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Direito adquirido à contagem em dobro da licença-prêmio

Direito adquirido à contagem em dobro da licença-prêmio

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          EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20/98. LICENÇA-PRÊMIO NÃO GOZADA. CONTAGEM EM DOBRO PARA FINS DE APOSENTADORIA. DIREITO ADQUIRIDO.

"O direito subjetivo: é um direito que existe em favor de alguém e que pode ser exercido por esse alguém. É, pois, um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente." (...)

"Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando lhe conviesse. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato de o titular não o ter exercido antes. (...)

"O direito subjetivo vira direito adquirido quando lei nova vem alterar as bases normativas sob as quais foi constituído". (...)

"A lei nova não se aplica a situação subjetiva constituída sob o império da lei anterior." (JOSÉ AFONSO DA SILVA).

Ainda que o servidor público não tenha completado o tempo de serviço necessário para aposentar-se antes da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, tem direito adquirido (direito subjetivo) a contar em dobro, em conformidade com as leis anteriores, o tempo de serviço correspondente à licença-prêmio não gozada, porque este direito não pode ser desrespeitado por força de mera interpretação – de conveniência – de emenda constitucional posterior.

É que o direito ao gozo ou ao cômputo em dobro é direito potestativo do servidor, que era, como é, irrecusável, pois independia, como ainda independe, para ser exercido, de qualquer condição ou do arbítrio de quem quer que seja.

A emenda constitucional, conforme reiteradamente afirmado pela doutrina mais autorizada e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não pode desrespeitar os direitos adquiridos, sendo, aliás, vedado até seu processamento nesta hipótese.

Não há confundir o direito à aposentadoria, cujo tempo de serviço não haja sido completado antes da Emenda Constitucional nº 20, com o direito adquirido antes, a contar em dobro, o tempo de licença-prêmio não usufruído pelo servidor, pois este é independente do novo tempo e das novas regras exigidas para aposentar-se.

Há limitações materiais ao poder de reforma constitucional, conhecidas como cláusulas pétreas, previstas no § 1º do art. 60 da Lei Maior, onde se proíbe a apreciação de emenda tendente a abolir: "I — a forma federativa de Estado; II — o voto direto, secreto, universal e periódico; III— a separação dos Poderes; IV — os direitos e garantias individuais".

O Parecer é no sentido do deferimento de deferimento da segurança impetrado por servidores que tiverem o direito ao cômputo em dobro do período de licença-prêmio não gozado.


A QUESTÃO DE QUE SE TRATA

Em 16 de dezembro de 1998, foi publicada a Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, que modificou o sistema de previdência social, estabelecendo, entretanto, regras de transição e adotando outras providências.

O art. 1º da referida Emenda alterou vários dispositivos da Constituição Federal, dentre os quais o art. 40, ao qual ficou acrescido o § 10, assim redigido:

"Art. 40 (...)

"§ 10 A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício."

Interpretando este dispositivo, a Administração Pública, desde logo, proibiu, sem qualquer ressalva, o cômputo do tempo de licença-prêmio não gozada em dobro, ignorando e desrespeitando, de imediato, o que assegurava a legislação pretérita, a não ser que o servidor já houvesse, em 16 de dezembro de 1998, implementado o tempo de serviço necessário à aposentadoria, única hipótese em que, por incrível que pareça, lhe foi reconhecido o direito adquirido ao cômputo em dobro do período de licença-prêmio ainda não usufruído.

O entendimento oficializado na Administração Pública é, em síntese, no sentido de que "os servidores que implementaram o tempo para a sua inativação após a data da publicação da Emenda Constitucional nº 20 (16.12.98), não poderão utilizar a licença-prêmio não gozada para a contagem do tempo em dobro, conforme previa o art. 5º da Lei nº 8.162/91. Este benefício foi suprimido pelo art. 4º da referida Emenda Constitucional e corroborado pela CISET/MJ, através do Parecer nº 05/99" (Parecer nº 373/99-SLP/CP, de 23.04.99, do Serviço e Pareceres de Legislação, do Departamento de Polícia Federal).

Também sobre o assunto, há o Parecer nº 5, de 11.03.1999, Secretaria Federal de Controle, que assim interpretou a matéria:

VEDAÇÃO PARA UTILIZAÇÃO DO TEMPO DA LICENÇA-PRÊMIO NÃO GOZADA PARA APOSENTADORIA ANTE A PUBLICAÇÃO DE EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20.

A Delegacia Federal de Controle no Ceará, por intermédio do Memorando nº 0059/99/DIPES-DFC/CE, de 04.03.99, solicita esclarecimentos desta Coordenação sobre o cômputo do tempo da licença-prêmio não gozada para aposentadoria, ante a edição da Emenda Constitucional nº 20 – DOU de 16.12.98.

2. A dúvida existente refere-se ao fato de o art. 4º da citada Emenda estabelecer que:

"Art. 4º Observado o disposto no art. 40, § 10, da Constituição, o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito de aposentadoria cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado como tempo de contribuição."

3. Assim, alegam os órgãos de Recursos Humanos que estaria garantido o direito a quem já o tivesse adquirido pela legislação até então vigente, até que fosse editada lei que disciplinasse a matéria. Tal entendimento só teria respaldo se não estivesse contido em tal artigo a ressalva: "Observando o disposto no art. 40, § 10, da Constituição". Ou seja, qualquer tempo de serviço considerado pela legislação até então vigente deve ser considerado, com a ressalva de observar-se o disposto no § 10 do art. 40, que assim estabelece:

"§ 10. A lei não poderia estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício.

4. Logo, ante a vedação expressa de que o legislador não poderia estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício, não há como se computar este tempo – o fictício, a não ser que o servidor já tivesse tempo de serviço para aposentar-se em 15.12.98, quando lhe foi assegurado por intermédio do art. 3º da citada Emenda, o direito de contagem de tempo de serviço na legislação então vigente.

5. Tal assertiva é corroborada pelo "Comparativo entre a redação anterior e a redação atual dada pela Emenda Constitucional nº 20", comparativo este publicado no site oficial da Secretaria de Estado da Administração e do Patrimônio (http://www.seap.gov.br ou http://www.mare.gov.br), que no campo das observações/providências assim se refere ao art. 4º da EC nº 20:

"Todo o tempo de serviço considerado para efeito de aposentadoria pela legislação vigente até a publicação da lei que regulamente a aposentadoria, exceto os fictícios (ex: licença-prêmio não gozada em dobro), será contado como tempo de contribuição.

6. Alegam ainda que o cômputo de tal tempo estaria assegurado por já ter se tornado direito adquirido. Contudo, é de notório conhecimento que não há direito adquirido face as disposições constitucionais.

7. Assim, s.m.j., não resta dúvida de que não pode ser computado o tempo de licença-prêmio não gozada para concessão de aposentadoria aos servidores que só tenham completado o interstício legal para sua inatividade após a publicação da Emenda Constitucional nº 20."

Com base neste entendimento, o Serviço Público Federal tem-se considerado impossibilitado de conceder aposentadoria, com inclusão do tempo de licença-prêmio não gozado em dobro, aos servidores que, em razão das novas orientações tenham completado o tempo de serviço para aposentadoria depois de 15 de dezembro de 1998.

A Instrução Normativa nº 5, de 28 de abril de 1999, da Secretaria de Estado da Administração e do Patrimônio, Órgão normatizador do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal - SIPEC, publicada no DOU de 29 de abril de 1999, também exclui o tempo de licença-prêmio não gozada contada em dobro, para fins de concessão de aposentadoria.

A propósito, o Ministro da Previdência e Assistência Social, visando afastar qualquer outra interpretação da Emenda Constitucional nº 20, aprovou o Parecer/CJ/Nº 1698/99, da Consultoria Jurídica daquele Ministério, assim redigido:

"DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. ART. 3º DA EMENDA CONSTITUCIONAL N0 20, DE 1998.

