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Princípio da igualdade, ações afirmativas e ADPF 186

Princípio da igualdade, ações afirmativas e ADPF 186

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A ADPF 186, ajuízada pelo DEM, trouxe ao Supremo Tribunal Federal a discussão sobre as ações afirmativas, em especial as cotas raciais para ingresso em universidade, ponderadas a partir do princípio da igualdade.

1 INTRODUÇÃO

Recentemente uma polêmica questão foi objeto de julgamento no Supremo Tribunal Federal, qual seja a constitucionalidade ou não das cotas raciais adotadas pela Universidade de Brasília (UnB). Tal discussão possui opiniões divergentes.

As cotas, que são espécies de ações afirmativas, são questionadas face ao princípio da igualdade e com este possui um liame, o que se faz necessário alguns esclarecimentos sobre o tema. Tal elucidação foi o que se pretendeu com este trabalho.

Além deste questionamento existente entre a igualdade e as ações afirmativas, o princípio isonômico possui um grande valor na ordem jurídica, por estes motivos sobre ele faz-se preciso um estudo mais aprofundado e isto é o que está exposto na primeira parte do trabalho.

Ademais, as ações afirmativas não se resumem às cotas. Medidas deste cunho são muito mais complexas e possuem mais fundamentos do que o senso comum simplesmente, enxerga. Seu conceito, justificação e princípios, dentre outras, são questões abordadas no capítulo respectivo.

Por fim, foi feito um resumo do julgamento da ADPF 186. Neste ponto estão destacados, em meio a manifestações de outras entidades, os principais fundamentos da petição inicial da arguição, bem como os entendimentos à favor das cotas adotadas pela UnB dos que atuaram como amigos da corte e os votos dos ministros do STF.


2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Espinha dorsal de uma sociedade democrática, o princípio da igualdade[1] é instituto que advém do cotidiano humano e, tendo em vista que as sociedades estão em sucessivos processos de transformação, reflete os valores dos grupos sociais nos transcorrer de suas existências.

Diante dessa mutabilidade, o que se entende como igualdade jurídica em determinado país pode não ser da mesma forma entendida em outro país e ainda, a isonomia de tempos passados pode não equivaler ao que se entende por igualdade hodiernamente e tampouco servir como parâmetros efetivos para calcar previsões do que será ela em tempos vindouros. (MACIEL, 2010)

O princípio da isonomia reveste-se de grande importância social e jurídica, pois o Direito vale-se de critérios isonômicos para atingir a justiça, definindo equilíbrio e, até mesmo, desequilíbrio, uma vez que existem desigualdades de diversas ordens que privam muitos de ter suas necessidades básicas supridas.

2.1 Evolução da concepção do princípio da igualdade

A igualdade, como ideologia, foi discutida desde sempre em todas as épocas e regiões, que deixaram suas influências na criação do princípio.     

Pode-se dividir a isonomia em três etapas: 1ª) A regra era a desigualdade; 2ª) Igualdade perante a lei, portanto todos devem ser tratados indistintamente; 3ª) A lei deve ser aplicada respeitando-se as desigualdades.

Primeiramente, a sociedade criou-se sob influência de desigualdades artificiais, especialmente fundadas nas distinções entre pobres e ricos, sendo expressas a diferença e a discriminação. Prevaleciam os privilégios e as desigualdades eram sedimentadas, as relações de igualdade eram escassas e as leis não as destacavam nem resolviam as diferenças.

Pode-se dizer que a sociedade:

Adotava a desigualdade fundamentando este sistema nas leis, que a legalizava, e deste modo propiciava a quem mais detivesse poder e riqueza mais privilégios e, ao contrário, aos indivíduos de classes inferiores restavam os resultados caóticos do desequilíbrio. (MACIEL, 2010)

Não obstante o pensamento de Aristóteles ("a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais"), as regalias dos poderosos eram normalmente aceitas e a escravidão não era contestada (o silêncio era imposto aos escravizados). Era legitima a diferenciação entre pobres e ricos, sem a preocupação de igualar os desiguais, portanto, não houve nos povos antigos a deflagração do processo de igualdade. Excepcionalmente, pode-se citar a Lei das XII Tábuas[2], o Edito Perpétuo[3] e o Edito de Caracalla ou Constitutio Antoniniana[4].

No período da Idade Média a desigualdade atingiu seu ápice, uma vez que a sociedade, cada vez mais, explanava desigualdade, inclusive com a filosofia da época a legitimando.

Os grupos sociais, neste intervalo histórico, eram erigidos pelos suseranos[5] e vassalos[6]. Vicentino, citado por Maciel (2010), expôs que:

A sociedade feudal era composta por dois estamentos, ou seja, dois grupos sociais com status fixo: os senhores feudais e os servos. Os servos eram constituídos pela maior parte da população camponesa, vivendo como os antigos colonos romanos – presos à terra e sofrendo intensa exploração. Eram obrigados a prestar serviços ao senhor e a pagar-lhe diversos tributos em troca de permissão de uso da terra e proteção militar.

Num segundo momento histórico, houve progresso da igualdade e transformações sociais desencadearam a origem do Estado moderno. Com o surgimento da moeda, e do comércio, o sistema feudal entrou em declínio, e, no mesmo compasso, apareceram as cidades. A burguesia surgiu como nova classe social. Logo sobreveio a Revolução Industrial e os burgueses, culturalmente enriquecidos, ainda que de modo conveniente à classe, reivindicaram tratamento igualitário à todos.

Não se cogita, entretanto, de uma igualação genericamente assentada, mas da ruptura de uma situação em que prerrogativas pessoais decorrentes de artifícios sociais impõem formas despóticas e acintosamente injustas de desigualação. Estabelece-se, então, um Direito que se afirma fundado no reconhecimento da igualdade dos homens, igualdade em sua dignidade, em sua condição essencial de ser humano. Positiva-se o princípio da igualdade. A lei, diz-se então, será aplicada igualmente a quem sobre ela se encontre submetido. Preceitua-se o princípio da igualdade perante a lei. (ROCHA apud MACIEL, 2010)

Porém, desse modo, o princípio liberal da igualdade, não conseguiu, e nem pretendeu, acabar com a desigualdade, apenas não a contemplava. Firmou-se, assim, uma igualdade formal, que se limita a desconhecer as igualdades reais.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, na França, no seu primeiro artigo estabeleceu o princípio de que os homens nascem e permanecem iguais em direito. Tal tornou-se a base do Estado moderno influenciando todas as constituições posteriores.

Ocorre, entretanto, que este engatinhar do princípio da igualdade que levou a erigi-lo como norma constitucional, não foi o suficiente para garantir que as necessárias mutações que se sucedem na evolução da história dos povos fosse exteriorizada de modo igualitário, uma vez que o Estado liberal se pôs alheio a intervenções e designou aos operadores do direito a tarefa de tentativa de efetivação da isonomia. Não obstante, ainda que de forma lenta e gradativa, tendo por base a realidade de cada grupo social, em cada época, o princípio da isonomia começa a ter desdobramentos cada vez mais significativos e concretos. (MACIEL, 2010)

Constata-se, desde meados do século passado, que a legitimação da igualdade, inclusive na seara trabalhista, era preocupação dos povos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de1948, objetivando promover grandes transformações sociais, trouxe preceitos sobre a igualdade, a saber:

Artigo  VII: Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo XXII: Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo XXIII: 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego; 2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho; 3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social; 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses.

Explorando as constituições brasileiras pode-se perceber que, desde sua gênese, o princípio da isonomia está presente. Porém:

houve momentos em que a igualdade não ocorreu nem tampouco em sua acepção formal, porquanto na Carta de 1824 o princípio coexistia com a legitimação da escravatura. Há que se apontar também que nesta Carta, envolvida pela tendência mundial da época, a distinção era fundamentada nos méritos individuais. (MACIEL, 2010)

Com a Constituição de 1.891 (fim da monarquia e início da república) foram extintos ou vedados todos os privilégios de classes tidas como superiores, exaltando o princípio da igualdade. Entretanto, com o decurso do tempo percebeu-se que o autoritarismo, privilégios e títulos, ainda que não escritos, foram mantidos por imposição destas “classes superiores”.

A igualdade perante a lei foi mantida pela Constituição de 1.934, mas com um novo elemento: “Art. 113, 1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas”. Desse modo, assumiu a existência de questões tradicionalmente desencadeadoras de desigualdades e formalmente as repreendeu.

Todavia, com a Constituição de 1937, o elemento supracitado, que era inovação, foi excluído. Nesta ocasião, destaca-se a Consolidação das Leis do Trabalho, que proibiu a diferenciação nos rendimentos com base no sexo, nacionalidade ou idade.

Enaltecendo o princípio da igualdade, a Constituição de 1.946 proibiu a propaganda de preconceitos de raça ou classe:

Art. 141, § 5º - É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe.

Pertinente relatar que, durante a vigência da Constituição de 1.964, o Brasil tornou-se signatário da Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que definiu discriminação como “toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão” (Art. 1º, 1, “a”).

No que alude à Carta Política de 1967, há que se mencionar que se deu a constitucionalização da punição do preconceito de raça. Um ano após, o Brasil ratifica a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Racismo, ao dispor que "não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais", admitindo a necessidade e a validade de ações para o progresso de determinados grupos. (MACIEL, 2010)

A Emenda Constitucional nº 1[7], de 17 de outubro de 1969, não alterou o conteúdo do princípio da igualdade neste ínterim.

Finalmente, em relação à igualdade, a Constituição Federal de 1.988 inovou desde seu preâmbulo. Elegeu a igualdade como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, o qual o Estado Democrático ora instituído destina-se a assegurar. No mesmo sentido, escolheu como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3º, IV). Há que se destacar o artigo 5º, que assegura a igualdade perante a lei e estabelece a inviolabilidade do direito à igualdade.

A igualdade não se restringe aos dispositivos supramencionados, atravessa toda a Constituição, quer igualando ou desigualando para se garantir a igualdade de oportunidades a todos.

Diante da história mundial é possível verificar que os Estados se limitavam à simplesmente estabelecer a igualdade, sem, contudo, tentar corrigir as diferenças, o que não ensejou a igualdade entre os cidadãos. Com o decorrer do tempo compreendeu-se que não satisfazia a descrição formal pela Constituição de que todos são iguais perante a lei – proibido os tratamentos diferenciados, observou-se a necessidade de a Constituição obrigar o Estado a discriminar (positivamente) as pessoas de tal forma que implicasse na promoção de uma igualdade eficaz. É o que mostra a atual concepção do conteúdo jurídico do princípio da igualdade a seguir exposta.

2.2 Conteúdo jurídico do princípio da igualdade

A constituição brasileira estabelece, no caput do seu artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Por unanimidade entende-se que este princípio não restringe-se a nivelar os cidadãos perante a lei, mas que esta não pode ser editada sem observância da isonomia, sendo norma voltada para o legislador e destinada, também, ao aplicador da lei, em outras palavras, o princípio da igualdade deve ser observado pelas três funções do Estado: é aplicado na atuação do Executivo, do Legislativo e do Judiciário (as partes devem ser tratadas igualitariamente no desenrolar do processo judicial).

O princípio da igualdade é o primeiro e mais fundamental limite aos critérios da política legislativa por mais discricionários que possam parecer.

A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes. (MELLO, 2008, p. 10)

Hans Kelsen introduziu uma problemática: a igualdade perante a lei não possuiria significação peculiar alguma. Com isso, demonstrou que o sentido relevante do princípio da igualdade está na obrigação da igualdade na lei:

Colocar (o problema) da igualdade perante a lei, é colocar simplesmente que os órgãos de aplicação do direito não têm o direito de tomar em consideração senão as distinções feitas nas próprias leis a aplicar, o que se reduz a afirmar simplesmente o princípio da regularidade da aplicação do direito em geral; princípio que é imanente a toda ordem jurídica e o princípio da legalidade da aplicação das leis, que é imanente a todas as leis – em outros termos, o princípio de que as normas devem ser aplicadas conforme as normas. (KELSEN apud Mello, 2008, p. 10)

Em suma, não há dúvida que para todos os destinatários da lei deve ser dispensado tratamento equivalente, seja na edição da norma legal posta ou na aplicação. Porém, ao falar em igualdade perante a lei não estará se referindo, ou pelo menos não no seu total conteúdo, ao princípio da igualdade, mas ao princípio da regularidade da aplicação do direito ou ao princípio da legalidade da aplicação das leis. Esta concepção corresponde à faceta formal do princípio igualitário, porém é necessário uma igualdade substancial, no conteúdo, e não simplesmente formal, é preciso igualdade na lei.

Nesse sentido, Kelsen faz as considerações:

A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres. (KELSEN apud MELLO, 2008, p. 11)

Kelsen, com razão, aponta que impor exatamente as mesmas obrigações ou conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos seria absurdo e inconcebível. Tavares ratifica este entendimento citando o exemplo das crianças em relação aos adultos, “cada qual tem uma situação própria, peculiar, a demandar cuidados específicos, que o Direito resguarda e tutela na medida de suas necessidades” (TAVARES, 2007, p. 526).

Para Aristóteles a igualdade consiste no tratamento igual para os iguais e tratamento desigual para os desiguais. Sem contestar a procedência e importância da afirmação, esta máxima não é suficiente para estabelecer quem são os iguais, quem são os desiguais e como deverá o tratamento diferenciado para não cair em injustiça, deve, portanto, ser entendida como ponto de partida[8]. Para concretizar este princípio são necessários critérios objetivos e precisos, capazes de legitimamente destacar quem são os iguais e quem são os desiguais, é mister “saber quais são os elementos ou situações de igualdade ou desigualdade que autorizam, ou não, o tratamento igual ou desigual” (TAVARES, 2007, p. 526).

Estas dúvidas devem ser sanadas para que a máxima aristotélica tenha uma efetiva utilidade prática. Mello (2008, p. 11) questiona: “o que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais?”; “qual o critério legitimamente manipulável – sem agravos à isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos?”; “Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?”.

Só respondendo a estas indagações poder-se-á lograr adensamento do preceito, de sorte a emprestar-lhe cunho operativo seguro, capaz de converter sua teórica proclamação em guia de uma praxis efetiva, reclamada pelo próprio ditame constitucional. (MELLO, 2008, p. 11)

Há entre as pessoas diferenças evidentes, facilmente perceptíveis, mas que nem sempre poderão ser escolhidas, validamente, como critérios distintivos justificadores de tratamentos jurídicos dispares.  O que tornará legítimo o critério diferenciador é o motivo pelo qual as situações ou pessoas devem ser tratadas desigualmente.

Para exemplificar, Mello valeu-se da seguinte situação: a altura de um homem não pode ser critério para a proibição de celebrar contrato de compra e venda, contudo pode ser para estabelecer quais soldados farão parte de ”guardas de honra” nas cerimônias militares oficiais. “Dês que se atine com a razão pela qual em um caso o discrímen é ilegítimo e em outro legítimo, ter-se-ão franqueadas as portas que interditam a compreensão clara do conteúdo da isonomia” (MELLO, 2008, p. 12).

Para Humberto Ávila:

A igualdade pode funcionar como regra, prevendo a proibição de tratamento discriminatórios; como princípio, instituindo um estado igualitário como fim a ser promovido; e como postulado, estruturando a aplicação do Direito em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim). (ÁVILA, 2010, p. 152)[9].

Estabelecer quando é vedado e quando é permitido à lei estabelecer discriminações é um ponto crucial para estabelecer o conteúdo real do princípio da isonomia.

