanado de uma ordem superior, além da capacidade humana, capaz de servir de exemplo para o Direito positivo.

Posta uma noção sobre o que seria o Jusnaturalismo, passa-se ao estudo do fundamento de validade dentro desta perspectiva em suas diversas manifestações. Desde já, consta-se que os jusnaturalistas adotam o critério de validade material, tendo em vista que para a análise de legitimidade de suas normas, volta-se para o conteúdo destas, para a matéria em que nelas são tratadas.

Para tanto, buscando uma melhor compreensão do tema, Alexandre Travessoni Gomes (2004), divide o estudo do Jusnaturalismo em três fases, quais sejam, o Jusnaturalismo antigo, o Jusnaturalismo cristão-medieval e o Jusnaturalismo moderno.

4.1.1 A validade material do Jusnaturalismo antigo

O Jusnaturalismo antigo marca o surgimento da Doutrina do Direito natural, que teve início no período arcaico grego. Naquela época, as normas jurídicas derivavam da vontade dos deuses, repassadas aos seres humanos através da revelação da vontade divina. Como pensadores que se destacaram neste período, pode-se citar os Sofistas, Sócrates, Platão, Aristóteles e os Estóicos. (GOMES, 2004)

A fim de exemplificar como o Direito era visto neste período, cita-se o episódio de Antígona, o qual demonstra com clareza a visão da antiguidade clássica no sentido das leis naturais, entendidas como divinas, vincularem as leis positivadas, e, por consequência, conferirem validade a estas.

Polínices e Eteócles, irmãos de Antígona, duelaram até a morte. O rei Creonte mandou enterrar Etéocles com todas as honras, mas proibiu que Polínices fosse enterrado. Estableceu que aquele que violasse a sua ordem seria condenado à morte. Mandou anunciar a sua decisão a todos, colocando homens de guarda junto ao cadáver, para evitar que alguém o roubasse e o enterrasse. (SÓFOCLES, 2005)

Todavia, Antígona não se conformava com a ordem do rei, por considerá-la injusta e contrária às leis divinas. Diante disto, e mesmo com a expressa proibição do rei, Antígona sepultou o corpo do irmão com todos os ritos necessários, a fim de que o corpo dele fosse aceito pelos deuses. (SÓFOCLES, 2005) Não demorou muito para que o rei ficasse sabendo, e, cheio de furor, mandou que trouxessem Antígona a sua presença, e assim a questionou:

[...] Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?

- Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?

- E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?

- Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que te édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu que não temo o poder de homem o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham punir os deuses! (SÓFOCLES, 2005, p. 30-31)

Diante deste quadro, pode-se claramente notar que Antígona preferia a sanção dos homens à dos deuses, pois considerava que o direito positivo não refletia as normas do direito natural, não representando, portanto, um direito justo.

Alexandre Travessoni Gomes ressalta que

A importância deste episódio está não apenas nessa interiorização, mas no fato de, pela primeira vez, aparecer, de forma clara, a fundamentação do direito positivo numa lei superior (direito natural) e ainda, como nota Truyol y Serra, a possibilidade de um conflito entre este e aquele. (GOMES, 2004, p. 44)

Daí se extrai uma das grandes questões postas pela Filosofia do Direito Ocidental, a saber, a questão da legalidade-legitimidade do poder, e o direito de resistir à ordem injusta.

Neste contexto, surgem os sofistas, os quais “empreenderam uma crítica ao fundamento de validade do direito, retirando a tradição de sua sacralidade.” (GOMES, 2004, p. 46) Para os sofistas, o direito se apresentava como “um produto meramente humano.” (GOMES, 2004, p. 47)

Já Sócrates entende por legalidade a seguinte premissa: “justo é respeitar a lei sempre, mesmo que a lei seja injusta (possua algum defeito), não implicando esse respeito à lei injusta a atribuição da qualidade “justa” a essa lei.” (GOMES, 2004, p. 51)

De acordo com Platão, há um Estado ideal. Segundo Alexandre Travessoni Gomes, Platão considera que “o direito desse Estado ideal é, pois, o direito natural, ou o direito ideal. A justiça, que nesse Estado ideal é sempre praticada, consiste em “dar a cada um o que lhe é devido” de acordo com suas aptidões.” (GOMES, 2004, p. 57)

Por sua vez, Alexandre Travessoni Gomes demonstra como o direito natural estava presente no pensamento de Aristóteles. Para tanto, afirma que

[...] a conformidade com a lei, em Aristóteles, não pode ser mera concordância com a lei positiva. Isso porque, sendo a equidade o justo do caso concreto, vai além da lei positiva e demonstra que a justiça em Aristóteles não pode ser mera concordância com ela, significando, pois, a concordância com a lei natural. (GOMES, 2004, p. 64)

Após Aristóteles, surge em cena o Estoicismo que “colocou no centro de seu sistema o conceito de natureza, entendida como princípio dominador que paira por todo o universo (Deus).” (GOMES, 2004, p. 65) Complementando esta ideia, o estoicismo considerava que “o universo é composto por uma substância, que é a razão: a lei da natureza é a razão. O homem, como parte dessa natureza, é um ser racional.” (GOMES, 2004, p. 65) Os estóicos defendem que se uma lei positiva viola a lei natural, ela é, por sua vez, injusta. (GOMES, 2004)

O autor ainda aponta Cícero, um pensador eclético que adotou a idéia estóica, apresentando a trilogia legal defendida por este pensador: “a) a lei eterna é lei da reta razão, em concordância com a natureza; b) essa razão tem sua sede também no homem, lei natural, c) vinculando o direito positivo (lei positiva), que com ela deve ser concorde.” (GOMES, 2004, p. 66)

Assim, mesmo diante das diversas manifestações de pensamentos dentro deste período, pode-se perceber que a validade do Direito sob a ótica do Jusnaturalismo antigo, está subordinada à convergência com o direito superior, eterno e soberano.

4.1.2 A validade material do Jusnaturalismo cristão-medieval

Após o Jusnaturalismo antigo, surge, na Idade Média, o Jusnaturalismo medieval, conhecido também como Jusnaturalismo cristão. A característica marcante desta corrente de pensamento era a observância da vontade do único Deus, apresentando uma tendência teocêntrica. Não mais se baseavam em vontade de deuses superiores, mas agora, baseava na vontade do Deus da Bíblia, sendo ele, segundo esta corrente de pensamento, o responsável por estabelecer as normas que separam o justo do injusto. (GOMES, 2004)

Alexandre Travessoni Gomes (2004) informa que tal corrente de pensamento possui como a mais antiga manifestação de suas ideias, as afirmações feitas pelo Apóstolo Paulo, na carta dirigida aos Romanos, em seu segundo capítulo, nos versículo treze ao quinze[1], quando afirma que são justos aqueles que fazem o que manda a lei, que está escrita no coração dos homens.

Possui como principais defensores Santo Agostinho e Santo Tomás. (GOMES, 2004)

Segundo Alexandre Travessoni Gomes, “interessa-nos diretamente o fundamento de validade do Direito em Santo Agostinho, que, como mostra Salgado, absorve a trilogia legal dos estóicos, adicionando-lhe a idéia de um Deus pessoal (SALGADO apud GOMES, 2004, p. 72)

Santo Agostinho defendia a existência de uma lei eterna e imutável no espírito de cada ser humano, e, ainda, uma lei temporal, aquela promulgada em códigos, inerente ao convívio dos homens na terra. Sobre este posicionamento, bem coloca Alexandre Travessoni Gomes, citando Santo Agostinho:

A vontade de Deus é a lei eterna, considerada, por Santo Agostinho, “a razão suprema de tudo, à qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os bons merecem vida feliz e os maus vida infeliz.” Essa lei é eterna e imutável, sendo fundamento do justo e de tudo legítimo que existe na lei temporal. A lei eterna imutável foi impressa no espírito dos homens que, ao contrário dos animais, possuem razão. [...] Além da lei eterna que foi impressa no espírito do homem, há leis temporais, que se promulgam nos códigos, necessárias aos homens que vivem na terra (cidade terrena). Sendo a espécie humana mutável e sujeita às vicissitudes do tempo, a lei temporal pode ser modificada sem que se constitua, com isso, injustiça. (AGOSTINHO apud GOMES, 2004, p. 72)

Desta forma, Santo Agostinho propunha que a lei terrena poderia ser modificada de acordo com a mutabilidade da espécie humana e as mudanças decorrentes do tempo, mantendo o seu caráter de normas justas. Assim, a lei temporal ou o direito positivo, poderá sofrer mutações já que destinadas a sujeitos mutáveis, não perdendo de vista que seu fundamento se encontra na lei eterna imutável.

Neste sentido, Santo Agostinho defende que o direito deve estar em consonância com as exigências da lei eterna, de forma que, havendo disposições contrárias à lei de Deus, não possuem, por conseguinte, força vinculante.

Já Santo Tomás defende a ideia de que o direito divino excede a natureza humana, motivo pelo qual entende que este não deva ser chamado de direito natural. (GOMES, 2004)

Segundo a visão tomista, o homem participa da lei eterna através da razão. Alexandre Travessoni Gomes complementa esta ideia:

E por intermédio da razão o homem encontra o princípio supremo da lei natural que manda fazer o bem e evitar o mal. Esse princípio supremo é imutável, assim como os princípios secundários, podendo apenas haver mudança em alguns casos particulares, “devido a certas causas especiais que impedem a observância de tais preceitos.” (AQUINO apud GOMES, 2004, p. 77)

Prossegue afirmando que “como a razão humana participa de maneira imperfeita da razão divina, surge a necessidade de a razão prática sancionar determinadas ações particulares, por intermédio da lei humana.”(GOMES, 2004, p. 77) Complementa dizendo que “a lei natural, razão humana partícipe da lei eterna, dá ao homem os princípios, dos quais são derivados a lei humana, que tem por objetivo o bem da comunidade.” (AQUINO apud GOMES, 2004, p. 77)

Alexandre Travessoni Gomes aponta que “sendo o fundamento de validade da lei humana a lei natural, aquela não poderá violar esta, caso em que será considerada injusta.” (GOMES, 2004, p. 78). Para Santo Tomás de Aquino existe, ainda, outra forma de injustiça da lei humana, qual seja, a violação da lei divina. Ele considera que “a lei divina é a lei revelada ao Homem, não sendo, portanto, conhecida por intermédio da razão.” (GOMES, 2004, p. 78)

Gomes entende que “essa concepção tomista dá base a um direito de resistência contra a lei injusta, que deve, entretanto, ser exercido com prudência: a lei humana que viola a lei natural deve ser respeitada para que a ordem seja mantida.” (MIRANDA apud GOMES, p. 78). Todavia, complementa afirmando que caso “a lei humana viole a lei divina, estabelecendo, por exemplo, a idolatria, não deveria ser respeitada.” (AQUINO apud GOMES, 2004, p.78)

Destarte, verifica-se que a validade do Direito, segundo pensamento de importantes defensores do Jusnaturalismo cristão-medieval, condicionava-se ao sagrado, contudo, buscava sua fundamentação na vontade de um único Deus, àquele apresentado pelo Cristianismo.

4.1.3 A validade material do Jusnaturalismo moderno

Logo em seguida, com o Renascimento, aparece em cena o Jusnaturalismo moderno, substituindo o teocentrismo medieval pelo antropocentrismo humanista, ou seja, desviando o foco de Deus e trazendo o homem para o centro das discussões sobre a validade das normas jurídicas. Possui como principais doutrinadores Hugo Grócio, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Rosseau. (GOMES, 2004)

Hugo Grócio e Thomas Hobbes, defensores do primeiro estágio do jusnaturalismo clássico, apresentam a ideia de que o governante sábio e que possui autocontrole é capaz de garantir a observância do Direito natural, havendo, com isso, uma separação deste com a religião. (GOMES, 2004)

Grócio estabeleceu uma separação entre o direito natural e a religião, sendo os princípios naturais derivados da razão e não mais da divindade. (GOMES, 2004) Ele estabelece um duplo fundamento do direito natural: “a reta razão e a sociabilidade humana” (GRÓCIO apud GOMES, 2004, p. 81). Apenas para elucidar melhor este duplo fundamento, traz-se a lição de Alexandre Travessoni Gomes:

Grócio parte do pressuposto de que o homem possui um desejo irresistível de se estabelecer em sociedade, e que por isso deduz, pela razão, os princípios do direito natural. A razão não é mais o órgão do conhecimento natural de Deus, mas a faculdade cognoscitiva das verdades fundamentais da vida social, equiparáveis, na sua estrutura, às verdades matemáticas. (GRÓCIO apud GOMES, 2004, p. 81)

Por sua vez, Hobbes estabeleceu o estado de natureza, não se importando, diferente de Grócio, pela criação de uma “ordem normativa ideal, mas uma ordem real de convivência.” (WEZEL apud GOMES, 2004, p. 81). Segundo Hobbes o direito natural é entendido como “um preceito ou regra natural descoberto pela razão que proíbe a um homem fazer o que é destrutivo de sua vida ou pode privá-lo dos meios de a conservar; e omitir o que, em seu conceito, deve deixar de fazer para assegurar sua existência.” (GOMES, 2004, p. 81-82)

Neste sentido, Hobbes defendia que “uma vez criado o Estado, para tornar possível a convivência entre os homens, o justo e o injusto são determinados pela ordem estatal.” (GOMES, 2004, p. 82)

Desta forma, constata-se que para estes autores a validade do direito estava condicionada pela vontade do governante, quem detinha a gerência do Estado.

O segundo estágio do Jusnaturalismo clássico é marcado pelas teorias apresentadas por Locke e Montesquieu, os quais trouxeram em suas ideias a imposição de limites do poder político, afirmando, como forma de garantia do direito natural dos indivíduos, a separação de poderes, objetivando evitar a ocorrência de casos de tirania e arbitrariedade governamental. (GOMES, 2004)

Atento ao contexto vivenciado, justificam-se os pensamentos destes filósofos na busca em se estabelecer limites para a atuação do Estado, o que não se vislumbrava no pensamento Hobbesiano. (GOMES, 2004)

Para Locke, “no estado civil os direitos naturais não desaparecem, mas subsistem. A lei da natureza sobrevive, mudando apenas o direito de obrigar seu cumprimento, que passa ao corpo político.” (GOMES, 2004, p. 84) É em Locke que se “estabeleceu a divisão dos poderes em legislativo, executivo e federativo, com fim de impedir a tirania e arbitrariedade governamental.” (GOMES, 2004, p. 84)

Nessa esteira de pensamento, Montesquieu afirma que “as leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da natureza das coisas.” (MONTESQUIEU apud GOMES, 2004, p. 85)

O terceiro estágio do pensamento jusnaturalista clássico, marcado pela teoria de Rousseau, acreditava na soberania popular e na Democracia, posicionando no sentido de que o Direito natural se manifestava através da vontade geral. (GOMES, 2004)

Como visto, embora sob diferentes óticas, constata-se que da corrente jusnaturalista moderna se extrai a imperiosa necessidade de observação dos fatos sociais e da natureza humana para a efetivação da justiça através do Direito, e, por consequência, para obtenção de validade das normas, por meio da observância dos princípios do Direito natural.

Desta feita, diante das perspectivas de validade apresentadas dentro das correntes jusnaturalistas, para uma norma jurídica ser considerada como válida, é imprescindível a convergência entre o Direito natural e o Direito positivo, ou seja, para que as normas positivadas sejam válidas, torna-se imperioso que estejam em concordância com o Direito natural. Em sentido contrário, é de se concluir que se uma norma positivada viola o Direito natural, flagrantemente ela não será válida.

Assim, pode-se claramente extrair que a validade no Jusnaturalismo traz consigo um fundamento material, sendo que para a validade de uma norma, é necessária a observância de seu conteúdo, devendo este estar em conformidade com o Direito natural.

4.2 O Positivismo jurídico

Trazendo ideias diferentes do Jusnaturalismo, surge no cenário do Direito, o Positivismo jurídico, com teorias que refutam a ideia de juízos materiais de valor sobre as normas, defendendo, em suma, que as análises jurídicas deverão se dar em normas que já existem na esfera do Direito, sendo que tais normas são emanadas do Estado e apresentam, como um todo, um sistema coerente e completo, sem lacunas.

Antes de adentrar na análise do fundamento de validade sob a perspectiva positivista, importante se faz tecer uma breve explicação sobre o tema. Para isso, tem-se o conceito elaborado por Paulo Nader, que assim dispõe:

O positivismo jurídico, fiel aos princípios do positivismo filosófico, rejeita todos os elementos de abstração na área do Direito, a começar pela idéia do Direito Natural, por julgá-la metafísica e anti-científica. Em seu afã de focalizar apenas os dados fornecidos pela experiência, o positivismo despreza os juízos de valor, para se apegar apenas aos fenômenos observáveis. Para essa corrente de pensamento o objeto da Ciência do Direito tem por missão estudar as normas que compõem a ordem jurídica vigente. A sua preocupação é com o Direito existente. Nessa tarefa, o investigador deverá utilizar apenas os juízos de constatação ou de realidade, não considerando os juízos de valor. Em relação à justiça, a atitude positivista é a de um cetiscimo absoluto. Por considerá-la um ideal irracional, acessível apenas pelas vias da emoção, o positivismo se omite em relação aos valores. (NADER, 2013, p.449 )

Apresentando algumas características do Positivismo jurídico, Alexandre Travessoni Gomes pontua:

O Positivismo Jurídico recusa qualquer tipo de especulação metafísica, negando, portanto, a existência de um ordenamento superior. Por essa razão, muitos afirmam ser o método empírico sua característica marcante. Se no dualismo jusnaturalista o direito posto só era direito à medida que concordasse com o direito natural, alguns positivistas chegaram a afirmar que só é justo aquilo que estiver no ordenamento positivo. (GOMES, 2004, p. 162)

Sobre esta característica de justiça, discorda alguns positivistas, dentre eles, Kelsen, o qual, através de “uma visão integral de sua concepção de justiça leva-nos à conclusão de que seu intento foi separar a Ciência do Direito de qualquer influência ideológica e política, e, por ser a justiça um valor de impossível definição e caracterização, não deve ela ser considerada como objeto da Ciência Jurídica.” (GOMES, 2004, p. 162-163)

Em linhas gerais, mesmo diante da ausência de um consenso sobre o conceito do positivismo jurídico, pode-se dizer que este se fundamenta na defesa de que à ciência não-jurídica compete a análise das questões relativas ao ser humano, à natureza e ao universo.

4.2.1 A validade formal do Positivismo jurídico

Neste contexto, a análise da validade parte para outro âmbito. Para os positivistas, em total contraposição aos jusnaturalistas, a validade do Direito se apóia no fundamento formal dele.

Sobre o conceito de validade formal, Miguel Reale afirma que “é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo.” (REALE, 2001, p.106)

Aqui, há uma recusa total de qualquer análise sobre o conteúdo das normas jurídicas, não competindo à ciência jurídica o exame de questões morais e valorativas.

Alexandre Travessoni Gomes, realizando um estudo sobre o conceito de validade em Kelsen, assim coloca:

Dizer que uma norma é válida, afirma Kelsen, é o mesmo que dizer que ela possui força de obrigatoriedade para aqueles cuja conduta regula. A validade, ou a existência específica de uma norma jurídica, é diferente da existência do ato de vontade do qual ela é o sentido objetivo. A norma pode valer, e de fato vale, mesmo quando o ato de vontade, cujo sentido objetivo ela constitui, não mais existe. (GOMES, 2004, p. 203)

Segundo Kelsen, “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma.” (KELSEN, 2006, p. 215) O filósofo defende que “uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior.” (KELSEN, 2006, p. 215)

Defensor por excelência do Positivismo jurídico, Hans Kelsen “pressupõe um fundamento de validade simplesmente formal, que não vincula o conteúdo da ordem jurídica: a norma fundamental.” (GOMES, 2004, p. 157)

À título de elucidação sobre o fundamento de validade das normas pautada em uma norma superior e por uma autoridade competente, Kelsen apresenta como, segundo seu entendimento, se fundamenta a validade dos Dez Mandamentos ditados por Deus, Jeová, e o dever de amar os inimigos imposto por Jesus Cristo, conforme se extrai da seguinte passagem:

Na verdade, parece que se poderia fundamentar a validade de uma norma com o fato de ela ser posta por qualquer autoridade, por um ser humano ou supra-humano: assim acontece quando se fundamenta a validade dos Dez Mandamentos com o fato de Deus, Jeová, os ter dado no Monte Sinai; ou quando se diz que devemos amar os nossos inimigos porque Jesus, o Filho de Deus, o ordenou no Sermão da Montanha. Em ambos os casos, porém, o fundamento de validade, não expresso mas pressuposto, não é o fato de Deus ou o Filho de Deus ter posto uma determinada norma num certo tempo e lugar, mas uma norma: a norma segundo a qual devemos obedecer às ordens ou mandamentos de Deus, ou aquela outra segundo a qual devemos obedecer aos mandamentos de Seu Filho. Em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposição de dever-ser que enuncia a norma superior: devemos obedecer aos mandamentos de Deus (ou aos mandamentos de Seu Filho), e cuja conclusão é a proposição de dever-ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos Dez Mandamentos (ou ao mandamento que nos ordena que amemos os inimigos), a proposição que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: Deus estabeleceu os Dez Mandamentos (ou o Filho de Deus ordenou que amássemos os inimigos), constitui, como premissa menor, um elo essencial. (KELSEN, 2006, p. 216)

No intuito de se estabelecer um limite na superioridade das normas, Kelsen apresenta a mais superior de todas as normas, a norma fundamental, a qual não é posta por nenhuma autoridade, pois é uma norma pressuposta. Veja-se esta explicação nas palavras do autor:

Como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm). (KELSEN, 2006, p. 217)

Kelsen apresenta a norma fundamental como a fonte comum de validade de todas as normas existentes em uma mesma ordem normativa, conforme se pode conferir no seguinte trecho:

Já para ela tivemos de remeter a outro propósito. Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa. (KELSEN, 2006, p. 217)

Assim, veja-se que, segundo Kelsen, o fundamento de validade de uma norma se encontra no fato de ter sido produzida de acordo com a norma fundamental, não importando o seu conteúdo, pois, para ele todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. (KELSEN, 2006)

Afirma, também que “uma ordem jurídica como um todo ou a norma jurídica singular já não são consideradas como válidas quando cessam de ser eficazes. Mas também a eficácia de uma ordem jurídica não é, tampouco como o fato que a estabelece, fundamento de validade.” (KELSEN, 2006, p. 230)

Desta forma, pode-se constatar que, no campo positivista, a validade possui fundamento formal, não havendo espaços para juízo materiais de valor sobre o conteúdo das normas jurídicas.