Todo e qualquer segurado, seja servidor público ou vinculado ao regime geral de previdência social, inclusive os dependentes, que tenha integralizado todos os requisitos necessários à obtenção da aposentadoria ou pensão até 16 de dezembro de 1998, data da publicação da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, pode requerer a qualquer tempo a concessão desses benefícios, com base na legislação anterior.

O Departamento de Gestão de Recursos Humanos do Banco Central do Brasil questiona sobre a aplicabilidade do art. 3º da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, em relação ao termo final que assegura a concessão de aposentadoria ou pensão aos servidores públicos e dependentes, com fundamento na legislação então vigente.

2 - Cita a consulente o caso concreto da servidora (segue-se o nome), que completou vinte e cinco anos de tempo de serviço no dia 16 de dezembro de 1998, e, no entanto, teve seu benefício indeferido, pois o Setor de Recursos Humanos considerou como prazo final a data de 15 de dezembro de 1998.

3 - Dispõe o art. 3º da Emenda Constitucional n0 20, de 1998...(transcrito acima).

4 - Nos termos acima, todo e qualquer segurado, seja servidor público ou vinculado ao regime geral de previdência social, inclusive os dependentes, que tenha integralizado todos os requisitos necessários à obtenção da aposentadoria ou pensão até 16 de dezembro de 1998, data da publicação da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, pode requerer a qualquer tempo a concessão desses benefícios, com base na legislação anterior, caso venha a ser mais vantajoso.

5 - A cartilha distribuída pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, citada pelo consulente, bem esclarece o limite temporal para preservação de certos direitos à concessão de benefícios previdenciários:

Os segurados do INSS e servidores públicos, que completarem os requisitos necessários à aposentadoria até 16 de dezembro de 1998, poderão se aposentar, em qualquer época, pelas regras anteriores à reforma ou optar pelas regras de transição, se considerarem mais vantajoso.

O servidor que completou os requisitos para se aposentar antes da reforma, contando com licença prêmio em dobro e outros tempos fictícios, continuará gozando desse direito mesmo que solicite a aposentadoria a qualquer tempo a partir de 17 dezembro de 1998.

Servidores públicos e segurados do INSS que não tiverem completado todas as condições necessárias para se aposentar até 16 de dezembro de 1998 terão que cumprir as regras de transição." (DOU, Seção 01, 29/03/99, p. 11).

O entendimento dado pelo MPAS, pela Secretaria de Estado da Administração e do Patrimônio e pela Secretaria Federal de Controle, à Emenda Constitucional nº 20, exposto no Parecer que se acaba de transcrever, vem norteando os procedimentos de aposentadoria dentro de diversos outros órgãos da Administração Pública.


AS NORMAS LEGAIS QUE ASSEGURAVAM O DIREITO AO
CÔMPUTO EM DOBRO DO PERÍODO DE LICENÇA-PRÊMIO NÃO GOZADO.

Para nós, o entendimento correto não é este.

Dispunha o art. 5º da Lei nº 8.162, de 08.01.91:

"Art. 5º Para efeito de aposentadoria, será contado em dobro o tempo de licença-prêmio a que se refere o artigo 87 da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que o servidor não houver gozado."

Por sua vez, o art. 87 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, dispunha:

"Art. 87 Após cada qüinqüênio ininterrupto de exercício, o servidor fará jus a 3 (três) meses de licença, a título de prêmio por assiduidade, com a remuneração do cargo efetivo."

A licença-prêmio prevista no art. 87 da Lei nº 8.112/90 foi suprimida do ordenamento jurídico a partir da Lei nº 9.527, de 10 de dezembro de 1997, mas seu art. 7º respeitou o direito adquirido, nestes termos:

"Art. 7º Os períodos de licença-prêmio, adquiridos na forma da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, até 15 de outubro poderão ser usufruídos ou contados em dobro para efeito de aposentadoria ou convertidos em pecúnia no caso de falecimento do servidor, observada a legislação em vigor até 15 de outubro de 1.996."

E não poderia ser de outro modo, haja vista as restrições legais a que se sujeitava o servidor, na expectativa do reconhecimento, após longos anos de abstinência, do direito à licença-prêmio, conforme dispunha o art. 88 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, nestes termos:

          "Art. 88 - Não se concederá licença-prêmio ao servidor que, no período aquisitivo:

I - sofrer penalidade disciplinar de suspensão;

II - afastar-se do cargo em virtude -

a) licença por motivo de doença em pessoa da família, sem remuneração;

b) licença para tratar de interesses particulares;

c) condenação a pena privativa de liberdade por sentença definitiva;

d) afastamento para acompanhar cônjuge ou companheiro.

"Parágrafo único. As faltas injustificadas ao serviço retardarão a concessão da licença prevista neste artigo, na proporção de 1 (um) mês para cada falta."

Antes, dispunham os arts. 116 e 116 da Lei nº 1.711, de 28 de outubro de 1952:

"Art. 116. Após cada decênio de efetivo exercício, ao funcionário que a requerer, conceder-se-á licença especial de seis meses com todos os direitos e vantagens do seu cargo efetivo.

"Parágrafo único. Não se concederá licença especial se houver o funcionário em cada decênio:

"I – sofrido pena de suspensão;

"II – faltado ao serviço injustificadamente ... (Vetado) ...

"III – gozado licença:

a. "para tratamento de saúde por prazo superior a 6 meses ou 180 dias consecutivos ou não;

b. "por motivo de doença em pessoa da família, por mais de 4 meses ou 120 dias;

c. "para o trato de interesses particulares;

d. "por motivo de afastamento do cônjuge, quando funcionário ou militar, por mais de três meses ou noventa dias.

"Art. 117. Para efeito de aposentadoria será contado em dobro o tempo de licença especial que o funcionário não houver gozado."

Vistas tais normas legais pretéritas, interessa, desde logo, verificar se o servidor que não gozou da licença-prêmio tem direito adquirido ao respectivo gozo ou a contar em dobro o período não gozado, para fins de aposentadoria.

Para tanto, em primeiro lugar, deve-se indagar acerca do que vem a ser o direito adquirido.


SOBRE O DIREITO ADQUIRIDO E SUA DEFINIÇÃO DOUTRINÁRIA

Conforme vimos, direito ao cômputo em dobro, para fins de aposentadoria, do período de "licença-prêmio", antes denominada "licença especial", não gozado, trata-se de um direito que, desde 1952, sempre esteve integrado ao patrimônio jurídico do servidor público.

O que releva pesquisar agora é se uma emenda constitucional pode, por via de interpretação, eis que não dispôs expressamente que seria vedado o cômputo em dobro do período de licença-prêmio adquirido e não gozado antes de sua entrada em vigor.

Apesar disso, vimos que o entendimento oficial é no sentido de que a nova emenda constitucional suprimiu o direito de contar em dobro, devendo o período de licença-prêmio não gozado, servir apenas para fins de gozo.

A resposta será negativa a esse entendimento oficial, se realmente se tratar de direito adquirido, pois o princípio geral que domina esta matéria é que nenhuma lei pode ser aplicada retroativamente em prejuízo de ninguém.

Sabe-se que toda lei ingressa no ordenamento jurídico e disciplina interesses relativamente a determinada matéria que já constituiu objeto de regulação por lei anterior. E aí é que surge o denominado direito intertemporal, que é um conjunto de normas doutrinárias que disciplina a aplicação da lei no tempo, destinado a resolver as questões que surgem do confronto entre a lei nova e aquela revogada. Algumas dessas questões encontram solução nas garantias constitucionais da segurança jurídica, visando assegurar a estabilidade dos direitos subjetivos. Outras são resolvidas pelas próprias leis em confronto, por suas disposições de direito transitório.

