Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/35559
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho

Aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho

Publicado em . Elaborado em .

A aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho, em análise pelas normas de direito penal, processual penal e tributário, pode servir como instrumento de razoabilidade e interpretação restritiva.

1 Princípios Jurídicos. 2 Princípios aplicáveis ao Direito Penal. 2.1 Princípio da Intervenção Mínima. 2.2 Princípio da Fragmentariedade. 3 Princípio da Insignificância.              3.1 Origem. 3.2 Conceito. 4 Princípio da Insignificância como instrumento de razoabilidade e interpretação restritiva. 5 Exclusão da Tipicidade penal. 6 Bem jurídico penal. 7 Incidência do Princípio da Insignificância segundo a doutrina. 8 Incidência do Princípio da Insignificância segundo a jurisprudência. 9 Crime de descaminho e o bem jurídico protegido pela norma penal. 10 Evolução da aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho, segundo a jurisprudência. 11 Entendimento quanto à aplicação do princípio da insignificância no delito de descaminho. 12 Conclusão.


1 Princípios Jurídicos

O significado do termo “princípio” provém do latim principiare, que significa: “aquilo que se toma primeiro”. Portanto, indica início, fonte primária, ponto de partida. Constitui-se em alicerce de toda ciência, a base de construção científica ordenada, que garante a compreensão de modo organizado de todo o sistema.

O autor francês André Lalande (1996, p. 861), na sua obra “Vocabulário técnico e crítico da filosofia”, conceitua os “princípios de uma ciência”, como:

(…) conjunto de preposições diretivas, características, às quais todo o desenvolvimento ulterior deve ser subordinado. Princípio, nesse sentido, e principal evocam, sobretudo a ideia do que é primeiro em importância e, na ordem de assentimento, do que é “fundamental”. 

Para o jurista Maurício Antônio Ribeiro Lopes (1997, p. 29), é o:

Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele; disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere à tônica e lhe dá sentido harmônico.

No campo da ciência jurídica, os princípios devem ser vistos como normas fundamentais que regulam conflitos em casos concretos. Celso Antônio Bandeira de Mello (1994, p. 15) afirma que somente “há uma disciplina jurídica autônoma quando corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e normas que lhe dão identidade, diferenciando-a das demais ramificações do Direito”.

Segundo Paulo Bonavides (1994, p. 255), os princípios jurídicos cumprem três funções clássicas: fundamentadora, interpretativa e supletiva.

         

A primeira função consiste na capacidade de servir de fonte primária, de alicerce, ao ordenamento jurídico, em razão de representarem os valores supremos da sociedade. Assim, Daniel Sarmento (2000, p. 54) ensina:

(…) em primeiro lugar, em razão da sua acentuada carga axiológica e proximidade do conceito de justiça, os princípios constitucionais assumem a função de fundamento de legitimidade da ordem jurídico-positiva, porque corporificam, nas palavras de Paulo Bonavides, os valores supremos ao redor dos quais gravitam os direitos, as garantias e as competências de uma sociedade constitucional.

A segunda função dos princípios, interpretativa, serve de orientação aos juristas na interpretação da legislação, para adequá-la aos valores fundamentais considerados em cada ramo do direito. Nesse sentido, Daniel Sarmento (2000, p. 54):

(...) os princípios constitucionais desempenham também um papel hermenêutico constitucional, configurando-se como genuínos vetores exegéticos para a compreensão e aplicação das demais normas constitucionais e infraconstitucionais. Neste sentido, os princípios constitucionais representam o fio-condutor da hermenêutica jurídica, dirigindo o trabalho do intérprete em consonância com os valores e interesses por eles abrigados.

Por fim, a terceira função dos princípios (supletiva), lhe incube a tarefa de complementar a ordem jurídica quando constatada a inexistência de legislação regulando o caso em apreciação. No que tange a essa função, Daniel Sarmento (2000, p. 54) assim expõe: "os princípios constitucionais apresentam, ainda, uma função supletiva, regulando imediatamente o comportamento dos seus destinatários, diante da inexistência de regras constitucionais específicas sobre determinadas matérias".

Verifica-se, pois, que as funções permitem aos princípios resguardarem a unidade da ordem jurídica, assegurando a integração e harmonia, bem como a atualização permanente do sistema jurídico positivo.

Daí a importância do estudo dos princípios e de suas aplicações em casos concretos, vez que são marcos regulatórios para qualquer intérprete da ciência jurídica.

Assim, considerando o princípio como definidor de todo o sistema jurídico, tido como preceito fundamental para a prática e proteção aos direitos, conclui-se que é muito mais grave transgredir um princípio do que transgredir uma norma expressa, pois, assim agindo, ofende-se não apenas um mandamento obrigatório específico, mas todo o conjunto sistêmico.


2 Princípios aplicáveis ao Direito Penal

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, possui características garantistas, prevendo em seu bojo vários princípios fundamentais de garantias aos cidadãos, todos aplicáveis em matéria penal.

Esses princípios constituem o alicerce do Direito Penal moderno, assegurando aos cidadãos garantias e direitos fundamentais em face do poder punitivo do Estado, do qual é exemplo o “Princípio da Presunção de Inocência”.

É importante destacar que, além dos expressamente previstos na Constituição Federal, existem princípios implícitos que também regem o Direito Penal, “já que a construção e aplicação das normas penais devem, imperiosamente, estar em consonância com o sentido da justiça e liberdade proposta pela Constituição” (SILVA, 2004, p. 74).

Os doutrinadores pátrios retiram da Constituição Federal vários princípios que devem reger o Direito Penal, senão vejamos:

René Anel Dotti (1985, p. 27-39), segundo as bases constitucionais do Direito Penal, apresenta os seguintes: intervenção mínima, intervenção legali­zada, legalidade dos ilícitos e das sanções, irretroatividade da lei mais severa e retroatividade da lei mais benigna, personalidade e individuali­zação das sanções, responsabilidade em função da culpa, retribuição proporcionada, reações penais como processo de diálogo (finalidade da pena) e humanidade das sanções.

Cézar Roberto Bitencourt (2007, p. 10-24) relaciona os seguintes: legali­dade ou da reserva legal, intervenção mínima, fragmentariedade, culpabilidade, humani­dade, irretroatividade da lei penal, adequação social, insignificância, ofensividade e proporcionalidade.

Por sua vez, Luiz Régis Prado, (2000, p. 78-86) aponta como princípios: legalidade, irretroatividade, culpabilidade, exclusiva proteção dos bens jurídicos, intervenção mínima, fragmentariedade, pessoalidade, indi­vidualização da pena, proporcionalidade, humanidade, adequação so­cial e insignificância.

Percebe-se, assim, que os princípios que regulam a aplicação do Direito Penal, apesar da variedade, possuem características comuns, todas ligadas à interpretação do texto constitucional e em consonância com a proteção do princí­pio da liberdade que permeia as estruturas de um Estado Democrático de Direito (SILVA, 2004, p. 76).

Destarte, como visto, alguns princípios que não estão expressamente previstos na Constituição Federal são plenamente aceitos pela doutrina e pela jurisprudência. Três deles são de extrema importância para o presente estudo, quais sejam: os Princípios da Intervenção Mínima, da Fragmentariedade e, por fim, o da Insignificância.

Não obstante o objeto do presente trabalho ser a aplicação do Princípio da Insignificância, mister se faz a compreensão dos outros dois princípios suso mencionados, vez que aquele (insignificância) deriva, exatamente, desse contexto de Direito Penal mínimo e fragmentário, consoante restará evidente nas linhas a seguir.

2.1 Princípio da Intervenção Mínima 

O Princípio da Intervenção Mínima tem como destinatário o próprio criador da norma, vez que impõe limites ao arbítrio do legislador, impedindo que sejam cominadas sanções cruéis e degradantes.

Desse princípio também se ressai que o Direito Penal tem características subsidiárias com relação aos outros ramos do direito, já que as sanções penais só devem incidir quando houverem fracassado as demais formas protetoras do bem jurídico tutelado.

É dizer: a intervenção penal só é legítima quando os outros ramos do direito estiverem ausentes, falharem ou forem insuficientes para prevenir ou punir uma conduta ilícita e socialmente reprovável, ou seja, o Direito Penal só atuará quando  estiverem esgotados todos os meios extrapenais de controle social, pois, modernamente, a incidência das normas de Direito Penal deve ser entendida como último recurso (ultima ratio).

Nesse sentido, traz-se à colação ensinamento de Cézar Roberto Bitencourt (2007, p. 13) :

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.

(…)

Resumindo, antes de se recorrer ao Direito Penal deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social, e somente quando tais meios se mostrarem insuficientes à tutela de determinado bem jurídico justificar-se-á a utilização daquele meio repressivo de controle social.