Todavia, atrelado ao conceito positivista, nasce para o Direito um impasse: afastados do Direito natural, perde-se qualquer critério que permita a análise e julgamento do conteúdo do direito positivo, pois, com seu fundamento estritamente formal, não permite a valoração da matéria posta em juízo. (GOMES, 2004)

Diante do impasse levantado, surge no campo das discussões doutrinárias, um novo conceito de validade, fundamentado na dialética, o qual apresenta um modelo discursivo dentro do cenário do pós-positivismo.

4.3 O Pós-positivismo

Após o posicionamento dos Jusnaturalistas e dos positivistas quanto ao conceito de validade, e, diante do impasse apresentado aos positivistas, no tocante à ausência de qualquer critério que possibilite a investigação do conteúdo dos postulados jurídicos, principalmente diante dos casos concretos, tornou-se necessário no contexto jurídico a elaboração de um novo conceito de validade. A esta missão, chamaram para si a responsabilidade, os pós-positivistas.

Hugo Garcez Duarte elucida os motivos que deram origem à criação deste novo postulado:

A fundamentação Jusnaturalista do Direito foi estritamente material, tendo em vista que o Direito Positivo, para que fosse válido, deveria estar em conformidade com os preceitos do Direito Natural. Essa concepção acerca do Direito sustentou-se enquanto havia certa homogeneidade moral na sociedade (crenças, costumes, visões de mundo partilhados), vindo sucumbir diante da já mencionada Escola da Exegese, que posteriormente fora sucedida pelo Positivismo Jurídico, devido à pluralidade de características de uma nova sociedade que se formou. Os preceitos Jusnaturalistas no que tange o fundamento de validade do Direito (material) tornaram-se insustentáveis, cabendo ao Positivismo Jurídico demonstrar seu caráter dogmático e absoluto, que em uma sociedade pluralista como a contemporânea nada mais seria que arbitrar as visões de mundo de uma minoria sobre as da maioria. Nesse contexto, a proposta Positivista apresenta um fundamento formal de validade para o Direito, pregando sua neutralidade, ou seja, sua desvinculação a uma moral determinada (relativismo). Ocorre que, como essa validade é formal, é indeterminada. E como outrora demonstramos nos pensamentos de Kelsen e Hart, há casos em que o aplicador do Direito deverá transcender a lei para julgá-lo, e havendo uma indeterminação quanto à validade do Direito, o controle da discricionariedade do julgador quando de sua aplicação resta prejudicado. Identificado o problema da validade formal no Positivismo Jurídico bem como o do poder discricionário do julgador, ao final do século XX, vislumbrou-se a necessidade da elaboração de uma teoria que demonstre qual deva ser o conteúdo legítimo do Direito e que não imponha a visão de mundo de poucos a uma maioria. (DUARTE, 2013, p. 10-11)

Ainda sobre o pós-positivismo, tem-se a explicação de Luís Roberto Barroso, o qual leciona:

O pós-positivismo se apresenta, em certo sentido, como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política. Contesta, assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer a impossibilidade de tratá-los como espaços totalmente segmentados, que não se influenciam mutuamente. Se é inegável a articulação complementar entre eles, a tese da separação, que é central ao positivismo e que dominou o pensamento jurídico por muitas décadas, rende tributo a uma hipocrisia. (BARROSO, 2010, p.6)

Pelas razões acima esposadas, concebe-se o Pós-positivismo no final do século XX, apresentando uma proposta discursiva sobre a legitimidade do conteúdo do Direito, o qual não é mais vislumbrado isoladamente da moral e da política, mas reconhece que tais esferas exercem influências mútuas, e, portanto, se fez necessário a criação da teoria Pós-positivista para análise desta nova dimensão do Direito.

4.3.1 A validade procedimental do Pós-positivismo jurídico

A partir daí surge um conceito de validade com um fundamento procedimental, dialético, marcado pela possibilidade de um discurso sobre as normas jurídicas e para a elaboração e aplicação destas, dentro do contexto pós-positivista jurídico.

Neste contexto, os defensores desta corrente apresentam um critério de validade que reúne aspectos das correntes jusnaturalistas e positivistas, contudo, sob um enforque diferente, pois, defendem um modelo discursivo para a caracterização da validade.

Do Jusnaturalismo, a teoria da validade procedimental defende que para uma premissa jurídica ser válida não é necessária a observância da legitimidade de seu conteúdo formal e rejeitam a ideia de um Estado ditador de normas pré-estabelecidas. Já do Positivismo, a teoria da validade procedimental não aceita como fundamento da validade o seu contexto material, ou seja, defendem que não é possível a determinação prévia do conteúdo do Direito por meio de uma ordem natural. (GOMES, 2004)

Sobre esta difusão de ideias que resultou em um novo modelo de validade, Hugo Garcez Duarte assim discorre:

No Positivismo Jurídico, o fundamento de validade do Direito é formal, e por ser formal, sua adequação é indeterminada. O Pós-positivismo por sua vez, em busca da determinação do Direito, consubstancia-se na conciliação entre validade formal e validade material (legalidade e legitimidade). Grande desafio, porém, é a conquista da conciliação entre validade formal e validade material sem voltar ao dogmatismo jusnaturalista. Tal conciliação, ao que parece, coaduna-se com o aludido papel dos princípios, que na teoria Pós-positivista, diversamente da teoria Positivista (justificava o poder discricionário do juiz), assume o papel de elo (por meio da argumentação jurídica) entre o legal e o justo. (DUARTE, 2013, p.9)

Corroborando com esta corrente de pensamento, a qual permite uma argumentação jurídica, Alexy afirma que “um sistema apenas é jurídico se possui, globalmente, eficácia social (é observado pelos destinatários das normas e a não observância é punida) e, no que diz respeito às normas individuais, elas somente adquirem validade jurídica em sentido amplo se forem dotadas de um mínimo de eficácia ou da possibilidade de eficácia.” (ALEXY, 2009, p. 105-108).

Com maestria, Hugo Garcez Duarte termina sua argumentação afirmando

[...] que o mundo contemporâneo, por sua diversidade e complexidade, dificulta a conquista da conciliação entre validade formal (legalidade) e validade material (legitimidade). Vemos, todavia, que a única solução para esta conquista reside no procedimento do Direito, que carreado por igualdade entre as partes, ampla defesa e contraditório, argumentação jurídica, produção de provas e ênfase na efetividade dos princípios jurídicos, galgará a legítima aplicação da lei no caso concreto. (DUARTE, 2013, p. 14)

A argumentação jurídica presente no fundamento de validade procedimental do Direito, permite uma discussão acerca da norma expressa e a aplicabilidade da justiça a ser atribuída a esta norma diante de um caso concreto.

A teoria procedimental possibilita uma discussão entre todos os interesses no processo de elaboração das normas, decisões judiciais e políticas públicas. (GOMES, 2004)

Assim, pode-se dizer, em suma, que o conceito de validade com fundamento procedimental, baseia-se na ideia de um diálogo, ou seja, as normas jurídicas serão legítimas desde que produzidas e aplicadas através de um procedimento dialético, democrático e racional, dotado de eficácia, eis que aceito por seus destinatários.


5. CRISTIANISMO

Segundo Joel Stephen Williams, “o Cristianismo é a religião daqueles que são chamados de cristãos (Atos 11.26; 26.28; 1Pedro 4.16)[2]. Um cristão é simplesmente um seguidor de Jesus de Nazaré, que é chamado o Cristo ou o Messias por aqueles que acreditam nele.” (WILLIAMS, 2004, p. 7)

O termo Cristianismo origina da palavra Cristo, que significa ungido, messias (BOYER, 1997, p. 173). Este título foi outorgado a Jesus, o autor e fundador da religião cristã.

Sobre a vida de Jesus e o motivo de sua vinda ao mundo, Morgado leciona o seguinte:

[...] a fim de redimir a natureza humana e reconduzi-la à dignidade perdida na queda, segundo a doutrina judaico-cristã, Deus mesmo teve que se revestir da natureza humana a fim de alcançá-la, deixando-nos exemplo do paradigma do viver divino-humano de dignidade que ele idealizou para o homem. [...] Possivelmente não haja maior expressão da importância que Cristo atribuiu ao homem, individual e objetivamente considerado, que a parábola da ovelha perdida de Lucas 15, em que Ele mesmo, de forma autobiográfica, é descrito como um pastor que deixa as outras noventa e nove ovelhas em busca de uma única que se perdeu (Lucas 15:4-7). Essa mensagem deixa implícita a idéia de que, pelo valor que possui o homem para Deus, ainda que existisse apenas um único ser humano sobre a Terra que necessitasse de salvação, ainda assim, Cristo teria se encarnado e morrido na cruz por sua redenção, revalorização e dignificação. Este raciocínio acerca do amor pessoal e da salvação individual também é evidenciado e reforçado pela expressão “todo aquele”, mencionada no evangelho de João cap. 3, v.16, enfatizando a salvação pessoal e individual e o valor que Deus atribui à natureza humana, a ponto de por ela morrer e conceder ao homem a vida eterna:“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.Talvez não haja maior expressão de fraternidade e solidariedade, ligadas à noção de dignidade, que o ensino de Jesus sobre amar o próximo inclusive nosso inimigos (Mateus 5:44) como a nós mesmos (Luc. 10:27) bem como o dever de fazer aos outros o mesmo que gostaríamos que eles fizessem a nós (Mat. 7:12). (MORGADO, 2014)

Conforme se pode verificar no trecho citado, Jesus Cristo veio ao mundo a fim de trazer salvação para todos quantos cressem nele como senhor e salvador. Para tanto, o verbo se fez carne (João 1:14[3]), ou seja, o próprio Deus se fez homem na pessoa de Jesus, no intuito de redimir a humanidade dos pecados. Enfim, Jesus veio para cumprir a lei e instaurar a nova aliança por meio de sua morte.

Após a ressurreição de Jesus Cristo, os seus discípulos continuaram a missão de propagação da mensagem de salvação e de vida eterna, formando, com a difusão da doutrina cristã, inúmeros seguidores.

Registra-se que quarenta dias após a ressurreição de Jesus já se formavam congregações de cristãos. Sobre a formação destas, pode-se citar, à título de exemplo, o episódio ocorrido em Jerusalém, quando, ouvindo a pregação evangelho através do apóstolo Pedro, judeus de todas as nações entenderam a mensagem cristã e se converteram ao Cristianismo, totalizando, somente naquele dia, aproximadamente três mil homens, que continuaram a missão de propagação do evangelho[4].

A história do Cristianismo se encontra na Bíblia e é dividida em dois períodos, o Antigo e o Novo Testamento.

No Antigo Testamento há a narrativa de como tudo surgiu, a maneira como Deus criou todo o universo e todos os seres viventes. Narra, também, como o pecado entrou no mundo e enfatiza a necessidade de derramamento de sangue para a remissão dos pecados fazendo uma alusão ao que Jesus Cristo iria fazer posteriormente.

Já o Novo Testamento apresenta o nascimento do Messias e o trabalho realizado por ele para salvar as pessoas. Durante sua trajetória na Terra, Jesus operou milagres e cumpriu profecias a fim de comprovar que ele era o Messias, o enviado de Deus que trazia uma nova vida às pessoas.

Em toda a sua trajetória, o Cristianismo modificou a sociedade, influenciando profundamente a forma como seria, a partir de então, concebida a política, o direito, a cultura, o calendário, enfim, a visão de mundo de todo o ocidente.

5.1 A mensagem do Cristianismo

A mensagem transmitida através dos ensinamentos de Jesus Cristo se consubstancia em uma mensagem de fé, amor, paz, igualdade e, principalmente, de salvação.

Antes da vinda de Jesus até a Terra, a Bíblia narra o motivo pelo qual se fez necessário que Deus enviasse o seu filho para salvar a humanidade do pecado. A mensagem do Cristianismo se inicia com a criação do céu e da terra e de tudo o que neles há. Criou-se os seres humanos, trazendo à existência Adão, o primeiro homem, e logo em seguida, como sua companheira, Deus criou Eva. E Deus viu que tudo o que havia criado era bom, conforme passagem Bíblica constante em Gênesis 1:31[5].

Todavia, não demorou muito para que Adão e Eva, desobedecessem a Deus e, em consequência, trouxessem o pecado, até então inexistente, ao mundo. Sobre tal episódio, traz-se o relato dos filósofos Giovani Reale e Dário Anstieri:

Como todo pecado, ele é desobediência, mais precisamente desobediência ao mandamento original de não comer do fruto “da árvore do conhecimento do bem e do mal”. A raiz dessa desobediência foi a soberba do homem, que não queria tolerar limitação nenhuma, que não queria ter vínculos do bem e do mal (dos mandamentos) e, portanto, que queria ser como Deus. Iahweh havia dito: “Da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dele comeres terás que morrer.” Mas a tentação do maligno insinua: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal.” À culpa de Adão e Eva, que cedem à tentação, transgredindo o mandamento divino, segue-se, como punição divina, a expulsão do Paraíso terrestre, com todas as suas conseqüências. E assim fazem seu ingresso no mundo o mal, a dor e a morte, o afastamento de Deus. Em Adão, toda a humanidade pecou; com Adão, o pecado ingressou na história dos homens – e, com o pecado, todas as suas consequências. Como escreve Paulo: “... por obra de um só homem o pecado entrou no mundo e, através do pecado, a morte; assim, a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram...” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 384)

Dando continuidade ao conteúdo da mensagem bíblica, os autores prosseguem explicando que o homem, por ele mesmo, não possuía condições de salvar-se do pecado original e todas as suas consequências. Por isso, Deus realizou o resgate da humanidade, considerado por Reale e Antseri (2003) como o maior dos dons. Para resgatar a humanidade da escravidão do pecado, Deus se fez homem e, com sua paixão e morte, deu a sua vida para salvação da humanidade e, com sua ressurreição, derrotou a própria morte, consequência do pecado.

Para finalizar, os autores concluem:

A vinda de Cristo, a sua paixão expiadora do antigo pecado, que fez seu ingresso no mundo com Adão, e a sua ressurreição resumem o sentido da mensagem cristã – e essa mensagem subverte inteiramente os quadros do pensamento grego. [...] Mas além de mostrar a realidade bem mais inquietante da culpa original, que é uma rebelião contra Deus, a nova mensagem revela que nenhuma força da natureza ou do intelecto humano podia resgatar o homem. Para tanto, era necessária a obra do próprio Deus feito homem e a participação do homem na paixão de Cristo em uma dimensão que havia permanecido quase inteiramente desconhecida para os gregos: a dimensão da “fé”. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 385)

Esta é, em síntese a mensagem bíblica, a qual possui como objetivo principal a concessão a todos os homens da salvação por meio da fé em Jesus Cristo como único senhor e salvador.

5.2 A Bíblia como registro do Cristianismo

Toda a história do Cristianismo se encontra descrita na Bíblia, que é o livro composto por escritos bíblicos de inúmeras épocas diferentes, os quais descrevem a trajetória da fé cristã em localidades e povos diversos.

Acredita-se que todo livro bíblico foi escrito mediante inspiração divina, sendo que cada profeta, cada autor dos livros bíblicos, foram inspirados pelo Espírito de Deus em seus escritos, de forma que as inúmeras profecias realizadas no Antigo Testamento se cumpriram no Novo Testamento.

Sobre a Bíblia, tem-se conceituação de Giovani Reale e Dario Anstiere:

Bíblia, do grego biblia, significa “livros”. É um plural (de biblion) que, no latim e nas línguas modernas, foi transliterado como singular para indicar o “livro” por antonomásia. Na realidade, a Bíblia não é um só livro, mas uma coletânea de uma série de livros, cada qual apresentando um título e peculiaridade específicas, caracterizada também por extensões diversas dos livros e diferentes estilos literários e redacionais. (...) Os livros da Bíblia se dividem em dois grandes grupos: a) os do Antigo Testamento (redigidos a partir de aproximadamente 1300 a.C. até 100 d.C.; entretanto, os primeiros livros baseiam-se em uma tradição oral antiquíssima; B) os do Novo Testamento, que remontam todos ao século I d. C., centrando-se inteiramente na nova mensagem de Cristo. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 371)

Desta feita, apresenta-se a Bíblia como registro do Cristianismo, ou seja, toda a história cristã é narrada em suas páginas e é com base nela que se buscou toda a fundamentação para este trabalho.

5.3 A dimensão revolucionária da mensagem bíblica

A mensagem pregada pela Bíblia surgiu no Ocidente com um caráter inovador e com uma dimensão jamais vista por aquela civilização. A mensagem cristã se propagou pelo Ocidente, e a medida que ia avançado, foi acumulando adeptos que continuavam com a pregação do conteúdo bíblico.

Giovani Reale e Dario Anstiere (2003) defendem que a Bíblia trouxe ideias tão importantes que, acreditando ou não em sua mensagem, é indiscutível que os ensinamentos por meio dela propagados, mudou de modo irreversível a fisionomia espiritual do Ocidente, senão veja-se:

A Bíblia, portanto, se apresenta como “palavra de Deus”. E, como tal, a sua mensagem é objeto de fé. Quem acredita poder pôr a fé entre parênteses e ler a Bíblia como “puro cientista”, como se lê um texto de filosofia de Platão ou de Aristóteles, na realidade está realizando um tipo de operação que é contra o espírito desse texto. A Bíblia muda completamente de significado à medida que é lida acreditando-se ou não que se trata da “palavra de Deus”. Entretanto, embora não sendo uma “filosofia” no sentido grego do termo, a visão geral da realidade e do homem que a Bíblia nos apresenta, no que se refere a alguns conteúdos essenciais dos quais a filosofia também trata, contém uma série se idéias fundamentais que têm uma relevância também filosófica de primeira ordem, Aliás, trata-se de idéias tão importantes que, não só para os crentes, mas também para os incrédulos, a difusão da mensagem bíblica mudou de modo irreversível a fisionomia espiritual do Ocidente. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.377, grifo nosso)

E continuam:

Em suma, pode-se dizer que a palavra de Cristo contida no Novo Testamento (a qual se apresenta como revelação que completa, aperfeiçoa e coroa a revelação dos profetas contida no Antigo Testamento) produziu uma revolução de tal alcance que mudou todos os termos de todos os problemas que o homem havia proposto em filosofia no passado e passou a condicionar também os termos nos quais o homem os proporia no futuro. Em outras palavras, a mensagem bíblica condicionaria aqueles que a rejeitaram: em primeiro lugar, como termo dialético de uma antítese (a antítese só tem sentido, sempre, em função da tese à qual de contrapõe); e, mais globalmente, como um verdadeiro “horizonte” espiritual que iria impor-se de tal modo a ponto de não ser mais suscetível de eliminação. Para se entender o que estamos dizendo, é paradigmático o título (que representa todo um programa espiritual) do célere ensaio idealista e não-crente de Benedetto Croce Perche non possiamo non dirci cristiani (“Por que não podemos deixar de nos dizer cristãos”), o que significa precisamente que, uma vez surgido, o cristianismo tornou-se um horizonte instransponível. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.377)

Os autores acreditam que a mensagem bíblica se difundiu de tal maneira que ela foi um marco filosófico, pois, por meio dela, foram esclarecidos os problemas oriundos da humanidade e até então estudados pela filosofia, fazendo com que o estudo desta, a partir do Cristianismo, adotasse a premissa de filosofar na fé, fora dela ou em busca de distinguir os limites entre fé e razão, conforme assim explicam:

Depois da difusão da mensagem bíblica, portanto, só seriam possíveis estas posições: a) filosofar na fé, ou seja, crendo; b) filosofar procurando distinguir os âmbitos da “razão” e da “fé”, embora crendo; c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja, não crendo. Não seria mais possível filosofar fora da fé, no sentido de filosofar como se a mensagem bíblica nunca tenha feito o seu ingresso na história. Por essa razão, o horizonte bíblico permanece um horizonte estruturalmente instransponível, no sentido que esclarecemos, isto é, no sentido de um horizonte para além do qual já não podemos colocar, tanto quem crê como quem não crê. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.377-378)

Destarte, diante da dimensão de mudanças acarretadas pelo pensamento cristão, faz-se importante estabelecer as principais mudanças trazidas pela mensagem bíblica no contexto espiritual de todo o Ocidente, demonstrando a forma como era o pensamento da sociedade antes da difusão do Cristianismo e logo após a consolidação deste.