O princípio da segurança jurídica postula que os direitos subjetivos gerados por uma norma jurídica devem perdurar mesmo após a revogação de tal norma, preservando-se, por força do próprio princípio da estabilidade das relações jurídicas, a situação jurídica subjetiva criada para o indivíduo.

O princípio da segurança jurídica tem, entre nós, tradicionalmente, sido inscrito entre os direitos e garantias constitucionais, o que torna a situação jurídica subjetiva mais estável que noutros países em que o mesmo princípio vem inscrito em leis não-constitucionais.

Entre nós, a eficácia da lei não retroage para cassar os denominados direitos subjetivos:

"Isto mesmo nos casos de leis de ordem pública, como pode ocorrer nos países europeus, onde o princípio da irretroatividade ou da retroatividade limitada da lei no tempo não é princípio constitucional" (trecho de uma Conferência do Ministro MOREIRA ALVES por nós gravada e registrada, com sua autorização, em nosso "As Medidas Provisórias no Direito Comparado e no Brasil", Ed. LTr, SP, 1993, p. 368).

Embora cuidando do assunto sob o prisma da lei de conversão da medida provisória, registramos:

"E o Ministro MOREIRA ALVES prossegue ensinando que, na Itália, como acontece nos demais países da Europa, não há esse princípio constitucional. O princípio da irretroatividade da lei vincula apenas o juiz. É princípio que decorre da legislação ordinária, é um princípio de interpretação para o juiz. Vincula, portanto, apenas o juiz ao interpretar. Não é um princípio que vincule o legislador. Portanto, nada impede que o legislador, que tenha editado uma lei que estabeleça genericamente a irretroatividade das leis, determine que uma lei específica retroagirá." (...)

"Deve-se sempre chamar a atenção, com relação a esse problema da retroatividade, porque, prossegue, nós, no Brasil, que, durante muitos anos, tivemos o vezo de estudar direito por livros franceses, ainda temos uma certa dificuldade de entender bem o problema da retroatividade da lei, tendo em vista a circunstância de que é muito comum, nos livros franceses, e nos livros europeus em geral, falar-se que o princípio da retroatividade cede diante da lei de ordem pública. Mas isto é apenas nos sistemas em que esse princípio é somente um princípio de ordem legal, e apenas se aplica ao juiz, para o efeito de desvinculá-lo, quando a lei nova é uma lei de ordem pública, e conseqüentemente pode ser aplicada retroativamente.

"Nós, no Brasil, sustenta o Ministro MOREIRA ALVES, não temos esse princípio. No Brasil, temos o princípio da retroatividade limitada, que nós geralmente dizemos princípio da irretroatividade. É tal a magnitude dessa limitação, que nós aqui não podemos adotar teses como esta." (Trecho da referida Conferência do Ministro MOREIRA ALVES, em nosso "As Medidas Provisórias no Direito Comparado e no Brasil", Ed. LTr, SP, 1993, p. 370).

Infelizmente, é exatamente este o erro que tem sido cometido pelos intérpretes de plantão na Administração Pública.

Mas, antes de outras considerações, há que se definir primeiro duas questões capitais em matéria de retroatividade: a primeira é definir o que se entende por aplicação retroativa de uma lei; e a segunda é definir-se em que casos uma lei aplica-se retroativamente.

Uma lei é retroativa quando destrói ou restringe um direito adquirido sob o império de uma lei anterior. Direitos adquiridos são aqueles que tendo entrado em nosso domínio e, em conseqüência, formando parte dele, não podem ser-nos arrebatados por aquele de quem o adquirimos.

Em nosso sistema jurídico, os direitos adquiridos são irrevogáveis, por força do disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, que dispõe:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

"XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

O conceito de direito adquirido, entretanto, está na Lei de Introdução ao Código Civil (art. 6º, § 2º) que dispõe:

"Art. 6º A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (...)

"§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem."

Note-se que a lei nova há sempre que respeitar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, que é aquele que o seu titular "possa exercer", sem empecilho jurídico que possa tolher esse exercício. Vale dizer, os direitos adquiridos são irrevogáveis, não podem ser suprimidos por lei posterior.

Também se consideram adquiridos os direitos "cujo exercício tenha termo prefixado, ou condição preestabelecida, inalterável a arbítrio de outrem". Assim, embora o titular de um direito, ou alguém por ele, não o possa exercer imediatamente, há um direito adquirido, caso o seu exercício dependa, apenas, ou de um termo prefixo, ou de uma condição preestabelecida e inalterável a arbítrio de outrem.

No caso da licença-prêmio sempre foi livre a opção do titular do direito gozá-la, como licença, ou permanecer trabalhando e contar em dobro o tempo não gozado. Se qualquer autoridade recusasse o direito ao gozo ou ao cômputo em dobro, no momento da aposentadoria, o servidor poderia, sempre, recorrer às vias judiciais, inclusive via mandado de segurança, por se tratar de direito líquido e certo, bastando a prova documental de possuir licença-prêmio e lhe estar sendo recusado o direito de seu cômputo em dobro, para fins de aposentadoria.

Após expor o que seja direito adquirido conforme outros doutrinadores, SAMPAIO DÓRIA formula a seguinte conceituação:

"Direito adquirido é todo direito subjetivo, de utilidade concreta para seu titular, oriundo de um fato idôneo a produzi-lo, segundo a lei vigente ao tempo em que este se realizou". (DÓRIA, Sampaio. Da Lei Tributária no Tempo, "Tese de Concurso à Cadeira de Direito Tributário da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo", São Paulo, 1968, § 22, p. 108).

Por sua vez, REYNALDO PORCHAT se reporta à definição formulada por GABBA:

"É direito adquirido todo o direito que é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo em virtude da lei do tempo em que esse fato foi realizado, embora a ocasião de o fazer valer não se tivesse apresentado antes da existência de uma lei nova sobre o mesmo objeto e que nos termos da lei sob o império da qual se deu o fato de que originou, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu".(PORCHAT, Reynaldo. Da Retroatividade das Leis Civis, São Paulo, Editora "Duprat", 1909, § 14, p. 14).

A seguir, observa REYNALDO PORCHAT:

"Essa definição, desde que seja completada com esta frase final, que lhe oferecemos em aditamento, - "ou constituiu o adquirente na posse de um estado civil definitivo", - encerra todos os característicos distintivos do direito adquirido, que são:

1º) um fato aquisitivo, idôneo a produzir direito, de conformidade com a lei vigente;

2º) uma lei vigente no momento em que o fato se realize;

3º) capacidade legal do agente;

4º) ter o direito entrado a fazer parte do patrimônio do indivíduo, ou ter constituído o adquirente na posse de um estado civil definitivo;

5º) não ter sido exigido ainda ou consumado esse direito, isto é, não ter sido ainda realizado em todos os seus efeitos." (PORCHAT, Reynaldo. Da Retroatividade..., cit., § 14, p. 15).

A obra de REYNALDO PORCHAT foi escrita antes do nosso Código Civil, quiçá, à guisa de contribuição doutrinária sobre o tema do direito adquirido.

Já a expectativa de direito consiste – ensinou REYNALDO PORCHAT – na:

"esperança de um direito que, pela ordem natural das coisas, e de acordo com uma legislação existente, entrará provavelmente para o patrimônio de um indivíduo quando se realize um acontecimento previsto. A expectativa se distingue da faculdade, porque se transforma em um direito que entrará para o patrimônio do indivíduo independentemente de qualquer ato deste. A faculdade só produz aquisição de direito quando exercida pelo titular." (PORCHAT, Reynaldo. Da Retroatividade..., cit., § 27, p. 30).