Vale dizer que a aplicação da igualdade depende de um critério diferenciador e de um fim a ser alcançado. Dessa constatação surge uma conclusão, tão importante quanto menosprezada: fins diversos levam à utilização de critérios distintos, pela singela razão de que alguns critérios são adequados à realização de determinados fins; outros, não. Mais do que isso: fins diversos conduzem a medidas diferentes de controle. Há fins e fins no Direito. Como postulado, sua violação reconduz a uma violação de alguma norma jurídica. Os sujeitos devem ser considerados iguais em liberdade, propriedade, dignidade. A violação da igualdade implica a violação a algum princípio fundamental. (ÁVILA, 2010, p. 153)

2.2.1 Sexo, raça, credo religioso como fatores de discriminação

Erroneamente se supõe que a quebra da isonomia verifica-se no critério ou fator diferencial escolhido para diferenciar o tratamento. Na realidade, não é possível a escolha aleatória de algum fator objetivo, mas qualquer elemento pode ser critério diferenciador, a saber:

as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição. (MELLO, 2008, p. 17)

Neste trecho podemos observar dois importantes requisitos para a escolha de um critério diferenciador: a pertinência lógica entre o critério diferenciador e o tratamento diferenciado; e a compatibilidade com os interesses prestigiados na Constituição Federal.

Portanto, devem ser interpretados com cautela os dispositivos constitucionais que proíbem a desequiparação levando em conta certos motivos, como raça, sexo, cor, idade (no exemplo: artigo 3º, IV, da CF/88 – “e quaisquer outras formas de discriminação”). O que é constitucionalmente vedado pelo princípio da igualdade é a discriminação preconceituosa, gratuita, arbitrária, em contrariedade com os interesses da sociedade e sem o vínculo de correlação lógica entre o traço diferenciador e o tratamento diferenciado dispensado.

Para exemplificar, suponha-se que certa raça é imune a um tipo de epidemia que atinge brutalmente determinada região; é racionalmente justificável que eventual seleção para contratação temporária de enfermeiros admita somente pessoas da raça imune à doença; sem, portanto, qualquer ofensa ao princípio da igualdade prestigiado pela CF. Outro singelo exemplo, em nada ofende o princípio igualitário a admissão apenas de mulheres em concursos para preenchimento de cargos de “polícia feminina”.

“A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania” (BUENO apud MELLO, 2008, p. 18).

Kelsen – conquanto mestre insuperável – neste passo, ao parecer, errou completamente, pois também supôs que a ofensa à isonomia reside em se estabelecerem legalmente diferenciações embasadas em traços que não podem servir de calço para o estabelecimento de discrímen. Nisto, aliás, aderiu ao equívoco doutrinário corrente. É o que se depreende do seguinte relanço: “Se se raciocina sobre a igualdade na lei, isto significará que as leis não podem – sob pena de anulação por inconstitucionalidade – fundar uma diferença de tratamento sobre certas distinções muito determinadas, tais como as que respeitam à raça, à religião, à classe social ou à fortuna”. E, imediatamente em continuação, aclara seu real pensamento, indo além das assertivas habituais sobre o tema: “Se a Constituição contém uma fórmula que proclama a igualdade dos indivíduos, mas não precisa que espécies de distinções não devem ser feitas entre estes indivíduos nas leis, tal igualdade constitucionalmente garantida, não mais poderá significar outra coisa que a igualdade perante a lei” (MELLO, 2008, p.15-16)

A atual Constituição Federal brasileira na literalidade do seu artigo 3º, inciso IV, repele da constitucionalidade qualquer forma de discriminação. Mas o que pretendeu o constituinte com isto é estabelecer que a origem, raça, sexo, cor e idade (exemplos próprios do referido dispositivo constitucional; inclui-se “quaisquer outras formas de discriminação”) por si sós e independentemente de outras circunstâncias não podem ser escolhidos como critérios de desigualação. A Constituição elencou expressamente tais critérios (origem, raça, sexo, cor e idade), pois estes se relacionam com fatos discriminatórios que ocorreram no passado. Atentando contra os direitos fundamentais, eram utilizados indiscriminadamente e arbitrariamente como forma de distinção, na maioria das vezes, para punir. “Foram situações de injustiça, que marcaram profundamente o espírito dos Homens, e que, por isso, o constituinte brasileiro pretendeu pôr a salvo os indivíduos para o futuro” (TAVARES, 2007, p. 527).

2.2.2 Como identificar o desrespeito à isonomia

De forma a reforçar que o princípio da igualdade se destina a proibir a arbitrariedade na diferenciação, fala-se em uma fórmula lógico-jurídica do respeito à igualdade. Para verificar se a diferenciação quebra o princípio da isonomia devem ser verificadas três questões:

a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;

b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;

c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados. (MELLO, 2008, p. 21)

Ou seja, é preciso verificar se o critério adotado como discriminatório é um possível; assim, indaga-se se há uma correta correlação lógica, uma correta justificativa racional, entre este e o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade; e, finalmente, cumpre analisar se esta diferenciação abstrata possui, de fato, harmonia com os valores prestigiados pela Constituição Federal.

O defeito em qualquer desses requisitos é capaz de gerar hostilidade ao preceito isonômico. “Não basta, pois, reconhecer-se que uma regra de direito é ajustada ao princípio da igualdade no que pertine ao primeiro aspecto. Cumpre que o seja, também, com relação ao segundo e ao terceiro” (MELLO, 2008, p. 22). Em outras palavras, é preciso que os aspectos sejam observados cumulativamente, e a desatenção a um deles já é capaz de tornar a diferenciação inobjetável em face do princípio isonômico.

Quanto ao fator de discriminação, como já mencionado, é preciso verificar se o critério escolhido é um possível. Para isso, existem dois requisitos, quais sejam:

a) a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão específico que singularize no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a ser colhido pelo regime peculiar;

b) o traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que não exista nelas mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes diferentes. (MELLO, 2008, p. 24)

O primeiro requisito diz respeito ao objetivo do princípio da igualdade, que é proporcionar garantias individuais e evitar favoritismos. A lei que singularize o destinatário, por impor gravame ou conceder benefícios a um só indivíduo, sem sujeitar ou beneficiar os demais, estará em desacordo com o princípio da igualdade.

Então, se a norma é enunciada em termos que prefiguram situação atual única, logicamente insuscetível de se reproduzir ou materialmente inviável (pelo que singulariza agora e para sempre o destinatário), denuncia-se sua função individualizadora, incorrendo, pois, no vício indigitado. (MELLO, 2008, p. 24)

A inviabilidade de reprodução da hipótese mencionada por Mello pode ser de ordem lógica ou de ordem material.

“Haverá inviabilidade lógica se a norma singularizadora figurar situação atual irreproduzível por força da própria abrangência racional do enunciado” (MELLO, 2008, p. 25). Por exemplo, a lei concede determinado benefício a quem praticou um ato em ano passado, sendo certo e conhecido que somente uma pessoa tenha o praticado.

Haverá inviabilidade apenas material, quando, sem empeço lógico à reprodução da hipótese, haja todavia, no enunciado da lei, descrição de situação cujo particularismo revela uma tão extrema, da improbabilidade de recorrência que valha como denúncia do propósito, fraudulento, de singularização atual absoluta do destinatário. (MELLO, 2008, p. 25)

A exemplificar: uma lei que concede benefícios ao Presidente da República que possua determinadas características específicas (idade, data de nascimento, título universitário, trajetória política), com isso demonstrar-se-ia uma finalidade de singularizar absolutamente o destinatário; viciosa, portanto.

Vale deixar expresso que ainda que a regra, na época de sua edição, possua, na prática, apenas um destinatário, não quer dizer que há a quebra do preceito igualitário. O que deve ser investigado é se a regra deixa possibilidades abertas para sua eventual e futura incidência, ou se, ostensiva ou sub-repticiamente, possui apenas um destinatário; neste último caso haveria quebra ao princípio isonômico. Nesse sentido, primeiramente, “tem-se que a nota diferenciadora não pode ir ao ponto de individualizar um sujeito no presente” (TAVARES, 2007, p. 528), podendo esta individualização dar-se de forma aberta ou velada, sendo sempre repudiada pelo Direito. Quer dizer que à época da edição da diferenciação as situações ou pessoas por ela atingidas devem ser completamente indeterminadas. Com isso, futuramente pode uma única situação ou pessoa ser determinada e atingida sem que haja quebra do princípio, desde que a diferenciação não seja feita especificamente para a atingida. Tavares exemplifica: “será condecorado com as honrarias da República aquele que descobrir a cura da aids".

Em suma: sem agravos à isonomia a lei pode atingir uma categoria de pessoas ou então voltar-se para um só indivíduo, se, em tal caso, visar a um sujeito indeterminado ou indeterminável no presente. Sirva como exemplo desta hipótese o dispositivo que preceituar: “Será concedido o benefício tal ao primeiro que inventar um motor cujo combustível seja a água”. (MELLO, 2008, p. 25)

O segundo requisito (o traço diferencial, necessariamente, deve residir na pessoa, coisa ou situação discriminada) quer dizer que não é possível diferenciar as pessoas, coisas ou situações valendo-se de fator alheio a elas, que não seja extraído delas mesmas. Em outras palavras, é inidôneo para distinguir um fator neutro ao que se pretende distinguir.

É simplesmente ilógico, irracional, buscar em um elemento estranho a uma dada situação, alheio a ela, o fator de sua peculiarização. Se os fatores externos à sua fisionomia são diversos (quais os vários instantes temporais) então, percebe-se, a todas as luzes, que eles é que se distinguem e não as situações propriamente ditas. Ora, o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta. (MELLO, 2008, p. 35)

“O traço diferencial há de encontrar-se na própria pessoa, coisa ou situação discriminada. Não se admite a eleição de um fator externo a quem sofrerá a distinção” (TAVARES, 2007, p. 529). Significa dizer que não é possível discriminar pessoas ou coisas por fator a elas alheio. Fator externo ao que se pretende discriminar a todos é igual. Com exemplo de fator alheio sendo o tempo, tem-se que não é este em si o que gera a diferenciação, mas o que nele ocorreu. A regra que confere estabilidade aos servidores públicos reporta-se ao tempo, mas “na realidade, não é o tempo, em si, mas sim o que nele ocorreu, que justifica a diferenciação. Afinal, o tempo passou para todos de igual forma, mas nem todos serão beneficiados” (TAVARES, 2007, p. 529). O tratamento diferenciado só se justifica em razão de fatos diversos. No caso do tempo, este não é um fato; fato é o que está nele contido.

Valer-se de fatores externos a quem sofrerá a distinção é o mesmo que não diferenciar. Dessa forma, o critério poderá se revestir de inconstitucionalidade, por tratar igualmente situações diferentes.

Outra questão relevante para determinar a invalidade ou a validade de uma regra perante a isonomia é o vínculo de conexão lógica entre os elementos diferenciais escolhidos e a disciplina diferenciada estabelecida em vista deles.

Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada. (MELLO, 2008, p. 38)

Em outras palavras, deve haver uma relação direta entre a desigualdade e a diferença observada, de modo que não é permitido o tratamento diferenciado em função de qualquer diferença que se observe. Caso contrário, todos os tratamentos diferenciados estariam legitimados, já que todos os seres humanos são diferentes.

Com efeito, diante da congruência entre a distinção de regimes estabelecida e a desigualdade de situações correspondentes, há espontâneo e até mesmo inconsciente reconhecimento de validade de uma norma diferenciadora. Em contrapartida, quando não há pertinência entre o fator e o tratamento diferenciado, ocorre imediata e intuitiva rejeição à juridicidade da norma.

Para exemplo, suponha-se que uma norma conceda aos funcionários gordos afastamento remunerado para assistir congressos religiosos e não conceda aos magros. Não faz sentido algum esta concessão somente a uns e exclusão de outros, ou seja, entre uma coisa e outra não há nexo plausível. Entretanto, é tolerável, e não é agride a igualdade, uma norma que estabeleça a tipologia física como critério quando estiver presente a conexão lógica ora tratada; por exemplo, não podem exercer, no serviço militar, funções que reclamem presença imponente os que excederem certo peso em relação à altura.

É possível concluir, portanto, que qualquer elemento radicado na pessoa, coisa ou situação pode ser escolhido, pela lei, para ser o fator de discriminação, porém, inarredavelmente, deve guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta[10]. O princípio da igualdade estabelece que:

A discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia. (MELLO, 2008, p. 29)

Em síntese, não é permitido à lei estabelecer tratamento específico, seja vantajoso ou desvantajoso, à luz de traços e circunstâncias diferenciadoras se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e a disciplina dispensada aos que se inserem na categoria diferenciada. Exige-se que essa desequiparação “faça sentido”, isto é, deve haver entre o fator discriminatório e a disciplina desigual estabelecida uma relação de pertinência. É de tamanha importância esta relação, que de acordo com sua pertinência o mesmo fator pode estar envolvido em uma situação de injustiça (com quebra da isonomia) e em outra situação de justiça (prestigiando a isonomia). Como já dito, o que é vedado é a discriminação gratuita, arbitrária, sem nexo de relação com a nota distintiva escolhida.

Fatores históricos próprios de uma sociedade podem legitimar uma relação diferenciada estabelecida, como por exemplo, a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos previstos em lei (artigo 7º, XX, da CF), decorrente da discriminação histórica da mão-de-obra feminina, que hoje se atenuou.

Finalmente, cumpre fazer uma importante observação. A correlação lógica ora em análise nem sempre é absoluta, significa dizer, não é isenta de influência das concepções, ou intelecção das coisas, da época em que é estabelecida.

Basta considerar que em determinado momento histórico parecerá perfeitamente lógico vedar às mulheres o acesso a certas funções públicas, e, em outras épocas, pelo contrário, entender-se-á inexistir motivo racionalmente subsistente que convalide a vedação. Em um caso terá prevalecido a tese de que a proibição, isto é, a desigualdade de tratamento jurídico se correlaciona juridicamente com as condições do sexo feminino, tidas como inconvenientes com certa atividade ou profissão pública, ao passo que em outra época, a propósito de igual mister, a resposta será inversa. Por consequência, a mesma lei, ora surgirá como ofensiva da isonomia, ora como compatível com o princípio da igualdade. (MELLO, 2008, p. 39-40)

Consoante visto até agora, são quatro os elementos que devem concorrer para que não haja a quebra do princípio da igualdade, são eles:

a) que a desequiparação não individualize, de modo atual e absoluto, odestinatário;

b) que seja utilizado como critério para a desequiparação características ou traços residentes nas próprias coisas diferenciadas;

c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre o fator diferencial e o tratamento jurídico diferenciado em função deles;

d) que, concretamente, este vínculo de correlação lógica esteja de acordo com os interesses prestigiados pela Constituição.

Deve-se ter em vista, que nenhum direito é absoluto e em decorrência disto é possível relativizar os direitos fundamentais, desde que para isso haja um fator relevante. Diz Sampaio Dória quanto á igualdade e a desigualdade: “a igualdade e a desigualdade são ambas direitos, conforme as hipóteses” (DÓRIA apud TAVARES, 2007, p. 531). Tal afirmativa não deve ser interpretada no sentido de assegurar a inviolabilidade dos direitos de uns em total detrimento de direitos de outros, é preciso cautela.

Como já afirmado, os tratamentos diferenciados podem ser conciliados com os preceitos constitucionais, “é que a igualdade implica tratamento desigual das situações de vida desiguais, na medida de sua desigualação” (TAVARES, 2007, p. 525). Para André Ramos Tavares isto é exigência do princípio da Justiça, atrelados (a justiça e a igualdade) diretamente à dignidade da pessoa humana, que é fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III, da CF). A própria Constituição, que proíbe desigualações, às vezes estabelece situações de desigualdades. Em certas situações proíbe “ainda que se trate de situações substancialmente desiguais, e outras nas quais imporá a distinção, em casos que seriam impensáveis para a legislação ordinária implantar por si só” (TAVARES, 2007, p. 532).