Pois bem. Inicialmente pode-se citar que por meio da mensagem cristã passou-se a conceber o monoteísmo. Ou seja, não havia mais a crença em inúmeros deuses, não havia mais um deus para cada família como na sociedade antiga, mas, muito pelo contrário, por meio da pregação cristã, entendeu-se em todo o cenário ocidental que Deus é apenas um só, adotando-se a unicidade divina.

Rompe-se então, com a forma de pensamento apresentada pelos filósofos gregos, os quais defendiam a crença em inúmeras divindades, o politeísmo. A fim de corroborar com o ora alegado, tem-se o trecho extraído da obra “A história da Filosofia – Antiguidade e Idade média”:

E, com essa concepção do Deus único, infinito em potência, radicalmente diverso de todo o resto, nasce uma nova e radical concepção da transcendência, derrubando qualquer possibilidade de considerar qualquer outra coisa como “divino” no sentido forte do termo. Os maiores pensadores da Grécia, Platão e Aristóteles, haviam considerado como “divinos” (ou até mesmo como deuses) os astros, e Platão chegara a chamar o cosmos de “Deus visível” e os astros de “deuses criados”: em As Leis, inclusive, ele deu a partida para a religião chamada “astral”, precisamente com base em tais pressupostos. A Bíblia corta pela base toda forma de politeísmo e idolatria, mas também qualquer compromisso desse tipo. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.378-379)

Acerca da unicidade de Deus, a Bíblia demonstra claramente tal posicionamento, de que há somente um Deus, criador do universo e de toda a humanidade, o único que deve receber toda a adoração, condenando totalmente a forma de adoração a outros deuses até então concebida, consoante se pode extrair de algumas passagens:

Guardai, pois, com diligência as vossas almas, pois nenhuma figura vistes no dia em que o Senhor, em Horebe, falou convosco do meio do fogo; Para que não vos corrompais, e vos façais alguma imagem esculpida na forma de qualquer figura, semelhança de homem ou mulher; Figura de algum animal que haja na terra; figura de alguma ave alada que voa pelos céus; Figura de algum animal que se arrasta sobre a terra; figura de algum peixe que esteja nas águas debaixo da terra; Que não levantes os teus olhos aos céus e vejas o sol, e a lua, e as estrelas, todo o exército dos céus; e sejas impelido a que te inclines perante eles. (Deuteronômio 4, 15-19)

Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão. Não terás outros deuses além de mim. "Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. (Êxodo 20, 2-4)

Destarte, a concepção monoteísta surge no Ocidente e se consolida através da mensagem bíblica, sendo forçoso afirmar que “a unicidade do Deus bíblico comporta uma transcendência absoluta, que coloca Deus como totalmente outro em relação a todas as coisas, de um modo inteiramente impensável no contexto dos filósofos gregos. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.379)

Prosseguindo, como mudança considerável provocada através da mensagem do Cristianismo, importante mencionar a alteração ocorrida no tocante a convicção quanto à concepção da origem humana. Inúmeras foram as discussões acerca da forma e do lugar em que a humanidade se constitui. Sobre referida concepção, Giovani Reale e Dario Anstieri colocam que:

Já vimos quais e quantos foram os vários tipos de solução propostos pelos gregos no que se refere ao problema da “origem dos seres”: de Parmênides, que resolvia o próprio problema com a negação de qualquer forma de devir, aos pluralistas, que falavam de “reunião” ou “combinação” de elementos eternos, de Platão que falava de um demiurgo e de uma atividade demiúrgica, a Aristóteles, que falava da atração de um Motor imóvel, dos estóicos, que propunham uma forma de monismo panteísta, a Plotino, que falava de uma “processão” metafísica. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.379)

Com a mensagem cristã, passava-se a acreditar no criacionismo, ou seja, a origem da humanidade se encontra no poder de Deus, o qual, por sua vontade, criou os homens a sua imagem e semelhança, tal como concebido pela Bíblia. Para comprovar o alegado, tem-se passagem contida no livro de Gênesis, capítulo 1, versículo 1, onde afirma que “no princípio criou Deus o céu e a terra.” Em seguida, no versículo 26, há a fala de Deus quando da criação do mundo: “façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão.” (Gn 1, 26) Para arrematar, conclui no versículo 27, afirmando que “criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” (Gn 1, 27)

Logo, estava-se diante de uma nova concepção adotada pela sociedade ocidental, a qual superou as teorias já apresentadas, devido à coerência das ideias bíblicas, tendo como base, inclusive, a capacidade do ser criador diante de toda a criação. Ademais, defendia-se que para criação de seres tão complexos e de um universo infinito, era necessário que o criador fosse consideravelmente superior, intelectual e fisicamente, a toda a criação, pois somente assim poderia haver a existência dos seres viventes.

Acerca da coerência do criacionismo, assim se posicionam Giovani Reale e Dario Anstieri:

Com essa concepção de criação a partir “do nada”, era cortada pela base a maior parte das aporias que, desde Parmênides, haviam afligido a ontologia grega. Todas as coisas têm origem do “nada”, sem distinção. Deus cria livremente, ou seja, com um ato de vontade, por causa do bem. Ele produz as coisas como “dom” gratuito. O criado, portanto, é positivo. Falando da criação, a Bíblia ressalta insistentemente: “E Deus viu que era bom.” A concepção platônica do Timeu, que também sustenta que o demiurgo plasmou o mundo por causa do bem, é apresentada aqui sob um novo enfoque e num contexto bem mais coerente. (REALE; ANSTIERI, 2003, p.379)

E assim concluem:

O Criacionismo iria se impor como a solução por excelência do antigo problema de como e por que os múltiplos derivam do Uno e o finito deriva do infinito. A própria conotação que Deus dá de si mesmo a Moisés, “Eu sou Aquele que é”, iria ser interpretada, em certo sentido, como a chave para se entender ontologicamente a doutrina da criação: Deus é o Ser por sua essência e a criação é uma participação no ser, ou seja, Deus é o ser e as coisas criadas não são ser, mas têm o ser (que o receberam por participação) (REALE, ANSTIERI, 2003, p.379-380)

Outra mudança acarretada no pensamento ocidental por meio da mensagem bíblica foi a valorização do homem, apresentando uma visão antropocêntrica. Partia-se da premissa bíblica na qual Deus fez o homem à sua imagem e semelhança e o legitimou a ser dono e senhor de todos os seres viventes e de tudo aquilo que foi criado pelo próprio Deus.

Sobre a valorização do homem, assim diz o Salmo 8, nos versículos 3 ao 9:

Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste; Que é o homem mortal para que te lembres dele? E o filho do homem, para que o visites? Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés: Todas as ovelhas e bois, assim como os animais do campo, As aves dos céus, e os peixes do mar, e tudo o que passa pelas veredas dos mares. Ó Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome sobre toda a terra! (Sl 8, 3-9)

Semelhantemente, tem-se entendimento filosófico:

E, sendo feito à imagem e semelhança de Deus, o homem deve se esforçar por todos os modos para “assemelhar-se a ele”. O Levítico já afirmava: “Não deveis vois contaminar. Porque o vosso Deus sou eu, Iahweh, que vos fez sair da terra do Egito, para ser o vosso Deus: vós, pois, sereis santos como eu sou santo.” Os gregos alcançá-la com o intelecto,  com o conhecimento. A Bíblia, porém, atribui à vontade o instrumento da assimilação: assemelhar-se a Deus e santificar-se significa fazer a vontade de Deus, ou seja, querer o querer de Deus. E é exatamente essa capacidade de fazer livremente a vontade de Deus que coloca o homem acima de todas as coisas. (REALE; ANSTIERI, 2003, p.381)

Além das características supracitadas, a mensagem bíblica incutiu novos valores e novas perspectivas na conjuntura ocidental. Dentre elas, pode-se citar o amor como principal mandamento de toda a doutrina cristã, a qual ordena o amor uns aos outros como a si mesmo, incluindo-se aí os inimigos. Amar a Deus e ao próximo, fazendo-lhe o bem passava a ser então o maior mandamento ensinado pela Bíblia.

De igual sorte, os demais valores propagados pelo Cristianismo proporcionaram uma revolução radical nos valores da história humana, conforme assinalado na seguinte passagem:

A mensagem cristã assinalou sem dúvida a mais radical revolução de valores da história humana. Nietzsche chegou a falar até mesmo de total subversão dos valores antigos, subversão que tem sua formulação programática no “Sermão da Montanha”, que podemos ler no Evangelho de Mateus [...](REALE; ANSTIERI, 2003, p.390)

Destarte, constata-se uma nova perspectiva proporcionada pela dimensão revolucionária da mensagem bíblica, onde “o antigo intelectualismo grego é inteiramente subvertido pelo voluntarismo: o querer de Deus é a lei moral e o querer o querer de Deus é a virtude do homem. A boa vontade torna-se a nova marca do homem moral.” (REALE; ANSTIERI, 2003, p.381)

Daí, constata-se que os valores apresentados pela doutrina cristã tiveram direta influência no patrimônio de valores carregado por toda a sociedade ocidental, possuindo a mensagem bíblica, por conseguinte, um caráter revolucionário de relevante magnitude, mudando a forma de concepção de mundo, sociedade, direito, política até então existentes.


6. O CRISTIANISMO E O DIREITO

Através da ruptura entre o Direito e a religião é que a sociedade adquiriu autonomia e independência para estabelecer as suas próprias normas de conduta e sua forma de julgamento, não estando mais vinculado ao contexto sagrado.

A partir de então, o caráter coercitivo das normas jurídicas estavam fundamentadas tão somente na vontade humana, não se submetendo ao caráter religioso.

Todavia, neste contexto, o Direito se depara com uma grande e notável contradição. Como será abordado no decorrer deste capítulo, o Cristianismo foi importante propulsor que desvinculou o Estado da religião. Através da mensagem cristã os homens entenderam que servir a Deus e ao Estado estava em esferas totalmente distintas. Lado outro, mesmo com esta separação tão almejada pelo Direito, e que, de fato se constituiu como uma importante conquista, não se pode olvidar que o ordenamento jurídico de todo o mundo ocidental fez do Cristianismo uma grande fonte de conteúdo.

Em que pese a notável separação, importa salientar a convergência de ambos os institutos em inúmeros aspectos. Somente a título de elucidação, pode-se citar que a finalidade a que se propõe o Direito é estabelecer as normas a fim de regular a conduta de toda uma sociedade. O Cristianismo também possui esta finalidade, buscando estabelecer um padrão de conduta aos homens, embora, apresente um modelo de comportamento que os levem até a salvação, peculiaridade esta que os distinguem. Ambos almejam o bem comum.

Sobre esta relação, Juarez Altafin, citando César Fiuza, bem se posiciona:

Se é verdade que “Direito e Religião, apesar de fazerem parte da Ética, têm campos distintos”, por isso que “o objetivo da Religião é o de integrar o homem com a divindade”, “cuidar do mundo espiritual”, orientando “os homens na busca e na conquista da felicidade eterna”, e que “o objetivo do Direito é o bem comum da sociedade”, certo é que Direito e Religião “buscam inspiração um no outro”. (FIUZA, apud ALTAFIN, 2007, p. XIV)

Ademais, conforme bem destacado por Juarez Altafin, citando Noberto Bobbio, “para encontrar o fundamento dos direitos do homem, é preciso não permanecer na história, mas transcender a história e chegar ao momento de origem, quando o homem surgiu das mãos do Criador.” (BOBBIO apud ALTAFIN, 2007, p. 3)

Sobre a relação entre o Direito com a ordem sagrada, Roberto Denis Machado afirma que “de fato, os primeiros sistemas jurídicos conhecidos derivaram de textos sagrados.” (MACHADO, 2006, p.70)

Com o objetivo de analisar a antonímia estabelecida, e, em contrapartida, a relação entre ambas as esferas, é que se destina o presente capítulo.

6.1 O surgimento do Direito e do Cristianismo no mundo ocidental: como a doutrina cristã mudou as direções do Direito, governo e de toda a sociedade ocidental

Para fins de compreensão sobre como o Cristianismo mudou a história do Direito, do governo e da Sociedade, imperioso se torna estudar o contexto social vivenciado antes da doutrina cristã, remontando-se aos primórdios da civilização greco-romana, onde se originou a civilização ocidental.

Posto isto, analisar-se-á a transformação social que se iniciou há aproximadamente seis ou sete séculos antes da consolidação do Cristianismo. Para tanto, à sociedade deste período, traz-se a referência como sociedade antiga.

Sobre a sociedade antiga, Fustel de Coulanges, em sua obra “A Cidade Antiga”, relata muito bem a situação vivida à época. De acordo com o autor, a sociedade antiga havia sido constituída por uma nova religião, a qual acreditava na existência de inúmeros deuses, sendo que cada deus protegia exclusivamente uma família ou uma cidade, e não existia senão para ela. Através desta religião se originou o direito na sociedade antiga, regulando, pelos dogmas dessa religião em vista das necessidades de seu culto, as questões relativas às relações entre os homens, a propriedade, a herança, o processo. Foi também através desta religião que se estabeleceu um governo entre os homens: o do pai, na família, o do rei ou do magistrado na cidade. (COULANGES, 1961)

Convém notar que tudo derivava da religião, ou, pode-se dizer, da opinião que o homem fazia da divindade. Decerto, então, nesse contexto que religião, direito, governo confundiam-se, sendo vistos como uma só coisa sob três aspectos diferentes. (COULANGES, 1961)

A religião se constitua na sociedade antiga como a senhora absoluta na vida particular e pública. Neste cenário “o Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula santa; onde o patriotismo era a piedade, o exílio uma excomunhão; onde a liberdade individual era desconhecida [...]” (COULANGES, 1961, p. 334-335)

Além do mais, devido ao caráter sagrado atribuído ao governante, o homem estava sujeito ao Estado por sua alma, por seu corpo, por seus bens. Outrossim, a religião pregava como obrigatório o ódio contra o estrangeiro. O conjunto histórico vivenciado pelas cidades gregas e italianas durante o primeiro período de sua história era de total domínio da religião: “a noção do direito e do dever, da justiça e do afeto paravam nos limites da cidade; onde a associação humana era necessariamente limitada dentro de certa circunferência ao redor do pritaneu, e onde não se via a possibilidade de fundar sociedades maiores.” (COULANGES, 1961, p. 334-335)

Todavia, este contexto não se manteve ao longo do tempo. Já nos cinco séculos que precederam o Cristianismo, aparecia em cena, e, com grande força, as manifestações das classes oprimidas, divulgação de estudos científicos, pensamentos filosóficos, os quais, diante do estímulo ao pensamento, acarretaram uma decadência da casta sacerdotal, e o abalo dos antigos princípios que embasavam a sociedade antiga. (COULANGES, 1961)

Assim, aos poucos a sociedade antiga vinha se modificando, e, juntamente com esta, o direito, governo e a religião também se modificavam. Buscava-se incessantemente a liberdade do cidadão que, até então, encontrava-se preso ao domínio da antiga religião, que o impedia de acreditar por ele mesmo. (COULANGES, 1961)

Destarte, nota-se que devido ao desgaste da antiga religião, os homens deixavam de crer, e, em consequência, o direito e a política começavam a ser independentes e a religião não mais governava a sociedade. Em pouco tempo, a religião estava desprovida de crenças, supremacia e qualquer força que direcionasse os homens. A sociedade antiga não depositava mais a sua crença na religião. (COULANGES, 1961)

Foi neste contexto que surgiu o Cristianismo no cenário ocidental. A doutrina cristã trouxe à sociedade antiga uma mensagem inovadora, jamais concebida anteriormente naquele meio social, trazendo consigo nova vida e vigor ao sentimento religioso daquela sociedade. De fato, o Cristianismo reconquistou o império sobre a alma. (COULANGES, 1961)

Sobre como o Cristianismo foi recebido pela sociedade antiga, tem-se a explicação de Fustel de Coulanges:

Com o cristianismo, não somente o sentimento religioso foi reavivado, mas tomou ainda uma expressão mais alta e menos material. Enquanto outrora se haviam feito deuses da alma humana ou das grandes forças físicas, começou-se então a conceber Deus como verdadeiramente estranho, por sua essência, à natureza humana de uma parte, e ao mundo de outra. O divino foi decididamente colocado fora da natureza visível e acima dela. Enquanto que outrora cada homem fizera seu deus, tendo tantos deuses quantas as famílias e as cidades, Deus apareceu então como ser único, imenso, universal, animando sozinho os mundos, satisfazendo sozinho à necessidade de oração que há no homem. Enquanto outrora a religião, entre os povos da Grécia e da Itália, nada mais era que um conjunto de práticas, uma série de ritos que se repetiam sem ter nenhum sentido, uma seqüência de fórmulas que muitas vezes já não se compreendiam mais, porque a língua envelhecera, uma tradição que se transmitia de idade em idade, e não recebia seu caráter sagrado senão de sua antiguidade, em vez disso a religião foi um conjunto de dogmas e um grande objetivo proposto à fé. A religião deixou de ser exterior, e limitou-se sobretudo ao pensamento humano. Não foi mais material, tornou-se espírito. O cristianismo mudou a natureza e a forma da adoração: o homem não deu mais a Deus alimento e bebida; a oração não foi mais uma fórmula de encantamento; foi um ato de fé e um pedido humilde. A alma manteve outras relações com a divindade; a crença dos deuses foi substituída pelo amor de Deus. O cristianismo trazia ainda outras novidades. Não era a religião doméstica de uma família, a religião nacional de uma cidade ou de uma raça. Ele não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o início, chamara a si a humanidade inteira. Jesus Cristo dizia a seus discípulos: “Ide e ensinai a todos os povos.” (COULANGES, 1961, p. 335-336)

Ao contrário de tudo que até então estava enraizado no interior das pessoas, a mensagem cristã trouxe novos valores e uma nova perspectiva de mundo àquela sociedade. Propagava-se um só Deus, o único Deus criador do céu, da Terra e de tudo o que neles há, a igualdade entre todos os homens, o amor ao próximo, deveres como justiça, benevolência, solidariedade, paz, tolerância, perdão e o de propagar a mensagem cristã a todos os povos, sem exclusão de nenhum, já que são todos iguais diante de Deus.

Em relação ao governo do Estado, nunca houve por parte do Cristianismo o objetivo de interferir nos rumos deste, sendo demonstrado de maneira clara que o objetivo do da doutrina cristã não é regular as ações do homem com o Estado, mas sim do homem para com seu próximo e para com Deus. Contudo, mesmo sem esta intenção os valores cristãos mudaram a história do governo.

Sobre a distinção estabelecida pelo Cristianismo entre religião e Estado, tem-se o seguinte relato:

Quanto ao governo do Estado, pode-se dizer que o cristianismo transformou-o em sua essência, precisamente porque não cuidou disso. Nas velhas idades, religião e Estado eram uma só coisa; cada povo adorava a seu Deus, e cada deus governava o seu povo; o mesmo código regulava as relações entre os homens e os deveres para com os deuses da cidade. A religião dominava o Estado, e indicava-lhe os chefes pela voz da sorte ou dos auspícios; o Estado, por sua vez, intervinha no domínio da consciência, e punia toda infração aos ritos e ao culto da cidade. Em lugar disso Jesus Cristo ensina que seu império não é deste mundo. Separa a religião do governo. Como a religião não é mais terrestre, imiscui-se nas coisas da terra o menos possível. Jesus Cristo acrescenta: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” — É a primeira vez que se distingue tão nitidamente Deus do Estado. Porque César, nessa época era ainda o sumo pontífice, o chefe e órgão principal da religião romana; era o guarda e o intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o culto e o dogma. Sua pessoa era sagrada e divina; porque constituía precisamente uma das características da política dos imperadores, desejosos de reconquistar os atributos da antiga realeza, não esquecer esse caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes-fundadores. Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império queriam renovar, proclamando que a religião não é mais o Estado, e que obedecer a César não é o mesmo que obedecer a Deus. (COULANGES, 1961, p. 337-338, grifo nosso)

Foi através da mensagem do Cristianismo que houve, pela primeira vez, a ruptura entre religião e Estado, sendo estes vistos, a partir de então, sob duas esferas distintas e separadas. Após tal distinção, mesmo com resistência de parte do clero, o governo do Estado nunca mais foi o mesmo, senão veja-se:

O cristianismo acaba com os cultos locais, extingue os pritaneus, destrói definitivamente as divindades políadas. Faz mais ainda: não toma para si o império que esses cultos haviam exercido sobre a sociedade civil. Professa, que religião e Estado nada têm em comum; separa o que toda a antiguidade havia confundido. Podemos aliás notar que durante três séculos a nova religião viveu completamente fora da ação do Estado; soube passar sem sua proteção, e até lutou contra ele. Esses três séculos estabeleceram um abismo entre o domínio do governo e o domínio da religião. E como a lembrança dessa época gloriosa não podia ser esquecida, aconteceu que essa distinção tornou-se verdade vulgar e incontestável, que os esforços de uma parte do clero não foi capaz de desarraigar. (COULANGES, 1961, p. 338)

A partir de então, a política não mais estava subordinada a normas religiosas. Encontrava-se livre para estabelecer as suas próprias regras e determinar seus rumos, não se subordinando a nenhuma outra autoridade que não a lei moral. Os cidadãos não mais se submetiam ao Estado com a sua vida, e o descumprimento de uma ordem estatal não mais significava pecar. Pela primeira vez os homens distinguiam a vida política da vida particular. Não era mais necessário todo um ritual sagrado para a prática dos atos da vida civil.