E, noutro passo, observava ainda REYNALDO PORCHAT:

"A expectativa se distingue do direito adquirido porque este, como vimos, já entrou para o patrimônio da pessoa, ou, ao menos, já se concretizou, ao passo que aquela é apenas uma esperança. (...) O direito adquirido nem a lei pode alterar." (Ob. e loc. cit.).

Para colher as lições de um autor mais moderno, lembra-se o nome de JOSÉ AFONSO DA SILVA, que, em monografia específica, "Reforma Constitucional e Direito Adquirido", ensina o que é direito adquirido, nestes termos:

"Para compreendermos um pouco melhor o que seja o direito adquirido, cumpre relembrar o que se disse acima sobre o direito subjetivo: é um direito que existe em favor de alguém e que pode ser exercido por esse alguém. É, pois, um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido, foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada (direito consumado, direito satisfeito, extinguiu-se a relação jurídica que o fundamentava)." (RDA, vol. 213, jul-set/98, p. 123).

E, adiante, prossegue aquele inexcedível Jurista JOSÉ AFONSO DA SILVA:

"Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando lhe conviesse. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato de o titular não o ter exercido antes. Direito subjetivo "é a possibilidade de ser exercido, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio", nota Miguel Reale. Ora, essa possibilidade de exercício continua no domínio da vontade do titular em face da lei nova. Essa possibilidade de exercício do direito subjetivo foi adquirida no regime da lei velha e persiste garantida em face da lei superveniente. Vale dizer - repetindo: o direito subjetivo vira direito adquirido quando lei nova vem alterar as bases normativas sob as quais foi constituído. (RDA, vol. 213, jul-set/98, p. 123).

E prossegue mais adiante JOSÉ AFONSO DA SILVA:

"Não se trata aqui da questão da retroatividade da lei, mas tão-só de limite de sua aplicação. A lei nova não se aplica a situação subjetiva constituída sob o império da lei anterior.

Vale dizer, portanto, que a Constituição não veda a retroatividade da lei, a não ser da lei penal que não beneficie o réu. Afora isto, o princípio da irretroatividade da lei não é de direito constitucional, mas princípio geral de direito. Decorre do princípio de que as leis são feitas para vigorar e incidir para o futuro. Isto é: são lícitas para reger situações que se apresentem a partir do momento em que entram em vigor. Só podem surtir efeitos retroativos, quando elas próprias o estabeleçam (vedado em matéria penal, salvo a retroatividade benéfica ao réu), resguardados os direitos adquiridos, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito, evidentemente.

Observação que precisa ser feita é a seguinte: só se fala em direito adquirido quando o direito subjetivo exercitável ainda não foi exercido. De fato, o direito subjetivo consiste no poder de o seu titular fazê-lo valer segundo seu interesse, ressalvados os problemas de caducidade, perempção, decadência ou prescrição, bem como condições previstas. É nesse contexto que poderá surgir o direito adquirido, que é precisamente, como dissemos, o direito subjetivo integrado no patrimônio do titular, mas não exercido, a respeito do qual é que milita a garantia constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, que assegura o seu exercício nos termos da lei sob a qual ele se constituiu, ainda que revogada por lei superveniente. Dá-se aí uma espécie de ultra-atividade da lei, que consiste na projeção dos efeitos da lei para além de sua vigência, para resguardar o direito adquirido sob sua vigência. (RDA, vol. 213, jul-set/98, p. 123-124).

Vista a doutrina do direito adquirido, passa-se ao exame sobre a possibilidade pretendida por agentes do Poder Público, entre nós, de o direito adquirido poder ou não ser desrespeitado por normas instituídas por emendas à Constituição.


A PRÓPRIA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20 ASSEGURA A CONTAGEM DO TEMPO DE SERVIÇO ANTERIOR, EQUIPARANDO-O AO TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO, SEM FAZER QUALQUER DISTINÇÃO

A rigor, temos que a interpretação do art. 40, § 10, da Constituição, com a nova redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, não pode ser feita de forma a impedir o cômputo em dobro da licença-prêmio não gozada antes, sob pena de ofensa a direito adquirido.

Quem interpreta o art. art. 40, § 10, da Constituição, com a nova redação, de forma a desrespeitar o direito adquirido, o está interpretando como se ele pudesse ter existência isolada, autônoma, suficiente em si mesma, independente das demais normas constitucionais limitativas de sua eficácia, ou mesmo de sua própria elaboração, em uma palavra, sem o menor respeito aos princípios que regem a aplicação da lei no tempo, um dos quais é o da irretroatividade da nova lei, quando ofende o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada.

Mas, nem necessitaríamos recorrer a tão elevada doutrina, pois bastaria uma interpretação mais coerente das próprias normas de que se trata nos pareceres administrativos a que já fizemos alusão.

Para nós, a própria Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, em seus arts. 3º e 4º, quando trataram da questão da contagem do tempo de serviço para efeito de aposentadoria, mandaram, implicitamente, estas garantias constitucionais, aliás, como o não poderia deixar de ser, e com absoluta coerência ao princípio da segurança jurídica, ao dispor:

"Art. 3º É assegurada a concessão de aposentadoria e pensão, a qualquer tempo, aos servidores públicos e aos segurados do regime geral de previdência social, bem como aos seus dependentes, que, até a data da publicação desta Emenda, tenham cumprido os requisitos para a obtenção destes benefícios, com base nos critérios da legislação então vigente.

"Art. 4º Observado o disposto no art. 40, § 10, da Constituição Federal, o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito de aposentadoria, cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado como tempo de contribuição."

Nota-se que o art. 4º não fez a distinção entre tempo fictício e não fictício e nem o § 10 do art. 40, pois nele não há referência à lei anterior. Nele está escrito:

"§ 10 A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício."

O verbo poder está conjugado no futuro poderá, por isso que está a se referir à lei que vier a ser editada depois "não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício". Mas e as Constituições anteriores? Continham semelhante norma? Não? Então, a norma de emenda constitucional posterior não pode invalidar as leis anteriores, baixadas sob o pálio das Constituições anteriores e da própria Constituição de 1988.

Enfim, temos que um dos direitos assegurados pela Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, em respeito à legislação anterior, foi o direito adquirido à aposentadoria por tempo de serviço, equiparada à aposentadoria por tempo de contribuição instituída por esta Emenda, independente de se tratar de tempo de serviço simples ou em dobro, pois, feita esta distinção, ferir-se-ia o direito adquirido.

Parece que está havendo uma verdadeira confusão entre o direito à aposentadoria, que é outro direito, diverso, com o direito à contagem em dobro do período de licença-prêmio não gozada, independente de o servidor haver implementado ou não o tempo de serviço necessário à inativação, antes da Emenda Constitucional nº 20/98.

Como visto, pensamos que o próprio art. 4º da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, ao dispor que "o tempo de serviço considerado pela legislação vigente para efeito de aposentadoria, cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado como tempo de contribuição", torna inócua a interpretação oficial que defende a proibição do cômputo em dobro do tempo de licença-prêmio não gozada, para fins de aposentadoria, no caso de o tempo de serviço para este fim vier a se completar somente depois de 15 de dezembro de 1998.

Não obstante a clareza do novo dispositivo, os servidores públicos em geral têm sido impedidos de contar em dobro aquele período, com exceção apenas daqueles que reuniram todos os requisitos para a concessão da aposentadoria antes da vigência da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, como já foi visto.

Para nós, é indiscutível a existência de evidente lesão a direito líquido e certo dos servidores a ensejar a concessão de mandado de segurança, a fim de que seja respeitada a Lei Maior.

A clareza do artigo 3º da EC n0 20 dispensa quaisquer outras ponderações a respeito de ser devida a contagem em dobro do período de licença-prêmio para efeitos de aposentadoria.

Com efeito, a Emenda Constitucional nº 20 resguardou o instituto do direito adquirido, deixando claro que os fatos ocorridos até a data de sua publicação seriam regidos pela legislação então vigente.