O último elemento faz uma restrição: não é possível qualquer diferença que se apresente como logicamente explicável, requer-se, ainda, que esta correlação lógica seja constitucionalmente pertinente. Ou seja, “as vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional” (MELLO, 2008, p. 42).

            Nesse sentido, a lei não pode colocar em desvantagem ou em vantagem situações que o sistema constitucional confere conotação positiva. Em outras palavras, para a lisura jurídica da desequiparação, a lei não pode atribuir efeitos valorativos ou depreciativos em desconformidade com os valores trazidos pela Constituição Federal.

Fica sublinhado que não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei distinga situações sem ofensa à isonomia. Também não é suficiente o poder-se arguir fundamento racional, pois não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima. Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário. (MELLO, 2008, p. 43)

Tavares possui entendimento similar: o elemento discriminador escolhido como motivo da desequiparação deve ser apto ao alcance de uma finalidade, que, esta, por sua vez, deve ser um objetivo abrangido pelo Direito, explicita ou implicitamente. Com acerto, ele destacou, é necessário, ainda, que os meios utilizados para alcançar a finalidade não sejam extremamente gravosos, isto é, deve haver uma relação de proporcionalidade entre os meios (a desequiparação) e a finalidade por ela (pela desequiparação) perseguida. Vale dizer que o tratamento diferenciado se legitima levando em conta os efeitos decorrentes da sua utilização. Se os efeitos forem extremamente gravosos, o meio não é possível.

Ainda, “não se podem interpretar como desigualdades legalmente certas situações, quando a lei não haja “assumido” o fator tido como desequiparador” (MELLO, 2008, p. 45). Significa dizer, quando ocasionalmente a lei traga fortuitas, acidentais ou sutis distinções entre categorias de pessoas não são de considerar, pois “não tem sentido prestigiar interpretação que favoreça a contradição de um dos mais solenes princípios constitucionais” (MELLO, 2008, p. 45).

A Constituição impõe uma presunção de igualdade genérica e absoluta em favor da lei, portanto a distinção deve ser querida pela lei e, quando não, deve se prezar pela igualdade, uma vez que este é o maior dos princípios garantidores dos direitos individuais.

É preciso que se trate de desequiparação querida, desejada pela lei, ou ao menos, pela conjugação harmônica das leis. Daí, o haver-se afirmado que discriminações que decorram de circunstâncias fortuitas, incidentais, conquanto correlacionadas com o tempo ou a época da norma legal, não autorizam a se pretender que a lei almejou desigualar situações e categorias de indivíduos. E se este intento não foi professado inequivocamente pela lei, embora de modo implícito, é intolerável, injurídica e inconstitucional qualquer desequiparação que se pretenda fazer. (MELLO, 2008, p. 46).

Com a exposição feita até então, pode-se concluir que o princípio da igualdade somente é ofendido quando: a) a norma, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, coisas ou situações, singulariza, atual e definitivamente, seu destinatário; b) a norma nomeia como critério discriminador, com a finalidade de diferenciação de regimes, elemento não residente nos destinatários; c) entre o fator de discriminação e o tratamento jurídico diferenciado adotado não haja correlação lógica; d) ainda que existente a referida correlação lógica, esta não guarde pertinência com os interesses constitucionais prestigiados; e) finalmente, “a interpretação da norma extrai dela distinções, discrimens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita” (MELLO, 2008, p. 48).


3 AÇÕES AFIRMATIVAS

3.1 Conceito

Ações afirmativas são medidas que visam à inclusão social (no sentido mais amplo possível) através da criação de oportunidades diferenciadas em benefício de grupos historicamente prejudicados por práticas discriminatórias.

Sob a ótica do Direito Internacional público, as ações afirmativas podem ser consideradas meios de satisfação de compromissos firmados pelo Brasil em tratados internacionais de direitos humanos. Sob a ótica do Direito Constitucional, são ferramentas a serem utilizadas para o alcance dos objetivos fundamentais desta república federativa e para o real exercício dos direitos e garantias fundamentais. Deslocando, contudo, o enfoque para o Direito Civil – ramo mais próximo à realidade cotidiana dos cidadãos – as ações afirmativas garantem a efetividade dos direitos da personalidade. (RIBEIRO, 2011, p. 171)

Sales Augusto dos Santos descreve ação afirmativa como uma “política específica para determinados grupos sociais que foram e/ou ainda são discriminados em função de algumas características reais ou imaginárias” (SANTOS apud RIBEIRO, 2011, p. 169). Os grupos sociais aos quais Sales se refere são aqueles que se encontram em situação de inferioridade sócio-econômica, política ou cultural em relação a outro grupo; são as minorias. Uma minoria pode ser “étnica, linguística, religiosa, de gênero, idade, condição física ou psíquica” (MINORIA, 2012).

Sem excluir a gravidade de atuais práticas discriminatórias, a causa da exclusão social da minoria a ser beneficiada pela medida deve ser um preconceito arraigado, sedimentado na sociedade pelo decurso do tempo e não um fenômeno de surgimento instantâneo, ou seja, a medida destina-se a corrigir uma injustiça social historicamente acumulada decorrente de discriminação[11]. Vale dizer que as ações afirmativas visam reparar o dano causado por um preconceito que de tão entranhado no inconsciente de quem o pratica a “atitude preconceituosa se torna de difícil percepção, considerando-se que a sociedade a vê como corriqueira” (RIBEIRO, 2011, p. 176).

Portanto, “o que se pode identificar como alvo da ação afirmativa é todo e qualquer cidadão que foi vítima de repressão social, que teve suas oportunidades de ascensão, de educação, de autossuficiência historicamente tolhidos” (TAVARES, 2007, p. 544).

É nesta linha de raciocínio que pode se afirmar que, em se tratando de ações afirmativas, quando se referem às minorias, não querem dizer “inferioridade de número”, mas grupo humano ou social que esteja “em situação de subordinação sócio-econômica, política ou cultural, em relação a outro grupo, que é majoritário ou dominante em uma dada sociedade” (MINORIA, 2012). Tenha-se como exemplo o que ocorre na África do Sul, onde o grupo alcançado pelas ações são os negros, que em número são maioria.

Portanto, o que as políticas visam, em síntese, é:

“eliminar os ‘lingering effects’, i. e., os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar”, os quais “se revelam na chamada ‘discriminação estrutural’, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados” (GOMES apud TAVARES, 2007, p. 544-545)

Quanto ao objetivo das ações afirmativas, Joaquim B. Barbosa Gomes explica com bastante clareza:

elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. (…) têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. (GOMES apud FIORAVANTE, MASSONI, 2005, p. 467)

No mesmo sentido encontra-se como finalidade das ações afirmativas no material desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra no Brasil:

eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. (SANTOS apud MOEHLACKE, 2002, p. 201)

É evidente o prestigio ao princípio da igualdade no bojo das ações afirmativas. Não fala-se aqui em igualdade formal, mas na material. Este princípio, como já mencionado, materialmente traduz-se na famosa máxima aristotélica: tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa desigualdade. Em outras palavras, temos que as condições pessoais devem ser sopesadas, de maneira a proporcionar não um tratamento idêntico a todas as pessoas como se não existissem peculiaridades, mas um tratamento substancialmente igualitário, reduzindo, assim, efetivamente a desigualdade. Nas palavras de Renata Malta Vilas-Bôas (2003, p. 58), com as ações afirmativas “busca-se criar situações desigualadoras para que no final possamos falar em igualdade de oportunidade”.

Pode-se dizer que estas políticas, além de intimamente ligadas ao princípio da igualdade, se apoiam na dignidade da pessoa humana (que é fundamento da República Federativa do Brasil) e contribuem para a consecução dos objetivos fundamentais estampados na Constituição Federal brasileira.

Veja como Joaquim Barbosa apresenta o instituto, citando, inclusive, o princípio da igualdade material:

Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. (GOMES apud CARREIRA, 2005, p. 50)

Ainda nos ensinamentos do ilustre, tem-se que as ações podem ser “impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados ou até mesmo por entidades puramente privadas” (GOMES apud FIORAVANTE, MASSONI, 2005, p. 467). Conclui-se, portanto, que as ações afirmativas podem ser implementadas tanto pelo Estado como pelo particular; podem ter cunho obrigatório (coercitivas) ou facultativo (voluntárias).

Essas medidas devem ser temporárias, sendo que, quando satisfatoriamente atingirem seus objetivos, devem ser extintas. Ou seja, ainda que necessárias, são paliativas, de modo que se fossem criadas para se perpetuarem e a causa da criação tivesse fim, a situação se inverteria “e a discriminação passaria de positiva a negativa. Não seria, pois, razoável criar uma ação afirmativa sem termo final” (RIBEIRO, 2011, p. 175). É este o motivo de ser inadequada a previsão de medidas deste cunho no texto constitucional.

O principal instrumento das ações afirmativas, por ser o mais conhecido, é o sistema de cotas, que consiste em “estabelecer um determinado número ou percentual a ser ocupado em área específica por grupo(s) definido(s), o que pode ocorrer de maneira proporcional ou não, e de forma mais ou menos flexível” (MOEHLECKE, 2002, p. 199). Mas o instituto não se reduz à este sistema.

Existem também o sistema de taxas ou metas, que seriam basicamente “um parâmetro estabelecido para a mensuração de progressos obtidos em relação aos objetivos propostos, e os cronogramas, como etapas a serem observadas em um planejamento a médio prazo” (MOEHLECKE, 2002, p. 199), programas de incentivo, outrossim, podem sem considerados ações afirmativas.

Posto isto, percebe-se que são consideradas ações afirmativas as medidas de “conteúdo <redistributivo>, <positivo>, <promocional>, de <renivelamento> e <restauração>” (GOMES apud TAVARES, 2007, p. 545).

Como já dito, as ações afirmativas “compõe um grupo de institutos cujo objetivo precípuo é, grosso modo, compensar por meio de políticas públicas ou privadas, os séculos de discriminação a determinadas raças ou segmentos” (TAVARES, 2007, p. 534).

Sobre a natureza delas, de acordo com Joaquim Barbosa Gomes:

Inicialmente, as ações afirmativas se definiam como um mero ‘encorajamento’ por parte do Estado a que as pessoas com poder decisório nas áreas pública e privada levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas sensíveis como o acesso à educação e ao mercado de trabalho, fatores até então tidos como formalmente irrelevantes pela grande maioria dos responsáveis políticos e empresariais, quais sejam a raça, a cor, o sexo e a origem nacional das pessoas. Tal encorajamento tinha por meta, tanto quanto possível, ver concretizado o ideal de que tanto as escolas quanto as empresas refletissem em sua composição a representação de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho. (GOMES apud TAVARES, 2007, p. 543-544)

Contudo, posteriormente, as ações começaram a ser entendidas como verdadeiras concessões de preferências, de benefícios com objetivo certo de incrementar oportunidades. A busca por oportunidades iguais, na sociedade norte-americana – onde surgiram as affirmative actions –, passou a ser vista como um direito fundamental, cuja negação seria imoral. Ocorreu, então:

Um processo de alteração conceitual do instituto, que passou a ser associado à ideia, mais ousada, de realização da igualdade de oportunidades através da imposição de cotas rígidas de acesso de representantes das minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a instituições educacionais. (GOMES apud TAVARES, 2007, p. 544)

Com efeito, as ações afirmativas são políticas, medidas, verdadeiras atitudes práticas “com vista à promoção da inclusão social, jurídica e econômica de indivíduos ou grupos sociais/étnicos tradicionalmente discriminados por uma sociedade” (GALUPPO apud PISCITELLI, 2009, p. 65), uma vez que para a eficaz inclusão social e o eficaz combate à discriminação leis meramente proibitivas não bastam.

3.2 Justificação das ações afirmativas

Errônea e constantemente as ações afirmativas têm sido apontadas como violadoras do princípio republicano da igualdade de todos perante a lei, como construtora de uma interferência maléfica do Estado nas relações sociais e, ainda, de uma sociedade racializada, com consequentes conflitos sociais. “Políticas de ação afirmativa são baseadas no princípio da discriminação positiva, que funciona como uma violação tópica, limitada, do principio da igualdade universal” (FERES JUNIOR, 2012, p. 5).

Para a promoção do bem geral, do interesse comum ou do interesse nacional, quase a totalidade das políticas do Estado de Bem-Estar Social operam da mesma forma: distribuição de recursos que pertencem igualmente a todos (recursos públicos) de maneira desigual. Operar um tipo de discriminação não é base para argumentar que a ação afirmativa é inconstitucional, procedendo assim, “igualando discriminação positiva e negativa, seremos obrigados a declarar como inconstitucionais também as políticas do BNDES, o bolsa família, e demais ações estatais que operam estritamente por meio da discriminação positiva” (FERES JUNIOR, 2012, p. 6).

É crucial reconhecer a distinção entre discriminação positiva – a que tem por objetivo a promoção daqueles que se encontram em estado de marginalização social –, e a discriminação negativa – a que traz malefícios aos que são discriminados.

Não é concebível que nos aferremos a um sistema moral incapaz de distinguir, por exemplo, a ação de confinar um grupo de pessoas em campos de concentração e exterminá‐las coletivamente em câmaras de gás, da ação de dar maiores oportunidades de educação para um grupo ao qual essas oportunidades foram historicamente negadas. Essas são medidas radicalmente opostas.

Se não fizermos tal distinção, seremos obrigados a reconhecer como justo somente o estado mínimo do liberalismo clássico, que é brutalmente cego às desigualdades sociais e frontalmente contrário ao espírito de nossa Constituição Federal. (FERES JUNIOR, 2012, p. 6).

Em relação à racialização e conflito social, de acordo com estudos de João Feres Junior, em nosso país, este é o argumento mais frequentemente utilizado contra as ações afirmativas[12], não há sinais que isto ocorreu como consequência de alguma ação afirmativa.

Se tomarmos uma perspectiva histórica comparada, veremos que ações afirmativas étnicoraciais foram adotadas por países logo após processos de refundação democrática. Esse foi o caso da Índia, ao se libertar do imperialismo inglês, dos EUA, com o Movimento dos Direitos Civis na década de 1960, da África do Sul, com o final do Apartheid, e esse é o caso do nosso Brasil democrático, surgido da luta contra a ditadura militar, e que tem como marco a Carta de 1988. O espírito de reforma social consagrado na nova Constituição continua a inspirar a luta por direitos e pela realização do sonho democrático da igualdade. As políticas públicas são um instrumento poderoso por meio do qual o Estado responde a esses anseios da sociedade. Elas lidam com o material humano, imperfeito e inexato como ele é, e por isso requerem responsabilidade, mas também coragem e ousadia para a experimentação. (FERES JUNIOR, 2012, p. 7)

Ações afirmativas, em todos os contextos sociais e políticos em que foram implantadas, baseiam-se em três justificações básicas: reparação; justiça social; e diversidade. Estas justificações não são mutuamente excludentes, mas, na maioria das vezes, se completam. No Brasil não é diferente.

A reparação tem fulcro numa profunda injustiça cometida no passado e, portanto, “medidas reparatórias devem ser tomadas para dirimir essa injustiça. Ou seja, esse argumento requer uma interpretação do passado histórico de nosso país.” (FERES JUNIOR, 2012, p. 2).