2.2 Princípio da Fragmentariedade

Existem alguns fatos ilícitos que, pela irrelevância do resultado, não justificam a intervenção do Estado. Decorre daí que o Direito Penal alcança apenas os fatos ilícitos mais graves, que ferem de modo vultuoso o bem jurídico protegido pela norma penal, portanto, a fragmentariedade do Direito Penal é corolário do Princípio da Intervenção Mínima do Estado.

Segundo o Princípio da Fragmentariedade, o Direito Penal deve se limitar a castigar as ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes. A fragmentariedade é um critério para a criminalização das condutas, não representando, de forma alguma, lacunosidade deliberada na tutela de certos bens e valores, e sim, o limite necessário para evitar um totalitarismo pernicioso à liberdade (Prado, 2000, p. 120).

Sobre o caráter fragmentário do Direito Penal, Nilo Batista (2002, p. 86) assevera que, "se o fim da pena é fazer justiça, toda e qualquer ofensa ao bem jurídico deve ser castigada; se o fim da pena é evitar o crime, cabe indagar da necessidade, da eficiência e oportunidade de cominá-la para tal ou qual ofensa".

Extrai-se dessa orientação que nem toda conduta lesiva aos bens jurídicos será censurada pelo Direito Penal. Da mesma forma, nem todo bem jurídico receberá a proteção penal.

Sobre o Princípio da Fragmentariedade, Paulo de Souza Queiroz (1998, p. 119), faz as seguintes ponderações:

É sabido que não outorga o direito penal proteção absoluta aos bens jurídicos (vida, integridade física, honra etc.), e sim relativa; que não constitui um sistema exaustivo, cerrado, de ilicitudes, mas descontínuo. Ou seja, não protege todos os bens jurídicos, e sim, os mais fundamentais, e nem sequer os protege em face de qualquer classe de atentados, mas tão-só dos ataques mais intoleráveis. Daí dizer-se fragmentária essa proteção (caráter fragmentário), pois se concentra o direito penal não sobre um todo de uma dada realidade, mas sobre fragmentos dessa realidade de que cuida, é dizer, sobre interesses jurídicos relevantes cuja proteção penal seja absolutamente indispensável.

Decorre desses preceitos que o Direito Penal, por sua qualidade fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não devendo “preocupar-se com bagatelas. O mesmo entendimento é o de Claus Roxin, para quem o princípio da insignificância permite na maioria dos tipos penais fazer-se a exclusão, desde o início, dos danos de pouca importância". (TOLEDO, 2000, p. 122).

Percebe-se, à evidência, a correlação entre os Princípios da Interveção Mínima e da Fragmentariedade com o Princípio da Insignificância, pois este materializa as diretrizes determinadas por aqueles, excluindo a tipicidade da conduta.

Sim, o Princípio da Insignificância age como instrumento de seleção qualitativo-quantitativo das condutas mais graves contra os bens jurídicos atacados, com o fito de estabelecer um padrão razoável de aplicação da lei criminal, denominado de "mínimo ético" do Direito Penal, e compõe um sistema comedido para eliminar as injustiças formais da lei penal, firmado nos pressupostos de defesa dos interesses humanos fundamentais, previstos na Constituição Federal (SILVA, 2004, p. 127).

Ante a importância do tema para o este estudo, passar-se-á à análise detalhada do Princípio da Insignificância.


3 Princípio da Insignificância

3.1 Origem

O Princípio da Insignificância surgiu desde a época do direito romano, onde o pretor não cuidava de causas ou delitos de menor importância, contudo, foi  modernamente evidenciado pelo professor alemão Claux Roxim em 1964, partindo do brocardo latino: minima non curat praetor, ou minimis non curat praetor ou, ainda, de minimis praetor non curat, o qual significa que o Estado ou “o magistrado (sentido de praetor em latim medieval) deve desprezar os casos insignificantes para cuidar das questões realmente inadiáveis”  (REBÊLO, 2000, p. 31).

Eis as palavras do jurista alemão Claux Roxim (1972, p. 53) sobre o Princípio da Insignificância:

(...) hacen falta princípios como el introducido por Welzel, de adecuación social, que no es una característica del tipo, pero sí un auxiliar interpretativo para restringir el tenor literal que acoge también formas de condutas socialmente admissibles. A esto pertence además el llamado principio de Ia insignificancia, que permite en Ia mayoría de los tipos excluir desde un principio daños de poca importância (…). Si con estos planteamientos se organizara de nuevo consecuentemente Ia instrumentación de nuestra interpretación del tipo, se lograría, además de una mejor interpretación, una importante aportación para reducir Ia criminalidade en nuestro país.

No Brasil, o primeiro a encampar essa teoria foi Francisco de Assis Toledo (1999, p.133), que assim discorreu sobre o tema:

Wensel considera que o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja. Por isso, Claus Roxim propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do princípio da insignificância que permite na maioria dos tipos excluir danos de pouca importância.

3.2 Conceito

Ab initio, cumpre consignar que o Princípio da Insignificância não se apresenta de forma explícita no ordenamento jurídico brasileiro, entretanto, tem a sua aplicação assegurada pela doutrina e por diversas decisões judiciais sempre que o delito praticado não expressar grande prejuízo ao bem jurídico tutelado na norma penal.

Para definir o Princípio da Insignificância, Francisco de Assis Toledo (1999, p.133), precursor da tese, consignou:

Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve       ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma             significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art. 334,          parágrafo 1º, “d”, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja    quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem conseqüências palpáveis; e assim por diante.

Destarte, o renomado professor defende a atipicidade do fato que, dada a sua irrelevância, sequer ofende o bem jurídico protegido. Apenas os ataques mais lesivos e inadequados socialmente poderão receber a atenção e a proteção do direito penal. Percebe-se, no entanto, que, para se chegar a tais conclusões, o intérprete não poderá dissociar-se dos postulados de intervenção mínima e fragmentariedade do Direito Penal.

Portanto, não é qualquer violação à norma que será capaz de configurar o injusto penal típico. É necessário que haja ofensa de gravidade relevante ao bem jurídico tutelado. Desse modo, certos fatos que se enquadram no tipo penal podem ter a tipicidade da conduta, de pronto, afastada, por não apresentarem nenhuma relevância material, já que o bem jurídico não chegou verdadeiramente a ser lesado.  

Nesse sentido, é a lição de Cezar Roberto Bitencourt (2007, p. 245), verbis:

A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio da bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser tutelado.

(...).

Concluindo, a insignificância da ofensa afasta a tipicidade. Mas essa insignificância só pode ser valorada através de consideração global da ordem jurídica. Como afirma Zaffaroni, “a insignificância só pode surgir à luz da função geral que dá sentido à ordem normativa e, conseqüentemente, a norma em particular, e que nos indica que esses pressupostos estão excluídos de seu âmbito de proibição, o que resulta impossível de estabelecer à simples luz de sua consideração isolada.”

Por sua vez, o doutrinador Carlos Vico Manãs (1994, p. 81) firmou entendimento situando o Princípio da Insignificância como causa de exclusão da tipicidade, asseverando que o juízo de tipicidade, para que tenha efetiva significância e não atinja fatos que devem ser estranhos ao Direito Penal, seja pela sua aceitação perante a sociedade, seja pelo dano social irrelevante, deve entender o tipo na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob o seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo. Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o Direito Penal só deve ir até aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico tutelado pela norma penal, não se ocupando de causas insignificantes.

Já Zaffaroni e Pierangeli (1997) estabelecem que a insignificância da afetação de bens jurídicos exclui a tipicidade, mas só pode ser definida mediante consideração conglobada da norma. Para esses autores, o Princípio da Insignificância seria causa de atipicidade conglobante.

Diomar Ackel Filho (1988, p. 73), de sua parte, entende que o Princípio da Insignificância é aquele que permite invalidar a tipicidade de fatos que, “por sua inexpressividade, constituem ações de bagatela, despidas de reprovação, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois, como irrelevantes. A tais ações, falta o juízo de censura penal”.

Percebe-se, pois, que a doutrina aceita a aplicação do Princípio da Insignificância como forma de exclusão da tipicidade penal em algumas condutas que, embora formalmente tipificadas (ou descritas) como crime, devem ser excluídas da incidência da norma penal, por não ferirem em grande monta o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal.    

É dizer: não é qualquer violação à norma que será capaz de configurar o injusto penal típico; é necessário que haja ofensa de gravidade relevante ao bem jurídico tutelado.


4 Princípio da Insignificância como instrumento de razoabilidade e interpretação restritiva

Após a análise do conceito do Princípio da Insignificância, conclui-se que este deve ser entendido como um recurso de interpretação restritiva do Direito Penal. Através dele, entende-se o texto penal com base em critérios de equidade e de razoabilidade para restringir a amplitude abstrata do tipo penal.