Só este dado seria suficiente para demonstrar que a referida Emenda veio para operar efeitos ex nunc, não havendo fundamento razoável, portanto, para que a Administração Pública continue criando dificuldades para a aplicação do texto constitucional, insistindo na tese de que com o advento da EC nº 20 não mais poderá ser considerado para efeito de contribuição qualquer tempo fictício, caso da licença-prêmio contada em dobro, independentemente da data em que o direito foi aperfeiçoado.


DIREITO ADQUIRIDO CONTRA
AS EMENDAS CONSTITUCIONAIS

Sob o título acima, CARLOS AYRES BRITO e VALMIR PONTES FILHO (RDA 202, pp. 75-80) enfrentam o problema com superioridade e fornecem solução diferente daquela fornecida pela interpretação oficial, conforme transcrição que será feita a seguir:

"Há direito adquirido, sim, contra emendas constitucionais. O que não há é direito adquirido contra a Constituição, tal como originariamente posta ...".

O artigo ora transcrito foi elaborado com a finalidade especial de combater a tese do Jurista PAULO MODESTO, Assessor Especial do Ministro BRESSER PEREIRA, Titular do Ministério da Reforma do Estado, que defendia que "o direito adquirido ... não é garantia dirigida ao poder constituinte, originário ou reformador. É garantia do cidadão frente ao legislador infraconstitucional, utilizável para impedir a eficácia derrogatória da lei nova em face de situações jurídicas constituídas no passado por leis ordinárias ou leis complementares" (em "Reforma Administrativa e Direito Adquirido ao Regime da Função Pública", apud CARLOS AYRES BRITO e VALMIR PONTES FILHO, RDA 202, p. 76-77).

Ocorre que não nos parece inteiramente acertado esse modo de pensar a Constituição de 1988. Observam CARLOS AYRES BRITO e VALMIR PONTES FILHO. As emendas têm força impositiva superior à da lei – certo é dizê-lo –, mas nem por isso estão liberadas da vedação constitucional da imposição de prejuízo ao direito já adquirido, assegurado no art. 5º, XXXVI, da Lei Maior.

Seguem transcritas as lições de CARLOS AYRES BRITO e VALMIR PONTES FILHO, combatendo a doutrina oficial, nestes termos:

"2.2. Pois bem, por não ser possível reconhecer ao órgão de produção das emendas constitucionais a ontologia de um verdadeiro poder constituinte, mas apenas a de um poder reformador, é centro deliberativo que não exercita a plenitude de um centro correlatamente desconstituinte. Ele não zera a contabilidade jurídica anterior e daí a compreensão de se tratar de um aparelho decisório que não tem a força de ignorar de todo a Constituição preexistente, pois somente pode normar nos termos em que pela Constituição mesma já se encontra normado. (RDA 202, p. 76).

(...)

"4.4. Com este nosso modo de ver as coisas, não estamos negando que as emendas possam prejudicar (por modificação ou supressão) certos direitos subjetivos que não façam parte da relação dos expressamente nominados como "direitos e garantias individuais’. O que estamos a afirmar é que tais direitos, uma vez adquiridos, seja qual for a respectiva natureza (direito social, político, funcional etc.), não podem mais ser lesionados por efeito de reforma constitucional. A normatividade das emendas, no caso, já nasce etiquetada com o timbre do "doravante’, e mais com o timbre do "desde sempre". (RDA 202, p. 78).

(...)

6.4. Em síntese, a norma constitucional veiculadora da intocabilidade do direito adquirido é norma de bloqueio de toda função legislativa pós-Constituição. Impõe-se a qualquer dos atos estatais que se integram no "processo legislativo", sem exclusão das emendas.

7. Considerações finais

7.1. À guisa de remate, que não se estranhe o fato de a subsistência do direito adquirido implicar ultra-operatividade tópica de uma lei que se tornou incompatível com emenda constitucional, porque esse tipo de ultra-operatividade foi antecipadamente ressalvado pela Constituição originária, no estratégico inciso XXXVI do art. 5º. Mera conseqüência lógica do irrefutável juízo de que a Constituição originária tudo pode, inclusive para esse efeito de não permitir o desfazimento de um direito cuja lei de concessão venha a colidir com futura emenda constitucional.

7.2. Em rigor de interpretação, a lei cuja materialidade venha a ser abalroada por emenda constitucional já não prossegue como centro de imputação jurídica. Perde a eficácia. Mas o direito por ela outorgado sobrevive, incólume, desde que já inscrito no rol dos adquiridos. Com o que não se tem a "invenção" de uma nova cláusula pétrea, mas simplesmente a compreensão de que a cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais é suficientemente lata para incorporar a ultra-atividade de norma legal produtora de um direito subjetivo cujas condições de gozo já se encontrem factualmente preenchidas.

7.3. Tão dilatado é o raio de abrangência material da cláusula em apreço, que a Lei das Leis chegou a embutir no inventário dos direitos e garantias individuais outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (§ 2º do art. 5º). E é claro que nos mencionados princípios foi encartado o da segurança das relações jurídicas, a patentear a cientificidade daquele tipo "generoso" de interpretação a que se reportava SEABRA FAGUNDES. (RDA 202, p. 80).

Como visto, para os eminentes Juristas CARLOS AYRES BRITO e VALMIR PONTES FILHO (RDA 202, pp. 75-80), a norma introduzida por emenda constitucional há de respeitar o direito adquirido, tal qual a lei de hirarquia inferior, sob pena de cair no vácuo normativo.


A INCONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA (CONSTITUCIONAL?)
QUE DESRESPEITA O DIREITO ADQUIRIDO

Na mesma trilha, segue o Jurista LUIZ ROBERTO BARROSO, agora propósito da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de norma constitucional introduzida por emenda à Constituição, presenteando-nos com a seguinte exegese:

          "2. Emenda constitucional e Constituição em vigor

          "A Constituição é um documento que aspira à permanência, mas não a perenidade. Por tal razão, todas as Constituições modernas, desde a norte-americana, de 1787, prevêem a possibilidade de sua própria reforma e estabelecem as regras que vão reger a matéria. A reforma da Constituição, como se sabe, é obra do poder constituinte derivado, e, como tal, representa o exercício de um poder que é juridicamente limitado. É o próprio constituinte originário quem regula o processo de criação de novas normas constitucionais, bem como determina o conteúdo que possam ter.

"Quando a sucessão da ordem constitucional se dá com observância das regras vigentes, afirma-se que, apesar da alteração normativa, houve continuidade formal do direito constitucional, porque as novas normas se reconduzem, jurídica e politicamente, à ordem precedente. Ao revés, fala-se em descontinuidade formal quando uma nova ordem constitucional implica ruptura, revolucionária ou não, com a ordem constitucional anterior. Já o conceito de descontinuidade material identifica-se com a situação em que, além da ocorrência de uma ruptura formal (ou eventualmente sem ela), verifica-se também uma "destruição" do antigo poder constituinte por um novo poder constituinte, alicerçado num título de legitimidade substancialmente diferente do anterior.

"No Brasil houve, sem dúvida, descontinuidade formal e material na substituição da Carta Imperial de 1824 pela Constituição de 1891, fruto do golpe que proclamou a República; na edição da Constituição de 1934, que institucionalizou, tardiamente, o movimento revolucionário de 30, que rompera com o regime constitucional da República Velha; quando da outorga da Carta de 1937, que instaurou o Estado Novo sobre as ruínas do regime de 1934. Por outro lado, a elaboração da Constituição de 1946 foi precedida de convocação de Assembléia Constituinte, dentro dos quadros da legalidade anterior. Aí, talvez, não se possa falar em descontinuidade formal, embora certamente tenha havido descontinuidade material, pela mudança do título de exercício do poder constituinte: transferiu-se do poder ditatorial e unipessoal de Vargas para a soberania popular. Hipótese inversa ocorreu com o golpe de 1964: não houve descontinuidade formal, porque mantida a Constituição de 1946, mas houve mudança do título de exercício do poder, que passou a ser investido no movimento militar vitorioso".