No caso do Brasil, a injustiça contra os negros foi a escravidão, “mas não só, pois a perpetuação da exclusão dos negros dos postos de maior prestígio e afluência em nossa sociedade do Brasil após o fim daquele regime odioso também se encaixa na categoria de injustiça histórica” (FERES JUNIOR, 2012, p. 2).

A reparação que advém da escravidão aponta para um tipo de beneficiários, quais sejam: os afrodescendentes, ou seja, aqueles que descendem dos africanos trazidos para o Brasil na qualidade de escravos. Portanto, o mais adequado para a promoção da igualdade de oportunidades é a adoção de medidas que tenham como critério diferenciador esta descendência.

“Políticas de igualdade de oportunidades, como a ação afirmativa, são as mais adequadas para combater a injustiça social que marginaliza grupos por meio do preconceito racial” (FERES JUNIOR, 2012, p. 4). O argumento da justiça social prescinde de interpretação histórica da nação, basta a constatação de que em nossa sociedade grupos específicos de pessoas são constantemente marginalizados e têm difícil acesso ás posições de maior prestígio e concorrência.

Sabemos que em nossa sociedade, como em outras, grupos são marginalizados devido a preconceitos culturais, de gênero e também raciais. É claro que a “descoberta” recente da biologia molecular de que raça não é um conceito cientificamente consistente não diminui em nada os efeitos sociais do racismo e do preconceito racial: a cultura também não está inscrita em nossos genes, no entanto o ódio à diferença cultural tem consequências graves onde quer que ele se instaure: vide a guerra genocida na Bósnia, por exemplo. Em suma, a questão que aqui tratamos é social e não da ordem da genética. (FERES JUNIOR, 2012, p. 3-4)

Dados produzidos por sociólogos e economistas nos últimos trinta anos evidenciam que no Brasil existe preconceito racial, e não somente o de classe social, e que isto gera uma significativa marginalização. Os estudos mostram que:

1. Para o mesmo nível de renda, ou seja mesma origem social, brancos têm probabilidade de ascensão bem maior que pretos e pardos;

a. Nelson do Valle: “Brancos são muito mais eficientes em converter experiência e escolaridade em retornos monetários, enquanto que os não-brancos sofrem desvantagens crescentes ao tentarem subir a escada social”.

b. Sergei Soares: “A mobilidade social do negro, ou seja, sua ascensão relativa ao conjunto da sociedade, mantém‐se em patamares residuais. Não houve alteração do quadro de oportunidades no mercado de trabalho, principal fonte de renda e de mobilidade social ascendente”.

c. Carlos Hasenbalg: As probabilidades de fugir às limitações ligadas a uma posição social baixa são consideravelmente menores para os não‐brancos que para os brancos de mesma origem social. Em comparação com os brancos, os não brancos sofrem uma desvantagem competitiva em todas as fases do processo de transmissão de status.

2. A razão entre a renda de brancos e não‐brancos (pretos e pardos) permaneceu inalterada e próxima a 2 (o dobro) por todo o século XX, só vindo a decrescer um pouco a partir a primeira década do século XXI.

a. Se não houvesse discriminação racial, pretos e pardos tenderiam a igualar o perfil sócio‐econômico dos brancos com o passar das gerações.

Portanto, políticas de ação afirmativa de viés étnico/racial têm por fim combater a injustiça produzida pela discriminação racial. Do ponto de vista prático, as categorias mais adequadas para se identificar beneficiários são preto e pardo, pois todos os dados que temos colhido em nossa sociedade sobre desigualdade racial utilizam essas categorias (IBGE). (FERES JUNIOR, 2012, p. 4-5)

Segundo o argumento da diversidade, “todos os seguimentos sociais devem estar representados nas instituições de prestígio, afluência e poder em uma sociedade verdadeiramente democrática” (FERES JUNIOR, 2012, p. 5). Este argumento, de origem estadunidense, não é muito comum no Brasil e tem duas explicações possíveis. Uma é em tudo similar à da justiça social: a exclusão constante de um grupo social das posições de prestígio, afluência e poder em si já constitui uma injustiça.

A segunda é baseada na ideia de que a diversidade contribui para a qualidade das próprias instituições que a promovem: o ensino universitário e a experiência universitária seriam enriquecidos pela inclusão de pessoas com diferentes histórias de vida, que até então estavam ausentes desse espaço. Basta constatar se os negros estão ausentes do espaço universitário em nosso país para que se tomem medidas para a promoção da diversidade. (FERES JUNIOR, 2012, p. 5)

Posto o conceito e a justificação, segue um breve histórico sobre a origem das ações afirmativas.

3.3 Contexto histórico que deu origem às ações afirmativas

O termo “ações afirmativas” tem origem norte-americana. É a tradução da expressão affirmative action, que, para grande parte dos doutrinadores, foi utilizada pela primeira vez em uma ordem executiva federal expedida pelo presidente John F. Kennedy (Executive Order nº 10.925), nos Estados Unidos, em março de 1961.

A referida ordem tinha cunho trabalhista: visava reprimir e fiscalizar a discriminação no mercado de trabalho, criando, para isso, um órgão (President's Comittee on Equal Employment Opportunity) e foi expedida, porque, nos anos 60, os Estados Unidos da América passavam por um período de constantes movimentos em prol da democracia e dos direitos civis, que clamavam igualdade de oportunidades.

De acordo com essa “Executive Order”, nos contratos celebrados com o governo federal, “o contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego devido à raça, credo, cor ou nacionalidade. O contratante adotará ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, seu credo, sua nacionalidade. Essa ação incluirá, sem limitação, o seguinte: emprego; promoção; rebaixamento ou transferência; recrutamento ou anúncio de recrutamento, dispensa ou término; índice de pagamento ou outras formas de remuneração; e seleção para treinamento, inclusive aprendizado. (MENEZES apud MOREIRA, 2008)

Não obstante o grande avanço na busca de igualdade e a origem do termo que esta ordem trouxe, não foi essa a primeira medida nesse sentido a ser criada.

Os Estados Unidos são apontados como pátria de origem das ações afirmativas. Vislumbra-se que as primeiras referências ao combate da discriminação e reparação de injustiças foram previstas em 5 de julho de 1935, na Lei das Relações de Trabalho Nacionais (The 1935 National Labor Relations Act)[13].

Pouco tempo depois, durante a segunda guerra mundial, os norte-americanos passavam por um grande desconforto interno, pois combatia o regime anti-semitista do nazi-facismo alemão e italiano, e, a contrario sensu, no plano interno havia admissão do forte preconceito racial. Somando-se a essa situação, os grupos mais discriminados (mulheres e negros) passaram a ocupar os postos de trabalhos dos homens brancos que iam para a guerra, “diante desse quadro, vários movimentos e lideranças negras articularam-se por meio de várias manifestações sucessivas, para que as desigualdades a que eram submetidos fossem extirpadas” (MELO, 2003). Pressionado, o presidente Franklin Delano Roosevelt assinou a Executive Order 8.806, de 25 de junho de 1941, que proibia a discriminação racial na contratação de funcionários pelo governo federal e por empresas bélicas que com o Estado mantivessem contratos. Esta foi a primeira vez que o governo federal norte-americano fez uso de uma ação visando igualdade de condições.

Em 1944, a Suprema Corte julgou o caso Korematsu v. United States, “que versava sobre a condenação de um descendente de japonês que havia violado uma ordem militar limitadora da liberdade de locomoção da raça em regiões da costa do pacífico” (MACIEL, 2010). A Corte, embora tenha declarado a constitucionalidade da medida, ressalvou que não era a favor de discriminações, mas que a posição se dava pelas circunstâncias em que a restrição foi imposta.

O repúdio à discriminação continuou evoluindo: em 1952, discussões acerca de acabar com a segregação racial nas instituições de ensino superior (caso Brown v. Board of Education of Topeka); em 1954 foi revista a doutrina dos separados mas iguais, concluindo-se que esta “não tem lugar” na educação pública.

O presidente Lyndon Johnson também teve grande importância no combate às desigualdades. Johnson era vice do presidente Kennedy e assumiu o cargo quando este fora assassinado. Foi o responsável pela criação de programas que exaltaram os direitos civis, o sistema de saúde pública, assistência à educação e a guerra contra a pobreza. Assinou a Ordem Executiva 11.246, em 24 de setembro de 1965, que, além de proibir a discriminação, orientava os órgãos governamentais a somente contratarem empresas que fizessem uso das ações afirmativas na gestão de seus empregados. Com essa política governamental houve “a sedimentação do conceito da ação afirmativa” (MACIEL, 2010).

Lyndon, em julho de 1965 num discurso na Howard University, defendendo a igualdade de oportunidades e direitos civis, fez uma interessante analogia que demonstra a necessidade das ações afirmativas: “Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma corrida e então diz: ‘você está livre para competir com todos os outros’ e, ainda acredita que você foi completamente justo.” (GOMES apud MOREIRA, 2008)

Considerando o contexto histórico do qual surgiram as ações afirmativas, poder-se-ia concluir que o objetivo das medidas seria beneficiar determinada minoria social, sendo os negros nos Estados Unidos da América.

As ações afirmativas não se limitaram aos Estados Unidos, é possível observá-las em diversos países, que independentemente da expressão utilizada para a elas se referirem valem-se da sua ideologia. A Constituição da Índia de 1949 faz referência à cotas em postos nos serviços públicos em benefício de classes de cidadãos desfavorecidos e de castas ou tribos que na opinião do Estado não estejam devidamente representadas no funcionalismo público. A África do Sul, onde ocorreu um dos maiores exemplos da segregação racial, aplicou diversas ações afirmativas em favor dos grupos vítimas do regime discriminatório. Na Europa Ocidental referem-se às ações como “ação ou discriminação positiva”. Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, Cuba, Malásia e Nigéria também são exemplos de países que se valeram-se e/ou valem-se das ações afirmativas objetivando a inclusão social.

3.4 Princípios próprios das ações afirmativas

Pode-se definir princípios, basicamente, como mandamentos padrões e fundamentais de um sistema, presentes explicita ou implicitamente no ordenamento. Celso Antonio Bandeira de Mello conceitua princípio jurídico da seguinte forma:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. (MELLO apud RIBEIRO, 2011, p. 175)

Existem princípios jurídicos próprios das ações afirmativas, que visam orientar a elaboração, a aplicação e a hermenêutica das mesmas. Contudo, obviamente, estes princípios devem ser combinados com os demais princípios de direito aplicáveis.

3.4.1 Princípio da Bipartição

“Este é um princípio de aplicação eventual, de acordo com a necessidade e possibilidade no caso concreto. Trata-se de um corolário do princípio da temporariedade em conjunto ao princípio da vedação ao retrocesso” (RIBEIRO, 2011, p. 175)[14].

Por este princípio, deve-se analisar se o comando da ação afirmativa tem a capacidade de apenas compensar, enquanto viger a medida, os tutelados pelos efeitos da discriminação sofrida ou se, além desta compensação, impedirá o retorno da situação discriminatória quando do termo final da medida.

Estará perfeita a ação afirmativa e não haverá retrocesso na hipótese de o comando normativo ter o caráter dúplice de compensar os discriminados e combater a discriminação. Porém, se a medida apenas compensar os discriminados, sem a capacidade de combater a discriminação, outro comando será necessário para satisfazer este outro objetivo das ações afirmativas.

Em outras palavras, pelo princípio da bipartição, eventual ação afirmativa deve conter dois comandos normativos: um que vise compensar os efeitos decorrentes da discriminação sofridos pelo grupo social beneficiado – com isso restaurar ou instaurar a igualdade material; e outro que se destine ao efetivo combate da discriminação em questão – para que, finda a vigência da medida, não haja retorno à situação discriminatória anterior. Caso não possua estes dois poderes, a ação afirmativa deve ser complementada.

3.4.2 Princípio do Dano Atual

Os preconceitos não são fenômenos de surgimento instantâneo, mas “construções históricas que têm origem em determinada circunstância ou evento pretérito, sedimentado pelo decurso do tempo no inconsciente dos indivíduos ao longo das gerações” (RIBEIRO, 2011, p. 176). A prática de atitudes preconceituosas, muitas vezes, é fruto de comportamentos e raciocínios mecânicos, aprendidos com o tempo, em casa, na família ou no convívio social, e tão-somente reproduzidos.

Dessa forma, os grupos sociais atualmente discriminados, provavelmente, sofreram num passado histórico preconceito mais forte ou, eventualmente, outras formas de violência, como, por exemplo, os negros e seu lamentável passado de escravidão.

É de grande importância destacar que, embora as situações de preconceito, desvantagem, ou de subjugação vividas hoje tenham origens históricas, não é, nem deve ser, objetivo das ações afirmativas compensar os danos sofridos no passado. Valendo-se, novamente, do exemplo dos negros e a escravidão: não haveria compensação suficiente por todo os açoites e grilhões que antigamente faziam parte do cotidiano dos negros no Brasil; por outro lado, seria injusto que o restante da sociedade sofresse punição por uma compensação excessiva originada de um acúmulo de injustiça no decorrer da história. Com isso, quer-se dizer que se todo o sofrimento e exclusão sofridos no passado acarretaram, hoje em dia, pelo preconceito e discriminação, menos oportunidades, este (a falta de oportunidades) é o dano a ser reparado.

Na esteira de raciocínio, o dano atual sofrido por aqueles indivíduos beneficiários das ações afirmativas deve ser o único considerado, deve ser a fronteira de atuação e o limite dos efeitos de tais ações. Os danos do passado, sofridos no curso da história, embora necessários à compreensão da discriminação de hoje, não hão de ser objeto das ações afirmativas, pois estas não têm natureza indenizatória, mas proporcionadora de justiça social. (RIBEIRO, 2011, p. 177)

3.4.3 Princípio da equivalência do dano e da reparação           

A compensação oferecida pelas ações afirmativas deve seguir a natureza do dano atual causado pela discriminação. Se assim não for, a compensação adentrará em outros aspectos das vidas dos indivíduos da sociedade que não possuem relação com o problema a ser tratado pela ação afirmativa, dessa forma, ao invés de afastar a injustiça, a causaria.

Com efeito, a ação afirmativa deve ser adstrita ao ramo da vida em que os grupos sociais a serem beneficiados sofrem os efeitos da discriminação. Dessa forma, se a discriminação sofrida derrama seus efeitos sobre o acesso ao trabalho, à educação ou à saúde, eventuais ações afirmativas devem atuar respectivamente nas áreas de trabalho, de educação ou de saúde. Como exemplo, não seria desejável compensar grupos discriminados no acesso à educação com isenção tributária, sob o risco de se promoverem injustiças. (RIBEIRO, 2011, p. 177)

3.4.4 Princípio da Temporariedade

Em termos práticos, as ações afirmativas beneficiam determinado grupo da sociedade que sofre discriminação negativa, discriminando positivamente todos os membros desta mesma sociedade.

Ainda que necessárias para a correção de distorções em relação à igualdade dentro de uma sociedade, as ações afirmativas são atenuantes e não a cura. Isto, porque as conjunturas discriminatórias enfrentadas não são permanentes e considerar as ações como soluções definitivas significaria consentir que são.

Em vez de eliminar a discriminação, esta acabaria sendo mantida por acomodação, bastando a edição de uma ação afirmativa para compensar seus efeitos. Pior seria, ainda, se a ação afirmativa perpetuasse, e a causa que ensejou sua edição tivesse fim: a situação se inverteria, e a discriminação passaria de positiva a negativa. Não seria, pois, razoável criar uma ação afirmativa sem termo final. (RIBEIRO, 2011, p. 175)

Não se pode perder de vista que a vida de uma sociedade sob o vigor de uma ação afirmativa deve ter caráter excepcional, portanto, é prudente que seja previsto, para toda ação afirmativa a ser editada, um termo final ou um prazo para a avaliação dos resultados de fato alcançados em relação aos objetivos originalmente traçados com a finalidade de verificar a possibilidade de encerrar ou manter a vigência da medida.  Com esta lição, o resultado é a temporariedade das ações.