Não se pretende, com a interpretação do Princípio da Insignificância afastar a incidência da lei penal, mas aplicá-la da forma mais correta, com moderação, igualdade e razoabilidade, ainda que em detrimento do direito objetivo, de modo a alcançar-se o sentido material da Justiça (SILVA, 2004, p. 109). Isto porque se busca evitar a prática de injustiças decorrentes de uma aplicação radical da lei.

Corroborando esse entendimento, assevera Diomar Ackel (1998, p. 73):

O princípio da insignificância se ajusta à eqüidade e cor­reta interpretação do Direito. Por aquela, acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em uma sociedade, liberando-se o agente, cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tu­telados pelo Direito Penal. Por esta, se exige uma her­menêutica mais condizente do direito, que se não pode ater a critérios inflexíveis de exegese, sob pena de se desvirtuar o sentido da própria norma e conduzir a graves injustiças.

Assim, a lei penal, entendida como critério de razoabilidade, visa descrever uma fronteira para reduzir os tipos penais expressos por meio de uma “fixação criteriosa de métodos reconhecedores e desconhecedores da relevância ético-jurídica de fatos praticados, através de uma interpretação atual e ontológica da pró­pria norma, individualmente considerada, e de Direito, como siste­ma” (LOPES, 1997, p. 58).

Nesse passo, mister reconhecer que o Princípio da Insignificância faz uso do juízo de razoabilidade com o objetivo de identificar o sentido material da lei penal e, por consequência, alcançar o primado da Justiça.

Sobre a matéria, pontifica Ivan Luiz da Silva (2004, p. 111):

A função do Princípio da Insignificância consiste em servir de instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, tomando-o como possuidor de um conteúdo material, para excluir do âmbito da tei penal condutas formalmente típicas que, em face de sua escassa lesividade, não demonstram relevância jurídica para o Direito Penal.

Conclui-se, pois, que o Princípio da Insignificância, através de critérios de moderação, igualdade e razoabilidade, caracteriza-se por ser um instrumento de interpretação restritiva do Direito Penal, com o propósito de evitar que injustiças sejam causadas pela aplicação literal da legislação castrense.

Doutra banda, é importante esclarecer que o Princípio da Insignificância não poderá ser utilizado de forma desregrada ou excessiva, pois, se utilizado com amplitude exagerada e arbitrária, também provocará situações de injustiça para a vítima. Daí a necessidade de ser aplicado em conjunto com o Princípio da Razoabilidade.

Marcelo Lopes (2000, p. 53-54) adverte sobre os riscos da imprecisão e ampliação da interpretação do Princípio da Insignificância:

Apenas o registro, porque parece faltar à doutrina, como um todo, a evidenciação do procedimento reconhecedor da criminalidade de bagatela. Urge retirá-la do empirismo, da conceituação meramente individual e pessoal de cada autor ou pretor que faça do seu senso de justiça um conceito particular de bagatela. Esse é o caminho mais curto ao caos e à ruína do princípio, posto que, construído para a garantização da justiça material, aplicado arbitrariamente tende a reproduzir escala de injustiça análoga à praticada pelo sistema legal em sua dogmática.

(...)Deixar vazar sem controle a amplitude do princípio da insignificância implica não apenas na quebra da garantia do princípio da legalidade - que de resto já é transformado pelo princípio da bagatela - mas na ruptura daquilo que se tornou a razão mais nobre para a sua defesa - a igualdade.             

Repise-se: o Princípio da Insignificância não tem a intenção de afastar a incidência da lei penal de modo discricionário, mas sim, de aplicá-la da forma mais correta possível, por critérios de razoabilidade, especialmente.


5 Exclusão da tipicidade penal

Para que uma conduta humana seja considerada criminosa, é imprescindível a presença de todos os elementos constitutivos do tipo. Em primeiro lugar, a existência de seu ajuste perfeito a uma descrição delituosa contida na lei penal, com prévia cominação legal (Princípio da Legalidade). Além disso, a conduta deve ser materialmente ofensiva, ou ainda perigosa ao bem jurídico tutelado, ou ética e socialmente reprovável. Ações toleradas pela coletividade ou causadoras de danos desprezíveis ao bem protegido pela norma penal não são compreendidas pelo tipo legal do crime.

Para a caracterização da tipicidade penal será necessária a conjugação de três feições: a tipicidade formal ou objetiva, o aspecto subjetivo e a tipicidade material ou normativa.

A tipicidade formal define-se pelo enquadramento da conduta praticada pelo agente ao tipo definido no texto legal; o aspecto subjetivo expressa o dolo do agente, o animus de cometer o delito e, finalmente, o aspecto material pressupõe averiguar se o ato praticado provoca lesão ao bem jurídico tutelado, ou seja, se possui relevância penal.

Tais aspectos da tipicidade penal foram definidos pelo E. Ministro Arnaldo Esteves Lima, na decisão monocrática proferida nos autos do REsp n° 1084434/PR, publicada em 12/02/2009, verbis:

A moderna doutrina (Teoria Constitucionalista do Delito) desmembra a tipicidade penal, necessária à caracterização do fato típico, em três aspectos: o formal ou objetivo, o subjetivo e o material ou normativo.

A tipicidade formal consiste na perfeita subsunção da conduta do agente ao tipo (abstrato) previsto na lei penal, possuindo como elementos: a conduta humana voluntária, o resultado jurídico, o nexo de causalidade e a adequação formal.

O aspecto subjetivo do fato típico expressa o caráter psicológico do agente, consistente no dolo.

A tipicidade material, por sua vez, implica a verificação se a conduta – subjetiva e formalmente típica – possui relevância penal, em face da significância da lesão provocada no bem jurídico tutelado, observando-se o desvalor da conduta, o nexo de imputação e o desvalor do resultado, do qual se exige ser real, transcendental, intolerável e grave (significante).

Assim, para a caracterização da tipicidade penal, além da existência do dolo do agente, será necessário a soma da tipicidade formal (conformação do fato à letra da lei) com a tipicidade material (valoração da ofensa ao bem jurídico no caso concreto).

Destarte, o operador do direito deve entender o tipo penal não apenas sob o aspecto formal, de cunho diretivo, mas também na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, eis que algumas condutas que aparentam ser típicas, antijurídicas e culpáveis, em certos casos, não caracterizam infração penal por não ofenderem o bem jurídico tutelado, pois, excluída está a tipicidade material. A ação há de ser ofensiva ou perigosa a um bem jurídico (LOPES, 1997, p. 113).

Conclui-se, portanto, que devem ser levadas em consideração tanto a aceitação social da conduta, quanto a sua lesividade, para a aplicação do Princípio da Insignificância, só se justificando a intervenção do Estado quando a lesão ferir de forma relevante o bem jurídico tutelado. Assim, ficando caracterizada apenas a tipicidade formal, a conduta não possuirá relevância jurídica penal, o que afasta a aplicação das sanções previstas nas normas penais, ante o postulado da insignificância.


6 Bem jurídico penal

            Consoante definido nos tópicos anteriores, o Direito Penal, como ciência de caráter fragmentário e subsidiário, atuante na proteção dos bens jurídicos tutelados na norma penal, deve ser aplicado apenas quando ficar evidenciado algum perigo concreto a valores fundamentais da sociedade, ou seja, só incide até o limite necessário para a proteção do bem jurídico.

Assevera Carlos Ismar Baraldi (1994, p. 33):

(...) o Direito Penal, para ser visto com olhos de jurista, não deve ser confundido com a “Tábua dos Dez Mandamentos”, a orientar a conduta ética das pessoas; ao contrário, como ciência de caráter fragmentário, que atua na proteção de bens jurídicos, seletiva e rigorosamente determinados e previamente definidos em lei. Assim, como nem tudo que é imoral é ilegal a ponto de merecer sua proteção, ainda que se entenda ter havido lesão à ordem moral, um fato não merecerá sua tutela se não houve lesão a um bem jurídico protegido. Inocorreu ilicitude penal. Vejam se os casos – tormentosos casos – das mães de aluguel, da união familiar de homossexuais e das operações para “mudança de sexo” destes últimos, onde há flagrante lesão da ordem moral sem, contudo, haver crime.

Da interpretação de valores intrínsecos da sociedade e a necessidade de proteção da vítima, nasce o bem jurídico tutelado pela norma, que servirá de marco para o legislador criar os tipos penais e suas penas de acordo com a gravidade da conduta. Assim, o bem jurídico constitui “conceito central das teorias do tipo e do delito, que guarda estreito paralelismo com a concepção geral do direito do estado que se adote” (ZAFFARONI e PIERANGELI, 1997, p. 440).