Importante se faz registrar que o estoicismo, de forma corajosa, já havia apresentado a distinção entre Estado e a religião, objetivando proporcionar ao homem uma liberdade interior. Todavia, a ideia propagada pelos adeptos desta seita não fizeram da separação entre a ordem estatal e religiosa uma norma universal e inabalável, como fez o Cristianismo, o qual fez o bem comum da humanidade. (COULANGES, 1961)

Por consequência também da mensagem cristã, surge no homem um novo sentimento: a liberdade, que desde então se incorporou não só no interior dos homens, mas em toda a ordem social. Em razão das mudanças que vinha ocorrendo, tudo se transformou, conforme demonstrado na narrativa a seguir:

Os sentimentos e os costumes então se transformaram, assim como a política. A idéia que se fazia acerca dos deveres do cidadão se enfraquecera. O dever por excelência não consistia mais em dar o tempo, as forças e a vida ao Estado. A política e a guerra já não são tudo para o homem; todas as virtudes não estão mais compreendidas no patriotismo, porque a alma não tinha mais pátria. O homem sentiu

que tinha outras obrigações além das de viver e morrer pela cidade. O cristianismo distinguiu as virtudes particulares das virtudes públicas. Diminuindo estas, elevou aquelas; colocando Deus, a família, a pessoa humana acima da pátria, e o próximo abaixo do concidadão. (COULANGES, 1961, p. 339)

Diante de tantas novidades, mesmo sem esta pretensão, o Cristianismo muda totalmente as direções do Direito, do governo e de toda a sociedade ocidental, que, após a consolidação da mensagem cristã, nunca mais foram mesmos.

6.2 A influência cristã na compreensão moderna de Direito: esclarecimentos sobre como surgiu e se originou esta ligação

O Cristianismo, em sua essência, nunca pretendeu exercer qualquer tipo de domínio na ordem jurídica, mas, muito pelo contrário, sempre deixou clara a distinção entre o objetivo cristão com o reino deste mundo. A mensagem cristã destina-se a regular as relações do homem com Deus e do homem com o próximo, deixando claro que o homem, enquanto cidadão desta terra, deveria se submeter às autoridades deste mundo.

Tal assertiva se torna clara quando Jesus Cristo, ao ser questionado pelos fariseus sobre a licitude dos pagamentos de impostos, manifestou de forma expressa tal distinção, conforme se vê no livro de Mateus, no capítulo 22 e versículos 16 ao 22:

E enviaram-lhe os seus discípulos, com os herodianos, dizendo: Mestre, bem sabemos que és verdadeiro, e ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, e de ninguém se te dá, porque não olhas a aparência dos homens. Dize-nos, pois, que te parece? É lícito pagar o tributo a César, ou não? Jesus, porém, conhecendo a sua malícia, disse: Por que me experimentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo. E eles lhe apresentaram um dinheiro. E ele diz-lhes: De quem é esta efígie e esta inscrição? Dizem-lhe eles: De César. Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. E eles, ouvindo isto, maravilharam-se, e, deixando-o, se retiraram. (Mt 22, 16-22, grifo nosso)

No intuito de corroborar que o Cristianismo não pretendeu se impor ao Direito, nem a nenhuma esfera da vida humana, já que vigente na doutrina cristã o livre arbítrio, no qual todos os homens são livres para decidirem o rumo de suas vidas, o próprio Jesus Cristo afirma que o reino dele não é deste mundo, conforme passagem expressa no livro de João, capítulo 18 e versículo 36:

Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. (Jo 18, 36)

Sobre os episódios acima narrados, Fustel de Coulanges também defende que a intenção do Cristianismo jamais foi que o direito se derivasse dela, pois a mensagem cristã se preocupava com um plano superior ao terrestre, embora ditasse normas que posteriormente serviram de fonte de inspiração para o Direito.

Nesta esteira de pensamento se manifesta:

O cristianismo é a primeira religião que não pretendeu que o direito derivasse dela, ocupando-se dos deveres dos homens, e não de suas relações de interesse. O cristianismo não regulou nem o direito de propriedade, nem a ordem das sucessões, nem as obrigações, nem os processos. Colocou-se fora do direito, como fora de tudo o que fosse puramente terrestre. O direito, portanto, tornou-se independente; pôde procurar suas regras na natureza, na consciência humana, na idéia poderosa de justiça que está em nós. Pôde desenvolver-se com toda a liberdade, reformar-se, melhorar-se sem nenhum obstáculo, seguir o progresso da moral, dobrar-se aos interesses e necessidades sociais de cada geração. (COULANGES, 1961, p. 340, grifo nosso)

Todavia, embora sem esta pretensão, o Cristianismo, inegavelmente, acabou por influenciar toda a estrutura jurídica do Ocidente, que viu, no sucesso da mensagem cristã, uma importante fonte de inspiração para consolidação de suas normas.

Ademais, durante muito tempo o Cristianismo representou a referência ética exclusiva de inúmeros povos da civilização ocidental, fato este destacado por Marcelo Maciel Ramos:

O cristianismo representou durante mais de um milênio, desde a queda da porção ocidental do Império romano no século V, até o Iluminismo e as revoluções por ele despertadas, a partir do século XVIII, a referência ética exclusiva dos vários povos que se formavam sob as perspectivas culturais da civilização ocidental. (RAMOS, 2007, p. 94)

Através dos ensinamentos de Jesus Cristo, as pessoas que iam aceitando a mensagem cristã mudavam sua forma de ver o mundo e de se posicionar perante a sociedade. A medida que a mensagem cristã conquistava a sociedade, os códigos romanos admitiam novas regras, não mais por subterfúgios, mas abertamente, e sem hesitação. O Cristianismo mudou, também, a forma como a antiga família se constituía. O pai não mais exercia a autoridade absoluta sagrada que lhe era outorgada pelo sacerdócio e a mulher passou a ser vista como moralmente igual ao marido. (COULANGES, 1961)

Coulanges salienta, ainda, como o Cristianismo mudou o direito de propriedade em sua essência, pois os limites sagrados dos campos desapareceram e a propriedade não mais derivava da religião, mas adquiria-se pelo trabalho, sem ser necessário submeter às formalidades do antigo direito. (COULANGES, 1961)

Diante das inúmeras mudanças, Coulanges constata que “porque a família não possuía mais sua religião doméstica, sua constituição e seu direito foram modificados, do mesmo modo que, só porque o Estado não tinha mais sua religião oficial, as regras do governo dos homens foram modificadas para sempre. (COULANGES, 1961, p. 340)

Assim, aos poucos, a doutrina cristã foi se tornando uma importante fonte de valor e mandamentos na experiência jurídica. (RAMOS, 2010). Em que pese tal influência, importante se faz esclarecer que a convergência entre os mandamentos cristãos e os ordenamentos jurídicos não interfere no caráter racional e humanístico do Direito. O Cristianismo se apresenta como um fator que muda a forma de como a tradição jurídica ocidental percebe o mundo e idealiza o comportamento social. Em defesa desta ideia, se posiciona Marcelo Maciel Ramos:

Aceitar a conexão entre o direito e a religião cristã não significa, todavia, abandar o pressuposto de racionalidade como ponto de partida de uma ordenação propriamente jurídica. Afinal, essa é a vocação precípua e irrenunciável do direito ocidental, construído sobre o legado greco-romano. [...] Ainda, no embate entre mito (fé) e razão que sempre permeou o pensamento ocidental, mesmo nos momentos de radical racionalismo, buscou-se muitas vezes nas crenças os elementos sobre os quais a razão se debruçou para produzir seus conhecimentos. Com isso, mesmo com o proclamado racionalismo do Iluminismo, a suscitar uma profunda transformação na civilização ocidental, com a revalorização do homem e da razão, os valores da tradição cristã não puderam ser abandonados definitivamente, sob o argumento de que se fundavam na crença em uma verdade revelada pela divindade. Isso porque, naquele momento, eles já estavam profundamente impregnados no imaginário e no patrimônio cultural e ético do Ocidente. (RAMOS, 2010, p.64)

Destarte, evidente é a dissociação de ambas as esferas, a religiosa e a jurídica, o que não significa que uma não possa fundamentar a outra sem perder a sua característica, sua personalidade. É inegável, através de um mergulho na tradição jurídica ocidental e nos ordenamentos jurídicos dela emanados que a doutrina cristã se constituiu um fator de peso, uma influência marcante no comportamento social, e, sendo o Direito um instrumento que regula a conduta de toda uma sociedade, torna-se plenamente aceitável, ou até mesmo inevitável, que haja tais reflexos.

Ainda assim, em inúmeros momentos históricos, nota-se a repulsão a qualquer tipo de interferência da religião, mormente no contexto ocidental, através de movimentos filosóficos, humanistas, renascentistas, os quais afirmavam a total independência do Direito.

Em que pese tais posicionamentos, e mesmo diante da autonomia do Direito em se inventar e ditar as normas que a ele compete, ao final, em uma profunda análise de todo o sistema, inevitável se torna concluir pela convergência do Direito com os ensinamentos do Cristianismo, fato este constatado por Marcelo Maciel Ramos:

Todavia, se, por um lado, o banimento do cristianismo do pensamento científico e filosófico e da vida política, a partir do Iluminismo, permitiu o reflorescimento do direito, por outro, buscou-se no ethos cristão muitos dos valores sobre os quais ele se reconstituiu. [...] Sob a inspiração das filosofias gregas, suprimiam-se as afirmações de limitação racional e de incapacidade moral do homem, bem como seus deveres inquestionáveis de submissão e obediência cegas à ordem divina; entretanto, a própria valorização do homem e a afirmação fundamental da igualdade humana buscavam na noção de pessoa e de fraternidade universal, desenvolvidas pela doutrina cristã, seus pressupostos basilares. (RAMOS, 2010, p.69, grifo nosso)

Coadunando com a ideia de que fé cristã promoveu uma importante influência na compreensão moderna do Direito, Diogo Luna Moureira apresenta que foi por meio dela que o homem adquiriu uma noção de interioridade, a qual conferia uma importância a sua essência, sendo ela responsável por conduzi-lo até Deus. A respeito desta noção:

A fé cristã desempenhou papel de extrema importância no Medievo ao proporcionar uma nova imagem do “eu interior” e de todas as consequências provocadas por este reconhecimento. O “eu” cristianizado pressupõe o reconhecimento de algo interior ao homem, que está ligado a sua essência e o leva a Deus. (MOUREIRA, 2011, p. 21)

Como se depreende, a mensagem do Cristianismo promoveu o reconhecimento da subjetividade do homem, e, por conseguinte, autonomia e o valor próprio da alma individual. Trouxe em sua mensagem a faculdade do ser humano em optar por suas decisões e escolher o caminho a ser seguido. Sobre esta faculdade, a Bíblia denomina como livre arbítrio, sendo que

O homem é, pois, ser dotado de livre arbítrio (Liberum arbitrium voluntatis) que o conduz na tomada de decisões diante dos fatos da vida: “essa prova da liberdade da Vontade funda-se exclusivamente em uma força interior de afirmação ou de negação que não tem a ver com qualquer posse ou potestas real”. A exteriorização da interioridade pela liberdade é que possibilita a manifestação de um homem capaz de querer. (MOUREIRA, 2011, p. 22-23)

Em virtude dessas considerações, veja-se que Deus concedeu ao homem, em sua individualidade, a vontade para escolher livremente as suas decisões, de forma que são estas escolhas que afastarão ou aproximarão o homem de Deus. O que Deus faz é dar conhecimento a humanidade, através da Bíblia, sobre preceitos e normas de conduta que são agradáveis a ele, de forma que cada um, no uso de seu livre arbítrio, poderá escolher em submeter a sua vontade livre aos desígnios divinos ou às paixões humanas.

Destarte, o Cristianismo revela o homem como um ser superior aos animais, pois dotado de razão e livre. Assim, Diogo Luna Moreira, fazendo referência a Santo Agostinho, assevera que

[...] a superioridade do homem perante aos demais animais está no fato de ele saber que vive e, portanto, poder assumir determinadas posturas através do uso da vontade livre. O homem é um ser dotado de razão, e não apenas de instintos, de forma que “só quando a razão domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado.” Acima desta razão, só Deus, que é a Verdade. (MOUREIRA, 2011, p. 25)

Notadamente em relação ao Cristianismo como fator influenciador da concepção moderna do Direito, afirma-se que “o despontar da Modernidade proporcionará uma nova visão do indivíduo que encontra espaço para o desenvolvimento na própria consciência, de uma singularidade mitigada no Medievo, mas ao mesmo tempo teoricamente instigada pela filosofia cristã da interioridade.” (MOUREIRA, 2011, p. 35)

Logo, constata-se que a doutrina cristã exerceu um papel de extrema importância para a atual concepção acerca do Direito. Diante das abordagens realizadas, pode-se perceber que devido aos valores conferidos ao homem, e a forma como o Cristianismo o concebeu, dotando-o de razão, liberdade e dignidade, a ordem jurídica teve que ser reformulada, já que a sociedade ocidental já havia entendido o reconhecimento e importância do ser individual.

Outrossim, apóia-se na inelutável convergência entre o Cristianismo e o Direito, sendo forçoso concluir que o Cristianismo, em virtude de sua anterioridade, serviu de fundamento para o Direito tal como hoje é consolidado.


7. O CRISTIANISMO COMO INSPIRAÇÃO PARA FENÔMENOS QUE MUDARAM A HISTÓRIA DA HUMANIDADE E DO DIREITO

A doutrina cristã, além de ser uma importante fonte de conteúdo de inúmeros ordenamentos jurídicos de todo o mundo ocidental, foi influente precursora de fenômenos que mudaram frontalmente a história do Direito.

Sob inspiração nos valores cristãos, inúmeros eventos ocorreram em toda a história da humanidade após o advento do Cristianismo. Cientes dos direitos garantidos pela mensagem cristã, as sociedades não mais se sujeitaram passivamente a qualquer tratamento a elas dispensado.

Conhecedoras de valores como igualdade de todo os homens, amor ao próximo, solidariedade, fraternidade, inerentes a todo ser humano, não seria tão fácil aos governantes impor qualquer tipo de regime às sociedades com a cultura cristã.

Diante desta conscientização, busca-se apresentar, dentre tantos, eventos como a Declaração de Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que buscaram inspiração e tiveram direta influência de valores oriundos do Cristianismo.

Assim, quer-se enfatizar a importância da mensagem cristã não somente no plano jurídico dos ordenamentos, mas como fator que acarretou a mudança de toda a sociedade, conferindo aos homens direitos e garantias fundamentais que não eram objeto de efetividade por partes dos Estados.

7.1 Declaração de Independência dos Estados Unidos da América

Os treze Estados que atualmente compõem os Estados Unidos da América, antes de serem Estados independentes, eram colônias que possuíam como metrópole a Inglaterra. (SCHWIDT, 2005)

A Inglaterra, que acabava de sair vitoriosa na guerra dos 7 anos, onde disputou com a França a hegemonia do comércio nas colônias da América do Norte, contraditoriamente se encontrava derrotada. Tratava-se de uma derrota financeira, já que, em virtude dos grandes prejuízos oriundos da guerra, perdeu seu poder econômico e entrava em uma crise econômica. Diante da crise enfrentada, e no intuito de superar esta situação, o Parlamento inglês resolveu aprovar inúmeras medidas que acarretaram no aumento da tributação nas colônias. (SCHWIDT, 2005)

Inconformados com a implantação de leis que estabeleciam impostos cada vez mais altos em mercadorias cotidianamente utilizadas, tais como o açúcar, os selos e o chá, as colônias constataram uma sobrecarga tributária, e, diante de tal situação, após inúmeros confrontos com a metrópole, as colônias se reuniram, e, no dia 04/07/1776 aprovaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos. (ALTAFIN, 2007)

Neste documento, estavam contidos valores como igualdade entre todos os homens, liberdade, a busca pela felicidade, havendo expressa menção que tais valores eram oriundos do criador. Sobre tais valores, assim destaca Juarez Altafin:

Na declaração de Independência de 1776, que teve inspiração de Jefferson, afirma-se, vigorosamente, como princípios básicos, “que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.” (ALTAFIN, 2007, p. XIII)

Prossegue afirmando:

Na declaração de Independência dos Estados Unidos, os congressistas de 4 de julho, do mesmo ano de 1776, afirmaram como ‘evidentes estas verdades: que todos os homens foram criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, em cujo número estão a vida, a liberdade e o desejo de bem-estar; que para firmar tais direitos são instituídos os governos entre os homens...” Isso demonstra que, mesmo sob a influência do racionalismo, os congressistas da Independência Norte-Americana não abdicaram da origem divina dos Direitos Naturais. (ALTAFIN, 2007, p. 11)

Notadamente em relação à igualdade entre os homens, defende-se que esta deriva da paternidade divina, conforme se pode verificar nos posicionamentos apresentados por Carlos Enrique Ruiz Ferreira e pelo filósofo John Lo> 

É interessante notar como essas duas tônicas (igualdade entre os homens derivada de uma mesma Paternidade divina), aparecem ipsis literis nos documentos provindos da Revolução Americana. A semelhança de concepção com a doutrina cristã é óbvia: “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights” (Declaração de Independência dos EUA, 1776). Ou seja, no que tange aos Direitos Humanos estadunidenses, eles nascem universais e fundamentam-se na igualdade dos homens propiciadas pelo “Criador”. (FERREIRA, 2010, p. 7)

Locke a mesma concepção: “[…] todos os homens são obra de um único Criador todo-poderoso e infinitamente sábio, todos servindo a um único senhor soberano, enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço; são portanto sua propriedade, daquele que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém”. (LOCKE apud FERREIRA, 2010, p.7).

Destarte, claramente se pode observar a influência dos valores cristãos na concretização de um documento de tamanha magnitude para a nação que atualmente é considerada um império mundial.

7.2 Revolução Francesa

A Revolução Francesa surge no século XVIII, quando a população vivenciava um quadro de alarmante injustiça social. A França era um país absolutista, onde os reis detinham total poder sobre a política, religião, justiça e toda a sociedade. (APOLINÁRIO, 2010)

A sociedade francesa se dividia em três estados. O primeiro estado era composto pelo clero, formado por bispos, padres e vigários. O segundo estado compreendia a nobreza, sendo os descendentes de pessoas da alta burguesia. Já o terceiro estado albergava as demais classes da sociedade, onde estavam os trabalhadores urbanos como profissionais liberais e professores; a pequena burguesia, os camponeses, enfim, todo o restante do povo. (APOLINÁRIO, 2010)

Ao terceiro estado, e unicamente a este, era imposta pelo rei a obrigatoriedade de pagar tributos, despesas e contribuições para os demais estados, a fim de mantê-los em todo o luxuoso padrão de vida que ostentavam. (APOLINÁRIO, 2010)

Inconformados com tal situação, onde os impostos eram cada vez mais altos, e a situação dos trabalhadores e camponeses era de extrema miséria, o terceiro estado resolveu não mais se conformar em ser o responsável pela manutenção do luxo e conforto dos primeiro e segundo estados. Iniciaram, a partir de então, um movimento que levou a população às ruas a fim de acabar com a monarquia comandada pelo rei absolutista, Luis XVI. (APOLINÁRIO, 2010)

Neste contexto, surge a luta pelo reconhecimento do direito à liberdade, buscando uma garantia a liberdades fundamentais do homem, liberdades estas que já se encontravam interiorizadas no ser humano desde o nascimento, as quais são inalienáveis. Por possuir esta característica, o direito à liberdade abrangia a liberdade pessoal, de pensamento, de manifestação, política, enfim, todos os tipos de liberdades fundamentais ao homem clamavam pelo reconhecimento. (GOYARD-FABRE, 2002)

Buscavam também o reconhecimento dos deveres que o Ente Estatal possuía para com os seus membros, de forma que estes, na sua individualidade ou coletividade, pudessem exigir do Estado o amparo e a assistência.