............................................................

"A Carta de, 1967 não importou, quer em descontinuidade formal, quer em material, por isso que convocada pelo poder que se instalara em 1964, que tutelou o processo onde apenas nominalmente agiu o Congresso Nacional. Soberania popular nem pensar... A Carta de 1969 — formalmente emenda constitucional à Carta de 1967 —, curiosamente, importou em descontinuidade formal, por inobservância do processo de reforma previsto no texto de 1967, sem que tivesse havido, contudo, descontinuidade material, por isso que foi obra do poder militar, que, ainda quando ilegitimamente, já exercia o poder constituinte desde 1964.

"Por fim, a Constituição de 1988, sem qualquer dúvida, terá importado em descontinuidade material, haja vista que coroou um movimento popular reivindicatório pelo qual a soberania popular retomou para si o poder constituinte que lhe fora usurpado desde 1964. Poder-se-á cogitar da inexistência de descontinuidade formal, pelo fato de a Assembléia Constituinte que a elaborou haver sido convocada por emenda constitucional à Carta então vigente. Em nenhuma hipótese, contudo, será correto o argumento de que o texto em vigor não terá sido fruto de um poder constituinte originário, porque convocado pelos órgãos do poder constituído anterior. Mais do que em qualquer outro momento na história brasileira, a Constituição de 1988 é produto legítimo do exercício da soberania popular. com as virtudes e vícios que daí advêm, sobretudo quanto às imperfeições do sistema representativo.

"Feita a digressão doutrinária, é bem de ver que a generalidade das Constituições dita regras específicas acerca do procedimento a ser seguido para modificação de seu texto em via institucional. No Brasil, a Carta em vigor aponta as pessoas e órgãos que têm legitimidade para propor emenda constitucional prevendo, ainda, na tradição nacional de rigidez constitucional, as seguintes regras: a) discussão e votação em cada Casa do Congresso, em dois turnos; b) aprovação mediante voto de três quintos dos membros de cada Casa (art. 60, I, II, III e § 2º).

"Além dos requisitos formais acima identificados, o poder de emenda sofre limitações que lhe foram impostas pelo constituinte originário. Com efeito, no direito constitucional positivo brasileiro, há condicionantes de caráter circunstancial à reforma da Lei Fundamental, lançadas no § 1º do art. 60: "A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio".

"Existem, também, as chamadas limitações materiais ao poder de reforma constitucional, conhecidas como cláusulas pétreas, que vêm previstas no § 1º do art. 60 onde se veda a apreciação de emenda tendente a abolir: "I — a forma federativa de Estado; II — o voto direto, secreto, universal e periódico; III— a separação dos Poderes; IV — os direitos e garantias individuais".

"Ora bem: sobrevindo uma emenda constitucional, os dispositivos anteriores da Lei Fundamental que sejam com ela incompatíveis ficam revogados. É bem de ver, no entanto, que as emendas constitucionais devem reverência absoluta aos preceitos do Texto Constitucional acima noticiados. Se os violar, sujeitam-se ao controle de constitucionalidade e podem ter pronunciada sua invalidade. Há precedentes sobre o tema na prática constitucional brasileira. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal considerou inválido dispositivo da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, que excluía do princípio da anterioridade tributária (art. 150, III, b) o IPMF (Imposto sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira), e vedou sua cobrança no mesmo exercício em que instituído. Relembre-se que as emendas constitucionais deverão sempre respeitar os direitos adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada, que são direitos individuais igualmente preservados da ação do constituinte reformador.

"Ainda nessa temática, o Supremo Tribunal Federal, assim no regime constitucional anterior como no atual, tem entendido cabível mandado de segurança contra o simples processamento de emenda constitucional que viole alguma das cláusulas pétreas do art. 60, § 4º. De fato, em mais de um precedente, a Corte reconheceu, em sede de controle incidental, a possibilidade de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade de propostas de emenda à Constituição que veicularem matéria vedada ao poder reformador do Congresso Nacional .

"De todo modo, sendo a emenda constitucional formal e materialmente válida, tem vigência imediata e revoga as normas constitucionais precedentes que sejam com ela incompatíveis. Aqui, ao contrário do que normalmente se passa com o advento de uma nova Constituição, não há descontinuidade de qualquer natureza, seja formal ou material. Tampouco há que se falar em revogação de sistema. A revogação aqui operada é limitada ao dispositivo substituído e às eventuais implicações sistêmicas que disso resultem." (BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Editora Saraiva, 3ª edição, p. 62-67).

A propósito do mesmo tema, em monografia voltado especificamente ao servidor público e suas garantias, o Jurisconsulto CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO aponta, com propriedade, pelo menos três dispositivos inconstitucionais na Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, o chamado "Emendão", que introduziu a denominada "Reforma Administrativa".

Um deles é o art. 29, que fixa um teto para os vencimentos, remuneração, proventos de aposentadoria e pensões, subsídios, "não se admitindo a percepção de excesso a qualquer título", dispositivo este que o Professor CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO ensina que deve ser interpretado nos mesmos limites já estabelecidos pela redação originária do art. 17 do ADCT da Constituição de 1988.

Outro é o que alterou o art. 169, § 4º, com a redação da EC 19/98, que prevê a perda da estabilidade de servidor, para fins de redução de despesas com pessoal.

E outra violação, que não chegou a ser concretizada na Emenda nº 19 é aquela relativa à paridade entre os proventos, as pensões e os vencimentos da atividade.

Vejamos as lições de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, sobre a inconstitucionalidade de emendas constitucionais:

"Em termos jurídicos, o poder constituinte é ilimitado. Donde, o que for por ele decidido – não importa o quão chocante ou abstruso possa ser – do ponto de vista do direito positivo é insuscetível de questionamento, já que a normatização por ele instaurada tem, por definição, caráter inaugural em sentido absoluto. É a fonte de validade da ordem jurídica. É a origem do Direito. É seu termo de referência, pois não se encarta nem precisa se reportar a qualquer norma anterior que a sustenha ou autorize. Sustenta-se em si própria. Logo, nenhuma pretensão jurídica lhe poderia ser oposta, exatamente porque, para dizer-se jurídica, teria de estar referenciada direta ou indiretamente na própria Constituição. Assim, é óbvio que nada se lhe pode contender, no plano do direito positivo.

"Justamente disto lhe advém a diferença profunda, qualitativa, em relação às Emendas Constitucionais ou a qualquer produção normativa subseqüente.

"As Emendas Constitucionais apresentam em relação à Constituição um traço de similitude e um traço de dissemelhança.

"O traço de similitude é o de que suas disposições são hierarquicamente superiores às leis ou a qualquer produção normativa alocada em posição subseqüente na pirâmide jurídica, pois se parificam nisto, integralmente, às disposições constitucionais, tanto que, se nelas validamente integradas, comporão o corpo da Lei Magna, à moda de quaisquer outras ali residentes e no mesmo pé de igualdade com as demais.

"Já, seu traço de dessemelhança visceral – e que as faz qualitativamente distintas da produção constituinte, como se disse – reside em que, ao contrário do fruto do labor constituinte, elas não são originárias, não são inaugurais em sentido absoluto, não são a fonte primeira da juridicidade, não são o primeiro e incontendível termo de referência de toda a ordem jurídica. Com efeito, elas sofrem as limitações que lhes advêm da própria Constituição. Para serem válidas, estão referenciadas à própria Constituição que modificam e é nela que encontram a fonte de validade para promoverem as alterações que façam. Em suma: é porque a Constituição permite ser tocada, mexida, é que as Emendas Constitucionais podem ser validamente produzidas. Fora daí seriam inconstitucionais.