Sobre o tema, leciona Everardo da Cunha Luna (1985, p.14):

(...) o princípio do bem jurídico é a segunda construção dogmática penal inspirada pelas ideias liberais no Estado de Direito. Uma ação humana só é criminosa quando viola um bem protegido pela norma jurídica. Todos os elementos materiais do crime podem estar presentes numa determinada ação, mas se o bem jurídico, protegido pela lei, não foi lesado pela ação, o crime não se configura. Assim, no exemplo de Giuseppe Biettiol, uma falsificação grosseira não é uma falsificação criminosa. Como não é furto a subtração de coisa alheia de valor ínfimo. Como a diminuta lesão corporal não é crime de lesão corporal. Os bens jurídicos são objetivos, limitados, e estão contidos na lei, expressa ou implicitamente. A vida, a integridade corporal, a saúde, a honra, a liberdade pessoal, o patrimônio, o sentimento religioso, a administração pública etc., são bens jurídicos, bens indispensáveis ao homem e à sociedade.

No mesmo sentido é a lição de Raul Zaffaroni e José Pierangeli (1997, p. 439):

Não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica desses bens. Embora seja certo que o delito é algo mais - ou muito mais - que a lesão a um bem jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade. É por isto que o bem jurídico desempenha um papel central na teoria do tipo, dando o verdadeiro sentido teleológico (de telos, fim) à lei penal. Sem o bem jurídico, não há um "para quê?" do tipo e, portanto, não há possibilidade alguma de interpretação teleológica da lei penal. Sem o bem jurídico, caímos num formalismo legal, numa "jurisprudência de conceitos".

(...)

Quando não se pergunta para que a norma proíbe essa conduta, só nos resta dizer que o dever se impõe por si mesmo, porque é o capricho, o preconceito, o empenho arbitrário de um legislador irracional. Resultará violado o princípio republicano de governo (art. 1° da CF), que impõe a racionalidade de seus atos. (...) O bem jurídico cumpre duas funções, que são duas razões fundamentais pelas quais não podemos dele prescindir; a) uma função garantidora, que emerge do princípio republicano; uma função teleológico-sistemática, que dá sentido à proibição manifestada do tipo e a limita. Ambas funções são necessárias para que o direito penal se mantenha dentro dos limites da racionalidade dos atos de governo, impostos pelo princípio republicano (...).

Verifica-se, pois, que os objetivos dos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal são a proteção do ofendido e a proteção da coletividade. O seu fim precípuo é o resguardo da vítima e, em especial, da sociedade, protegendo tudo aquilo que é importante para o grupo de indivíduos, como, por exemplo, a vida, a integridade física, a honra, a liberdade, o patrimônio e a paz pública, para citar alguns.

Deste modo, repisa-se, para a aplicação das sanções previstas nas normas penais é necessário que o bem jurídico tutelado (considerado como elemento central do injusto penal), eleito pelo legislador em razão dos valores da sociedade, tenha sido violado de maneira representativa, gerando, ao menos, desconforto ao valor protegido pela norma.


7 Incidência do Princípio da Insignificância segundo a doutrina

Grande parcela dos casos de aplicação do Princípio da Insignificância se dá nos delitos contra o patrimônio privado, como, por exemplo, no crime de furto, já que a mensuração do grau da ofensa praticada é de mais fácil percepção.

Rogério Greco (2008, p. 86) sustenta a sua incidência “nos delitos de furto, dano, peculato, lesões corporais, consumo de drogas, etc”.

Já Paulo Queiroz (1998, p.52), ao fazer uma correlação com o Princípio da Proporcionalidade, invoca o Princípio da Insignificância “nos crimes violentos ou com grave ameaça à pessoa, consumados ou tentados, se não para absolver o réu, pelo menos para desclassificar a infração penal, por exemplo, em crimes complexos, como o roubo (CP, art.157)”.

A doutrina não coloca limites para incidência do Princípo da Insignificância, admitindo, também, a sua aplicação nos delitos que atingem o patrimônio público, como no crime de descaminho.

Nessa linha de pensamento, assevera Luiz Flávio Gomes (2005, p. 14):

A novidade na matéria, agora, reside na Portaria n. 49, de 01.04.2004, do Ministério da Fazenda, que autoriza: a) a não inscrição como dívida ativa da União e débitos com a fazenda nacional de valor até R$ 1.000,00 e b) o não ajuizamento das execuções fiscais de débitos até R$ 10.000,00. Ora, se esse último valor não é relevante para fins fiscais, com muito maior razão não o será para fins penais. Débitos fiscais com a Fazenda Pública da União até R$ 10.000,00, em suma, devem ser considerados penalmente irrelevantes. Se sequer é o caso de execução, com maior razão não deve ter incidência no direito penal.

Frise-se, por oportuno, que a maioria dos doutrinadores não apresentam óbice para a aplicação do Princípio da Insignificância em delitos que ferem o patrimônio público, entretando, o valor de referência utilizado é que vem causando grande polêmica, pois não admitem “que seja delito de bagatela aquele que atinge o património público de forma grave, este composto de valores administrados pelo Estado, mas pertencentes ao povo” (AMORIM, 2007, p. 27).


8 Incidência do Princípio da Insignificância segundo a jurisprudência

Os Tribunais pátrios também admitem a aplicação do Princípio da Insignificância nos mais diversos crimes. Contudo, na maioria dos casos, não aceitam a sua aplicação nos crimes contra a administração pública porque os bens jurídicos tutelados nesses delitos são a moral administrativa e o patrimônio, e aquela não pode ser mensurada como ínfima (REsp 655.946/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 27.02.2007, DJ 26.03.2007 p. 273.).

A exceção a essa regra acontece quanto ao crime de descaminho, pois todos os Tribunais admitem a possibilidade de aplicação do referido princípio, que exclui a tipicidade material. Entretanto, consoante ocorre na doutrina, existe discórdia, mas, tão-somente, no que tange ao valor utilizado para o reconhecimento da insignificância. 

Para a aplicação do Princípio da Insignificância, seja qual for o crime, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, com respaldo em julgados do Supremo Tribunal Federal, vem exigindo, além da inexpressividade da lesão jurídica provocada, mais três elementos para que haja a sua incidência, quais sejam, a mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação e o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento.

Nesse sentido, decidiu o E. Ministro Arnaldo Esteves Lima, no REsp n° 1084434/PR, publicado em 12/02/2009, verbis:

Com efeito, consoante asseverou, com absoluta propriedade, o Min. CELSO DE MELLO, no julgamento do HC 84.412/SP, para a incidência do princípio da insignificância, faz-se necessária a incidência de quatro vetores, a saber: a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Segundo o relator, “O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo      importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (DJ de 19/11/04).


9 Crime de descaminho e o bem jurídico protegido pela norma penal

Feitas todas as observações quanto à possibilidade de incidência do Princípio da Insignificância, passar-se-á à análise da conduta típica definida no artigo 334 do Código Penal, especificamente o crime de descaminho (objeto deste estudo), definido na segunda parte da norma mencionada, senão vejamos:

Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:

Pena – reclusão, de 01 (um) a 04 (quatro) anos. (grifos nosso).

Consoante define Damásio de Jesus (2000, p. 880), o termo descaminho   significa fraude no pagamento de impostos e taxas devidas para entrada ou saída de mercadorias no País. Tais entradas ou saídas do produto são permitidas no território nacional, contudo, o autor do crime frauda o pagamento do tributo exigido, ou seja, o agente engana o Poder Público, deixando de efetuar o pagamento devido mediante expediente fraudulento.

O crime de descaminho, por ser delito comum, pode ser praticado por    qualquer pessoa, tendo sempre como sujeito passivo o Estado, principal interessado na regularidade da importação ou exportação de mercadorias e na cobrança dos   direitos e impostos delas decorrentes (MIRABETE, 2001, p. 385).

O crime consuma-se quando se configura a burla, no todo ou em parte, no pagamento de direito ou de imposto devido pela entrada ou saída da mercadoria. O delito, dessa maneira, resta consumado quando ocorrer a liberação pela alfândega, isto é, no instante em que é ultrapassada a fiscalização sem o pagamento do imposto devido, ou ainda na modalidade de exportação, ou seja, com a saída da mercadoria do território nacional. 

Percebe-se, pois, desses postulados, que o bem jurídico tutelado no delito de descaminho é a administração pública em seu interesse fiscal, portanto, é a arrecadação tributária que se pretende preservar.

Deste modo, para que se caracterize uma lesão relevante no delito de descaminho, é imprescindível mensurar o valor do tributo iludido, para, só então, definir se houve lesão tributária relevante ao bem jurídico tutelado pelo Estado.


10 Evolução da aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho, conforme a jurisprudência

Consoante registrado em tópico anterior, a jurisprudência admite a incidência do Princípio da Insignificância na hipótese do crime de descaminho, apesar de ser considerado delito contra a administração pública, que tem como bens jurídicos a moral administrativa e o seu patrimônio.

Desde os tempos do extinto Tribunal Federal de Recursos, os julgadores admitiam a sua aplicação, bastando que ficasse demonstrado a pequena quantidade de mercadoria apreendida, a boa-fé do agente e a ausência de destinação comercial (Gomes Filho, p. 3).