Consubstanciado em seu lema, a Revolução Francesa objetiva a conquista dos maiores desejos do terceiro estado: liberdade, igualdade e fraternidade. (APOLINÁRIO, 2010)

Sendo assim, para mudança do cenário absolutista anteriormente vivenciado, planejava-se a tomada da Bastilha, lugar onde os opositores da monarquia considerados como culpados pelo rei eram presos ou condenados à morte tão somente pela discricionariedade do monarca. (APOLINÁRIO, 2010)

No dia 14/07/1789 a Bastilha foi tomada, marcando, assim, o início da Revolução Francesa. A partir de então, a revolução se propagou, acarretando na captura do rei e de toda a família real. (APOLINÁRIO, 2010)

Diante deste cenário, não houve outra saída à ordem jurídica senão proceder ao reconhecimento de direitos que urgiam por ser reconhecidos. Tais direitos já faziam parte da natureza intrínseca dos indivíduos e necessitavam do reconhecimento pelo ente estatal. Não havia motivos para a não concretização de tais direitos que já pertenciam aos indivíduos, embora desprovidos de efetividade jurídica e reconhecimento estatal. (GOYARD-FABRE, 2002)

Sendo assim, foi anunciada a formação da Assembléia Constituinte, na qual foram cancelados todos os direitos feudais existentes e, em substituição, foi promulgada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. (APOLINÁRIO, 2010)

Sobre os direitos garantidos neste importante documento, mister salientar a direta influência dos valores cristãos na nova ordem que se formava. Liberdade, igualdade e fraternidade são valores consagrados em todo o contexto bíblico. A população francesa ansiava por direitos a ela inerentes, direitos que já foram outorgados pelo Criador e garantidos através da mensagem bíblica. (RAMOS, 2010)

A respeito dessa relação, Marcelo Maciel Ramos, citando José Luiz Borges Horta afirma:

Lembremos que o próprio lema da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – albergava, além do valor da autonomia humana (liberdade), de inspiração clássica, os valores da igualdade e da fraternidade universal, cuja inspiração é inegavelmente cristã. [...] Desse modo, a fraternidade, isto é, o “reconhecimento do outro como semelhante, ainda que diferente”, acaba por ser afirmada, conforme ensina José Luiz Borges Horta, como o novo valor central do Estado de direito, inaugurando a era da cidadania mundial, o que exigia, pois, sua universalização, estendendo, por conseguinte, os seus valores a toda humanidade. (RAMOS, 2010, p. 70)

Assim, com inspiração em valores cristãos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão significou um grande avanço para a sociedade francesa, já que garantia direitos sociais, igualdade, liberdade e fraternidade a todos os cidadãos, conferindo, ainda, uma maior participação política para o povo.

7.3 Declaração Universal dos Direitos Humanos

Transcorridos aproximadamente cento e cinquenta anos da Revolução Francesa, o mundo experimentava um cenário de horror, já que neste ínterim passou por duas grandes guerras mundiais. Em 1914, iniciava-se no cenário mundial a Primeira grande guerra, que perdurou até o final do ano de 1918. Logo em seguida, sem poder se recuperar das atrocidades e destruições acarretadas pela grande guerra, o mundo foi palco de outra guerra, a 2ª guerra mundial, que durou de [1939] a [1945]. (SCHWIDT, 2005)

O cenário vivenciado por toda a humanidade foi de morte, preconceitos, desigualdade, violência, intolerância e extrema crueldade. Necessitava-se com total urgência de um acordo entre a humanidade que garantisse a paz entre os povos. É neste contexto que, em 1948, surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos. (SCHWIDT, 2005)

Referido documento procurava restaurar a paz em todo o mundo, e conferir igualdade e dignidade às pessoas em um caráter universal. Apenas com uma superficial análise da Declaração, pode-se claramente observar que nela estão consubstanciados os valores revolucionários trazidos pelo Cristianismo.

No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), há a menção acerca da igualdade dos homens e da imperiosa necessidade de reconhecimento de direitos inerente a toda humanidade, afirmando, em suas primeiras linhas que “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]

Prossegue em seu art. 1º, onde prevê que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos são dotados de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948)

De início, pode-se claramente constatar a inquestionável presença de valores cristãos incorporados no corpo desta carta que conferiu direitos tão importantes a toda humanidade.

Apenas para corroborar tal assertiva, traz-se algumas passagens bíblicas nas quais constam esta igualdade e universalidade entre todos os homens, de forma a se concluir que tais valores serviram de fundamentos históricos e teóricos para a consolidação dos direitos humanos.

Assim, veja-se o que fala em Efésios 2, versículos 14 ao 19:

Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derrubando a parede de separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito. Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus. (Ef 2, 14-19)

No mesmo sentido, tem-se a passagem escrita no livro de Gálatas 3, versículos 26 ao 28:

Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. (Gl 3, 26-28)

A perspectiva apresentada nos ensinamentos cristãos coaduna com o objetivo proposto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não há mais a visualização de estrangeiros, pois, com os ensinamentos de Jesus Cristo, todos são parte integrante de um mesmo povo. Sendo todos os homens iguais, não há mais motivos para discriminação quanto à origem, raça, nacionalidade, dentre outros.

Sobre esta relação, Celso Lafer afirma que “[...] o ensinamento cristão é um dos elementos formadores da mentalidade que tornou possível o tema dos direitos humanos”. (LAFER, 2001, p. 119). De igual forma, Michel Villey destaca que "o lugar-comum de que os direitos humanos são um produto do cristianismo, ou do judaico-cristianismo, é onipresente na literatura cristã, tanto protestante como católica; comporta uma parte de verdade. A noção moderna dos direitos humanos tem raízes teológicas". (VILLEY, 2007, p. 107)

Destarte, veja-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos veio concretizar e impor deveres jurídicos que há muito já estavam presentes na Bíblia como deveres cristãos, e, devido à expansão do Cristianismo, estavam incutidos na mentalidade de todo o mundo ocidental.

Outrossim, aludida Declaração é concebida universalmente como o alicerce das garantias e direitos fundamentais, entendendo-se, diante da relação acima apresentada, pela direta influência do Cristianismo na elaboração deste documento tão importante para humanidade, considerado como uma conquista que mudou a história do Direito e dos países que a ela aderiram.


8 DO OCIDENTE AO DIREITO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE ACERCA DO CONTEÚDO CULTURAL DAS NORMAS JURÍDICAS

Não obstante as inúmeras discussões acerca do sentido do Direito, torna-se imperioso entender que a ordem jurídica reguladora de toda uma sociedade deverá, necessariamente, observar o contexto cultural a que é destinada, já que ela visa impor, objetivamente, normas positivadas, no intuito de regular as ações exigidas, esperadas e aceitas por determinada cultura, bem como as sanções que visam garantir a observância de tais normas. Caso contrário, não faria sentido embutir em uma nação um Direito totalmente distante do seu arcabouço cultural, pois, embora dotado de validade, nenhuma eficácia lhe subsistirá.

Neste diapasão, Marcelo Maciel Ramos defende que:

É preciso superar, de uma vez por todas, a compreensão do direito como um conjunto de mecanismos meramente formais não comprometidos com o conteúdo cultural do ethos coletivo, isto é, sem qualquer conexão substancial com o teor das normas sociais, políticas, religiosas, etc. Não podem mais prosperar essas teorias que afastam o direito de qualquer reflexão substancial, de qualquer tentativa de compreender o complexo conteúdo cultural dos seus preceitos em razão do temor infundado de comprometer a autonomia científica ou seu caráter racional e laico. (RAMOS, 2010, p. 71)

Defende, assim, o autor, que é preciso abandonar a visão do direito como um conjunto de normas meramente formais, afastado de quaisquer influências moral, religiosa, política e social. Muito pelo contrário, ao direito se impõe uma reflexão substancial, uma análise do conteúdo cultural das normas positivadas, para que, somente assim, o direito possa refletir uma ordem jurídica reguladora da vida social (RAMOS, 2010).

Neste mesmo sentido, Joaquim Carlos Salgado também se posiciona ao afirmar:

O direito é a forma mais avançada e mais elaborada de universalização dos valores éticos, pois se tais valores permanecem regionalizados como valores morais de um grupo, embora a aspirem, não têm a objetividade de valores de toda a sociedade, não são valores como tais (universais) reconhecidos. [...] O direito é, nesse sentido, o maximum ético de uma cultura, tanto no plano da extensão (universal nesse caso significa de todos e reconhecido por todos), como também no plano axiológico – enquanto valores mais altos ou de cumeada, como tais formalizados. (...) Em suma, o que se compreende como maximum ético é que ‘quando certos valores, constituindo um núcleo da constelação axiológica de uma cultura, alcançaram a universalidade material reconhecida na consciência ético-jurídica de um povo e a universalidade formal pela sua posição e normatização através da vontade política desse povo, é que adquirem a natureza de direitos’. (SALGADO, 2006, p. 9-10)

Roberto Denis Machado, citando Alexandre Travessoni Gomes, afirma que “entender esta relação dos valores com o dever-ser normativo é ponto de partida primordial para o entendimento da relação entre os valores e o Direito, já que todo dever-ser está fundado em valores.” (MACHADO, 2006, p. 93) Segundo o mesmo autor,

Far-se-á necessário, então, para a garantia de perpetuação de qualquer sociedade, que se protejam os valores ali predominantes, garantindo a pacificação dos interesses de seus membros. É função do Direito efetuar esta proteção, resolver os conflitos de interesses e coibir a prática de atos contrários aos valores eleitos por uma sociedade. Reale chega mesmo a dizer que “o Direito existe porque há a possibilidade de serem violados os valores que a sociedade reconhece como essenciais à convivência”. (MACHADO, 2006, p. 100)

Defende-se que o Cristianismo foi o responsável por incutir grande parte dos valores presentes em toda a cultura ocidental, notadamente na cultura brasileira. Acredita-se que os valores cristãos são predominantes na cultura ocidental, posto que diante toda a anterioridade histórica apresentada, foi justamente o Cristianismo que conferiu aos indivíduos valores até então não visualizados no contexto ocidental com tamanha importância e universalização.

Inúmeros valores cristãos se exteriorizam como normas de conduta dos indivíduos, abrangendo até mesmo aqueles que não se denominam como cristãos.

Destarte, passa-se à análise do conteúdo cultural das normas jurídicas, notadamente do ordenamento jurídico brasileiro, apresentando o Cristianismo como uma importante fonte de conteúdo para o Direito Brasileiro.

8.1 A laicidade e o conteúdo religioso do Direito

Por laicidade, entende-se como a ausência de influência ou controle por parte do ente eclesiástico. Assim, ao falar em laicidade do Direito, verifica-se que o termo compreende o significado de uma ordem jurídica independente do poder da igreja, a qual elabora seu conteúdo normativo livre da autoridade religiosa.

Neste sentido, Marcelo Maciel Ramos posiciona-se:

A laicidade do direito é, sem dúvida, uma das mais importantes conquistas culturais da civilização ocidental. A dissociação entre o direito e a religião foi o passo fundamental para o desenvolvimento de uma cultura jurídica sem precedentes e de cuja tradição somos herdeiros e continuadores. A separação entre o temporal e o divino permitiu o surgimento de uma forma de ordenação da vida social fundada não mais no sagrado, no sobrenatural, mas na própria capacidade humana de estabelecer as regras do agir e de decidir os conflitos segundo seus próprios critérios. Por outro lado, a religião nunca deixou de constituir para a tradição jurídica ocidental uma importante fonte de conteúdo. Embora a autoridade das normas jurídicas tenha passado a se fundar na própria vontade humana, os valores transmitidos por meio das crenças religiosas predominantes não deixaram de compor a substância do direito. (RAMOS, 2010, p. 50)

Em relação à independência do Direito, inúmeros são os autores que, ao longo dos últimos séculos, defenderam sua autonomia científica, buscando isolá-lo artificialmente de todo o contexto cultural, político, moral e religioso. (RAMOS, 2010)

Sobre esta separação, Roberto Denis Machado apresenta

Em tempos idos, em sociedades antigas, os três sistemas se confundiam, especialmente o Direito e a religião. De fato, os primeiros sistemas jurídicos conhecidos derivaram de textos sagrados. E nestas sociedades de caráter fortemente religioso, a moral religiosa era a própria moral. Com o desenvolvimento das sociedades, o aparecimento do Estado moderno e, posteriormente, a laicização do Estado, o Direito se desvinculou da religião, passando a constituir um sistema normativo com fontes próprias. Da mesma forma, a moral deixa de ser a moral religiosa e passa a ser moral social. Aqui já se faz uma distinção básica entre o Direito e os outros sistemas normativos: enquanto em um Estado há um único sistema jurídico, convivem diversos sistemas religiosos e diversos sistemas morais. (MACHADO, 2006, p. 70)

Nesta mesma esteira de pensamento, Guilherme de Ockham, defendia que “o conhecimento científico só é possível através da observação empírica enquanto que o conhecimento de Deus provém da Revelação.” (VILANI, 1999, p. 61) Desta forma, “Ockham retirou o conhecimento transcendental da esfera racional para situá-lo em uma esfera distinta: a fé. Assim, a ciência e religião tornaram-se campos de diferentes indagações.” (VILANI, 1999, p. 61)

Diante destas afirmações, nota-se que para Ockham, o conhecimento de Deus não depende de demonstrações racionais. Para saber sobre Deus basta ter fé. No que tange à sociedade e sua organização, Maria Cristina Vilani, apresentando uma abordagem sobre o posicionamento de Ockham, afirma:

A sociedade é resultado da experiência de viver junto e da vontade livre dos homens; os elementos individuais e múltiplos não são unificados por laços imutáveis e necessários; a vida coletiva é um fato empírico e procede da necessidade racional do homem de organizar a convivência. A sociedade é, sem dúvida, um dom de Deus, de onde tudo procede, mas a forma e o conteúdo das instituições sociais dependem de decisões humanas. Deus é Onipotente e sua vontade é soberana e incondicional, mas disso não decorre a interferência divina nos assuntos terrenos. (VILANI, 1999, p. 62-63)

Conforme se vê, Ockham defende a autonomia do governo temporal, o qual possui como fonte de legitimidade a própria sociedade. Segundo Vilani, “Guilherme de Ockham retirou da instituição religiosa não só a responsabilidade da condução dos assuntos temporais como também a competência para julgar e condenar os homens, afirmando que “a punição é monopólio dos imperadores [...]”(VILANI, 1999, p. 75)

Na mesma esteira de pensamento, como defensor da autonomia da ciência jurídica, não se pode deixar de mencionar Hans Kelsen, o qual tenta extrair desta “tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito.” (KELSEN, 2006, p.1)

Hans Kelsen, em sua obra, Teoria Pura do Direito, defende que são as normas sociais que regulam as condutas humanas, podendo estas possuírem uma conexão com a moral. Porém, no tocante às normas jurídicas, segundo o autor, estas devem ser autônomas, portadoras de força impositiva que as tornem obrigatórias (KELSEN, 2006).

De acordo com o autor,

a necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas de o conhecer e descrever. Embora as normas jurídicas, como prescrições de dever ser, constituam valores, a tarefa da ciência jurídica não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu objeto, mas uma descrição do mesmo alheia a valores (wertfreire). O jurista científico não se identifica com qualquer valor, nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito. (KELSEN, 2006, p. 77.)

Para Kelsen, à ciência jurídica não competia a análise do conteúdo substancial e da finalidade do Direito, mas sim, a averiguação do conteúdo formal das normas jurídicas, nele compreendido as características estruturais da norma, os processos de produção e aplicação bem como os fundamentos formais de validade. (RAMOS, 2010)

Assim, diante da perspectiva apresentada por Kelsen, a ciência jurídica acabou por afastar dos fenômenos religiosos, sociais, políticos, culturais, etc. e obter uma ciência laica, separada das influências externas ao Direito.

Não obstante referida autonomia, que, repita-se, foi de extrema importância para o Direito, incômodo causa ao questionar o motivo do legislador, dentre tantas condutas esperadas, escolheu impor apenas um modo de agir a ser expresso como norma de observância obrigatória a toda sociedade.

Decerto que esta escolha foi motivada por valores e sentimentos arraigados na cultura da sociedade a que tais normas são destinadas.

Na defesa desta ideia, Marcelo Maciel Ramos assim se posiciona:

Se o direito não pode prescindir dos seus aspectos formais, isto é, do conjunto de processos normativos previamente estabelecidos que impõe aos homens uma conduta obrigatória(um dever) e, ao mesmo tempo, um poder (uma prerrogativa) de exigir dos demais a sua observância, tampouco ele pode ignorar que o conteúdo do modelo de ação que estabelece é produto de uma decisão que é expressão da tradição cultural na qual se insere e que se funda em princípios e fins construídos historicamente. Se a forma previamente estabelecida é o que garante a segurança (a certeza) sobre o seu modo de proceder, tanto no que tange à produção de leis quanto a solução de conflitos, a substância cultural que preenche e justifica o conteúdo dos seus deveres e prerrogativas e, mesmo, os fundamentos de seus princípios formais (devido processo legal, contraditório, equilíbrio das partes, etc.) é o que assegura sua autoridade (sua validade material) como instrumento de ordenação da vida social. (RAMOS, 2010, p. 53, grifo nosso)

E continua:

Por isso, o direito, como produto da cultura, precisa estar constantemente conectado aos seus fins e fundamentos, sem os quais seu sentido, sua compreensão e sua própria manifestação na vida social ficam comprometidos. Afinal, a realidade ontológica de um bem cultural, isto é, sua essência, é necessariamente teleológica. São os fins, os quais já são em si construções humanas, que constituem o sopro de vida dos fenômenos culturais. Desse modo, o direito apenas pode encontrar sua razão de ser nos valores que se propõe a realizar, os quais só podem ser encontrados no processo histórico da cultura que o produz. (RAMOS, 2010, p. 53-54)

Assim, dentre os fatos que compõe a substância do Direito, é inegável a presença dos valores cristãos, atuando, assim, o Cristianismo como fundamento histórico influenciador da ordem jurídica, já que este compõe a essência, dissemina valores e norteia condutas dos destinatários do Direito.

8.2 O Cristianismo e o Direito Brasileiro

Como propósito de reflexão e abordagem do presente título, procura-se destacar a anterioridade do Cristianismo diante de todo o aparato jurídico brasileiro atualmente consolidado, e a influência histórica exercida pela mensagem cristã no cenário nacional.

Acredita-se que o maior impacto da mensagem cristã no ordenamento jurídico brasileiro foi a grandeza de tal ensinamento. Explica-se: o Cristianismo enraizou na consciência humana a noção de amor, no sentido de alteridade. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo é o maior mandamento cristão, e, também, tornou-se fundamento de grande parte de regras e institutos jurídicos adotados pelo Direito Brasileiro, inclusive embasa fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito, o qual será posteriormente tratado com mais especificidade.

Do dever de amar o próximo como a si mesmo, deriva-se a igualdade entre todos os homens já que o amor sustentado por si mesmo deverá ser o mesmo amor pelo próximo, já que perante Deus somos todos iguais.

No livro de Gálatas, capítulo 3, versículo 28, o Apóstolo Paulo afirma que não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus. (GL 3, 28).

Sobre esta relação, Juarez Altafin assim se posiciona:

As palavras cristãs atravessaram os séculos e pairam na nossa Carta no sentido de igualdade humana afirmada pelo Apóstolo. A seguir, o texto constitucional, em setenta e sete itens, enumera os direitos e deveres individuais, e suas garantias, recepcionados positivamente da História do Direito, externa e interna, e de acordo com a realidade brasileira. (ALTAFIN, 2007, p. 6)

No que tange a influência do Cristianismo na origem constitucional do Estado Brasileiro, a primeira Constituição Brasileira, outorgada em 24 de março de 1824, teve inegável inspiração francesa, mormente por todo o seu conteúdo refletidamente ao modelo francês. Sobre a convergência do Cristianismo e a primeira Constituição existente no Brasil, Juarez Altafin defende que:

Na nova organização estatal brasileira, após a independência, o cristianismo era evidente não só porque a Constituição foi outorgada em nome da Santíssima Trindade, como também assim dizia o seu art. 5º: “A Religião Catholica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império”. Completava o Artigo: “Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo”. Mais adiante: Art. 179, V:”Ninguém pode ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública”. (ALTAFIN, 2007, p. 12-13)

Por sua vez, a Constituição de 1934 trouxe em seu contexto a codificação de vinte e oito artigos tratando a respeito da ordem econômica e social, regulamentando direitos trabalhistas. Sobre tais disposições, é irrefutável que originaram de influências decorrentes da oposição ao capitalismo exacerbado, diretamente atacado pelo documento elaborado pelo Papa Leão XIII, a Encíclica Rerum Novarum, a qual possui como fundamento, mandamentos e deveres cristãos. (ALTAFIN, 2007)

Para corroborar tal assertiva, referido diploma, em seu art. 121, §1º, estabeleceu normas regulando as condições de trabalho em inúmeros aspectos, assim como estabelecidos na Encíclica Rerum Novaraum, tais como, jornada de trabalho, proteção da criança e da mulher, salário mínimo, dentre tantos outros. (ALTAFIN, 2007)

Sobre a ordem econômica e social, é de se salientar que, diante de inúmeras manifestações objetivando a conquista de direitos trabalhistas, os quais passaram a poder ser exigidos após a elaboração da Encíclica, notadamente no Brasil, as Constituições brasileiras posteriores a de 1934 passaram a adotar normas limitativas de liberdade trabalhista. Sobre esta constatação, veja-se o que Juarez Altafin afirma:

A partir de 1934, o Brasil integrou-se na nova ordem da evolução constitucional. A liberdade econômica ficou então limitada pelos princípios de justiça quanto aos direitos sociais individuais e necessidades da vida nacional. Foi o estabelecido nos vinte e oito artigos do Título IV, da Ordem Econômica e Social, da Constituição promulgada em 16 de julho de 1934. (ALTAFIN, 2007, p. 43)

A Constituição de 1988 destacou do Título II – Dos Direitos Fundamentais – o Capítulo II – Dos Direitos Sociais, em que são declarados na esfera constitucional: os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais; a liberdade de associação profissional ou sindical; o direito de greve; a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgão públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação; e a representação de empregados para entendimento direito com empregadores. Em título à parte, são tratadas a Ordem Econômica e Financeira, Título VII, e a Ordem Social, Título VIII. Os direitos previstos por Leão XIII, na Rerum Novarum, foram disciplinados na Carta de 1988, também de acordo com as palavras do Papa Pio XII: “Para que a vida social, conforme Deus a quer, obtenha seu objetivo, é essencial uma ordenação jurídica que lhe sirva de apoio externo, reparo e proteção. A função dela não é dominar, mas servir... As relações do homem com o homem, do indivíduo com a sociedade e da autoridade com os particulares, têm de colocar-se sobre uma clara base jurídica...”(PIO XII, apud ALTAFIN, 2007, p. 44)

Os direitos sociais foram mantidos e ampliados no corpo constitucional atual, conforme claramente se pode observar no art. 7º da atual Constituição Federal. É inegável que dentre o rol das garantias aos trabalhadores urbanos e rurais previstas no art. 7º estão presentes os mais variados valores cristãos como dignidade, igualdade, amor ao próximo.