"69. Disto decorre ser infeliz a terminologia "poder constituinte originário" e "poder constituinte derivado’, por induzir a equívocos, provocando a suposição de que são poderes da mesma natureza, isto é, espécies de um mesmo gênero, o que, já se viu, não é verdade. Deveras, todo poder constituinte é, por definição, originário. Assim, não há poder constituinte derivado, pois o que se rotula por tal nome é o poder de produzir Emendas, com base em autorização constitucional e nos limites dela. Logo, coisa diversa, da força inaugural e incontrastável, características indissociáveis do poder constituinte.

"A mera circunstância de as Emendas, quando validamente editadas, adquirirem a mesma supremacia da Constituição, na qual se integram e dissolvem, não lhes confere a potencialidade incontrastável que é apanágio do poder constituinte, único gerador de normas que prescindem de qualquer apoio jurídico que não aquele que ele próprio — a si mesmo outorga.

"É certo que, a pretexto de efetuar Emendas Constitucionais, o legislador ordinário — o que não recebeu mandato constituinte e cuja posição é juridicamente subalterna — poderia, inclusive, em comportamento "de fato", não jurídico, derrocar a Constituição, por si mesmo ou tangido por algum caudilho, travestido ou não de democrata (ou este vier a fazê-lo por si próprio). Diante de evento de tal natureza, as medidas que fossem impostas perderiam o caráter de Emendas. Converter-se-iam, então, elas próprias, em novo exercício do Poder Constituinte, tal como ocorreria após revoluções ou golpes de Estado ou, ainda, nas hipóteses em que é efetuada a convocação de uma Constituinte que vem a produzir nova Lei Magna. É claro, entretanto, que nas situações deste jaez estaria rompida a ordem constitucional vigente e inaugurada outra.

"Assim, não há duvidar que, dentro dos quadros constitucionais, urna Emenda Constitucional não é senão o fruto de uma autorização constitucional e por isto mesmo, para ser válida, tem que se conter nos limites juridicamente ontológicos daquilo que é uma simples Emenda e não um poder constituinte propriamente dito.

"Resta, pois, indagar quais são estes limites. São de duas espécies: materiais e formais.

"70. Uma primeira ordem de limites é óbvia: a daqueles mesmos que a Constituição de modo expresso e estampado enuncia.

"No caso da Constituição de 1988, são limites materiais os que constam do art. 60, § 4º, no qual se estabelece que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I — a forma federativa de Estado; II — o voto direto, secreto, universal e periódico; III — a separação dos Poderes; IV — os direitos e garantias individuais".

"Note-se, de passagem — mas é importante fazê-lo —, que no item IV, o texto não se reporta a direitos e garantias individuais arrolados no art. 5º, mas, pura e simplesmente a "direitos e garantias individuais". (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 11ª edição, Malheiros Editores, 1999, pp. 211-213).

Vistas as lições doutrinárias específicas sobre as garantias do servidor público contra as investidas do poder reformador, através de emendas à Constituição, pode-se concluir que a garantia do direito adquirido vige contra o poder de emendar a Constituição.

Aliás, nem se admite sequer o processamento de emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias individuais, caso do direito adquirido.

Parlamentares têm se insurgido, por meio de mandado de segurança, perante o Supremo Tribunal Federal, para não se sujeitarem a votar emenda que consideram inconstitucional, e aquela mais alta Corte Constitucional tem afirmado rotineiramente a procedência desse entendimento, até porque qualquer servidor público, incluído como tal o Parlamentar, tem o poder-dever de defender a Constituição.


A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO ATINENTE
À INCONSTITUCIONALIDADE DE EMENDAS à CONSTITUIÇÃO

Realmente, quanto à possibilidade jurídica da declaração de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional, já decidiu o Supremo Tribunal Federal reiteradas vezes em sentido positivo, inclusive admitindo mandado de segurança contra o processamento de emenda inconstitucional, em hipótese em que vedada pela Constituição, conforme trecho a seguir transcrito do voto do Ministro Moreira Alves, proferido no Mandado de Segurança nº 20.257-DF, impetrado por dois Parlamentares, um deles, o atual Governador de Minas, Itamar Augusto Cautiero Franco, que se insurgia contra o dever de votar emenda inconstitucional (RTJ 99, p. 1.040):

"Diversa, porém, são as hipóteses como a presente, em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação (como é o caso previsto no parágrafo único do artigo 57) ou a sua deliberação (como na espécie). Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer — em face da gravidade dessas deliberações. se consumadas — que sequer se chegue A deliberação. proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformarem em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita. frontalmente, a constituição.

"E cabe ao Poder Judiciário — nos sistemas em que o controle da constitucionalidade lhe é outorgado — impedir que se desrespeite a Constituição. Na guarda da observância desta, está ele acima dos demais Poderes, não havendo, pois, que falar-se, a esse respeito, em independência de Poderes. Não fora assim e não poderia ele exercer a função que a própria Constituição, para a preservação dela, lhe outorga."

Segue-se, a propósito, também a transcrição de trecho do voto do Ministro Carlos Velloso, no Mandado de Segurança nº 21.648-DF (RTJ 165, p. 553-554), antes relembrando o precedente pioneiro:

"Sr. Presidente, o Supremo Tribunal Federal, numa decisão memorável, admitiu o controle de constitucionalidade do processo de. emenda constitucional por parte dos parlamentares, no contencioso em concreto, vale dizer, mediante o mandado de segurança. E que a Constituição estabelece que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir quaisquer das cláusulas pétreas inscritas na Constituição, art. 60, § 4º.

"O Supremo Tribunal Federal também já decidiu não ser admissível ação direta de inconstitucionalidade que tem por objeto projeto de emenda, dado que a ação direta deve ter por objeto um ato normativo. E. sabemos todos, projeto de emenda não é ato normativo. Daí a construção elaborada pelo Supremo Tribunal, estabelecendo a fiscalização jurisdicional do processo de emenda, mediante o mandado de segurança, pelo parlamentar. Quer dizer, o parlamentar tem o direito subjetivo — ou seria um interesse legítimo — de não votar aquilo que é inconstitucional. É inconstitucional, não custa relembrar, porque a limitação material imposta ao constituinte derivado ou de revisão está na deliberação: não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir quaisquer das cláusulas pétreas inscritas no art. 60, § 4º, da Lei Maior. O parlamentar, evidentemente, tem interesse legítimo, ou direito subjetivo, de não votar, de não deliberar a respeito de emenda inconstitucional, E tem o legítimo interesse de ver cumprida a Constituição num ato que tem a sua participação, ou seja, a votação de emenda."

No exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, o eminente Ministro CELSO DE MELLO, no Mandado de Segurança nº 21.642, impetrado por Cassiano Pereira Viana, ostenta o seguinte entendimento, em despacho proferido em 21.01.93 (in RDA, vol. 191, p. 201):

"Convém ressaltar, neste ponto, que mesmo as propostas de emenda à Constituição não estão excluídas, quanto à análise de seu conteúdo material e quanto ao exame dos pressupostos de sua formação, da possibilidade de controle pelo Poder Judiciário. O congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais explícitas, definidas no § 4º do art. 60 da constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Curso de Direito Constitucional", p. 26, item 15, 18ª ed. 190). A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar, desde logo, a judicial review,, que constituirá, nesse contexto, o instrumento de preservação e de restauração da vontade emanada do órgão exercente das funções constituintes primárias."