Atualmente, o Supremo Tribunal Federal exige, para aplicação do Princípio da Insignificância, a presença de quatro requisitos, que devem ser considerados em qualquer crime, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

No que tange ao crime de descaminho, percebe-se claramente que os agentes, ao cometerem o delito, se enquadram nas hipóteses das letras “b” e “c”, vez que, realmente, é reduzida a periculosidade social da ação, não apresentando riscos à sociedade, já que os bens descaminhados são equivalentes aos livremente comercializados no Brasil. Da mesma forma, não é grave a reprovabilidade do comportamento, pois os bens adquiridos são lícitos.

Quanto aos outros dois requisitos: a) a mínima ofensividade da conduta do agente e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada, é que surge a divergência na doutrina e nos julgados dos diversos Tribunais. Isto porque, para a sua aferição, será necessário analisar o montante em dinheiro que deixou de ser recolhido aos cofres públicos, devendo esse valor ser mínimo e refletir uma inexpressividade da lesão provocada ao bem jurídico que, no caso do descaminho, é o montante do tributo que não foi devidamente recolhido.

É certo que no delito de descaminho, as normas de Direito Tributário influenciarão na hipótese de aplicação do Princípio da Insignificância, pois, o bem jurídico protegido é o interesse fiscal da Administração Pública. Trata-se, pois, de um crime de sonegação fiscal, sendo o Direito Tributário responsável por fornecer os limites para a tipicidade material desses delitos.

Surge, então, desses postulados, a divergência de interpretação a respeito do valor que dever ser considerado para efeito de aplicação do Princípio da Insignificância.

A tese da aplicação do Princípio da Insignificância no crime de descaminho surgiu na comparação entre o valor do tributo supostamente sonegado e aqueles valores concebidos como desinteressantes para a Fazenda Pública realizar a inscrição em dívida ativa ou propor ação de execução fiscal.

Assim, encampou-se a tese do direito penal mínimo, ou seja, se o próprio Estado expressava seu desinteresse na exigência do tributo, não deveria ser aplicado o direito penal.

No Brasil, sucederam-se diversos diplomas legais tributários, onde vinham expressos os valores mínimos passíveis de cobrança pelo Estado, os quais passaram a servir de baliza para a aplicação do Principio da Insignificância.

Deste modo, antes de sustentar qualquer tese sobre a incidência do referido princípio no delito de descaminho, será demonstrada a evolução da legislação e dos julgados dos Tribunais nacionais.

Pois bem. A primeira norma que regulou o CADIN - Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público Federal - foi o artigo 18 da Medida Provisória 1.110, de 30 de agosto de 1995, que dispunha:

Serão arquivados os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, de valor consolidado igual ou inferior a mil Unidades Fiscais de Referencial, salvo se contra o mesmo devedor existirem outras execuções de débitos que, somados, ultrapassem o referido valor.

A Lei n° 9.469, de 10 de julho de 1997, por sua vez, adotou o limite de R$ 1.000,00 (hum mil reais) para fixar o desinteresse do Estado na cobrança dos débitos, prevendo que o Advogado-Geral da União e os dirigentes máximos das autarquias, das fundações e das empresas públicas federais poderiam autorizar a não-propositura e a extinção das ações fiscais em andamento. Assim, preconizava o artigo 1º do referido dispositivo legal:

O Advogado-Geral da União e os dirigentes máximos das autarquias, das fundações e das empresas públicas federais poderão autorizar a realização de acordos ou transações, em juízo, para terminar o litígio, nas causas de valor até R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), a não propositura de ações e a não interposição de recursos, assim como requerimento de extinção das ações em curso ou de desistência dos respectivos recursos judiciais, para a cobrança de créditos, atualizados, de valor igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais), em que interessadas essas entidades na qualidade de autoras, rés, assistentes ou opoentes, nas condições aqui estabelecidas.

Nesse passo, no âmbito do Ministério da Fazenda, foi editada a Portaria n° 289/97 (DOU de 04/11/97), autorizando, nos incisos I e II, do seu artigo 1º, “a não inscrição, como Dívida Ativa da União, de débitos para com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais)” e, ainda, “o não ajuizamento das execuções fiscais de débitos para com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais)”.

Posteriormente, dispôs a Medida Provisória n° 1.973-63, de 29 de junho de 2000:

Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais).

§ 1º Os autos de execução a que se refere este artigo serão reativados quando os valores dos débitos ultrapassarem os limites indicados.

§ 2º Serão extintas as execuções que versem exclusivamente sobre honorários devidos à Fazenda Nacional de valor igual ou inferior a cem Unidades Fiscais de Referência.

Em 2002, foi editada a Lei n° 10.522, que previa, no seu artigo 20, verbis:

Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais).

Importante frisar que, antes da Lei n° 10.522/2002, o Superior Tribunal de Justiça já adotava o entendimento de aplicar o Princípio da Insignificância quando o Estado apontava não ter interesse na execução do crédito, contudo, somente após a edição desse último diploma legal, que o entendimento sedimentou-se e passou a ser adotado de maneira pacífica e reiterada nos julgados dos Tribunais, adotando-se o limite de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) para a incidência do Princípio da Insignificância, pois, além da previsão legal que indicava desprezo a tal valor, o montante não era suficientemente relevante para o erário movimentar a máquina pública a fim de reavê-lo.

Para que não pairem dúvidas quanto à aplicação do Princípio da  insignificância com base nesse patamar, segue o precedente do Superior Tribunal de Justiça, verbis

RECURSO ESPECIAL. PENAL. DESCAMINHO. VALOR INFERIOR AO PREVISTO NO ART. 20 DA LEI N.º 10.522/02. DESINTERESSE PENAL. PRECEDENTES.

1. Se a própria União, na esfera cível, a teor do art. 20 da Lei n.º 10.533/2002, entendeu por perdoar as dívidas inferiores a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), não faz sentido apenar os recorridos pelo crime de descaminho, pelo fato de terem introduzido no país mercadoria estrangeira sem o recolhimento de tributo inferior ao mencionado valor.

2. Caracterizado o desinteresse penal, em virtude da irrelevância jurídica do bem para a tutela penal. Precedentes do STJ.

3. Recurso não conhecido.

(REsp 617049/RN, Rel. Min. LAURITA VAZ, publicado no DJU de 04/04/2005).

Entretanto, através por meio da Lei n° 11.033/04, o artigo 20 da Lei n° 10.522/02 foi alterado, passando a vigorar com a seguinte redação:

Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

E o Ministério da Fazenda, com base no novo regramento legal, editou a Portaria nº 49/04, que disciplinou a matéria da seguinte forma:

Art. 1º Autorizar:

I - a não inscrição, como Dívida Ativa da União, de débitos com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais); e

II - o não ajuizamento das execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Por tais fatos, a Fazenda Pública deixou de executar créditos com valores inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Assim, caso os ilustres julgadores do Superior Tribunal de Justiça mantivessem a mesma linha de raciocínio, aplicariam o Princípio da Insignificância no delito de descaminho quando o valor devido à título de tributo não ultrapassasse o patamar de R$ 10.00,00 (dez mil reais).

Entretanto, em posição diametralmente oposta, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça abandonou o posicionamento até então sustentado, negando aplicação ao Princípio da Insignificância, mesmo em nos casos que o valor devido era inferior ao previsto para o não ajuizamento da ação de execução fiscal. Passou-se a entender que não seria razoável seguir o patamar da nova lei, ante o elevado valor.

Mas não foi só: além de desconsiderar o novo valor, modificou radicalmente seu posicionamento, deixando de aplicar o referido princípio, inclusive, nos casos onde o tributo devido não ultrapassasse R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), negando a aplicação da jurisprudência antes sedimentada sobre a incidência do Princípio da Insignificância no crime de descaminho.

A mencionada revisão de posicionamento ocorreu quando do julgamento do Recurso Especial n° 685.135/RS, relatado pelo Ministro Félix Fischer, o qual entendeu que só haveria desinteresse penal nos casos em que o tributo iludido fosse inferior ao montante de R$ 100,00 (cem reais), quantia ensejadora do cancelamento (extinção) do crédito tributário.

Essa nova orientação foi firmada por meio da interpretação sistemática dos artigos 18, §1º, e 20, caput, da Lei n.º 10.522/02, que assim dispõem:

Art.18, §1º: Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, do valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).

Art.20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante o requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Da análise desses dispositivos, verifica-se, realmente, que há coerência na interpretação do Ministro Félix Fischer, pois o artigo 20, caput, da Lei n.º 10.522/02 faz referência ao ajuizamento da ação de execução fiscal ou arquivamento, sem baixa na distribuição, o que indica que não haverá extinção definitiva do crédito tributário, mas apenas a sua suspensão provisória, podendo retornar a cobrança a qualquer tempo. Sem dúvidas, tal interpretação afasta a incidência do Princípio da Insignificância, com base no postulado do Princípio da Intervenção Mínima já que o Estado não renuncia aquele valor, podendo voltar a propor as respectivas ações fiscais.