Da mesma forma, o Cristianismo atuou como influência e fundamento para inúmeros institutos e ramos do Direito Brasileiro. Defende-se que a ordem estatal atualmente consolidada no estado Democrático de Direito possui suas raízes e fundamentos em princípios cristãos.

Neste sentido, permeou o presente trabalho no estudo dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, notadamente os fundamentos e objetivos desta, e passou-se a estabelecer a relação entre estes e os preceitos cristãos.

Nessa esteira, realizar-se-á uma análise do preâmbulo constitucional, bem como dos artigos inaugurais da Constituição Federal, onde constam os fundamentos e objetivos da República e de onde se baseia e se deriva todas as demais normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Toda normatização gravita em função da realização da proposta apresentada pelo constituinte.

Apresentado o conteúdo destes artigos, demonstrar-se-á o Estado Democrático de Direito como base para efetivação dos deveres e valores cristãos. Dentro desta ordem jurídica afirmada no Estado Brasileiro, sob as diretrizes do regime democrático, podem-se citar vários ramos do Direito que existiram e ganharam força através da mensagem cristã. À título de exemplo cita-se o Direito Internacional, os Direitos humanos, o Direito do Trabalho.

Por conseguinte, em uma análise aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, é possível extrair inúmeros institutos com direta influência do Cristianismo, tal como o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos maiores princípios consagrados em todo o Ordenamento jurídico brasileiro.

Do preâmbulo constitucional, constata-se como função da ordem estatal adotada, a solução pacífica das controvérsias, a qual foi efetivada, inclusive, através dos institutos de conciliação, mediação e arbitragem, os quais possuem como fundamento a paz, valor incansavelmente buscado pela doutrina Cristã. Por fim, apenas para elucidar, pode-se citar que um dos objetivos da ordem estatal democrática é construir uma sociedade solidária. Por isso, demonstra-se este valor através dos institutos que estabelecem os auxílios e benefícios previdenciários, que primam pela solidariedade, pautados no dever cristão de amar e amparar ao próximo. Tratar-se-á, ainda, do sistema punitivo brasileiro, e do direito das obrigações.

É sobre estes ramos e institutos do Direito que o capítulo a seguir se destina, apresentando os fundamentos e argumentos que levou a buscar no Cristianismo, a razão de ser deles.

Em que pese o reconhecimento de inúmeros outros institutos do direito brasileiro que possuem como fundamento histórico para sua consolidação o Cristianismo, limitar-se-á a análise da presente investigação em demonstrar alguns institutos relacionados com fundamentos do Estado Democrático de Direito, previstos no preâmbulo e nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal, a fim de promover uma maior objetividade à presente abordagem.


9 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO COMO BASE PARA EFETIVAÇÃO DOS DEVERES E VALORES CRISTÃOS

O Cristianismo, com todo o seu caráter universal e inabalável, traz em sua mensagem valores ensinados pelo criador de todo o universo e dos seres viventes, os quais devem ser seguidos para obter a aprovação de Deus. Tais valores passam a compor o interior das pessoas que crêem na mensagem cristã, arraigando-se na mente destas, causando, inevitavelmente um reflexo em toda a sociedade.

Outrossim, os valores originados dos ensinamentos cristãos compõem o patrimônio ético do homem ocidental, influenciando, significativamente, o conteúdo normativo do direito contemporâneo (RAMOS, 2010).

Em relação aos valores cristãos e os deveres jurídicos, Marcelo Maciel Ramos (2010) estabelece uma relação entre estes, de forma a demonstrar que mesmo com a intensiva negação da fé cristã promovida pela contemporaneidade, tais valores não puderam ser afastados da esfera jurídica e legislativa, ainda que já consolidadas tais esferas, e, mesmo diante de um Estado racional. Para tanto, assim se expressa:

[...] os valores supremos cristãos do amor e da caridade, a despeito dos seus fundamentos religiosos, apresentavam-se como conquistas sublimes do espírito ocidental, cujo apelo universal transcendia quaisquer limites culturais específicos. Do dever de amar a todos os homens, incluindo-se aí os amigos e os inimigos, o igual e o diferente, desdobraram-se alguns dos valores mais importantes do Ocidente, os quais, mesmo com a intensiva negação da fé promovida pela contemporaneidade, não puderam ser afastados em vista do seu apelo racional (ou universal) inquestionável: 1) a igualdade de todos os homens; 2) a caridade como dever de participar pessoalmente nas necessidades e sofrimentos alheios (mesmo dos inimigos), tomando-os como se fossem próprios; 3) o perdão, a proclamar a proibição da vingança e o dever de misericórdia para com aquele que tenha errado ou ofendido; e 4) a tolerância para com o diferente, o marginalizado e o excluído. (RAMOS, 2010, p. 69-70, grifo nosso)

No que tange à sociedade brasileira, notadamente onde 86,8% da população do Brasil são declaradamente cristãos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), torna-se inquestionável que os valores extraídos da mensagem cristã se encontram presentes no foro interno da maior parte da população.

De igual sorte, o Direito, que é destinado a regular as condutas de toda a sociedade, busca nos valores a sua essência, estando estes presentes na substância do direito.

Outrossim, parte a análise para o Direito Brasileiro. O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê que

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (BRASIL, 1988, sem grifo no original)

Sobre a organização estatal, já dizia a Encíclica Rerum Novarum em seu inciso 13 que “o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência.” (LEÃO XIII, 1891)

Sobre esta forma de organização e este direito inerente ao homem afirmado na Encíclica, passa-se a abordagem do modelo de organização estatal adotado pelo Estado Brasileiro.

O Estado Democrático de Direito é o regime adotado pela República Federativa do Brasil e possui seus fundamentos expressos no art. 1º da Constituição Federal da República, o qual prevê:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. (BRASIL, 1988)

Sobre o conceito de Estado Democrático de Direito, Alexandre de Moraes assim leciona:

O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se pelo Direito e por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, adotou, igualmente em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. (MORAES, 2007, p 125)

Notadamente em relação a ordem estatal adota pelo Brasil, pode-se afirmar que esta possui em seus fundamentos inúmeros valores cristãos, a começar pela fraternidade e busca da igualdade inerentes ao regime democrático. Fraternidade e igualdade são valores de caráter cristão, veementemente defendidos por Jesus Cristo como deveres dos homens neste mundo. Sobre esta relação, Carlos Alberto Bittar Filho assim manifesta:

Por outro lado, um dos pilares centrais da própria democracia é a fraternidade, da qual se desdobra a proteção à parte contratualmente mais fraca (Georges Ripert). Com efeito, se os homens são irmãos, eles devem ser iguais; se não o são, os mais fracos têm o direito de serem protegidos. Aliás, a experiência demonstra que a liberdade não basta para assegurar a igualdade, pois os mais fortes se tornam opressores; dessarte, cumpre ao Estado intervir, em nome de todos, para a proteção dos fracos. (BITTAR FILHO, 2004)

É sabido que outros valores apresentados pelos Cristianismo, como liberdade, dignidade e vida, estão presentes no Estado Democrático de Direito na forma de fundamento, objetivos, direitos e garantias fundamentais, as quais atuam como limitadoras de poder de tal Ordem estatal.

Fazendo-se um paralelo entre o regime estatal adotado pela atual Constituição Federal e a Doutrina Cristã, Juarez Altafin assinala com muita propriedade:

A propósito, podemos dizer que dois são os postulados básicos da democracia: a) a igualdade, quanto ao que se refere aos homens; b) a liberdade, na sua vinculação política com o Estado. Para Aristóteles, “a igualdade é o meio idôneo de se atingir a liberdade, princípio e fim do governo democrático”. Quanto ao primeiro postulado, igualdade como base da democracia cristã, temos as palavras de São Paulo: “Não há, pois, judeu nem negro, escravo ou livre, varão ou fêmea, pois sois todos um em Jesus Cristo”.[...] Quanto à liberdade, em relação ao Estado, na Epístola de São Paulo aos Romanos, está que “o poder público foi instituído por Deus”. [...] Dessa forma, se os homens são iguais por um preceito divino, anterior e superior ao Estado, perante este, são titulares de um Direito Natural, porque inerente à sua natureza humana. E se o poder público foi “instituído por Deus”, deve-se obedecer aos “princípios revelados por Deus”. No seu relacionamento com o ser humano, o Estado está sujeito aos preceitos divinos e respeito aos direitos naturais, que asseguram a liberdade do homem. (ALTAFIN, 2007, p. 2)

Neste sentido, forçoso é concluir acerca da existência de valores oriundos dos ensinamentos cristão na ordem estatal adotada pelo Brasil.

9.1 A base cristã do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana

O artigo 1º, III, da Constituição Federal, prevê que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana.” (BRASIL, 1988)

A dignidade da pessoa humana está presente em todo o ordenamento jurídico, e, além de ser um princípio basilar é um fundamento do Estado Democrático de Direito. Contudo, antes de ser abraçada com tamanha importância no texto constitucional brasileiro, é importante salientar que a noção de dignidade da pessoa humana, tal como é concebida contemporaneamente, foi apresentada pelo Cristianismo.

Em busca da origem mais remota sobre o conceito de dignidade presente na história da humanidade, Gerson Marcos Morgado (2014) afirma que se vislumbra, inicialmente, a presença deste valor no Código de Hamurabi, com posterior menção da dignidade no Código de Manu, e, logo em seguida, nos pensamentos dos gregos e estóicos. Todavia, informa que a visão que toda a antiguidade possuía acerca do que seria a dignidade, tratava-se de um conceito superficial, com uma dimensão diferente da atualmente vislumbrada. O autor apresenta este contraste:

Não obstante a contribuição que se possa reconhecer às culturas acima mencionadas para a noção e consciência da dignidade humana, o fato é que não há, nos povos antigos, o conceito de pessoa tal como o conhecemos hoje. O homem para a filosofia grega, por exemplo, era um animal político ou social, como para Aristóteles e sua identidade estava associada ao conceito de cidadania, ou seja, ao fato de pertencer ao Estado, que por sua vez possuía íntima conexão com o Cosmos, vale dizer, com a natureza. [...] Mesmo entre as culturas mais evoluídas da época antiga, como Roma e Grécia, não havia ainda a noção de uma singularidade valorizadora do ser humano como ser em si, abstraído do contexto social da polis dominada pelas aristocracias locais. O ser humano nestas distantes épocas não havia conhecido ainda alguma filosofia ou pensamento que lhe atribuísse um valor em si, uma valoração embasada na sua dignidade pessoal, como fim em si mesmo, mas apenas enquanto membro de um grupo social. (MORGADO, 2014)

Referida concepção começou a ser modificada no contexto ocidental com a difusão da mensagem cristã. O Cristianismo trouxe consigo a ideia de unidade através de uma paternidade comum, e de uma valorização do indivíduo em virtude de ser imagem e semelhança de Deus. Apresentava, também, a noção de direitos fundamentais inerentes a todos os seres humanos que, até então, não haviam sido conferidos de forma tão expressa como foi pelos ensinamentos evangélicos. Sobre esta mudança de visão, tem-se colocação de Morgado:

O cristianismo, portanto, logrou, pela criação de uma cultura comum e universal, forjar a consciência de que todo o gênero humano formaria uma só unidade, pela doutrina de que todos os povos e homens descenderiam de um mesmo pai com sua essência comum em todos os homens. Com a unidade no Deus único e sua única e mesma essência em todos os seres humanos, surge nos espíritos a consciência da dignidade humana comum. De acordo com a filosofia cristã, a dignidade da pessoa humana é decorrente da própria natureza divina do homem, ou seja, o homem em razão de conter em seu ser parte daquilo que é chamado de essência divina, deve ser considerado como ente digno. A dignidade seria a quota divina que todo homem possui, é elemento indissociável, e por si só, é capaz de fundamentar a existência de direitos e garantias fundamentais outorgados à proteção do gênero humano. A noção de Dignidade da Pessoa Humana deve, portanto, muito à doutrina cristã, já que foi a partir desta que se pôde pensar o homem sob a ótica da igualdade. Um homem criado à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, tem valor especial na escala dos seres. (MORGADO, 2014)

Morgado (2014) afirma que a concepção de dignidade humana, faz parte da tradição personalista e metafísica do Cristianismo, o qual, com sua influência sobre a cultura Ocidental, principalmente a partir do século IV depois de Cristo, possibilitou a descoberta de um novo fundamento de dignidade, diferente do apresentado pela antiga acepção grega. Foi com o Cristianismo que o homem passou a ser concebido como um ser de filiação divina e não um produto natural, fundando-se cabalmente a dignidade do homem no ‘reino do espírito’ e na liberdade da vontade.

No mesmo sentido, Cibele Kumagai e Taís Nader Marta, afirmam, após profunda abordagem sobre o assunto, “que o conceito de pessoa no sentido subjetivo, com direitos subjetivos ou fundamentais, inclusive dignidade, surge com o cristianismo e vem aperfeiçoada pelos escolásticos.” (KUMAGAI; MARTA, 2010)

Coadunando com a presença da dignidade da pessoa humana nos ensinamentos cristãos, a qual possibilitou o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, traz-se a seguinte afirmação:

Tobeñas preleciona que foi o Cristianismo que, desde seus primeiros momentos, afirmou o indivíduo como um valor absoluto, exaltando o sentimento de dignidade da pessoa humana e proclamando uma organização da sociedade que viesse a permitir o total desenvolvimento de sua personalidade, sem prejuízo para o bem comum, ao revés, colaborando para desfrutar deste. (TOBEÑAS apud MORGADO, 2014)

Desta forma, pode-se verificar que o Cristianismo fundou na sociedade ocidental “a noção de pessoa como categoria espiritual e individualidade subjetiva com valor em si mesma em dignidade, como ser de fins absolutos e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais” [...] (MORGADO, 2014)

Trazendo um conceito sobre o que seria dignidade, Ingo Wolfgang Sarlet leciona que

[...] a dignidade da pessoa pode ser definida como sendo a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2002, p. 62)

Morgado (2014) afirma que a dignidade humana não é a superioridade de um homem sobre outro, mas sim de todo homem sobre os seres que carecem de razão.

Carmem Lúcia Antunes Rocha considera esta dignidade presente no fundamento da República como o “coração do patrimônio jurídico moral da pessoa humana” (ROCHA apud ALTAFIN, 2007, p. XIII). A respeito desta colocação, Juarez Altafin traz o comentário feito por Ingo Sarlet, o qual afirma que:

Ora, se a dignidade é o “coração do patrimônio jurídico-social da pessoa humana”, é possível afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana é o coração dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, já que estes, na lição de Ingo Sarlet, invocando Dominique Rousseau, “constituem explicitações da dignidade da pessoa, de tal sorte que em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa.” (SARLET apud ALTAFIN, 2007, p. XIV)

Carmem Lúcia Antunes Rocha afirma que o Estado não cria a dignidade da pessoa humana, pois esta precede ao Estado. O que o ente estatal faz é tão somente reconhecê-la como “dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição.” (ROCHA apud SIQUEIRA, 2010)

E este reconhecimento enunciado pela autora, se deu no sistema normativo brasileiro. Sobre este reconhecimento pela Constituição Federal Brasileira, Morgado aponta como que a dignidade da pessoa humana foi elevada com destaque na carta constitucional, mormente pela sua sistematização, sendo colocada antes mesmo da organização do Estado, senão veja-se:

A positivação do tema no Direito Constitucional brasileiro e a posição estratégica do instituto situado antes mesmo da organização do Estado é justamente a prova da consciência jurídica nacional da importância do tema bem como o reconhecimento e afirmação de que o Estado brasileiro é visto como meio e não mais como fim em si mesmo, ou seja, o Estado é visto como meio para a realização e promoção da pessoa humana e não vice-versa. (MORGADO, 2014)

Assumindo o caráter de grande importância na ordem jurídica e todo o aparato constitucional que dela origina, “pode-se dizer que a dignidade seria o núcleo material dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, ou seja, a sua fonte originária. (MORGADO, 2014).

Destarte, corroborando com os posicionamentos dos diversos doutrinadores, defende-se a dignidade da pessoa humana como direito inerente a todos os seres humanos, o qual foi devidamente consagrado pelo Cristianismo, e, em momento posterior, diante da sua magnitude e importância, foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo consagrada, constitucionalmente, como um fundamento da República.

9.2 Direito do trabalho: a primazia do trabalho sobre o capital a partir da mensagem cristã

No preâmbulo constitucional há a instituição do Estado Democrático de Direito para assegurar, dentre outros, o exercício dos direitos sociais. Como fundamento desta ordem estatal, o art. 1º, IV, da Constituição Federal estabelece que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;” (BRASIL, 1988)

Sobre a relação do Cristianismo e o Direito do trabalho, importante se faz retornar às origens dos direitos sociais atualmente consagrados, demonstrando como a mensagem cristã foi fundamento do documento que muito colaborou para a consolidação dos direitos trabalhistas, a Encíclica Rerum Novarum.

Como cenário de onde se originou os direitos sociais, pode-se citar a Inglaterra. O retrato da situação vivenciada pela Inglaterra nos fins do século XVIII e meados do século XIX era de uma sociedade dividida em classe burguesa (patrões) e proletariado (trabalhadores), onde os burgueses estavam cada vez mais ricos às custas do empobrecimento extremos dos trabalhadores. (APOLINÁRIO, 2010)

A busca incessante pelo lucro máximo, fazia com que os burgueses explorassem cada vez mais os trabalhadores, os quais trabalhavam para manter tão somente a própria subsistência já que os salários eram vergonhosos. As condições de trabalho eram precárias e as jornadas de trabalho muitas vezes ultrapassavam mais de dezesseis horas diárias. (APOLINÁRIO, 2010)

Configurava-se um cenário de miséria, fome e doenças devido à exploração contínua dos trabalhadores e as péssimas condições de vida, higiene, saúde e saneamento em que estavam sujeitos. Dentro da classe operária estavam, além dos homens, as mulheres e as crianças, estando igualmente sujeitos a esta escassa realidade. (APOLINÁRIO, 2010)

Irresignados com tal situação, e não aguentando mais as condições de vida a que estavam submetidos, parte dos trabalhadores deram início às greves e rebeliões em busca de melhores condições de trabalho, o que acarretou na Revolução Industrial. (APOLINÁRIO, 2010)

Notadamente no Brasil, este surto industrial iniciou na segunda metade do século XIX, e as condições de trabalho refletiam a realidade enfrentada pela Inglaterra: exploração extrema, miséria, doenças, enfim, um cenário lamentável. (ALTAFIN, 2007)

A situação do proletariado fez com que a igreja dominante à época, de posse dos valores cristãos, editasse, na pessoa do Papa Leão XIII, a Encíclica Rerum Novarum, na data de 15 de maio de 1891, chamando atenção para os direitos que deveriam ser conferidos aos trabalhadores. (ALTAFIN, 2007)

A Encíclica estabelecia inúmeras garantias aos trabalhadores, colocando estes em condições de igualdade com os patrões, ao afirmar que “nisto todos os homens são iguais, e não há diferença alguma entre ricos e pobres, patrões e criados, monarcas e súbditos, porque é o mesmo o Senhor de todos.” (LEÃO XIII, 1891)

Altafin salienta ainda a necessidade de igualdade e cooperação mútua que deve existir entre as classes, destacando a parte da Encíclica que prevê que “é um erro capital julgar-se que ricos e pobres são classes destinadas a degladiarem-se.”. Ao contrário, “elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital.” (ALTAFIN, 2007, p. 27)

Afirmava a Encíclica que “não é justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer pelo excesso da fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo.” (LEÃO XIII, 1891) Portanto, estabelece o repouso semanal, asseverando que “unido à religião, o repouso tira o homem dos trabalhos e das ocupações da vida ordinária para o chamar ao pensamento dos bens celestes e ao culto devido à Majestade divina.” (LEÃO XIII, 1891) Fundamenta a necessidade do repouso semanal na determinação de Deus ao homem prevista no Antigo Testamento, no livro de Êxodo 20, nos versículos 9 ao 11[6].