Idêntica lição, do Ministro CELSO DE MELLO, vem repetida no despacho proferido, como Relator, no Mandado de Segurança nº 21.747, impetrado pelo Partido Social Democrático, (in RDA, vol. 193, p. 267):

"Convém ressaltar, neste ponto, que mesmo as propostas de emenda à Constituição não estão excluídas, quanto à análise de seu conteúdo material e quanto ao exame dos pressupostos de sua formação, da possibilidade de controle pelo Poder Judiciário. O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art, 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar."

Verifica-se, portanto, que o próprio Supremo Tribunal Federal, quando provocado, pode impedir que o Congresso Nacional aprecie proposta de emenda tendente a abolir os direitos adquiridos.


          CONCLUSÃO

Seguindo as lições de CARLOS AYRES BRITO e VALMIR PONTES FILHO (RDA 202, pp. 75-80), não há fundamento jurídico na interpretação oficial, que nega o direito adquirido, ante as emendas constitucionais, pois ensinam que "há direito adquirido, sim, contra emendas constitucionais. O que não há é direito adquirido contra a Constituição, tal como originariamente posta".

          A assertiva ora transcrita foi feita a finalidade especial de combater a tese do Jurista PAULO MODESTO – , Assessor Especial do Ministro BRESSER PEREIRA, então Titular do Ministério da Reforma do Estado, e condutor do grupo de trabalho que elaborou as emendas de reforma administrativa e previdenciária, que defendia – que "o direito adquirido ... não é garantia dirigida ao poder constituinte, originário ou reformador. É garantia do cidadão frente ao legislador infraconstitucional, utilizável para impedir a eficácia derrogatória da lei nova em face de situações jurídicas constituídas no passado por leis ordinárias ou leis complementares" (em "Reforma Administrativa e Direito Adquirido ao Regime da Função Pública", apud CARLOS AYRES BRITO e VALMIR PONTES FILHO, RDA 202, p. 76-77).

          Ocorre que não é "inteiramente acertado esse modo de pensar a Constituição de 1988", conforme ensinam CARLOS AYRES BRITO e VALMIR PONTES FILHO, pois "as emendas têm força impositiva superior à da lei – certo é dizê-lo –, mas nem por isso estão liberadas da vedação constitucional da imposição de prejuízo ao direito já adquirido, assegurado no art. 5º, XXXVI, da Lei Maior".

Na espécie, o direito de não gozar a licença-prêmio, para fins de contá-la em dobro para fins de aposentadoria, assegurado na legislação ordinária precedente à Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, não há dúvida, entra na categoria do direito subjetivo (direito adquirido) que é "um direito que existe em favor de alguém e que pode ser exercido por esse alguém. É, pois, um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente", conforme foi visto da lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA, amparada pela unanimidade dos Juristas de boa fé.

Se o direito a gozar ou contar em dobro o período de licença-prêmio existia e tinha validade e eficácia antes da edição da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, esta não tem autoridade para suprimi-lo, porque entre os seus limites de eficácia, relativamente ao ordenamento jurídico precedente, incluem-se os direitos e garantias individuais, conforme previsão do art. 5º, XXXVI, do rol dos "direitos e garantias fundamentais" inscritos no Título II da Lei Magna, no sentido de que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

O direito adquirido vem referido como garantia geral igualmente na Lei de Introdução ao Código Civil (art. 6º, § 2º) que dispõe que "a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (...) § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem."

No caso, não há que se discutir que se tratava de um direito adquirido, isto é, um direito subjetivo integrado no patrimônio jurídico individual do servidor, aquele de gozar ou contar em dobro para aposentadoria, por isso que, seguindo a doutrina de JOSÉ AFONSO DA SILVA, acompanhado pela unanimidade dos juristas de boa fé, "se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando lhe conviesse. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato de o titular não o ter exercido antes. (...) O direito subjetivo vira direito adquirido quando lei nova vem alterar as bases normativas sob as quais foi constituído". (...) A lei nova não se aplica a situação subjetiva constituída sob o império da lei anterior."

Sendo assim, e cremos que é, ainda que o servidor público não tenha completado o tempo de serviço necessário para aposentar-se antes da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, o que é outra categoria de direito, tem, inquestionavelmente, direito adquirido (direito subjetivo) a contar em dobro, em conformidade com as leis anteriores, o tempo de serviço correspondente à licença-prêmio não gozada, porque este direito não pode ser desrespeitado por força de mera interpretação – de conveniência – de emenda constitucional posterior.

Este direito ao gozo ou ao cômputo em dobro constitui direito potestativo do servidor, que era, como é, irrecusável, pois independia, como ainda independe, para ser exercido, de qualquer condição ou do arbítrio de quem quer que seja, a partir do momento em que completado o decênio ou o qüinqüênio de serviço público, nas condições estipuladas pelo ordenamento jurídico vigente antes da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998.

E isto é verdade ainda mais porque a emenda constitucional, conforme reiteradamente afirmado pela doutrina mais autorizada e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não pode desrespeitar os direitos adquiridos, sendo, aliás, vedado até seu processamento nesta hipótese.

Isto porque, seguindo as lições de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, "há limitações materiais ao poder de reforma constitucional, conhecidas como cláusulas pétreas, previstas no § 1º do art. 60 da Lei Maior, onde se proíbe a apreciação de emenda tendente a abolir: "I — a forma federativa de Estado; II — o voto direto, secreto, universal e periódico; III— a separação dos Poderes; IV — os direitos e garantias individuais".

Dessa forma, qualquer interpretação outra, em prejuízo do direito subjetivo do servidor, é contrária ao sistema e torna inconstitucional a Emenda em apreço.

Conclui-se ainda no sentido de que não há confundir o direito à aposentadoria, cujo tempo de serviço não haja sido completado antes da Emenda Constitucional nº 20, com o direito adquirido antes, a contar em dobro, o tempo de licença-prêmio não usufruído pelo servidor, pois este é independente do novo tempo e das novas regras exigidas para aposentar-se.

O ordenamento jurídico de um país é naturalmente composto de normas jurídicas compatíveis entre si, todas interagindo e formando um conjunto harmônico, não podendo se aceitar que dois dispositivos constitucionais estejam em insuperável contradição entre si.

Ora, ao se pretender instituir efeito pretérito ao § 10 do artigo 40, introduzido pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998, necessariamente está se colocando o dispositivo citado em contradição com o art. 3º que, inequivocamente, garante aos servidores o gozo daqueles direitos adquiridos antes da publicação da Emenda Constitucional em questão.

Não se discute aqui o direito adquirido face à Constituição, pois, no presente caso, a própria norma constitucional introduzida pela emenda constitucional protegeu o instituto e determinou que as inovações norteariam somente as situações futuras. Basta ler de boa fé o dispositivo constitucional, para se perceber isto.

Inequívoca, portanto, a conclusão de que as regras contidas no § 10 do art. 40 e no art. 4º impostas pela EC 20, valem somente para o futuro, devendo serem respeitadas as vantagens conquistadas referentes à contagem do tempo fictício existente na data da publicação da Emenda Constitucional nº 20, em comento.

Concluindo, temos por demonstrado que deve ser contado em dobro o tempo de licença-prêmio não gozado, ainda que o servidor não tenha adquirido o direito à aposentadoria, isto é, não tenha completado o tempo de serviço suficiente para este fim, incluído aquele tempo de serviço, até 16 de dezembro de 1998, data da publicação da Emenda Constitucional nº 20, no Diário Oficial da União.

Por todo o exposto, havendo direito líquido e certo à contagem em dobro do tempo de serviço de licença-prêmio não gozado, antes da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, nosso entendimento é afirmativo no sentido de concessão de mandado de segurança, a fim de cessar a ilegalidade, a inconstitucionalidade, o erro de interpretação e, enfim, o abuso de direito.


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SANTOS, Brasilino Pereira dos. Direito adquirido à contagem em dobro da licença-prêmio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/377. Acesso em: 26 abr. 2024.