3.5 Classificação das ações afirmativas

Ribeiro, partindo da premissa de que as ações afirmativas devem necessariamente ser normas jurídicas[15], as classificou de acordo com a teoria geral da norma e, outrossim, atribuiu classificações particulares em função da própria especificidade do tema. Segue, sobre a classificação aludida, uma breve exposição.           

3.5.1 Formais e materiais

São formais as ações afirmativas que visam afastar do ordenamento jurídico qualquer dispositivo que possua discriminação.

É a partir desse raciocínio que se pode classificar ação afirmativa formal como aquela que visa a combater uma conjuntura discriminatória formal, sendo esta qualquer forma de discriminação que se dê em função de uma norma, uma regulamentação ou qualquer comando rígido com o caráter de regra, tenha este origem pública ou privada. (RIBEIRO, 2011, p. 173)

Por consequência lógica, as ações afirmativas materiais são aquelas que se prestam a eliminar formas de discriminação materiais, ou seja, “aquelas que se baseiam em comportamentos sociais, coletivos ou individuais, não amparados por qualquer regra aceita pela sociedade, mas simplesmente praticados por preconceito, ideologia, convicção ou, ainda, pela repetição, consciente ou não, de comportamentos históricos” (RIBEIRO, 2011, p. 173).

3.5.2 Legais e infralegais

Como já destacado, não é adequada a inclusão de ações afirmativas em espécie na Constituição, justamente em virtude do caráter temporário das medidas. Não quer dizer que a Constituição não possa dispor sobre tais ações, a exemplo da CF brasileira, esta induz a permissão do poder público se valer delas (art. 3º, da CF/88[16]).

Excluindo-se o nível constitucional, as ações afirmativas consequentemente podem ser editadas em nível legal, obedecendo-se aos critérios e ao processo legislativo referentes à espécie normativa em questão; ou, ainda, em normas de nível infralegal, na forma de regulamentações, portarias, instruções normativas e outros. (RIBEIRO, 2011, p. 173-174)

3.5.3 De alcance nacional, regional e local

“O alcance de uma ação afirmativa deve estar ligado à discriminação sofrida. Os caminhos de ambos, ações afirmativas e discriminação, devem ser paralelos, com o objetivo único de anular os efeitos discriminatórios sofridos pelo grupo social beneficiado” (RIBEIRO, 2011, p. 174).

Com a afirmação acima pode se concluir, portanto, que a norma[17] que instituir a ação afirmativa não deve exceder ou faltar na sua abrangência, pois desta forma estará, respectivamente, concedendo privilégios indevidos ou sendo ineficaz. Com isso percebe-se a importância do trabalho de estudo e pesquisa necessário não apenas para justificar a implementação, mas também para delimitar o alcance e limites das ações.

Deve-se respeitar, para a edição de uma norma que estabelece uma ação afirmativa – como em qualquer outra norma, a competência legislativa de cada ente federativo estabelecida na CF. Em suma, o critério estabelecido é o de interesse: nacional; regional; ou local.

Respeitando, assim, o princípio da predominância do interesse, a especificidade do instituto em estudo reside na tradução de termo interesse. No que tange às ações afirmativas, interesse equivale a danos causados pela discriminação. Dessa forma, deve-se considerar não somente se determinado fenômeno discriminatório existe ou não, mas também a intensidade desse fenômeno e a extensão dos danos dele oriundos. (RIBEIRO, 2011, p. 174)

Para exemplificar, considere que no Brasil, com a grande diversidade cultural e social que possui, exista um estado da federação que apresente manifestações discriminatórias não encontradas em outros; ou, ainda que mais de um estado apresente a mesma forma de discriminação, esta pode ser de intensidades e consequências distintas; justificando-se, assim, que a necessidade de se tomar uma ação afirmativa e o alcance desta pode variar de territorialmente (regional ou local) ou ser de âmbito nacional.


4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A ADPF 186

Foi ajuizada, em 2009, perante o STF, pelo partido político Democratas (DEM), uma ação questionando o sistema de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília (UnB), programa que reserva 20% das vagas do vestibular para candidatos afrodescendentes.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 proposta pelo partido tinha como escopo obter a declaração de inconstitucionalidade dos atos administrativos do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (Cepe/UnB) que resultaram na utilização do critério racial na seleção de candidatos para ingresso na universidade, alegando, em suma, ofensa aos artigos 1º, III; 3º, IV; 4º VIII; 5º, I, II, XXXIII, XLI, LIV; 37; 205; 206, I; 207; e 208, V da Constituição Federal de 1988, dessa forma ferindo vários princípios e preceitos fundamentais: princípio republicano; dignidade da pessoa humana; vedação ao preconceito de cor e à discriminação; repúdio ao racismo; igualdade; legalidade; direito á informação dos órgãos públicos; combate ao racismo; devido processo legal; princípios da proporcionalidade, impessoalidade, razoabilidade, publicidade e moralidade; direito universal à educação; igualdade nas condições de acesso ao ensino; autonomia universitária; e o princípio meritocrático – acesso ao ensino segundo a capacidade de cada um.

Entretanto, do julgamento, iniciado no dia 25 e concluído no dia 26 de abril de 2.012, resultou a improcedência da arguição, por unanimidade e nos termos do voto do relator, Ministro Ricardo Lewandowski.

A ADPF mencionada possui um rico conteúdo sobre as ações afirmativas, merecendo, portanto, destaque quando trata-se do tema ações afirmativas. Gerou grande polêmica na sociedade brasileira e foi objeto de análise de vários especialistas[18]. Além disso, do julgamento da ação participaram diversas entidades na condição de amigos da Corte (amici curiae) e foi expresso o entendimento unânime do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro. Por estes motivos segue uma breve exposição do conteúdo da ação.

4.1 Motivos do DEM

Como já mencionado, o autor da arguição foi o partido político DEM. Este requereu a declaração de inconstitucionalidade dos atos administrativos do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (Cepe/UnB) que resultaram na utilização do critério racial na seleção de candidatos para ingresso na universidade.

O partido, na peça inicial da arguição, deixa claro que não questiona a constitucionalidade de ações afirmativas como gênero e política necessária para a inclusão de minorias[19], mas, nos termos da inicial (p. 26 e 28):

se a implementação de um Estado Racializado, ou, em outras palavras se o Racismo Institucionalizado, nos moldes em que praticados nos Estados Unidos, em Ruanda e na África do Sul, será a medida mais adequada, conveniente, exigível e ponderada, no Brasil, para a finalidade à que se propõe: a construção de uma sociedade mais justa, igual e solidária.

[...]

Discute-se, aqui, tão-somente, acerca da constitucionalidade da implementação, no Brasil, de ações afirmativas baseadas na raça. Em outras palavras: a raça, isoladamente, pode ser considerada no Brasil um critério válido, legítimo, razoável, constitucional, de diferenciação entre o exercício de direitos do cidadão?

Alega, ainda, que nos moldes adotados, a medida decorre de certo deslumbramento precipitado em relação ao modelo adotado pelos Estados Unidos, pois a UnB deixou de considerar as diferenças estruturais relativas à história das relações raciais entre os EUA e o Brasil e que, desta forma, o problema somente é mascarado por uma política simbólica à custo zero.

Defende-se nesta ADPF que, no Brasil, ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro, diferentemente do que aconteceu em outros países, como nos Estados Unidos e na África do Sul. Aqui, a dificuldade de acesso à educação e a posições sociais elevadas decorre, sobretudo, da precária situação econômica, que termina por influir em uma qualificação profissional deficiente, independentemente da cor da pele. Infelizmente, no Brasil, os negros são as maiores vítimas do fenômeno da desigualdade social: dados do PNAD/IBGE (2001) demonstram que aproximadamente 70% dos indigentes no Brasil são negros, e, dentre os pobres, a proporção de negros é de 64%. (Petição Inicial da ADPF 186, p. 29)

A advogada do DEM, Roberta Kaufmann, no dia 25[20], reafirmou que adotando-se o sistema de cotas para negros poderá criar-se no Brasil um modelo de Estado racializado. Argumentou que aqui[21] não há critério preciso, objetivo, para definir-se quem é pardo ou moreno e por isso a adoção de leis que criam categorias raciais poderão ser mais desastrosas do que eventuais vantagens que possam gerar. “A imposição de um modelo de Estado racializado traz consequências perversas para a formação da identidade de uma nação. Criam-se identidades paralelas, bipolares, e não um sentimento de cultura nacional”. E defendeu: “Se fizermos uma política de recorte social, a partir de critérios objetivos, como por exemplo renda mínima ou ter estudado em escolas públicas, faremos a integração necessária, sem criarmos os riscos de dividirmos o Brasil racialmente”.

“É uma falácia a ideia de que a cota racial integra aqueles que mais precisam da ajuda estatal”, afirmou Kaufmann embasando-se numa pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes de Ensino, publicada em agosto de 2011, que demonstrou que dez anos de adoção do sistema cotas raciais em universidades não conseguiram ampliar nem em 1% o total de estudantes pobres na academia.

Conforme noticia o portal eletrônico do STF:

A advogada do DEM advertiu que na UnB as cotas são implementadas por meio de “tribunais raciais, de composição secreta”, que definem quem é pardo, moreno ou branco com base em “critérios mágicos, místicos”. Ela relembrou o célebre caso dos gêmeos idênticos (univitelinos) que foram, cada um, considerados de uma raça diferente pela universidade. Um foi enquadrado no sistema de cotas raciais enquanto outro foi considerado branco. “Menos que um fato biológico, a raça é um mito social, e, como tal, tem causado em anos recentes pesados danos em termos de vida e de sofrimento humanos”, informou a advogada ao ler uma declaração da Unesco.

Ela também teceu duras críticas à Secretaria de Igualdade Racial, que classificou como “Secretaria do Racismo Institucionalizado”. Para Roberta Kaufmann, a secretaria pretende dividir o Brasil em diversos segmentos sociais, desde o atendimento em hospitais públicos, passando pelas universidades, pelo mercado de trabalho e pela representação em partidos políticos.

Diante do exposto, pode-se concluir que o partido político Democratas não é contra ações afirmativas, mas tão-somente questiona os moldes da ação adotada pela Cepe/UnB. Ficou claro que não concorda com a cota para afrodescendentes, pois não há no Brasil critérios objetivos para definir quem serão os beneficiados e, além disso, alega que a universidade vale-se de uma comissão composta arbitrariamente, que também não possui critérios precisos, para a implementação da medida.

4.2 Amici curiae

Participaram do julgamento, por meio de seus representantes, sete entidades, na condição de amici curiae (amigo da Corte), manifestando-se contra a ação proposta pelo DEM, ou seja, a favor da ação afirmativa adotada pela UnB[22]. O principal fundamento das sustentações foi no sentido de que a política de cotas raciais garante uma reparação histórica aos negros[23], mas outros pontos também merecem ser mencionados.

Afirmou o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, que antes de o sistema de cotas ser implementado "as universidades brasileiras estavam reservadas para a classe econômica mais abastada”; e com a política de reserva de cotas, “hoje, as universidades brasileiras privilegiam também a questão social, econômica”.

Por sua vez, o defensor público-geral federal, Haman Córdova, entendendo pela constitucionalidade do sistema de cotas raciais em questão, afirmou que os preceitos constitucionais fundamentais que, de acordo com o partido político, estariam sendo violados, na realidade, “dão sustentáculo para que a política seja utilizada em universidades públicas”. Argumentou, também, que a maioria da população brasileira é composta por afrodescendentes, mas esta não teria um acesso justo ao mercado de trabalho, pois “temos hoje um salário médio, de acordo com o IBGE, de R$ 1.850,00 para a raça branca, e de R$ 850,00 para a raça dos afrodescendentes”.

Manifestou-se pela Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos o advogado Hédio Silva Júnior. Para ele, no Brasil de antes da existência das cotas raciais imperava o racismo cordial: “Negros entravam nas universidades para ser vigilantes, cozinheiros, bedéis, serviçais, o Brasil era feliz, tudo ia bem, tudo funcionava bem” – ironizou. E, ao rebater o argumento de que o sistema de cotas raciais para negros criará um país racializado, acrescentou: “Agora, com o debate das ações afirmativas, o Brasil não vai bem. Agora a genética olha para o cantor Neguinho da Beija Flor e conclui que ele é eurodescendente”.

O advogado Humberto Adami, representante do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), foi o quarto a falar. Segundo ele, o modelo adotado promove a justa inclusão dos afrodescendentes, uma vez que a escravidão deixou resquícios que permanecem até hoje. Destacou que na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) a experiência de cotas para negros existe há 12 anos, e se provou acertada.

Silvia Cerqueira, advogada que representou o Movimento Negro Unificado (MNU), afirmou: “Todas as pesquisas demonstram através de números a desigualdade a que estão submetidos os negros (no Brasil)” e com o sistema de cotas é possível, juridicamente, à luz da Constituição, “mitigar os efeitos dessa discriminação”. Destacou, também, os bons resultados constatados obtidos por todos os alunos cotistas que saíram da universidade.

Thiago Bottino, representante do Educafro (Educação e Cidadania de Afro-Descendentes e Carentes), ressaltou que existe uma grande diferença entre ações afirmativas implementadas por meio de cotas sociais ou cotas raciais: “São ações afirmativas que geram resultados distintos. O fato é que 300 anos de escravidão fizeram com que jovens negros não pudessem aspirar ao exercício de papéis sociais relevantes”. Bottino classificou como “argumento terrorista” a afirmação de que as cotas raciais vão despertar o ódio racial no Brasil e advertiu: “Dez anos de ações afirmativas nesse país mostraram que não houve nenhum incidente decorrente da aplicação desse mecanismo”.

O último amici curiae a falar foi o representante da Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes (Anaad), o advogado Márcio Thomaz Bastos. Disse estar orgulhoso e alegre de ver o STF cumprir sua função de zelar pela Constituição quando permitiu a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, permitiu a união homoafetiva, manteve a pesquisa com células-tronco e julgou correta a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol. “Hoje vivemos um momento histórico. O momento de trazer o negro para viver sob esse amparo” – completou. Para ele, “as ações afirmativas de cotas, existente há mais de 10 anos, melhoram a cor dos álbuns de formatura no Brasil, que deixam de ser exclusivamente brancos e passam a ser mesclados”. E concluiu: “Ao contrário das proposições abstratas (dos que são contra as cotas), temos para mostrar a história de 300 anos de escravatura como um peso que amarrou essas pessoas”.

4.3 Advocacia-Geral da União

O advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, defendeu, no julgamento da arguição, a adoção de cotas raciais pela UnB. Adams articulou que o Brasil sempre firmou convenções internacionais contra a discriminação, como a Convenção Internacional contra Todas as Formas de Discriminação, mas não vinha pondo em prática uma política de igualdade em seu próprio território.

Contradizendo a advogada do DEM que se pronunciou em plenário, Roberta Kaufmann, o Advogado-geral da União ressaltou que a cota adotada pela UnB pretende acabar com uma discriminação cultural impregnada em toda a sociedade brasileira, e não com uma discriminação biológica.