No documento papal previa uma antevisão do salário mínimo, quando dispunha que o operário deve “receber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às de sua família. [...]”(LEÃO XIII, 1891)

Sob um caráter protetivo, dispunha que “o número de horas de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários.” (LEÃO XIII, 1891)

De igual forma, previa também a proteção da criança e da mulher, estabelecendo que estes não deveriam ser submetidos às mesmas quantidades de trabalho a que um homem é submetido, considerando a fragilidade destes. Estabelece, ainda, que a criança não deve ser submetida ao trabalho enquanto não possuir idade que lhe confira um desenvolvimento físico, intelectual e moral, sob pena de lhe retirar a oportunidade de educação, o que não se admite na Encíclica.

Sobre a importância deste documento, Altafin assevera:

A Encíclica não inovou como apoio a ideologia liberal, dominante como base do capitalismo, nem a ideologia socialista, então emergente e que se imporia, ditatorialmente, na Rússia de 1917; abstraídos os princípios cristãos da convivência humana, ressaltados no documento, neste, podemos encontrar três fundamentos mais de natureza jurídica e política. São eles: a) reconhecimento do direito de propriedade, de acordo com o Direito Natural Teleológico; b) embora iguais perante Deus, na sociedade, os homens não têm o mesmo nível; c) o Estado deve atuar nas questões sociais. (ALTAFIN, 2007, p. 25)

A Encíclica estabelece de forma inequívoca e clara sobre a imperiosa necessidade de não haver o “massacre” de uma parte da sociedade para a felicidade da outra. Salienta a importância de buscar a vida e a felicidade de todos os cidadãos, conforme se constata na seguinte passagem:

Ora o que torna uma nação próspera, são os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática e o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma repartição equitativa dos encargos públicos, o progresso da indústria e, do comércio, uma agricultura florescente e outros elementos, se os há, do mesmo género: todas as coisas que se não podem aperfeiçoar, sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos cidadãos. Assim como, pois, por todos estes meios, o Estado pode tornar-se útil às outras classes, assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária, e isto em todo o rigor do seu direito, e sem ter a temer a censura de ingerência; porque, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum. E é evidente que, quanto mais se multiplicarem as vantagens resultantes desta acção de ordem geral, tanto menos necessidade haverá de recorrer a outros expedientes para remediar a condição dos trabalhadores. (LEÃO XIII, 1891)

Desta forma, notadamente em razão do poderio exercido pela igreja católica à época, extrai-se do conteúdo da Encíclica Papal, um importante instrumento que contribuiu para a mudança das condições de trabalho até então vivenciadas, adequando-se aos problemas enfrentados pela sociedade em pleno desenvolvimento do capitalismo no final do século XIX.

Assim, verifica-se uma grande importância do Cristianismo para a atual conjuntura do Direito do Trabalho atualmente consolidado, sendo a Encíclia Rerum Novarum, o documento religioso com bases cristãs, influenciador da eclosão e manutenção dos direitos sociais do trabalho.

9.3 Mecanismos jurídicos para concretização da garantia de solução pacífica das controvérsias em busca da paz

O preâmbulo constitucional dispõe que o Estado Democrático é destinado a assegurar [...] a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...] (BRASIL, 1988)

Decerto que a busca por uma solução pacífica das controvérsias possui como objetivo alcançar a paz, para que a sociedade se mantenha harmônica.

No intuito de se dar maior efetividade e publicidade aos mecanismos de promoção da paz a serem utilizados em todo âmbito judicial, editou-se a Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça (2010), buscando a resolução dos conflitos através dos institutos da conciliação, mediação e arbitragem.

Tais institutos são mecanismos utilizados como meio mais ágil na solução de conflitos, objetivando, primordialmente, o restabelecimento da paz, a qual figura como o fundamento dos institutos da conciliação, mediação e arbitragem.

Como valor constitucionalmente consagrado, o objetivo pela busca da paz se encontra presente, além do preâmbulo, em inúmeros dispositivos constitucionais. Apenas para corroborar esta assertiva, pode-se citar o art. 4º, VI, da Constituição Federal, o qual prevê que “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] VI - defesa da paz;” (BRASIL, 1988) De igual modo, o Art. 21 dispõe que “compete à União: [...] II - declarar a guerra e celebrar a paz;” (BRASIL, 1988). Além destes, pode-se citar inúmeros outros dispositivos constitucionais que dispões sobre a paz, valor originariamente cristão, tal como se pode ver no art. 49, II; art.84, art.91 e art. 136.

A fim de estabelecer um paralelo e se comprovar a anterioridade do Cristianismo diante do Direito, e, para assim, poder-se afirmar que a ordem jurídica busca os seus anseios principais em fundamentos cristãos, apresentar-se-á passagens bíblicas que demonstram a paz como fundamento do Cristianismo.

Inicialmente, afirma-se que Jesus Cristo pregava a paz e a pacificação de conflitos. Tal assertiva pode ser facilmente comprovada em trechos bíblicos como, por exemplo, no livro de Mateus 5, no versículo 9, Jesus, ensinando as multidões, afirmava que “bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.” (Mt 5, 9)

Em Gálatas 5, versículo 22, tem-se expressamente a paz como fruto do Espírito, dispondo que “o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.” (Gl 5, 22)

De igual forma, tem-se o clamor pela paz nas páginas das Escrituras Sagradas, conforme se verifica em Colossenses 3, versículo 15, onde o autor deseja que “a paz de Deus, para a qual também fostes chamados em um corpo, domine em vossos corações; e sede agradecidos.” (Cl 3, 15)

No que tange a forma de resolução de conflitos, o próprio Jesus já ensina que a ele não compete o julgamento das questões humanas e em seguida sugere que entre eles mesmos se julgassem o que fosse justo, de forma a se buscar uma conciliação, um acordo para resolução do conflito instaurado. É o que se vê no livro de Lucas, capítulo 12, versículos 13, 14 e 57: “E disse-lhe um da multidão: Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança. Mas ele lhe disse: Homem, quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre vós? E por que não julgais também por vós mesmos o que é justo?” (Lc 12, 13-14, 57)

No livro de Mateus 5, nos versículos 23 ao 26, tem-se expresso ensinamento aos cristãos para que procurem a conciliação com o próximo, conforme se constata na seguinte narrativa:

Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. (Mt5, 23-26)

Desta forma, pode-se claramente observar, através das citações ora realizadas, que a paz figura como objetivo do Cristianismo bem como dos institutos apresentados. Pode-se observar também que Jesus, em sua passagem nesta Terra, procurou ensinar aos homens acerca de importância destes procurarem conciliar entre eles mesmos, de forma a buscarem o que for justo entre eles.

Assim, entende-se como demonstrada a relação entre os mecanismos de conciliação, mediação e arbitragem e o Cristianismo, aliados para obtenção do preceito constitucional de solução pacífica das controvérsias para a garantia de uma sociedade harmônica dentro do Estado Democrático de Direito.

9.4 O dever cristão de solidariedade como fundamento da Seguridade Social

O art. 3º da Constituição Federal, em seu inciso dispõe que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Como forma de colocar em prática a solidariedade presente na constituição como objetivo fundamental da República, criou-se o sistema de seguridade social, que, segundo Sérgio Pinto Martins, é

Um conjunto de princípios, de regras e de instituições destinado a estabelecer um sistema de proteção social aos indivíduos contra contingências que os impeçam de prover as suas necessidades pessoais básicas e de suas famílias, integrado por ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, visando assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. (MARTINS, 2008, p. 19)

É através da Seguridade Social que são estabelecidos inúmeros auxílios e benefícios previdenciários a toda população brasileira.

No mesmo sentido, Wladimir Novaes Martinez defende que a “seguridade social é técnica de proteção social, custeada solidariamente por toda a sociedade segundo o potencial de cada um, propiciando universalmente a todos o bem-estar das ações de saúde e dos serviços assistenciários em nível mutável, conforme a realidade sócio-econômica, e os das prestações previdenciárias”. (MARTINEZ, 2001, p. 390)

Assim, veja-se a sociedade, através do consumo de produtos e serviços, onde estão embutidas ao preço final as devidas contribuições para a seguridade social, contribui, por meio dos indivíduos, ainda que indiretamente, para o sistema de Seguridade Social, mesmo que nem todos os integrantes desta sociedade usufruam de todos ou nenhum dos benefícios previdenciários.

Sobre a solidariedade, bem acentua Sérgio Pinto Martins:

A solidariedade pode se considerada um postulado fundamental do Direito da Seguridade Social, previsto implicitamente inclusive na Constituição. Sua origem é encontrada na assistência social, em que as pessoas faziam uma assistência mútua para alguma finalidade e também com base no mutualismo, de se fazer um empréstimo ao necessitado. É uma característica humana, que se verifica no decorrer dos séculos, em que havia uma ajuda genérica ao próximo, ao necessitado. [...] Ocorre solidariedade na Seguridade Social quando várias pessoas economizam em conjunto para assegurar benefícios quando as pessoas do grupo necessitarem. As contingências são distribuídas igualmente a todas as pessoas do grupo. Quando uma pessoa é atingida pela contingência, todas as outras continuam contribuindo para a cobertura do benefício do necessitado. (MARTINS, 2008, p. 51-52)

É por meio da solidariedade que os benefícios e auxílios previdenciários são disponibilizados a quem deles necessite, de forma que há uma organização da sociedade no intuito de amparar àqueles que precisam por motivos inerentes à vontade.

Desta feita, mister se faz ressaltar que a solidariedade que norteia o sistema da seguridade social, é, por outra via, um grande princípio cristão.

No tocante a referido valor, a fim de se estabelecer uma relação da solidariedade como fundamento bíblico, e como princípio justificador e sustentador da Previdência Social, pode-se citar a seguinte passagem bíblica contida no livro de Eclesiastes 4, versículos 9 e 10:

Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho. Porque se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá outro que o levante. (Ec 4, 9-10)

Logo, pode-se afirmar a solidariedade impondo-se a toda sociedade como dever de participar pessoalmente nas necessidades e sofrimentos alheios, dever este notadamente consagrado pela Doutrina Cristã. (RAMOS, 2010).

Marcelo Maciel Ramos defende que esta solidariedade, valor tão proclamado nos dias atuais, nada mais é que um desdobramento de dever cristão como a caridade, senão veja-se:

[...] a solidariedade tão proclamada nos dias atuais não é mais que o desdobramento do dever cristão de caridade, a impor juridicamente a corresponsabilidade do todo social para com os mais necessitados. Nesse sentido, é estabelecida e garantida pelo direito uma série de auxílios e benefícios aos mais carentes. (RAMOS, 2010, p. 70)

Fácil se torna concluir que este valor se impõe a toda sociedade, através de normas estabelecidas no ordenamento jurídico brasileiro, e é possível encontrar seus fundamentos lá no Cristianismo, que trouxe a toda humanidade o dever de amparar o seu próximo e prestar-lhe assistência sempre que necessitar. Revela-se como sendo um dever pessoal, e, também, uma obrigação do Estado, sendo certo que, tais garantias, são previstas e reguladas no Estado Brasileiro através do sistema da seguridade social.

9.5 O preceito cristão de igualdade como fundamento constitucional para consolidação do Direito Internacional

Inaugurando a Constituição Federal, “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional [...]” (BRASIL, 1988) aparece descrita no preâmbulo.

Por sua vez, o art. 3º da Constituição Federal, ao estabelecer os objetivos da República, prevê em seu inciso IV, o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (BRASIL, 1988, grifo nosso)

Igualdade, sociedade fraterna e sem preconceitos, no âmbito interno e internacional, são descrições que nem sempre estiveram presentes no campo do Direito. Para chegar a este ideal, afirma-se o Cristianismo como um fundamento histórico de grande importância.

Nos moldes já demonstrados no decorrer deste trabalho, é sabido que ao contrário do que comumente pensado pelas pessoas, o Cristianismo proporcionou, no contexto ocidental, uma separação entre o Estado e religião, apresentado ambos como esferas distintas.

Nos primórdios da civilização ocidental, a religião era a senhora de tudo: da sociedade, do governo, do Estado, do Direito. O ódio contra o estrangeiro era obrigatório e a vida se resumia, em absoluto, a questões religiosas.

Todavia, esta situação não perduraria eternamente. Começava-se a difundir em todo o Ocidente a doutrina e propagação dos valores e ideias apresentados pelo Cristianismo. Através da mensagem de Jesus Cristo, passou-se a ensinar a igualdade entre todos os povos, apresentando-se um Deus único, um Deus de amor e de paz, que aceita a todos, em iguais condições, como filhos. Corroborando tal assertiva, tem-se a passagem contida em Colossenses 3, versículo 11, onde fala que no Reino de Deus “não há grego, nem judeu, circunciso, nem incircunciso, bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo, e em todos.” (Cl 3, 11)

Sobre a dimensão revolucionária que o Cristianismo causou em toda a sociedade Ocidental, Fustel de Coulanges relata aquela mesma sociedade acima transcrita, após a difusão dos ensinamentos cristãos:

Esse princípio era tão extraordinário e tão inesperado que os primeiros discípulos tiveram um momento de hesitação; pode-se ver nos Atos dos Apóstolos que muitos deles se recusaram a princípio a propagar a nova doutrina fora do povo no qual nascera. Seus discípulos pensavam, como os antigos judeus, que o Deus dos judeus não queria ser adorado por estrangeiros; como os romanos e os gregos dos tempos anteriores, eles acreditavam que cada raça tinha seu deus, que propagar o nome e o culto desse deus era o mesmo que privar-se de um bem próprio e de um protetor especial, e que tal propaganda era ao mesmo tempo contrária ao interesse e ao dever. Mas Pedro replicou a seus discípulos: “Deus não faz diferenças entre os gentios e nós.” — São Paulo gostava de repetir esse grande princípio em todas as ocasiões e sob todas as formas: “Deus — diz ele — abre aos gentios as portas da fé. Não será ele Deus senão dos judeus? Não, certamente, pois o é também dos gentios... Os gentios são chamados à mesma herança que os judeus.” Havia em tudo isso algo de muito novo, porque em toda parte, desde os primeiros tempos da humanidade, concebera-se a divindade como ligada especialmente a uma raça. [...] O cristianismo, surgindo depois de todos esses progressos do pensamento e das instituições, apresentou à adoração de todos os homens um Deus único, um Deus universal, um Deus que era de todos, que não tinha mais povo escolhido, e que não distinguia nem raças, nem famílias, nem estados. Para esse Deus não havia mais estrangeiros. O estrangeiro não profanava mais o templo, não maculava mais o sacrifício apenas com sua presença. O templo foi aberto para todos os que crêem em Deus. O sacerdócio deixou de ser hereditário, porque a religião não era mais um patrimônio. O culto não foi mais mantido em segredo; os ritos, as orações, os dogmas não se mantiveram mais escondidos; pelo contrário, passou a existir um ensinamento religioso, que não somente se dá, mas que se oferece, que se leva aos lugares mais afastados, que vai em busca dos mais indiferentes. O espírito de propaganda substituiu a lei de exclusão. (COULANGES, 1961, p. 336-337)

Por fim, após a consolidação do Cristianismo, retrata-se uma nova sociedade, uma nova forma de ver o mundo, conforme se vê na seguinte transcrição:

Entre os povos, a religião não mandava mais o ódio; não obrigou mais o cidadão a detestar o estrangeiro; pelo contrário, pertencia à sua essência ensinar que ele tinha para com o estrangeiro, para com o inimigo, deveres de justiça, e até de benevolência. As barreiras entre os povos e as raças ficaram assim diminuídas; desapareceu o pomoerium — “Jesus Cristo — diz o apóstolo — derrubou a muralha da separação e da inimizade.” — “Os membros são muitos — diz ele ainda — mas todos fazem um só corpo. Não há nem gentio, nem judeu; nem circuncidados, nem incircuncisos; nem bárbaro, nem cita. Todo o gênero humano está disposto na unidade.” — Passou-se até a ensinar aos povos que todos descendiam de um mesmo pai comum. Com a unidade de Deus, a unidade da raça humana apareceu aos espíritos; e desde então passou a ser necessidade da religião proibir o homem de odiar os outros homens. (COULANGES, 1961, p. 337-338)

Gerson Marcos Morgado, fazendo referência a Andreotti, coaduna com a importante contribuição do Cristianismo para o reconhecimento do estrangeiro, desvinculando a visão de ódio entre os povos e o reconhecimento destes como iguais:

A partir do cristianismo, todo e qualquer ser humano passou a ser visto e reconhecido como pessoa, fossem homens, mulheres, escravos, crianças, estrangeiros ou até inimigos. Aduz Andreotti [...] que o ensinamento de Cristo representou um salto qualitativo enorme frente ao determinismo da polis antiga, onde, segundo o referido pensador, a religião nunca mais legitimou o ódio entre os povos, nem entre inimigos, nem preceituou ao cidadão como deve detestar o estrangeiro ou o inimigo. Pelo contrário, passou a ter por essência ensinar ao homem que tem deveres de justiça e até de benevolência para com o estrangeiro e até para com o inimigo, donde possivelmente o suposto embrião da concepção humanitária do respeito à dignidade dos presos inimigos capturados em combate, positivada posteriormente na Convenção de Genébra. (MORGADO, 2014)

No livro de Levítico 19, versículos 33 e 34 estabelece que “como o natural, entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o Senhor, vosso Deus.” (Lv 19, 33-34). Seguindo este princípio bíblico, a Constituição Federal prevê a igual desde o seu preâmbulo e a apresenta como objetivo do Estado Democrático de Direito.

Desta feita, pode-se concluir que o Cristianismo atuou como fator fundamental para a mudança de visão das sociedades em relação aos estrangeiros, mudando, também, por conseguinte, as formas como as relações internacionais se dariam a partir desta mudança. Embora separados territorialmente, os estrangeiros compunham, sob a ótica da mensagem cristã, um só povo, pois todos pertencem a Deus, e, por consequência, devem ser tratados em igualdade com as pessoas do mesmo povo. Desta igualdade, facilitam-se as relações comerciais, os acordos de paz e a convivência pacífica entre diferentes povos e nações.

Daí, pode-se afirmar a notável influência do valor cristão de igualdade presente no atual organização estatal brasileira.

9.6 A base cristã da dignidade da pessoa humana presente no sistema punitivo brasileiro

Como fator justificante da abordagem do presente assunto sob a perspectiva do Estado Democrático, necessário salientar que se pretende demonstrar como o fundamento constitucional de dignidade de pessoa humana esteve presente nos primórdios da fundação do sistema punitivo adotado pelo Brasil.

Quer-se demonstrar que através da visão cristã, houve a discriminalização das penas perpétuas, cruéis e de morte, e a defesa da vida, da dignidade, do perdão, misericórdia e tolerância. Por certo, pode-se perfeitamente afirmar que esta visão fora adotada pelo sistema punitivo brasileiro.

Antes de adentrar especificamente na análise do sistema punitivo brasileiro, importante se faz realizar uma pequena abordagem geral sobre a forma de punição adotada em momentos passados.

A primeira codificação que previu o instituto das penas foi a Lei do Talião. Embora nela houvesse a regulamentação da defesa privada, buscou-se estabelecer uma proporcionalidade no tocante às penas. Fundou-se a regra do “olho por olho, dente por dente”, com o escopo de se evitar a ocorrência da vingança totalmente desproporcional à ofensa.

Jesus veio e revolucionou o sistema de penas até então adotado em todas as épocas anteriores ao Cristianismo. Com um discurso pautado no amor, apresenta a toda humanidade a noção de dignidade inerente a todo indivíduo e, em seu discurso, um valor sublime: o perdão. Como desdobramento do perdão, surge em cena o dever de misericórdia para com o próximo e a imposição da tolerância com os erros alheios.

No intuito de confirmar a adoção pelo sistema punitivo brasileiro aos valores e deveres cristãos, extraem-se da Bíblia Sagrada as seguintes passagens que demonstram a forma pela qual Jesus Cristo determinou a aplicação de penas a delitos praticados. Em Mateus 5, versículos 38 ao 44, Jesus Cristo, ao ser questionado, apresenta um novo sistema punitivo a ser aplicado por todos aqueles que nEle creem:

Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra;E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa;E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes. Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus. (Mt 5, 38-44)

Desta passagem pode-se claramente verificar que Jesus condena a vingança, pois é conhecedor dos seres humanos e sabe que a vingança está profundamente enraizada na essência destes. Contudo, a justiça de Deus é misericórdia.

Em outra ocasião, na passagem descrita em João 8, versículos 5 ao 7, Jesus estava no Templo quando se aproximou dele os escribas e fariseus, trazendo juntamente com eles uma mulher que havia sido apanhada em adultério. De pronto, questionaram a Jesus o que deviam fazer com aquela mulher. A resposta de Jesus foi a seguinte:

E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra. E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela (Jo 8, 5-7)

Mais uma vez se vê presente no discurso de Jesus a supremacia do perdão e da tolerância no lugar da vingança. A mensagem cristã ensina que ao homem é necessário conceder o perdão, da mesma forma que Jesus perdoou a humanidade. Como prova disso, pode-se citar o versículo 13 do capítulo 3 do livro de Colossenses, o qual diz que “suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se alguém tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também.”