Forte nesse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Quinta Turma, culminou por firmar orientação no seguinte sentido:

Confrontando os dois dispositivos conclui-se facilmente que enquanto o art. 18, §1º determina o cancelamento (leia-se: extinção) do crédito fiscal igual ou inferior à R$100,00 (cem reais), o art. 20 apenas prevê o não ajuizamento da ação de execução ou o arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito. Daí porque não se pode invocar este dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penal irrelevante. Com efeito, tal dispositivo apenas assevera que fica postergada a execução com vista a cobrança da dívida ativa enquanto o montante não alcançar os valores ali previstos, o que não se confunde com a extinção do crédito tributário. (REsp nº 685.135/PR, relator Ministro Felix Fischer, publicado no DJ de 02/05/2005).

          É dizer: só ocorre a extinção (cancelamento) do crédito fiscal e, portanto, desinteresse penal, nos casos em que o tributo devido seja igual ou inferior ao valor de R$ 100,00 (cem reais), pois, a execução dos maiores ficam prorrogados até que o montante alcance aqueles previstos para a imediata cobrança da dívida ativa, não se confundindo com a extinção do crédito tributário. Portanto, restou afastada a aplicação do Princípio da Insignificância com base nos valores previstos para o não ajuizamento da execução fiscal.

Vários foram os julgados que encamparam essa tese, senão vejamos:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. DIREITO PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. VALOR EXCEDENTE. INOCORRÊNCIA. AGRAVO IMPROVIDO.

1. 'O art. 20, caput, da Lei nº 10.522/2002, se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito, daí não se poder invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante.' (REsp nº 685.135/PR, Relator Ministro Felix Fischer, DJU de 2/5/2005).

2. Em se mostrando que o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas excedeu ao limite pelo qual o Estado expressou o seu desinteresse pela cobrança, não há falar em aplicação do princípio da insignificância. Precedentes.

3. Agravo regimental improvido.

(AgRg no REsp nº 630.793/PR, Relator o Ministro HAMILTON CARVALHIDO, publicado no DJ de 06/08/2007).

RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ART. 18, § 1º, DA LEI N.º 10.522/2002. EXISTÊNCIA DE CRÉDITO FISCAL.

1. O Estado é o sujeito passivo do delito de descaminho, o que enseja a aplicação do princípio da insignificância, como causa supralegal de exclusão da tipicidade, apenas quando a conduta imputada na peça acusatória não chegou a lesar o bem jurídico tutelado, qual seja, a Administração Pública em seu interesse fiscal.

2. Descabe aplicar o princípio da insignificância quando o valor do tributo apurado é superior ao montante previsto no art. 18, § 1º, da Lei n.º 10.522/2002, como limite para extinção do crédito fiscal.

3. Precedentes desta Corte Superior.

4. Recurso desprovido.

(REsp nº 828.469/RS, Relatora a Ministra LAURITA VAZ, publicado no DJ de 26/03/2007).

CRIMINAL. HC. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REITERAÇÃO CRIMINOSA. ARTIGO 20, CAPUT, DA LEI 10.522/2002. PATAMAR ESTABELECIDO PARA O NÃO AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE EXECUÇÃO OU ARQUIVAMENTO SEM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO. ART. 18, § 1º, DA LEI 10.522/2002. EXTINÇÃO DO CRÉDITO. ORDEM DENEGADA.

I. O entendimento desta Corte vem se firmando no sentido de que o princípio da insignificância deve ser aplicado com parcimônia, restringindo-se apenas às condutas sem tipicidade penal, desinteressantes ao ordenamento positivo.

II. Nos delitos de descaminho, embora o pequeno valor do débito tributário seja condição necessária para permitir a aplicação do princípio da insignificância, o mesmo pode ser afastado se o agente se mostrar um criminoso habitual em delitos da espécie.

III. O comportamento do réu, voltado para a prática de reiterada da mesma conduta criminosa, impede a aplicação do princípio da insignificância. Precedentes.

IV. Aplicação da execução de crédito tributário do mesmo raciocínio seguido nas hipóteses de apropriação indébita de contribuições previdenciárias - para as quais se adota o valor estabelecido no dispositivo legal que determina a extinção dos créditos (art. 1º, I, da Lei 9.441/97).

V. O caput do art. 20 da Lei 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, e não à extinção do crédito, razão pela qual não se pode ser invocado como forma de aplicação do princípio da insignificância.

VI. Se o valor do tributo devido ultrapassa o montante previsto no art. 18, § 1º da Lei 11.033/2004, que dispõe acerca da extinção do crédito fiscal, afasta-se a aplicação do princípio da insignificância.

VII. Ordem denegada.

(HC nº 66.316/RS, Relator o Ministro GILSON DIPP, publicado no DJ de 05/02/2007).

Para esses julgadores, insignificante passou a ser não mais aquilo que o Fisco deixa de executar, mas o valor que Estado renuncia, rejeita ou recusa, no caso, o montante previsto no parágrafo 1º do artigo 18 da Lei n° 10.522/2002, ou seja, R$ 100,00 (cem reais).

Em que pese a modernidade desse entendimento, mais recentemente, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem no Habeas Corpus n° 92.438, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, publicado em 19/08/2008, para trancar, por ausência de justa causa, uma ação penal contra réu denunciado por importar mercadorias do Paraguai, cujo valor do imposto devido chegava ao montante de R$ 5.118,60 (cinco mil, cento e dezoito reais e sessenta centavos).

Tal entendimento restou fundamentado no artigo 20 da Lei n° 10.522/05, que determina o arquivamento, pela Fazenda Pública, das execuções fiscais de débitos inferiores ao valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), isto é, na tese então desprezada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Na oportunidade do julgamento, consignou o E. Ministro Relator Joaquim Barbosa, verbis:

Eu concordo até com essa estupefação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, diante dessa norma que exonera administrativamente débitos de até R$ 10.000,00 (dez mil reais). É muito dinheiro, a meu ver. Mas a lei aí está.

Esse novo posicionamento se tornou público por meio do Informativo nº 516 do Supremo Tribunal Federal, que consignou:

Por ausência de justa causa, a Turma deferiu habeas corpus para determinar o trancamento de ação penal instaurada contra acusado pela suposta prática do crime de descaminho (CP, art. 334), em decorrência do fato de haver iludido impostos devidos pela importação de mercadorias, os quais totalizariam o montante de R$ 5.118,60 (cinco mil cento e dezoito reais e sessenta centavos). No caso, o TRF da 4ª Região, por reputar a conduta do paciente materialmente típica, negara aplicação ao princípio da insignificância ao fundamento de que deveria ser mantido o parâmetro de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) para ajuizamento de execuções fiscais (Lei 10.522/2002) e não o novo limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais) instituído pela Lei 11.033/2004. Inicialmente, salientou-se o caráter vinculado do requerimento do Procurador da Fazenda para fins de arquivamento de execuções fiscais e a inexistência, no acórdão impugnado, de qualquer menção a possível continuidade delitiva ou acúmulo de débitos que conduzisse à superação do valor mínimo previsto na Lei 10.522/2002, com a redação dada pela Lei 11.033/2004 ['Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). § 1o Os autos de execução a que se refere este artigo serão reativados quando os valores dos débitos ultrapassarem os limites indicados.']. Entendeu-se não ser admissível que uma conduta fosse irrelevante no âmbito administrativo e não o fosse para o Direito Penal, que só deve atuar quando extremamente necessário para a tutela do bem jurídico protegido, quando falharem os outros meios de proteção e não forem suficientes as tutelas estabelecidas nos demais ramos do direito. HC nº 92.438/PR, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, 19/8/2008. (HC-92438)

Após o julgado supracitado, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal também encampou a tese, verbis:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. PACIENTE PROCESSADO PELA INFRAÇÃO DO ART. 334, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (DESCAMINHO). ALEGAÇÃO DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FAVORÁVEL À TESE DA IMPETRAÇÃO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO PARA DETERMINAR O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. O descaminho praticado pelo Paciente não resultou em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. Tal fato não tem importância relevante na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por consequência, torna atípico o fato denunciado. 2. A análise quanto à incidência, ou não, do princípio da insignificância na espécie deve considerar o valor objetivamente fixado pela Administração Pública para o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das ações fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União (art. 20 da Lei n. 10.522/02), que hoje equivale à quantia de R$ 10.000,00, e não o valor relativo ao cancelamento do crédito fiscal (art. 18 da Lei n. 10.522/02), equivalente a R$ 100,00. 3. É manifesta a ausência de justa causa para a propositura da ação penal contra o ora Paciente. Não há se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos. 4. Ordem concedida. (HC 96309, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 24/03/2009, DJe-075 DIVULG 23-04-2009 PUBLIC 24-04-2009 EMENT VOL-02357-03 PP-00606).