Adams fez uma comparação entre a situação brasileira e a que existe, atualmente, nos Estados Unidos, onde a discriminação não é mais contra o negro, mas contra os hispânicos que migraram para o país, sobretudo oriundos do México e de países centro-americanos, que se situam na parte inferior da escala social. Ou seja, é uma discriminação cultural, que, segundo ele, foi preciso adotar uma política afirmativa para retirar o país desta situação de discriminação. No Brasil, disse Adams, uma medida no sentido de acabar com esta forma de discriminação foi a criação da Secretaria da Igualdade Racial que, conforme afirmou em contraposição à Kaufmann, não é uma secretaria do racismo, mas um órgão destinado à integração de todas as raças, reconhecendo e valorizando, porém, as suas diferenças e identidades culturais.

Em sua sustentação citou medidas afirmativas adotadas no Brasil, dentre elas as promulgações das leis 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial); e 10.558/2002, que criou o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com o fim de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, em especial dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.

Para dimensionar a desigualdade existente no Brasil, de acordo com notícia disponibilizada no endereço eletrônico do STF:

Luís Inácio Adams citou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo os quais 50% da população brasileira são constituídos de negros e pardos, mas que dos 10% mais pobres da população do país, 11,5 milhões são negros ou pardos e apenas quatro milhões, brancos. Ou seja, para cada 2,7 negros ou pardos, apenas um branco está nessa faixa da miséria.

Já na faixa dos 10% mais ricos, ainda conforme os dados por ele citados, 8% são pardos e apenas 1% é constituído de negros, ao passo que 88,4% dessa faixa é constituída de brancos. Assim, segundo Adams, “a realidade social reproduz a discriminação”. E não é uma discriminação institucionalizada, mas cultural. O país tem, segundo ele, “uma aparente democracia racial”.

O advogado mencionou que um mil estudantes negros admitidos pelo sistema de cotas já se formaram, dentro de um total de três mil até então admitidos e que os alunos cotistas atingiram praticamente o mesmo nível de excelência e qualidade dos demais.

Finalizando sua explanação, Adams pediu que o Supremo Tribunal Federal declarasse a improcedência da ADPF ajuizada pelo DEM e confirmasse a política afirmativa de integração de estudantes negros, adotada pela UnB.

4.4 Procuradoria-Geral da República

A Procuradoria-geral da República, através da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, pela improcedência da ação. Duprat defendeu as ações afirmativas como consequentes do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição da República.

A vice-procuradora-geral lembrou que a CF/88 trata expressamente de ações afirmativas em relação a dois grupos minoritários: as mulheres e os deficientes, no mercado de trabalho. “É preciso analisar com o coração aberto por que as ações afirmativas de recorte racial provocam tanto desassossego”, propôs-se, então, em sua manifestação, destruir convicções que, “de tão reiteradas, ficaram naturalizadas”.

Dentre as convicções a que se propôs desconstruir está a da miscigenação como um processo natural: “Ela decorre de uma engenharia social do período colonial escravocrata como estratégia de povoamento e de força de trabalho escravo”. Destacou, também, o aspecto da violência contra a mulher negra.

Questionou também o mito da democracia racial no Brasil. Afirmou que a abolição não significou a “transformação da coisa em sujeito” nem assegurou garantias mínimas de dignidade aos negros libertos ou o acesso a terra e isto, segundo ela, se projeta na sociedade atual. “Não precisamos de dados estatísticos, basta um olhar na composição dos cargos do alto escalão do Estado brasileiro ou nas grandes corporações e, na contrapartida, olhar para a população carcerária desse país, e para quem é parado pela polícia nas cidades brasileiras”.

Desconstruiu também a convicção de inexistência de raças. Para isso, citou o preâmbulo da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da Organização das Nações Unidas, de 1968, ratificada pelo Brasil, lembrando que este e vários outros documentos internacionais declaram que os seres humanos pertencem a uma mesma espécie, mas “apenas para impedir doutrinas de superioridade racial”. Ressaltou que a própria convenção admite o uso das ações afirmativas. Conquanto cientificamente não mais se reconheçam subdivisões da raça humana, “o racismo persiste enquanto fenômeno social”, consequência de concepções históricas, políticas e sociais[24].

Segundo consta de notícia publicada no site do STF:

O argumento econômico, segundo o qual a diminuição da desigualdade econômica resolveria o problema racial, foi classificado por Duprat como “um reducionismo inaceitável” do ser humano ao aspecto econômico. “Ninguém fala nas cotas para mulheres ou portadores de deficiência sob esse caráter social”, destacou. “Por que não só mulheres e deficientes pobres? Por que essa questão é invocada apenas quando se trata de cotas raciais?”, questionou, lembrando que a finalidade das cotas é garantir a diversidade nas universidades, e não resolver um problema meramente social.

A vice-procuradora-geral concluiu sua manifestação tratando da tese da meritocracia (artigo 208, V, da Constituição). Para Duprat é preciso que o dispositivo constitucional seja devidamente interpretado e não somente sob o ponto de vista acadêmico: “A maioria das universidades tem vários critérios para a admissão de alunos, de modo a valorizar determinados conjuntos de qualidades”; “É isso que vai determinar os méritos relevantes para a admissão”. Nesse sentido, esse aspecto que será considerado do ponto de vista do mérito, quando a universidade eleger como missão promover a diversidade. “A Constituição não prega o mérito acadêmico como o único critério”.

4.5 Votos dos ministros

Como dito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou improcedente a ação proposta pelo DEM (ADPF 186), considerando, deste modo, constitucional a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília. Os ministros seguiram o voto do relator, ministro Ricardo Lewandowski. A seguir, uma síntese das manifestações dos ministros.

4.5.1 Ministro Ricardo Lewandovski

Com um minucioso e extenso relatório, que, de acordo com o ministro Joaquim Barbosa, “esgotou o assunto e está em sintonia com o que há de mais moderno a respeito das políticas de ações afirmativas”, o ministro relator Ricardo Lewandovski expôs seu voto. Posicionou-se a favor do modelo de cota adotado pela UnB.

Inicialmente, o ministro assentou o cabimento da ação[25], uma vez que não há outro meio hábil de sanar a lesividade apontada pelo partito político DEM.

Destacou a questão fundamental que seria analisada: “saber se os programas de ação afirmativa que estabelecem um sistema de reserva de vagas, com base em critério étnico-racial, para acesso ao ensino superior, estão ou não em consonância com a Constituição Federal”.

Em seguida, fez considerações sobre a igualdade formal e a material. Em suma, sobre igualdade formal:

De acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com essa expressão o legislador constituinte originário acolheu a ideia – que vem da tradição liberal, especialmente da Declaração do Homem e do Cidadão francesa de 1789 - de que ao Estado não é dado fazer qualquer distinção entre aqueles que se encontram sob seu abrigo.

E sobre igualdade material, também em síntese:

É escusado dizer que o constituinte de 1988 – dada toda a evolução política, doutrinária e jurisprudencial pela qual passou esse conceito – não se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei.

À toda evidência, não se ateve ele, simplesmente, a proclamar o princípio da isonomia no plano formal, mas buscou emprestar a máxima concreção a esse importante postulado, de maneira a assegurar a igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no País, levando em consideração – é claro - a diferença que os distingue por razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até mesmo acidentais, além de atentar, de modo especial, para a desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos sociais.

E concluiu:

O Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.

Para Lewandovski, “a adoção de tais políticas, que levam à superação de uma perspectiva meramente formal do princípio da isonomia, integra o próprio cerne do conceito de democracia”.

Ressaltou que o único modo de transformar o direito à isonomia em igualdade de possibilidades, sobretudo no tocante a uma participação equitativa nos bens sociais, é aplicar a justiça distributiva[26]:

Só ela permite superar as desigualdades que ocorrem na realidade fática, mediante uma intervenção estatal determinada e consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade como um todo.

Juntamente com o Procurador-geral da República[27], o ministro entende que o modelo constitucional brasileiro não se mostrou alheio ao princípio da justiça distributiva ou compensatória, pois “incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”.

Vale destacar que na avaliação do ministro:

No que interessa ao presente debate, a aplicação do princípio da igualdade, sob a ótica justiça distributiva, considera a posição relativa dos grupos sociais entre si. Mas, convém registrar, ao levar em conta a inelutável realidade da estratificação social, não se restringe a focar a categoria dos brancos, negros e pardos. Ela consiste em uma técnica de distribuição de justiça, que, em última análise, objetiva promover a inclusão social de grupos excluídos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente, foram compelidos a viver na periferia da sociedade.

Interessante um conceito de ação afirmativa dos quais se valeu: “um programa público ou privado que considera aquelas características as quais vêm sendo usadas para negar [aos excluídos] tratamento igual”[28].

Não deixou de avultar que as medidas devem ter caráter transitório, ou seja, elas devem ser extintas após atingirem seus objetivos.

Trouxe uma informação atraente, de cunho internacional:

Dentre as diversas modalidades de ações afirmativas, de caráter transitório, empregadas nos distintos países destacam-se: (i) a consideração do critério de raça, gênero ou outro aspecto que caracteriza certo grupo minoritário para promover a sua integração social; (ii) o afastamento de requisitos de antiguidade para a permanência ou promoção de membros de categorias socialmente dominantes em determinados ambientes profissionais; (iii) a definição de distritos eleitorais para o fortalecimento minorias; e (iv) o estabelecimento de cotas ou a reserva de vagas para integrantes de setores marginalizados.

Ponderou que a política adotada pela universidade tem o objetivo de sobrepujar deformidades sociais historicamente consolidadas e estabelecer um espaço acadêmico plural e diversificado. Para o relator, os meios empregados e os fins acossados pela UnB possuem proporcionalidade e razoabilidade. Destacou, ainda, que a política é transitória e prevê a revisão periódica do seu resultado. Sobre o método de seleção de candidatos[29], Lewandovski os considerou “eficazes e compatíveis” com o princípio da dignidade humana. Nas palavras do ministro:

No caso da Universidade de Brasília, a reserva de 20% de suas vagas para estudantes negros e de “um pequeno número” delas para “índios de todos os Estados brasileiros”, pelo prazo de 10 anos, constitui providência adequada e proporcional ao atingimento dos mencionados desideratos. Dito de outro modo, a política de ação afirmativa adotada pela UnB não se mostra desproporcional ou irrazoável, afigurando-se, também sob esse ângulo, compatível com os valores e princípios da Constituição.

Para Lewandovski critérios objetivos de seleção de candidatos, empregados de forma linear em sociedades tradicionalmente marcadas por desigualdades interpessoais profundas, como acontece no Brasil, acabam por consolidar ou, até mesmo, acirrar as distorções existentes.

Entende o ministro sobre os artigos 205 e 207 da Constituição, que preconizam, respectivamente, a promoção e o incentivo da educação pela sociedade, buscando pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, e a autonomia didático-científica e administrativa, fazendo-as repousar, ainda, sobre o tripé ensino, pesquisa e extensão:

Pretendeu o legislador constituinte assentar que o escopo das instituições de ensino vai muito além da mera transmissão e produção do conhecimento em benefício de alguns poucos que logram transpor os seus umbrais, por partirem de pontos de largada social ou economicamente privilegiados.

Assim, diante da realidade brasileira, onde, de acordo com o MEC, o número de negros com diplomas universitários se limita a 2%, ao ministro parece “ser essencial calibrar os critérios de seleção à universidade para que se possa dar concreção aos objetivos maiores colimados na Constituição”. Conclui: para a concretização da justiça social, “cuida-se, em especial no âmbito das universidades estatais, de utilizar critérios de seleção que considerem uma distribuição mais equitativa dos recursos públicos” e não simplesmente o critério do mérito aferido pela prova vestibular atual, que beneficia os alunos de escolas particulares (na grande maioria, brancos) em detrimento dos alunos de escolas públicas (que possuem a maioria dos estudantes negros).

Sobre a adoção do critério étinico-racial, mencionou que cumpre afastar o conceito biológico de raça para enfrentar a discussão posta pelo partido político, porque se trata de um conceito histórico-cultural, artificialmente arquitetado, para justificar a discriminação ou, até mesmo, a dominação sobre certos grupos sociais, “maliciosamente reputados como inferiores”.

Tal como os constituintes de 1988 qualificaram de inafiançável o crime de racismo, com o escopo de impedir a discriminação negativa de determinados grupos de pessoas, partindo do conceito de raça, não como fato biológico, mas enquanto categoria histórico-social, assim também é possível empregar essa mesma lógica para autorizar a utilização, pelo Estado, da discriminação positiva com vistas a estimular a inclusão social de grupos tradicionalmente excluídos.

Na avaliação da alegação do argumento de que o mais justo seria a utilização do critério econômico, ensinou:

Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.

Esse modo de pensar revela a insuficiência da utilização exclusiva do critério social ou de baixa renda para promover a integração social de grupos excluídos mediante ações afirmativas, demonstrando a necessidade de incorporar-se nelas considerações de ordem étnica e racial.

A convivência com a discriminação histórica de negros e pardos gera neles “a perturbação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social”. Nesse sentido, mencionou outra função das ações afirmativas:

Uma criança negra que vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o âmbito de possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante componente psicológico multiplicador da inclusão social nessas políticas.

O papel das universidades no Brasil não é apenas formar profissionais destinados ao mercado de trabalho, mas “representam também um celeiro privilegiado para o recrutamento de futuros ocupantes dos altos cargos públicos e privados do País”. Com isso, pode-se afirmar que os beneficiados pelas políticas de ação afirmativa não são só os estudantes que por ela ingressaram na faculdade, mas todo o meio acadêmico, que terá a oportunidade de conviver com o outro, e toda a sociedade, pois os que hoje são discriminados têm um enorme potencial para contribuir para o avanço dela.

É preciso, portanto, construir um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social. Um espaço que contemple a alteridade. E a universidade é o espaço ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais com relação ao outro e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea, aliás, consentânea com o mundo globalizado em que vivemos.

Prestes a finalizar seu voto, o ministro mencionou decisões da Suprema Corte norte-americana que estabeleceram, nos EUA, a possibilidade de considerar a raça como um elemento da política de admissão para as instituições de ensino superior, explanando, assim, a visão internacional sobre as ações afirmativas como medidas paliativas.

Citou, outrossim, em diversas partes do voto, o entendimento de ministros do STF e o posicionamento desta Corte em decisões que guardam relação com a questão em pauta, demonstrando que seu voto, coerentemente, os segue, julgando, com acerto, improcedente a arguição.

4.5.2 Ministro Luiz Fux

O segundo ministro a pronunciar seu voto foi Luiz Fux. Este fundamentou seu voto no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal. O referido dispositivo estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que, ao seu entende, impõe ao Estado brasileiro uma reparação de danos pretéritos do país em relação aos negros. Ademais, considerou que a criação de cotas raciais dá cumprimento ao artigo 208, inciso V, da CF, no qual situa o dever do Estado com a educação: será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.

Fux apoiou o argumento de que não satisfazia simplesmente abolir a escravatura e deixar o negro sujeito a sua própria sorte. Entende que era necessário a realização de ações afirmativas para possibilitar ao negro igualdade material em relação à população branca (tratar desigualmente os desiguais; e neste princípio, de acordo com ele, ações afirmativas se encaixam).

Baseou-se, também, em julgamentos da Suprema Corte norte-americana que consideraram constitucionais as ações afirmativas em benefício dos afrodescendentes, como cotas em estabelecimentos de ensino. Uma discriminação benigna, que favoreça o negro, para a Supreme Court, é constitucional. Mencionou que o Brasil vem, continuamente, criando leis para a institucionalização da discriminação benigna[30].

“Justiça não é algo que se aprende, é algo que se sente”, disse o ministro, citando uma afirmação que ouviu do ministro presidente da Corte, Carlos Ayres Britto. Para Fux, julgar também implica em ouvir o que a população sente: “Prefiro a leitura pela alma humana”.