De igual forma, o sistema processual penal brasileiro não permite a ocorrência de vingança pessoal, penas cruéis, de morte, de banimento, perpétuas. Muito pelo contrário, ao ofensor é garantida uma série de direitos que visam proteger a sua integridade e dignidade, buscando a ressocialização do indivíduo.

No que tange a inclusão dos valores do perdão e da tolerância no sistema de penas do Ocidente, Marcelo Maciel Ramos pontua:

Ademais, os valores do perdão e da tolerância subjazem fortemente nos espíritos do Ocidente, promovendo a proliferação das penas educativas e ressocializantes em detrimento das penas perpétuas e capitais, o que se comprova facilmente mediante um rápido exame dos ordenamentos jurídicos ocidentais. (RAMOS, 2010, p. 70)

Pautado nos valores cristãos, pode-se citar também um instituto do Direito Penal que tem produzido resultados extremamente benéficos ao objetivo de ressocialização dos condenados. Trata-se da APAC, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, um método de cumprimento de pena, que, pelos resultados apresentados, vem reduzindo drasticamente o índice de reincidência.

Objetiva-se consolidar um método que proporcionará ao indivíduo uma verdadeira ressocialização que o permita retornar à sociedade para contribuir no desenvolvimento nacional, e sem praticar novos delitos que interfiram na ordem social. Coaduna com o objetivo da República previsto no art. 3º, III, da Constituição Federal, buscando erradicar a marginalização, no sentido de evitar uma reincidência.

Segundo Mário Ottoboni, citado por Antonio Carlos da Rosa Silva Junior, a APAC é “um método de valorização humana, portanto de evangelização, para oferecer ao condenado condições de recuperar-se e com o propósito de proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a justiça. [...] baseada na fórmula do “velho homem”, proposta pelo apóstolo Paulo, uma das filosofias da APAC é “matar o criminoso e salvar o homem” (OTTOBONI apud SILVA JUNIOR, 2014, p.5)

O autor, mais uma vez citando Mário Ottoboni, prossegue explicando como funciona o método e apresenta os 12 elementos nos quais a APAC está fundada, senão veja-se:

1) participação da comunidade – reconhecimento de que toda a sociedade é responsável pela integridade do processo de ressocialização; 2) recuperando ajuda recuperando – despertar de regras de boa convivência social, ajudando-o “a perceber que a raiz do bem e do mal está no coração” ; 3) trabalho – embora o trabalho, por si só, não seja capaz de recuperar, o mesmo é incentivado, inclusive, de forma diversa para os cumpridores dos diversos tipos de regimes penais; 4) a religião e a importância de se fazer a experiência de Deus – “é preciso restabelecer a confiança no ser humano que está preso, fazê-lo conhecer um Deus presente na história, por meio da presença atuante e coerente do voluntário, não somente por palavras, mas principalmente por gestos concretos de misericórdia, que revelam o verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo, que disse: ‘Eu estive preso e você me visitou’ (cf. Mt 25,36)”; 5) assistência jurídica – a situação processual do condenado muito o preocupa e, por isso, é imperiosa essa assistência; 6) assistência à saúde – profissionais da saúde devem ser convidados a integrar a equipe de voluntários, livrando o apenado de mais essa preocupação; 7) valorização humana – “Chamá-lo pelo nome, conhecer sua história, interessar-se por sua vida, visitar sua família, atendê-lo em suas justas necessidades, (...); essas e outras medidas irão ajudá-lo a descobrir que nem tudo está perdido, uma vez que qualquer dificuldade criada pelo homem poderá ser superada pelo próprio homem com a ajuda de Cristo, em quaisquer circunstâncias”; 8) a família – transformar a família do recuperando o ajudará em seu retorno à convivência comunitária; 9) o voluntário e o curso para sua formação – o voluntariado é fundamental para o êxito do processo, e é baseado na graciosidade dos serviços prestados e no amor ao recuperando; 10) Centro de Reintegração Social (CRS) – visa permitir que o apenado cumpra os regimes semi-aberto e aberto no próprio estabelecimento; 11) mérito – relevante para a progressão de regime prisional, nos termos da lei; 12) Jornada de Libertação com Cristo – busca, através da parábola do filho pródigo, levar o recuperando à reflexão, indicando uma nova perspectiva de vida, promovendo, “nessa etapa, o encontro do recuperando consigo mesmo, com Deus e com o semelhante, para voltar aos braços do Pai com o coração pleno de amor”. (OTTOBONI apud SILVA JUNIOR, 2014, p.5-6)

Diante dos elementos apresentados, constata-se que a metodologia da APAC está fundada em valores religiosos, notadamente os valores apresentados pela Bíblia, a qual é utilizada como fonte dos princípios fundamentais da instituição (SILVA JUNIOR, 2014)

Estabelecendo-se uma relação com os fundamentos bíblicos e a metodologia da APAC, têm-se inúmeras passagens bíblicas. Dentre elas, pode-se citar a passagem contida em Mateus 25, nos versículos 31 ao 41, revelando-se como fundamento ao elemento 1, qual seja, a participação da comunidade:

E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória; E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas; E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. (Mt 25, 31-41)

Como fundamento aos elementos 4 e 12, os quais estão ligados a experiência com Deus, pode-se citar a passagem presente no livro de Atos dos Apóstolos, no capítulo 16 e versículos 16 ao 32, onde narra a trajetória de dois apóstolos na cadeia e como foi a experiência que eles tiveram com Deus diante de uma postura firme e fiel ao lado de Cristo:

E aconteceu que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem, que tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo. E isto fez ela por muitos dias. Mas Paulo, perturbado, voltou-se e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E na mesma hora saiu. E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à presença dos magistrados. E, apresentando-os aos magistrados, disseram: Estes homens, sendo judeus, perturbaram a nossa cidade, E nos expõem costumes que não nos é lícito receber nem praticar, visto que somos romanos. E a multidão se levantou unida contra eles, e os magistrados, rasgando-lhes as vestes, mandaram açoitá-los com varas. E, havendo-lhes dado muitos açoites, os lançaram na prisão, mandando ao carcereiro que os guardasse com segurança. O qual, tendo recebido tal ordem, os lançou no cárcere interior, e lhes segurou os pés no tronco. E, perto da meia-noite, Paulo e Silas oravam e cantavam hinos a Deus, e os outros presos os escutavam.E de repente sobreveio um tão grande terremoto, que os alicerces do cárcere se moveram, e logo se abriram todas as portas, e foram soltas as prisões de todos. E, acordando o carcereiro, e vendo abertas as portas da prisão, tirou a espada, e quis matar-se, cuidando que os presos já tinham fugido. Mas Paulo clamou com grande voz, dizendo: Não te faças nenhum mal, que todos aqui estamos. E, pedindo luz, saltou dentro e, todo trêmulo, se prostrou ante Paulo e Silas. E, tirando-os para fora, disse: Senhores, que é necessário que eu faça para me salvar? E eles disseram: Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa. E lhe pregavam a palavra do Senhor, e a todos os que estavam em sua casa. (At 16, 16-32)

Apresentando os significativos resultados da metodologia da APAC, Ottoboni afirma que referida associação “uma obra verdadeiramente cristã” (OTTOBONI, apud SILVA JUNIOR, 2014, p. 7)

Antonio Carlos da Rosa Silva Junior prossegue apresentando a relação entre o método APAC e o Cristianismo, assim expondo:

Ademais, reconheça-se, o discurso cristão de valorização da vida humana, compaixão para com os necessitados e respeito devido à instituição familiar são alguns exemplos dos impactos causados pelo cristianismo sobre a humanidade. No mesmo passo, observamos que os ensinos cristãos, segundo alguns estudiosos, reitere-se, são fundamentais para a ressocialização, pois viabilizam uma “nova vida”, composta de novos comportamentos (reflexo de novos valores) por parte dos reclusos que os seguem. Dessa forma, se os valores reinantes na sociedade forem contrários aos ensinos cristãos, os que gozam da “nova vida” buscam o cumprimento desses em detrimento daqueles. Seguir a Cristo e Seus ensinos os torna transformadores de uma sociedade desigual e corrupta. (SILVA JUNIOR, 2014, p.7)

Prossegue, fundamento suas conclusões no posicionamento de José Horácio Meirelles Teixeira, o qual defende que “a liberdade, a igualdade, a fraternidade, os direitos inalienáveis da pessoa humana são, e essencialmente, princípios cristãos, hoje colocados como fundamento e limite da ação do Estado, fornecendo e inspirando, ainda, o conteúdo concreto de leis e das Constituições.” (TEIXEIRA apud SILVA JUNIOR, 2014, p.7)

Sobre a importância dos valores religiosos no processo de ressocialização do indivíduo, complementa afirmando que é “imperioso redescobrirmos a força extraordinária dos valores religiosos, a fim de que possamos compreender a complexa realidade da pessoa do [jovem] infrator, a sua dignidade, motivando e facilitando sua ‘repersonalização’.” (SÁ apud SILVA JUNIOR, p. 4, 2014)

Notadamente no âmbito dos Tribunais Brasileiros, cita-se a seguinte passagem extraída de um acórdão proferido pelo egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o qual salienta a importância da religião neste processo de ressocialização, onde se afirma que “a religião é necessária e imprescindível na reeducação do condenado, constituindo um dos fatores decisivos na ressocialização e reinserção deste na convivência com a sociedade [...]” (MINAS GERAIS, 2002)

Destarte, diante de todo o ora apresentado, torna-se evidente a incorporação dos valores e princípios cristãos ao sistema punitivo brasileiro, sendo que tais valores contribuem na formulação de metodologias que contribuem para o êxito das políticas de ressocialização e reeducação dos infratores, atuando na tentativa de concretização do objetivo do Estado Democrático de Direito em erradicar a marginalização e reduzir as desigualdades sociais.

9.7 A liberdade contratual diante do caráter cristão do Direito das obrigações

Notadamente no que se concerne aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o inciso I, do art. 3º, da Constituição Federal estabelece a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. (BRASIL, 1988)

A liberdade expressa no artigo, abrange, também, a liberdade que os indivíduos possuem para contratar, efetuar os seus negócios jurídicos livremente, comprar, vender, dispor, de forma a se garantir, reflexamente, outro objetivo da República Federativa do Brasil, qual seja, a garantia do desenvolvimento nacional, previsto no inciso II, do art. 3º, da Constituição Federal.

Para regular estas relações, tem-se o Direito das Obrigações, consistente em “um conjunto de normas e princípios reguladores das relações patrimoniais entre um credor (sujeito ativo) e um devedor (sujeito passivo) a quem incumbe o devedor de cumprir, espontaneamente ou coativamente, uma prestação de dar, fazer ou não fazer” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 39-40)

Dentre este conjunto de normas e princípios, far-se-á uma abordagem mais específica acerca dos contratos, fazendo uma análise sobre a convergência deste instituto com o Cristianismo.

Sobre a origem desta relação, Carlos Alberto Bittar Filho (2004), fundamenta o nascedouro dos contratos nos valores ensinados pela doutrina cristã, afirmando que da obrigação do amor e da piedade é que surgiram os contratos, na forma que atualmente são concebidos, os quais visam a igualdade das partes, a livre manifestação da vontade, sendo o Cristianismo influência, inclusive, na forma das penalidades impostas pelo descumprimento contratual. Neste sentido, veja-se:

Assim, em um mundo rígido e duro, o Cristianismo acabou por introduzir o conceito fundamental de caridade. E foi exatamente o Cristianismo que fez com que se adentrasse, no mundo jurídico, a obrigação do amor e da piedade entre os homens (René Savatier).[...] Dessa maneira, inaceitável tornou-se o caráter inteiramente estrito dos contratos. Foi assim que as noções de lesão contratual e de ilegitimidade da usura puderam ganhar corpo, com vistas à proteção da parte prejudicada. De modo geral, aliás, toda exploração do fraco pelo forte passou a representar uma violação não apenas da caridade, mas também da própria justiça, pois que esta e aquela acabaram por confundir-se. (BITTAR FILHO, 2004)

De acordo com Carlos Alberto Bittar Filho (2004), é devido a direta influência do Cristianismo que se cria a necessidade de proteção da parte hipossuficiente do contrato. Através da mensagem cristã se pode extrair os limites do direito do credor, a obrigação de proteger os que estão de boa fé, e de castigar os que agem com malícia, utilizando-se de meio fraudulentos.

No que tange ao posicionamento do autor, defende-se que os deveres civis consubstanciados na disciplina dos contratos, muitas das vezes nada mais são do que um dever moral, impondo aos contratantes a observância de valores com caráter cristãos, no intuito de se proteger a relação obrigacional, conforme assevera na seguinte passagem:

Outrossim, como elegantemente defende Ripert, a regra moral entra no mundo jurídico quando procura encarnar-se numa regra obrigatória de conduta, requisitando auxílio ao poder civil. Destarte, o dever de não fazer mal injustamente aos outros é o fundamento do princípio da responsabilidade civil; o dever de não se enriquecer à custa dos outros, a fonte da ação por enriquecimento ilícito, ou sem causa. Em síntese, converteram-se em obrigações civis os mais imperiosos deveres morais: dever de não prejudicar a outrem, de não se enriquecer injustamente à custa alheia e, em certos casos (verbi gratia, obrigação alimentar, acidentes de trabalho, etc.), de prestar assistência a outrem. (BITTAR FILHO, 2004)

Por fim, ressalta o autor que inevitável é concluir que o ramo do Direito que trata das obrigações, onde se incluem os contratos, buscou suas origens no processo de Cristianização. Explica que a mensagem cristã baseada na obrigação da prática do amor e da caridade, ensejou, no âmbito do Direito das Obrigações, a tutela da parte mais vulnerável do contrato e tornou vinculante todos os pactos, com base no caráter moral da promessa. (BITTAR FILHO, 2004)

Destarte, constata-se que há uma relação do Cristianismo com institutos civis, como os que ora foram tratados, de forma que, direta ou indiretamente, os valores apresentados como deveres aos cristãos acabam por ser impostos como conduta moral a ser observada no âmbito das obrigações, objetivando manter a igualdade na relação obrigacional e a proteção ao hipossuficiente.

Assim, apresentas as influências que os valores cristãos trouxeram para a seara obrigacional do Direito, pode-se afirmar que as relações contratuais atuam como meio de se promover um desenvolvimento nacional sustentável, a fim de se consolidar o objetivo constitucional previsto no art. 3º, II, da Constituição Federal.


10 CONCLUSÃO

Em busca de se encontrar uma relação entre o Cristianismo e o Direito, e, em saber se é possível estabelecer esta assimilação, foi necessário realizar vasta investigação sobre as duas esferas, a fim de se analisar as convergências entre a ordem cristã e a ordem jurídica.

Para chegar ao objetivo proposto, voltou-se o estudo para as origens jurídicas e cristãs, pesquisando o nascedouro dos institutos.

Assim, inicialmente procurou-se saber o ponto de partida para criação do Direito, remontando-se às suas fontes. Constatou-se, através desta investigação, que a mensagem cristã se revelou uma fonte histórica do Direito, pois, embora não tenha dado origem a ordem jurídica, exerceu e continua exercendo direta influência na elaboração das normas, em razão de possuir em sua mensagem um conjunto de ensinamentos e determinações dotados de sabedoria e eficácia, bem como em virtude de sua importância e aplicabilidade na história.

Na tentativa de se chegar ao objetivo idealizado, voltou-se o estudo para a análise semântica do Direito. Nesta empreitada, constatou-se que esta é uma definição difícil de ser alcançada em virtude da pluralidade de sentidos conferidos ao Direito, decorrentes da multiplicidade de relações que este mantém com outros campos de existência.

Prosseguindo em busca de se estabelecer uma sintonia entre as duas ordens, passou-se a análise dos critérios de validade do Direito, no intuito de se averiguar a possibilidade do Cristianismo ser considerado um pressuposto legitimador das normas jurídicas. Verificou-se que segundo a corrente jusnaturalista, a doutrina cristã pode ser considerada um critério de validade, já que, para eles, o que legitima as normas jurídicas é a convergência destas com um direito superior, eterno e imutável, se consubstanciando um critério de validade material. Já para as correntes positivistas e pós-positivistas, não foi possível estabelecer esta relação.

Não se conformou o presente estudo em achar apenas um ponto convergente. Busca-se uma convergência maior, uma relação integral entre as duas esferas que seja possível, aceita e fundamentada. Destarte, empreendeu-se uma investigação mais completa e mais profunda.

Passou-se, por conseguinte, à conceituação do Cristianismo, apresentando a mensagem cristã, a vida de Jesus Cristo e seus ensinamentos. Afirma-se a Bíblia como o livro que registrou toda a história cristã, e, logo em seguida, verificou-se a dimensão revolucionária que a mensagem bíblica trouxe para a humanidade e para o Direito.

Foi através desta análise que foi possível se estabelecer uma relação convergente e coerente entre o Cristianismo e o Direito. Por meio da ruptura entre o Direito e a religião apresentada na mensagem cristã é que a sociedade adquiriu autonomia e independência para estabelecer as suas próprias normas de conduta e sua forma de julgamento. Esta relação se torna ainda mais robusta quando se constata que a influência do Cristianismo do Ocidente se tornou uma importante fonte de conteúdo jurídico.

Acerca da influência cristã na compreensão moderna de Direito, forçoso foi concluir o Cristianismo como um fator que muda a forma como a tradição jurídica Ocidental percebe o mundo e idealiza o comportamento social.

Percorrendo toda a história da humanidade para averiguar as consequências desta relação, conclui-se que a mensagem cristã foi inspiração para fenômenos que mudaram a história jurídica e social, tais como a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A partir de então, voltando-se a investigação sobre a relação estabelecida entre o Cristianismo e o Direito para o ordenamento jurídico brasileiro, foi constatado que a ordem normativa de uma sociedade deve, necessariamente, observar o conteúdo cultural a que é destinada, já que ela visa impor, objetivamente, normas positivadas, no intuito de regular as ações exigidas, esperadas e aceitas pela cultura, bem como as sanções que visam garantir a observância de tais normas. Caso contrário, não faria sentido embutir em uma nação um Direito totalmente distante do seu arcabouço cultural, pois, embora dotado de validade, nenhuma eficácia lhe subsistirá.

Para que o Direito possa refletir uma ordem jurídica reguladora da vida social, torna-se necessária a observância do patrimônio de valores que esta sociedade possui. É ai que entra o Cristianismo. Em uma sociedade como a brasileira pode-se afirmar que os valores cristãos são predominantes em seu conteúdo cultural, constituindo, assim, a mensagem cristã, uma importante fonte de conteúdo do ordenamento jurídico brasileiro.

Neste diapasão, constatou-se o Estado Democrático de Direito como uma ordem efetivadora dos deveres e valores cristãos. Embora se reconheça a influência cristã como fundamento histórico de diversos outros institutos jurídicos presentes no texto constitucional e em todo o ordenamento jurídico brasileiro, restringiu o presente estudo, em busca de uma maior objetividade, na análise de institutos que derivam dos objetivos e fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Por fim, conclui-se que, diante da anterioridade do Cristianismo e de todas as evidências trazidas ao longo deste trabalho, é inegável a relação histórica das ordens jurídicas e cristãs, podendo-se afirmar a mensagem cristã como fundamento histórico de institutos jurídicos contemporâneos, notadamente os mencionados neste trabalho.


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Notas

[1] O trecho bíblico citado diz o seguinte: Romanos 2: 13-15 Porque os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados. Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se.

[2]As referências bíblicas acima citadas, assim dispõem: Atos 11:26 - Tendo-o encontrado, levou-o para a Antioquia. E, por todo um ano, se reuniram naquela igreja e ensinaram numerosa multidão. Em Antioquia, foram os discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos. Atos 26:28  - Então, Agripa se dirigiu a Paulo e disse: Por pouco me persuades a me fazer cristão. 1 Pedro 4:16 – Mas, se sofrer como cristão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus com esse nome.

[3] A passagem extraída de João 1:14 diz o seguinte: E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos sua glória, glória como do unigênito do Pai.

[4] O registro desta história se encontra no livro de Atos, no capítulo 2, versículos 38-47, que assim narra: “E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo; Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão longe, a tantos quantos Deus nosso Senhor chamar. E com muitas outras palavras isto testificava, e os exortava, dizendo: Salvai-vos desta geração perversa. De sorte que foram batizados os que de bom grado receberam a sua palavra; e naquele dia agregaram-se quase três mil almas, E perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações. E em toda a alma havia temor, e muitas maravilhas e sinais se faziam pelos apóstolos. E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister. E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração, Louvando a Deus, e caindo na graça de todo o povo. E todos os dias acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de salvar.”

[5] Em Gênesis 1:31 há a seguinte narrativa: Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia.

[6] No livro de Êxodo, capítulo 20, versículos 9 ao 11, contem a seguinte passagem: Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétima dia é o sábado do Senhor, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou.



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