Deste modo, diante dos recentes precedentes do Excelso Pretório, mais uma vez a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça alterou seu entendimento, passando a aplicar o Princípio da Insignificância, na prática de descaminho, quando o valor do tributo suprimido fosse inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Nesse sentido, traz-se à evidência recente precedente da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, verbis:

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 105, III, A E C DA CF/88. PENAL. ART. 334, § 1º, ALÍNEAS C E D, DO CÓDIGO PENAL. DESCAMINHO. TIPICIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

I - Segundo jurisprudência firmada no âmbito do Pretório Excelso - 1ª e 2ª Turmas - incide o princípio da insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02.

II - Muito embora esta não seja a orientação majoritária desta Corte (vide EREsp 966077/GO, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 20/08/2009), mas em prol da otimização do sistema, e buscando evitar uma sucessiva interposição de recursos ao c. Supremo Tribunal Federal, em sintonia com os objetivos da Lei nº 11.672/08, é de ser seguido, na matéria, o escólio jurisprudencial da Suprema Corte.

Recurso especial desprovido.

(REsp 1112748/TO, Rel. Ministro  FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 09/09/2009, DJe 13/10/2009).

Frise-se que, na oportunidade do Julgado, o Eminente Ministro relator, além de reafirmar seu posicionamento no sentido de não aceitar que é insignificante a ilusão de tributos no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), consignou que essa não era a orientação majoritária da Corte, mas, em prol da otimização do sistema, iria aderir a tese capitaneada pelo Supremo Tribunal Federal.

Verifica-se, portanto, que, não obstante o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ainda é muito controvertido o valor a ser considerado para incidência do Princípio da Insignificância no crime de descaminho, estando longe de ser pacificado, ante os balizados posicionamentos que defendem teses totalmente opostas.


11 Entendimento quanto à aplicação do Princípio da Insignificância no delito de descaminho

Conforme exposto alhures, o Supremo Tribunal Federal, por suas duas Turmas, firmou entendimento no sentido de que incide o Princípio da Insignificância nos débitos tributários que não ultrapassam o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02.

Entretanto, rendendo o máximo respeito aos defensores da tese, ousamos discordar desse posicionamento, nos filiando a outros pensadores, não menos relevantes, pelos motivos a seguir expostos.

Inicialmente, necessário lembrar que o delito de descaminho ofende diretamente o patrimônio público, haja vista a burla de tributos indispensáveis às atividades estatais, ou seja, os valores não recolhidos seriam aplicados no aparelhamento da educação, infra-estrutura, saúde, etc. Deste modo, não há como conceber, em hipótese alguma, que a sonegação de impostos no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) seja irrelevante para o Estado e, consequentemente, para efeitos penais.

E não se diga que o artigo 20 da Lei n° 10.522/02 renuncia ou estipula como irrelevante os valores abaixo de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Conforme analisado em tópico anterior, o que estabelece o dispositivo é o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais com valor igual ou inferior aquele patamar.

A Fazenda Nacional não renuncia a tais valores. Trata-se de um arquivamento momentâneo, diferente do que acontece na hipótese tratada pelo art. 18, § 1°, da Lei n° 10.522/02. Assim, se existe um critério razoável, baseado na legislação tributária, para a incidência do Princípio da Insignificância como excludente de tipicidade penal, esse tem de ser o valor de R$ 100,00 (cem reais), montante que possibilita o cancelamento total da cobrança, com baixa na distribuição, ante o desinteresse definitivo na cobrança pelo Estado.

Ora, o fato de existir um desinteresse momentâneo na cobrança judicial de débitos iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais) “não pode levar à conclusão de que o não pagamento do tributo é insignificante, que constitui uma lesão ínfima ao bem jurídico penal e, portanto, uma atipicidade penal material.”    (DEMERVAL, 2005, p. 25).

Na verdade, o Estado não perdoa o débito tributário quando dispensa a inscrição do devedor na dívida ativa, tampouco quando deixa de cobrar judicialmente esses valores. “Ainda que o resultado de não cobrar seja parecido com um verdadeiro perdão da dívida, ou falta de interesse, a aparência aqui engana desafortunadamente os que apenas a enxergam sem perscrutá-la.” (AMORIM, 2007, p. 28).

O que se percebe é um mero planejamento estratégico para cobrar apenas os valores que comercialmente seriam interessantes para o Estado, balanceando os custos de uma demanda judicial e os valores que seriam recebidos, o que não indica desinteresse em receber a quantia. A Fazenda Pública faz essa opção apenas por não ser economicamente viável a cobrança dessa dívida. É questão de custo-benefício.

Corroborando com esse entendimento, pontifica Douglas Fischer (citado nas razões do acórdão proferido por ocasião do julgamento do REsp 1112748/TO, de relatoria do E. Ministro Felix Fischer, publicado no DJe de 13/10/2009):

A circunstância de o Estado não promover a cobrança (mediante execução fiscal) dos valores inferiores hoje a R$ 10.000,00 não significa dizer que não haja interesse em receber as quantias. A providência insculpida em norma legal que autoriza o arquivamento (momentâneo) na distribuição das execuções fiscais diz tão somente com uma questão de política econômica e operacional da máquina de cobrança do Estado. Ou seja, a inserção de tal dispositivo justifica-se pelo fato de ser mais oneroso para o Estado cobrar as quantias objeto da prática criminosa, dado que as despesas para tanto superam aquele limite referido na norma retroreferida. Mas o dano social - protegido pela norma penal - parece continuar evidente, dependendo do caso concreto. Em suma, o fundamento das regras de âmbito cível - de não execução e/ou de cobrança dos valores - é evitar exatamente que a sociedade seja novamente penalizada, gastando-se mais que o próprio objeto do dano perseguido - o qual pertence aos cofres públicos.

Portanto, não é razoável entender que a Administração Pública dispensa ou renega o percebimento de valores abaixo de R$ 10.000,00 (dez mil reais), há apenas uma suspensão temporária. Desta forma, deve ser achado um parâmetro mais razoável para a exclusão da tipicidade penal no crime de descaminho.

Ademais, é válido ressaltar que, caso pacificado o entendimento de que deve ser aplicado o Princípio da Insignificância quando o tributo não ultrapassar o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), o tipo penal do descaminho será praticamente descriminalizado, vez que a maioria dos crimes não passam desse patamar, e mais, qualquer pessoa poderia habitualmente fazer entrar no país, sem pagamento do tributo devido, mercadorias no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), sonegando imposto de R$ 10.000,00 (dez mil reais), com a anuência do Poder Judiciário, o que, por óbvio, não é razoável.

Corroborando esses argumentos, encontram-se as razões do voto proferido nos autos do Recurso em Sentido Estrito n° 2006.70.02.009609-8/PR, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, verbis:

Aliás, a prevalecer a tese defendida pela eminente juíza monocrática, qualquer “atravessador” poderá ir ao Paraguai e de lá trazer para fins comerciais, quantas vezes quiser, inclusive no mesmo dia - já que permitida a reiteração tendo em conta a atipicidade - produtos no valor de R$ 20.000,00 (sonegando impostos de R$ 10.000,00) com a concordância do judiciário, o que, por certo, não se mostra razoável frente ao limite mensal de trezentos dólares (cerca de R$ 600,00) exigido do cidadão comum. Sem dúvida, tal impunidade será mais um incentivo às organizações criminosas que atuam na região transportando, diuturnamente, toneladas e toneladas de mercadorias aos grandes centros urbanos de todo o território nacional.

Mas não é só: deve ser levado em consideração que o não pagamento do tributo gera graves problemas para a população, pois a sonegação de impostos fecunda dificuldades no âmbito da segurança pública, educação, saúde, saneamento, infra-estrutura, etc.

Nesse sentido, ensina Pierre de Amorim (2007, p. 29):

Ora, para nós é clara a enorme ofensividade de um delito de descaminho (…) que atinge os cofres públicos em até R$ 10.000,00 (dez mil reais), ou mesmo R$ 1.000,00 (mil reais). Esses valores deveriam ser aplicados na saúde, educação e seguranças públicas, dentre outras finalidades obrigatórias do Estado brasileiro, expostas no art. 3° da Constituição da República, quando não for o caso de destinação específica.

Com a devida vênia, como se pode afirmar que não tem relevância o resultado de um crime que diminui a capacidade do Estado em fornecer um mínimo de qualidade nos serviços públicos que presta, causando a morte de milhares de pessoas anualmente?

Como enxergar insignificância no desfalque de numerário público, quando o quadro que se apresenta no país é de falta de aulas nas escolas públicas, epidemias medievais atingindo a população sem saneamento público, mortes em filas de hospitais públicos por falta de atendimento?