Por fim, lembrou que o Supremo Tribunal Federal tem adotado a postura de não defender esta ou aquela raça, mas a raça humana.

4.5.3 Ministra Rosa Weber

A ministra Rosa Weber rejeitou todos os argumentos apresentados na arguição pelo partido DEM, porém deixou claro que respeita as opiniões divergentes: “Com todo o respeito, do fundo minha alma, pelas compreensões em contrário, entendo que os princípios constitucionais apontados como violados (no pedido do DEM) são justamente os postulados que levam à total improcedência da ação”.

Segundo a ministra, diante da grande diferença entre quantidade de pobres brancos e negros, não é plausível afirmar que o fator cor é desimportante[31] e  rebateu o argumento de que o adequado seria as cotas adotarem o fator econômico e não o racial: “enquanto as chances dos mais diversos grupos sociais brasileiros, evidenciadas pelas estatísticas, não forem minimamente equilibradas, a mim não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico“.

Weber explicou o significado de igualdade formal[32], entretanto destacou que, por ser presumida, desconsidera os processos sociais concretos de formação de desigualdades e defendeu que cabe ao Estado “adentrar no mundo das relações sociais e corrigir a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter o seu papel benéfico”[33]. Para ela, “a desigualdade material que justifica a presença do Estado nas relações sociais só se legitima quando identificada concretamente, impedindo que determinado grupo ou parcela da sociedade tenha as mesmas chances de acesso a oportunidades sociais” e é exatamente neste contexto que entram as ações afirmativas, abarcando o sistema de cotas raciais.

Destacou o acerto das universidades em tomarem o cuidado de estimar prazos de duração para as ações afirmativas que adotarem, pois “quando houver o equilíbrio da representação social nas diversas camadas sociais, o sistema (de cotas) não mais se justificará, não mais será necessário”. “Quando o negro se tornar visível nas esferas mais almejadas das sociedades, política compensatória alguma será necessária”.

No entender da ministra, igualdade e liberdade “andam de mãos dadas” e:

Sem igualdade mínima de oportunidade, não há igualdade de liberdade. As possibilidades de ação, de escolhas de vida, de visões de mundo, de chances econômicas, de manifestações individuais ou coletivas específicas são muito mais restritas para aqueles que, sob a presunção da igualdade, não têm consideradas as suas condições particulares.

Concluiu: “às vezes se impõe tratamentos desiguais em determinadas questões sociais ou econômicas para que o resto do sistema possa presumir que todos somos iguais nas demais esferas da sociedade”.

4.5.4 Ministra Carmem Lucia

Na avaliação da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, a conjuntura dos negros no Brasil não pode ser ignorada e afirmou: “Tantas vezes decantada, a igualdade é o princípio mais citado na Constituição Federal. Quem sofre preconceito percebe que os princípios constitucionais viram retórica”.

Para a ministra, a Constituição de 1988 reforçou o princípio da igualdade, que é estático, com o processo dinâmico da igualação.

Demonstrou sua opinião em relação às ações afirmativas: “As ações afirmativas não são a melhor opção, mas são uma etapa. O melhor seria que todos fossem iguais e livres”. Ressaltou que outras medidas para não avigorar o preconceito devem escoltar as políticas compensatórias. Enfatizou, ainda, que a responsabilidade estatal e social de cumprir o princípio da igualdade pede ações afirmativas.

Concluindo, a ministra entendeu pela constitucionalidade do sistema de cotas adotado pela UnB, pois a proporcionalidade e a função social da universidade foram observadas.

4.5.5 Ministro Joaquim Barbosa

Por sua vez, o ministro Joaquim Barbosa, concordando com o relator, afirmou que o voto deste “esgotou o assunto e está em sintonia com o que há de mais moderno a respeito das políticas de ações afirmativas”. Nesse sentido, salientou:

Não se deve perder de vista o fato de que a história universal não registra, na era contemporânea, nenhum exemplo de Nação que tenha se erguido de uma condição periférica à condição de potência econômica e política, digna de respeito na cena política internacional, mantendo, no plano doméstico, uma política de exclusão, aberta ou dissimulada – pouco importa! Legal ou meramente estrutural ou histórica, pouco importa! –, em relação a uma parcela expressiva da sua população.

O ministro, que é autor de vários artigos sobre o tema, além de declarações pontuais sobre o que entendeu essencial, citou parte de um texto[34] que escreveu há mais de 10 anos.

Acho que a discriminação, como componente indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste-se de uma roupagem competitiva. O que está em jogo aqui é, em certa medida, competição: é o espectro competitivo que germina em todas as sociedades. Quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre o discriminador e o discriminado.

Para o ministro, é disso que resulta a contraposição de interesses: uns em prol da concretização da igualdade, outros em prol da manutenção do status quo.

É natural, portanto, que as ações afirmativas – mecanismo jurídico concebido com vistas a quebrar essa dinâmica perversa –, sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo, é claro, da parte daqueles que historicamente se beneficiam ou se beneficiaram da discriminação de que são vítimas os grupos minoritários”, enfatizou.

Barbosa caracterizou as ações afirmativas como políticas públicas voltadas à efetivação do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos cruéis da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Pelas ações afirmativas, “a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade”.

Finalmente, observou que a implementação de ações afirmativas não são exclusivas do Poder Executivo ou Legislativo, também podem ser adotadas por iniciativa particular e, em casos extremos, inclusive pelo Poder Judiciário:

Há, no Direito Comparado, vários casos de medidas de ações afirmativas desenhadas pelo Poder Judiciário em casos em que a discriminação é tão flagrante e a exclusão é tão absoluta, que o Judiciário não teve outra alternativa senão, ele próprio, determinar e desenhar medidas de ação afirmativa, como ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, especialmente em alguns estados do sul.

4.5.6 Ministro Cezar Peluso

Para o ministro Cezar Peluso, a o ponto central da discussão, era se as cotas raciais, como ações afirmativas, ofenderiam o princípio constitucional da igualdade. Nesta análise, entende o ministro, o princípio assume feição própria, tanto pelo aspecto formal quanto pelo material, de acordo com a realidade sobre a qual incida. Por isso faz-se mister “aceitar que o princípio implica a necessidade jurídica não apenas da interpretação, mas também de produção normativa da equiparação de situações que não podem ser desequiparadas sem uma razão lógico-jurídica suficiente”.

Conforme pondera o ministro: “é fato histórico incontroverso o déficit educacional e cultural dos negros, desde os primórdios da vida brasileira, em virtude das graves e conhecidas barreiras institucionais do acesso dos negros às fontes da educação e da cultura”, logo:

O acesso à educação tem que ser visto como meio indispensável de acesso ou, pelo menos, da possibilidade de acesso mais efetivo aos frutos de desenvolvimento socioeconômico e, portanto, de uma condição sociocultural que corresponda ao grande ideal da dignidade da pessoa humana e do projeto de vida de cada um.

Na avaliação de Peluso, diante desta situação existe “um dever, que não é apenas ético, mas também jurídico, da sociedade e do Estado perante tamanha desigualdade, à luz dos objetivos fundamentais da Constituição e da República, por conta do artigo 3º da Constituição Federal”[35], ou seja, ainda com suas palavras:

Há a responsabilidade ético-jurídica da sociedade e do Estado em adotar políticas públicas que respondam a esse déficit histórico, na tentativa de superar, ao longo do tempo, essa desigualdade material e desfazer essa injustiça histórica de que os negros são vítimas ao longo dos anos.

Lembrou que a própria Constituição concede tratamento diferenciado (e, com base nela, a legislação infraconstitucional também o faz) de acordo com o princípio da igualdade, como por exemplo, em situação de desigualdade socioeconômica tutela mulheres, menores, e hipossuficientes. Citou a Lei Maria da Penha para demonstrar “como é legitimado, do ponto de vista constitucional, esse olhar de proteção constitucional a certas situações de vulnerabilidade”.

No entendimento do ministro, “mesmo que as universidades públicas fossem pagas, não ofenderia a Constituição se a lei tivesse reservado uma cota de 20 por cento a alunos hipossuficientes”.

Antes de concluir seu voto, Peluso objetou algumas alegações contra as cotas raciais.

Quanto ao argumento de que elas seriam discriminatórias: este desconhece as discriminações positivas que a própria Constituição faz, no amparo desses grupos, classes e comunidades vulneráveis do ponto de vista sociopolítico.

Sobre a alegação de que o mérito pessoal deve ser considerado: esta ignora os obstáculos historicamente opostos aos empenhos dos grupos marginalizados, pois sua superação não depende das vítimas da marginalização, mas depende de terceiros.

“A meu ver, a política pública afirmativa volta-se para o futuro, independe de intuitos compensatórios, reparatórios, de cunho indenizatório, simplesmente pela impossibilidade, não apenas jurídica, de responsabilizar os atuais por atos dos antepassados” – em contestação ao argumento de que as cotas raciais seriam compensatórias pelo passado e afrontariam o princípio da igualdade. “Essas políticas públicas são voltadas para o futuro. Não compensam. Estão atuando sobre a realidade de uma injustiça hic et nunc[36]

Também não concordou com o entendimento de que as cotas raciais são um incentivo ao racismo: “não há elemento empírico para sustentar essa tese. A experiência é que não tem ocorrido, e se tem, foi em escala irrelevante que não merece consideração”.

“Esquece que o que são e fazem depende das oportunidades e das experiências que tiveram para se constituir como pessoas” – opôs ao argumento de que as pessoas devem ser avaliadas pelo que fazem e pelo que são.

4.5.7 Ministro Gilmar Mendes

Sétimo ministro a votar, Gilmar Mendes também se posicionou pela improcedência da ADPF 186, mas fez resalvas no sentido de que, por se tratar de um programa pioneiro nas universidades federais, ele está sujeito à questionamentos e aperfeiçoamento: “o modelo da UnB, nas universidades públicas federais, tem a virtude e, obviamente, os eventuais defeitos de um modelo pioneiro, feito sem paradigmas anteriores”.

O ministro entende que ação afirmativa é uma forma de aplicação do princípio da igualdade. Destacou que em muitos casos este princípio exige uma atuação do Poder Público para realizar efetivamente a equiparação de grupos que se encontram em situações vulneráveis. E assinalou: “A própria Constituição preconiza medidas de assistência social como política de compensação”.

O critério exclusivamente racial – principal questão –, diferentemente de outros programas que adotam também critérios socioeconômicos, para Mendes “resvalou para uma situação que é objeto de crítica e até de caricatura”: a seleção fica a critério de uma espécie de “tribunal racial”. Os defeitos são conhecidos, como no caso dos irmãos gêmeos univitelinos em que um foi considerado negro e o outro não – exemplificou.

Para o ministro, o baixo número de negros nas universidades é consequência de um processo histórico, resultado de um modelo escravocrata de desenvolvimento, somado à baixa qualidade das escolas públicas e à “dificuldade quase lotérica” de ingresso às universidades por meio do vestibular. Neste ponto, destacou a possibilidade da ocorrência de situações indesejáveis: este modelo de cota pode permitir que os negros de boa condição socioeconômica e de estudo dele se beneficiem. O ministro, que defende a adoção de critérios objetivos, como o de índole socioeconômica, assinalou que este fundamento poderia levá-lo a posicionar-se pela procedência da arguição, mas reconheceu que “que esse é um modelo que está sendo experimentado, cujas distorções vão se revelando no seu fazimento”. “E não se pode negar a importância de ações que levem a combater essa crônica desigualdade” presente no país.

4.5.8 Ministro Marco Aurélio

“A meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”, disse o ministro Marco Aurélio coerentemente com seu entender de que as ações afirmativas devem ser utilizadas para a correção de desigualdades. Contudo, advertiu que o sistema de cotas deve ser extinto logo que essas diferenças sejam eliminadas, “mas estamos longe disso”.

Segundo o ministro, “a prática das ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras é uma possibilidade latente nos princípios e regras constitucionais aplicáveis à matéria” e a supremacia da Constituição[37] e o princípio da autonomia universitária[38] autorizam sua implementação, ainda que por deliberação administrativa.

Contradizendo a afirmação do DEM, Marco Aurélio destacou que a adoção ações afirmativas desse molde não resultariam em um Estado racializado, citando como exemplo a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) que vale-se de cotas em favor dos negros e outras minorias: “ao menos até agora essa não foi uma consequência advinda da mencionada política. São mais de 10 anos de práticas sem registro de qualquer episódio sério de tensão ou conflito racial no Brasil que possa ser associado a tais medidas.”

O ministro afirmou que a atual Constituição Federal ultrapassa a igualização estática, que somente proíbe a discriminação (meramente negativa). A CF de 1988 almeja uma igualização eficaz, dinâmica. “Não basta não discriminar. É preciso viabilizar, e a Carta da República oferece base para fazê-lo, as mesmas oportunidades”.

Finalizando seu voto defendendo a correção das desigualdades: “Façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal”.

4.5.9 Ministro Celso de Mello

Para o ministro Celso de Mello, o sistema adotado pela UnB está de acordo com a Constituição Federal e com os tratados internacionais referentes à defesa dos direitos humanos.

Na sua avaliação, o modelo implementado pela universidade é um mecanismo compensatório que se destina a concretizar o direito da igualdade. “O desafio não é apenas a mera proclamação formal de reconhecer o compromisso em matéria dos direitos básicos da pessoa humana, mas a efetivação concreta no plano das realizações materiais dos encargos assumidos”.

Mencionou a temporariedade das ações afirmativas ao lembrar que os resultados serão reavaliados em dez anos: “As políticas públicas têm na prática das ações afirmativas um poderoso e legítimo instrumento impregnado de eficácia necessariamente temporária, já que elas não deverão ter a finalidade de manter direitos desiguais depois de alcançados os objetivos”.

Mello salientou que as universidades não deveriam limitar-se ao sistema de cotas: “As políticas públicas podem se valer de outros meios, mas temos que considerar a autonomia universitária, garantida pela Constituição Federal”.

O ministro acentuou que o assunto possui dimensão moral:

O racismo representa grave questão de índole moral que se defronta qualquer sociedade, refletindo uma distorcida visão do mundo de quem busca construir hierarquias artificialmente fundadas em suposta hegemonia de um certo grupo étnico-racial sobre os demais.

Apresentou uma contradição dentro de uma sociedade que tolera práticas discriminatórias e qualifica-se como social e democrática, pois frustrar e aniquilar a condição de cidadão da pessoa que sofre exclusão estigmatizante propiciada pela discriminação e ofender valores essenciais da pessoa humana e da igualdade:

Representa a própria antítese dos objetivos fundamentais da República, dentre os quais figuram aqueles que visam a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, inteiramente comprometida com a redução das desigualdades sociais.

Em apontamento presente no endereço eletrônico do STF, o ministro, no voto, apontou a dimensão do racismo quanto à violação de direitos:

A Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2001, na cidade de Durban (África do Sul), reconheceu que o racismo representa uma grave violação de todos os direitos humanos e um injusto obstáculo ao gozo pleno dos direitos e prerrogativas das pessoas, além de significar uma injusta negação do dogma de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e notícia direitos.

Por fim, o ministro destacou que a repulsa ao racismo, no Brasil, se tornou expressa com a Constituição de 1988 e também com a subscrição de tratados internacionais neste sentido.

4.5.10 Ministro Ayres Britto

O julgamento foi encerrado com o voto do ministro presidente Ayres Britto. Este seguiu integralmente o voto do relator e ratificou a validade das ações afirmativas: “As políticas públicas de justiça compensatória, restaurativas, afirmativas ou reparadoras de desvantagens históricas são um instituto jurídico constitucional”.

É notícia do Supremo Tribunal Federal que o voto de Britto:

Enfatizou a distinção entre cotas sociais e cotas raciais, a partir do preâmbulo da Constituição da República – que fala em assegurar o bem estar e na promoção de uma sociedade “fraterna, pluralista e sem preconceitos”.  Para o presidente do STF, o “bem estar” tem caráter material e se refere à distribuição de riquezas, enquanto a fraternidade, a pluralidade e a ausência de preconceitos vão além da questão material. A inclusão de tais expressões no texto constitucional partiu, segundo o ministro, da verificação empírica de “um estado genérico e persistente de desigualdades sociais e raciais”.

[...]

A diferença entre as políticas afirmativas sociais e raciais se explicita, segundo Ayres Britto, quando se constatam “desigualdades dentro das desigualdades”, ou seja, quando uma desigualdade – a econômica, por exemplo – potencializa outra – como a de cor. Daí a necessidade de políticas públicas diferenciadas que reforcem outras políticas públicas e permitam às pessoas transitar em todos os espaços sociais – “escola, família, empresa, igreja, repartição pública e, por desdobramento, condomínio, clube, sindicato, partido, shopping centers” – em igualdade de condições, com o mesmo respeito e desembaraço

O ministro também mencionou o caráter histórico do preconceito racial, porém afastou a ideia de que a nação está pagando pelo erro de seus ancestrais. “A nação é uma só, multigeracional”; “O que fez uma geração pode ser revisto pelas gerações seguintes”.

Para Britto, já se posiciona vantajosamente na escala social quem não sofre preconceito, e internaliza a desigualdade quem a sofre.

“O preâmbulo da Constituição é um sonoro ‘não’ ao preconceito, que desestabiliza temerariamente a sociedade e impede que vivamos em comunhão, em comunidade”. Porém destacou que a CF não se limitou em proibir o preconceito ao mencionar que são objetivos fundamentais do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e a promoção do bem de todos sem preconceitos[39], e que o artigo 23, X, da Lei Maior brasileira atribui aos entes da Federação o combate das causas da pobreza e dos fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.

Britto encerrou seu voto afirmando que a Constituição validou todas as políticas públicas destinadas a impulsionar as esferas sociais histórica e culturalmente desfavorecidas. “São políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação”.


5 CONCLUSÃO

Com o exposto neste trabalho pode-se concluir:

1) A história mostra uma evolução sobre a concepção da igualdade: a desigualdade não deve subsistir e a mera igualdade formal, perante a lei, que pode ser traduzida no princípio da regularidade da aplicação do direito, não é mais suficiente. Hoje, o entendimento prevalecente é que a igualdade deve materialmente ser atingida. Para isso, ou seja, a consecução da igualdade material, é possível estabelecer distinções constitucionalmente aceitas desde que sejam seguidas certas regras. Em suma, devem ser repudiadas as diferenciações quando: a) a norma, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, coisas ou situações, singulariza, atual e definitivamente, seu destinatário; b) a norma nomeia como critério discriminador, com a finalidade de diferenciação de regimes, elemento não residente nos destinatários; c) entre o fator de discriminação e o tratamento jurídico diferenciado adotado não haja correlação lógica; d) ainda que existente a referida correlação lógica, esta não guarde pertinência com os interesses constitucionais prestigiados; e) finalmente, da interpretação da norma retira-se dela distinções, desequiparações ou discrimens que não foram expressamente adotados por ela de modo claro, ainda que implicitamente.

2) As ações afirmativas surgiram nos Estados Unidos da América em meio de um período de constantes movimentos em prol da democracia e dos direitos civis, que clamavam igualdade de oportunidades. Estas são medidas que visam à inclusão social (no sentido mais amplo possível) através da criação de oportunidades diferenciadas em benefício de grupos historicamente prejudicados por práticas discriminatórias. As ações, por sua própria natureza, estão intimamente ligadas ao princípio da igualdade e são ferramentas de justiça social efetiva, pois, como já mencionado, têm como objetivo a inclusão social de minorias. Minorias estas não no sentido de quantidade, mas no de grupos sociais que se encontram em situação de inferioridade, ou subordinação, sócio-econômica, política ou cultural em relação a outro grupo.

3) Finalmente, observa-se, através do julgamento da ADPF 186, que o Supremo Tribunal Federal, corretamente, posicionou-se a favor das ações afirmativas. O egrégio, numa profunda análise social e constitucional, concluiu, inclusive, pela constitucionalidade das chamadas cotas raciais, desde que pautadas na razoabilidade, proporcionalidade e demais princípios a elas inerentes.


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Notas

[1] O princípio da igualdade, provavelmente tenha sido utilizado em Atenas, na Grécia antiga, por volta de 508 A.C. por Clístenes, o pai da democracia ateniense. Entretanto, sua concepção mais próxima do modelo atual data de 1.215 D.C., quando o Rei João sem Terra (John Lackland) é obrigado a assinar a Magna Carta britânica (Magna Charta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae - Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês), considerado o início da Monarquia Constitucional, de onde originou-se o princípio da legalidade, com o intuito de resguardar os direitos dos burgos, os quais o apoiaram na tomada do trono do então Rei Ricardo Coração de Leão.

[2] Consagrou a igualdade entre patrícios e plebeus.

[3] Estendeu a igualdade às populações de outras etnias.

[4] Concedeu os direitos de cidadania de todos os habitantes do Império Romano.

[5] Senhores feudais (os mais poderosos) cujos feudos os outros feudos dependiam.

[6] Nobres que recebiam feudos de seus suseranos; eram ligados a um suserano por juramento de fé e homenagem  em troca de proteção e benefícios.

[7] Emenda à Constituição de 24 de janeiro de 1967.

[8] Para Tavares, da mesma forma, não é suficiente a fórmula aristotélica “e isto porque não é capaz de informar quando ou como distinguir os desiguais dos iguais” (TAVARES, 2007, p. 526).

1 “A interpretação de qualquer objeto cultural submete-se a algumas condições essenciais, sem as quais o objeto não pode ser sequer apreendido. A essas condições essenciais dá-se o nome de postulados.” (ÁVILA, 2010, p. 124)

[10] Como já mencionado, e adiante exposto, o fundamento lógico que autoriza a desequiparação deve ser orientado pelos interesses constitucionalmente prestigiados.

[11] O dano da injustiça social histórica a ser reparado é o sofrido atualmente, como exposto adiante.

[12] Este argumento é um dos pilares da argumentação da ADPF 186, a seguir comentada. “Esse é, entretanto, um pilar de barro sob o qual se sustenta o movimento contrário às cotas. Ora, a afirmação de que a ação afirmativa promove a racialização e o aumento ou criação de conflito racial é um argumento descritivo, e, portanto, passível de comprovação ou falsificação empírica.

 As políticas de ação afirmativa já estão em funcionamento há mais de seis anos em nosso país, sem produzirem qualquer sinal de aumento do conflito racial, seja na universidade ou fora dela. Pelo contrário, o que vemos são os testemunhos de reitores e administradores públicos atestando os efeitos benéficos da democratização do espaço universitário trazidos por essas políticas” (FERES, 2012, p. 6).

[13] Há quem diga que as ações afirmativas foram criadas na Índia. É certo que este é um país marcado há séculos por uma grande diversidade cultural e étnico-racial, como também por desigualdade decorrente de uma rígida estratificação social. Com a intenção de reverter este cenário político constrangedor e responsável por acarretar conflitos sociais desagregadores que se tornaram conhecidos pela criação de castas, foi aprovado o Government of India Act (que estabelecia discriminações positivas em benefício das classes desfavorecidas, ou seja, era uma ação afirmativa), também no ano de 1935, porém após o The 1935 National Labor Relations Act, no mês de agosto.

[14] “O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’ pura e simples desse núcleo essencial a liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado” (CANOTILHO apud RIBEIRO, 2011, p. 175-176). Dessa forma, o retorno dos efeitos já combatidos de determinada discriminação caracterizar-se-ia o retrocesso. “Com efeito, afrontaria tal princípio o fim da vigência de uma ação afirmativa em virtude de sua temporariedade, com consequente regresso da discriminação cuja efetiva compensação já fora incorporada ao patrimônio jurídico dos discriminados” (RIBEIRO, 2011, p. 176).

[15] Ribeiro conceitua ações afirmativas como: “normas jurídicas temporárias que visam a eliminar conjunturas discriminatórias sofridas por determinados grupos sociais, dispensando tratamento desigual em benefício de tais grupos, justificando-se pela promoção de uma realidade materialmente igualitária. Ainda, em análise menos pragmática, as ações afirmativas não são senão instrumentos de aplicação de justiça nos quais a injustiça, ainda que conhecida, não é palpável – e, por isso, de mais difícil coibição” (RIBEIRO, 2011, p. 170)

[16] Art. 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

[17] Ainda considerando para a classificação que as ações afirmativas devem, necessariamente, ser normas jurídicas

[18] Dentre eles: “O professor Evandro Piza Duarte, da Faculdade de Direito, acredita que uma decisão contrária ao Sistema de Cotas na UnB poderá implicar um descumprimento de tratados internacionais, como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, assinada pelo Brasil em 1966. Se o Supremo alegar que raça não pode ser critério para o acesso ao ensino superior estará dizendo que no país não existe discriminação racial, avalia. Esse momento me lembra do debate sobre o fim da escravidão que tomou o Brasil durante 70 anos, atrasando o desenvolvimento nacional.”; “O professor Joaze Bernardino-Costa, do Departamento de Sociologia, aposta que a UnB vencerá o julgamento. Desconsidero a possibilidade do sistema de cotas da UnB ser derrubado, afirma. Ele diz que um parecer favorável do Supremo abrirá espaço para o aperfeiçoamento do sistema de cotas, com a discussão sobre políticas públicas de permanência na instituição e o apoio a pesquisas na área”; “Se o STF se manifestar a favor do sistema de cotas, isso demonstrará o reconhecimento da importância da luta da população negra pelos seus direitos. Caso contrário, será uma tragédia, um descrédito para o sistema judicial, avalia o diretor do Centro de Consciência Negra (CCN), Ivair Augusto dos Santos. Aqueles que minimizam a questão o fazem ou porque são racistas ou por não conhecerem a realidade de quem sofreu na própria pele”; ”Já o professor Nelson Inocêncio, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, analisa que um posicionamento favorável do STF representará o reconhecimento do desejo, não somente dos segmentos afro-brasileiros, mas de várias instituições que já adotam algum sistema inclusivo. Já a postura contrária, de acordo com o professor, além de conservadora, será contraditória. Durante o século XIX, o Estado brasileiro desenvolveu políticas para assistir aos filhos de emigrantes europeus, preterindo outros segmentos sociais que ficaram vulneráveis ao longo de todo século XX. É necessária essa reparação para que as relações entre negros e brancos sejam equilibradas”.  (GONÇALVEZ, 2012). (Evandro Piza Duarte: Mestre em Direito pela UFSC; Professor de Processo Penal e Direito Penal na UniBrasil; Membro da Comissão que formulou a proposta para a criação do Plano de Metas de Inclusão Racial e Social da UFPR 2004/2005; coautor do livro “Cotas Raciais no Ensino Superior - Entre o Jurídico e o Político”); (Joaze Bernardino-Costa: Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Atualmente é secretário da Comissão Científica do CEBUDV); (Ivair Augusto dos Santos: sociólogo e especialista em igualdade racial e direitos humanos; autor do livro “Direitos Humanos e as Práticas de Racismo”, resultado de tese de doutorado defendida na Universidade de Brasília); (Nelson Inocêncio: professor do Instituto de Artes da Universidade de Brasília; coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab);  autor do livro Consciência Negra em Cartaz).

[19] “Do contrário: acredita-se que no Brasil o desenvolvimento de políticas afirmativas é um dos principais caminhos para a construção de uma sociedade livre, justa, solidária, tolerante, plural, diversificada” (Petição inicial da ADPF 186, p. 25).

[20]  Primeiro dia do julgamento da ADPF 186.

[21]  Nos EUA o critério para definir quem é, ou não, negro é o do sangue; quem tiver, ainda que um único, ancestral negro é definido racialmente como negro. “Aqui no Brasil, se adotássemos a regra da gota de sangue, quem de nós não seria negro?” – questionou Kaufmann. “Após a Nigéria, somos o país com maior carga genética africana do mundo!” (Petição inicial da ADPF 186, p. 29).

[22] Houve, também, manifestação em sentido contrario. A advogada Vanda Gomes Siqueira posicionou-se contra o modelo de cotas adotado pela UnB: “O problema do Brasil é a pobreza, não a cor da pele. Isso está causando o ódio racial”. Para ela, o mais justo seria estabelecer cotas sociais e não raciais.

[23] A Procuradora federal da União Indira Ernesto Silva Quaresma, não como “amigo da Corte”, mas como responsável pela defesa da UnB, afirmou que o modelo adotado pela universidade “perturbou a ordem exclusivista” de acesso ao ensino superior no país e lembrou: “Nós, negros, continuamos sendo motivo de alijamento econômico e intelectual. A democracia racial não existe”.

[24] Neste ponto, a vice-procuradora citou trecho do voto do ministro Maurício Corrêa no caso Ellwanger, no qual o STF manteve, em 2003, a condenação do editor Sirgfried Ellwanger por crime de racismo pela publicação de livros de conteúdo antissemita.

[25] Lewandovsk indicou o art. 4º, § 1º, da Lei 9.882/1999 e mencionou: “Saliento, nessa linha, que o entendimento desta Corte é o de que, para aferir-se a subsidiariedade, é preciso ter em conta a inexistência ou não de instrumentos processuais alternativos capazes de oferecer provimento judicial com eficácia ampla, irrestrita e imediata para solucionar o caso concreto sob exame”.

[26] A grosso modo, justiça distributiva busca uma resposta às desigualdades, aceitando a possibilidade de tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais.

[27] Quando do seu parecer.

[28] Segundo Lewandovski, este conceito é de Myrl Duncan.

[29] O método adotado pela UnB considera, de forma combinada, a declaração do próprio estudante e o parecer de uma banca entrevistadora.

[30] Dentre as que citou: Lei 9.394/1996 (Lei das Diretrizes e Base da Educação Nacional), que estabelece o dever do Estado com a educação de acordo com os princípios da liberdade e  ideais de solidariedade humana; Lei 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação); Lei 10.558/2002, que criou o Programa Diversidade na Universidade; Lei 10.678/2003, que criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; e Decreto-Lei 65.810/69, que promulgou a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial.

[31] Disse a ministra: “Se a quantidade de brancos e negros pobres fosse aproximada, seria plausível dizer que o fator cor é desimportante”.

[32]  “A igualdade se apresenta na construção do constitucionalismo moderno de duas formas: viés formal e material. A igualdade formal é a igualdade perante a lei, que permite que todos sejam tratados em abstrato da mesma forma. Se todos têm os mesmo direitos e obrigações, todos são igualmente livres para realizar suas próprias perspectivas de vida”.

[33]  Disse Weber: “Identificadas essas desigualdades concretas, a presunção de igualdade deixa de ser benéfica e passa a ser um fardo, porque impede que se percebam as necessidades concretas de grupos que, por não terem as mesmas oportunidades, ficam impossibilitados de galgar os mesmos espaços daqueles que estão em condições sociais mais favoráveis”

[34] “O debate constitucional sobre as ações afirmativas”

[35] Este dispositivo estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre eles construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[36] Aqui e agora.

[37] No seu voto, o ministro Marco Aurélio também ressaltou: “Só existe a supremacia da Carta quando, à luz desse diploma, vingar a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica”

[38] Previsto expressamente na Constituição Federal: artigo 207.

[39] CF, art. 3º, III e IV.



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