Considerando esse foco de análise, a questão se mostra bem mais complexa do que apenas utilizar parâmetros estabelecidos e previstos em legislação tributária, razão pela qual entendemos que é necessária a análise do caso concreto para aferir a potencialidade da conduta lesiva, considerando os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Frise-se que não estamos sustentando a não-aplicação do Princípio da Insignificância nos delitos contra a Administração Pública, apenas defendemos um critério mais razoável para se chegar ao valor a ser utilizado como referência.

Não é plausível entender como irrelevantes quantias que se aproximam de R$ 10.000,00 (dez mil reais), isso porque a sonegação dessa importância não se encaixa em dois requisitos: mínima ofensividade da conduta do agente e inexpressividade da lesão jurídica provocada, o que impede, portanto, a aplicação do Princípio da Insignificância. Outrossim, também não entendemos ter relevância jurídica o não-pagamento de impostos que ultrapassem um pouco o patamar de R$ 100,00 (cem reais), montante previsto no art. 18, § 1°, da Lei n° 10.522/02 e, até pouco tempo, considerado de referência pelo Superior Tribunal de Justiça para incidência do Princípio da Insignificância.

Assim, como ocorre nos crimes contra o patrimônio privado, a aplicação do Princípio da Insignificância no delito de descaminho deve estar em harmonia com o conceito de razoabilidade e proporcionalidade, a fim de que seja avaliada, em cada caso, a conduta que merece receber a tutela penal, sem que se descuide dos Princípios da Fragmentariedade e da Intervenção Mínima.

Ora, sem dúvidas, espantaria e agrediria o senso comum se um magistrado absolvesse alguém por furto de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a uma loja de comércio (por maior que fosse o seu patrimônio) ou a algum cidadão, alegando tratar-se de crime de bagatela, visto que aquele valor seria suficiente para nutrir uma família de miseráveis brasileiros por alguns meses, sendo, portanto, irrazoável e desproporcional a sua incidência.

Dessa forma, a mesma interpretação deve ser dada quando se trata de dinheiro do Estado, pois o patrimônio público não merece menor proteção que o privado. Ora, se não lhe é dada melhor proteção, pelo menos de mesmo nível, quando se tem em mente o patrimônio privado, deve ser a preocupação de todos os poderes o cuidado com o erário que é arrecadado diretamente dos bolsos dos brasileiros.

Na linha desse entendimento foi o julgado proferido nos autos do Habeas Corpus n° 110.404/PR, de relatoria do Ministro Arnaldo Esteves Lima:

HABEAS CORPUS. PENAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. TEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. ORDEM CONCEDIDA.

1. O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima.

(...)

4. Revendo a questão, entendo que, assim como nos delitos contra o patrimônio, a aplicação do princípio da insignificância não deve estar atrelada apenas a um valor prefixado, sob pena de trasmudar-se o art. 334 do Código Penal em uma norma penal em branco, e sim ao conceito de razoabilidade, a fim de avaliar, em cada caso, o bem que não merece a tutela penal, à luz da fragmentariedade e da intervenção mínima.

(...)

6. Embora a conduta se amolde à definição jurídica do crime de descaminho, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a imposição de pena privativa de liberdade, uma vez que a sua ofensividade se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade do comportamento foi de grau reduzido e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva.

7.  Ordem concedida para determinar a extinção da ação penal instaurada contra o paciente.

Destarte, mesmo considerando a previsão legal contida nos artigos 20 e 18, § 1°, da Lei n° 10.522/02, e com base nos critérios de proporcionalidade e razoabilidade, entendemos que só serão considerados penalmente insignificantes os casos onde o valor do tributo iludido seja substancial para o homem médio, ou seja, a nosso sentir, merece a benevolência do reconhecimento da insignificância o montante de até um salário mínimo.

Isto porque, apenas dessa forma estarão cumpridos os requisitos exigidos pelo Supremo Tribunal Federal para aplicação do Princípio da Insignificância, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.


12  Conclusão

O Princípio da Insignificância, apesar de não estar expresso nos textos legais, é consagrado como um dos princípios do Estado Democrático de Direito e tem a sua aplicação assegurada sempre que o delito praticado não expressar grande prejuízo ao bem jurídico tutelado na norma penal.

A análise desse princípio não pode estar dissociada dos Princípios da Intervenção Mínima e da Fragmentariedade, pois aquele decorre desses dois. Devemos considerar que o direito não pode se ocupar de condutas que produzam resultados cujo valor não represente violação significante ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal.

No que toca à aplicação do Princípio da Insignificância no delito de descaminho, não obstante reconhecer que o bem jurídico tutelado é a arrecadação tributária e o respeito à tese de que não há relevância penal quando o próprio Estado estabelece os valores para o não ajuizamento de demandas visando à restituição do valor que não foi devidamente recolhido, nos filiamos ao entendimento de que não se pode utilizar parâmetros prefixados e estabelecidos em legislação para a aplicação do princípio, sendo necessária a análise do caso concreto para aferir a potencialidade da conduta lesiva, em harmonia com o conceito de razoabilidade e à luz dos Princípios da Fragmentariedade e da Intervenção Mínima do Direito Penal.

Deste modo, de um lado, entendemos que não é proporcional considerar como irrelevantes valores que se aproximam de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e, de outro, não se pode afirmar que tenha relevância jurídica penal a burla de impostos que ultrapassem um pouco o patamar de R$ 100,00 (cem reais), vez que, assim como ocorre nos crimes contra o patrimônio privado, a aplicação do Princípio da Insignificância no delito de descaminho deve estar em harmonia com o conceito de razoabilidade e proporcionalidade.

Isto porque, o patrimônio público não merece menor proteção que o privado, pois a sonegação de impostos gera graves problemas para a população, especialmente no âmbito da segurança pública, educação, saúde, saneamento, infra-estrutura, etc.

Com essas considerações é que concluímos pela incidência do Princípio da Insignificância nos casos em que o quantum do tributo ilidido não represente valor substancial para um homem médio, ou seja, merece ser considerada insignificante apenas a burla de pagamento de impostos de até um salário mínimo.


Referências Bibliográficas

ACKEL FILHO, Diomar. “O princípio da insignificância no direito penal”. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, São Paulo, v. 94, 1988, p.72/77;

AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho. “O uso indevido do princípio da insignificância.” Boletim dos Procuradores da República - v. 9, n. 73, p. 26-29, mar. 2007.

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002;

BARALDI, Carlos Ismar. “Teoria da Insignificância Penal.” Revista da Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, n. 6, p. 31-47, jan. 1994;

BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007;

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1994;

BRANDÃO, Cláudio. Teoria Jurídica do Crime. Rio de Janeiro: Forense. 2003;

DOTTI, René Ariel. “As bases constitucionais do direito penal democrático”. Revista de informação legislativa. Brasília: Senado Federal, v. 22, n. 88, p. 21-44, 1985.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, Parte Geral. 5. ed.  Rio de Janeiro: Editora Forense, 1983;

GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: Uma visão minimalista do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2008;

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância do âmbito federal: débitos até R$ 10.000,00. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre. Número 30. Página 14. Fev-Mar 2005;

GOMES FILHO, Demerval Varias. A dimensão do Princípio da Insignificância – Imprescisão jurisprudencial e Doutrinária – Necessidade de nova reflexão no crime de descaminho.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: parte geral. 26 ed., v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003.

______. Direito penal: parte especial. 13. ed., v. 4, São Paulo: Saraiva, 2003.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

LOPES. Maurício Antônio Ribeiro. O princípio da Insignificância no Direito Penal: análise à luz da lei n° 9.099/95: Juizados Especiais Criminais e jurisprudência atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997;

LUNA. Everardo Cunha. Capítulos de direito penal. São Paulo: Saraiva,1985.

MANÂS, Carlos Vico. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994;

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994;

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal - parte geral - arts. 1° a 120 do CP. 16. ed. São Paulo: Atlas, 1999. v. 1.

______. Manual de direito penal - parte especial - arts. 235 a 361 do CP. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. 3.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. Parte Geral. 2. ed. São Paulo : RT, 2000.

QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um direito penal mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 1998;

REBÊLO. José Henrique Guaracy. Princípio da Insignificância: Interpretação jurisprudencial. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

ROXIN, Claus. Política Criminal e sistema jurídico-penal. Tradução: Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da Insignificância do Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2004.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994;

ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.


Autor


Informações sobre o texto

O Artigo foi apresentado ao final do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal, realizado pela Escola Superior do Ministério Público da União, em Brasília/DF. O obra foi, recentemente, foi publicado no livro “Direito Penal Especial” da Escola Superior do MPU, apresentada pelo renomado Doutrinador Penalista EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA, com prefácio e organização do Professor e Procurador da Regional de República DOUGLAS FISCHER.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES NETO, Eider Nogueira. Aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4867, 28 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35559. Acesso em: 26 abr. 2024.