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Lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores

Lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores

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Sumário:1. Introdução_2. Origem_ 3. Aspectos Criminológicos_ 4.Bem Jurídico Penalmente Protegido nos crimes de Lavagem de Dinheiro_ 5.Natureza do Delito _ 6. Momentos do Delito de Lavagem de Dinheiro_ 7. Elementares do Tipo _ 8. Participação_ 9. Lavagem versus Sonegação Fiscal _ 10. Princípio da Dupla Incriminação_ 11. Procedimentos especiais adotados pela lei.


1.Introdução:

O crime de Lavagem de Dinheiro é de uma complexidade imensurável, o que torna seu estudo extremamente interessante e indispensável. Comporta inúmeras discussões controvertidas iniciando-se pela análise do próprio bem jurídico que se pretende proteger desde as suas origens mais remotas. A presença deste delito nas sociedades causou até uma mudança a respeito das teorizações criminológicas, mudando a vertente de muitos estudos anteriores como se pretende demonstrar adiante.

O crime de lavagem de dinheiro surgiu por volta dos anos vinte do século passado, quando as chamadas ´organizações criminosas´ procuraram meios de disfarçar e ocultar as grandes montas de bens, direitos e valores que obtinham através de outras práticas criminosas. Visavam com isso sair das possíveis rotas de investigações policiais fazendo com que os bens, valores e direitos, produtos de delitos graves, retornassem ao mercado econômico - financeiro como se fossem legais e lícitos, evitando suspeitas, com o fim último de evitar igualmente o descobrimento pelas autoridades da cadeia criminal e a identificação de seus autores.

Com o crescimento do mercado econômico mundial o crime de lavagem de dinheiro tomou uma dimensão gigantesca tornando-se uma preocupação mundial e fazendo surgir uma neocriminalização de cunho internacional, uma vez que a maioria dos autores deste delito são organizações criminosas que, com o delito de lavagem de dinheiro, conseguem dar uma aparência legal ao produto ilícito para refinanciarem novas atividades criminosas.

Os crimes graves tomam dimensões mundiais e, seus autores, através do delito de lavagem de dinheiro, adquirem um poder econômico convertendo-se em exponencial, fazendo com que economias inteiras caiam sob seu controle ao mesmo tempo em que patrocinam crimes graves com financiamentos de aparência lícita.

Essa reciclagem de dinheiro converte-se, assim, em requisito imprescindível para a sua impune introdução no circuito econômico; o dinheiro lavado pode então ser investido sem levantar suspeitas e contribuir para que seus detentores se adornem com um verniz de responsabilidade sob a cobertura de atividades honráveis (CALLEGARI,2001, p.49).

O conceito deste fenômeno lavagem de dinheiro é para a maior parte da doutrina estrangeira "o processo ou conjunto de operações mediante o qual bens ou dinheiro resultantes de atividades delitivas, ocultando tal procedência, se integram no sistema econômico ou financeiro (DIAZ - MAROTO, 1999, p.05).

Diez Ripollés comenta que o ´branqueamento de capitais´ refere-se aos procedimentos pelos quais se aspira a introduzir no tráfico econômico - financeiro legal os grandiosos benefícios obtidos a partir da realização de determinadas atividades delitivas especialmente lucrativas, possibilitando assim que se desfrute as quantias juridicamente inquestionáveis (RIPOLLÉS, 1994, p.609).

Iniesta assinala que por lavagem de dinheiro ou bens entende-se a operação através da qual o dinheiro de origem sempre ilícita é investido, ocultado, substituído ou transformado e restituído aos circuitos econômico-financeiros legais, incorporando-se a qualquer tipo de negócio como se fosse obtido de forma lícita (GOMEZ INIESTA, 1996, p.21).

Percebe-se que todas as definições são bem semelhantes, apesar das diversas definições que são dadas a esses delitos de lavagem de dinheiro. Como se verifica adiante.


2.Origem:

A origem deste delito volta-se para as primeiras formas de organizações criminosas que começaram a despontar no mundo, as máfias. Pode ser interessante começar como a experiência norte - americana, lá no ano de 1920, quando o contrabando ilegal de bebidas estava tendo impacto similar na repressão ao crime, da mesma maneira que o crime de tráfico de drogas viria representar a partir do ano de 1970. Gangues de operadores independentes seriam logo organizadas por uns poucos criminosos criativos que usariam a corrupção e a extorsão para preservarem suas organizações criminosas. O mais famoso destes criminosos foi Al Capone que, enquanto operava fora de Chicago, dirigiu um sindicato nacional do crime, grande e poderoso. Todos sabiam que ele era um assassino, contrabandista e extorquia dinheiro, mas não podiam prová-lo. [1]

Al Capone foi preso por sonegar impostos e não pelos crimes que havia cometido. Não querendo decair no mesmo erro de Al Capone, as organizações criminosas passaram a pensar em uma forma de inserirem no mercado financeiro o produto do crime de maneira que ele não fosse descoberto. Foi o que fez Meyer Lansky, famoso por contratar seus próprios contadores para criarem métodos de legalizar, através de operações financeiras, o dinheiro sujo. Uma saída encontrada por Meyer Lansky foi o empréstimo de dinheiro a Bugsy Siegel para a criação de estabelecimentos de jogo na famosa Las Vegas.

Um de seus objetivos nesse investimento era o de propiciar uma oportunidade para lavar o dinheiro das quadrilhas. Os cassinos eram e ainda são excelentes locais para disfarçar rendimentos de procedência ilícita. Lansky também abriu negócio em Cuba, com o apoio de máfias italianas, tornando-se o primeiro centro financeiro offshore. Assim foi que começaram a tomar dimensões internacionais as formas de ocultação e dissimulação de bens, direitos e valores.

À medida que se aprende mais sobre as organizações criminosas começa-se a apreciar cada vez mais o lado financeiro do crime.

Nos anos sessenta, as drogas tornaram-se tão lucrativas que as organizações se atentaram para as possibilidades de sua expansão. O Continente Americano foi inundado por moeda ilegal oriunda dos delitos de tráfico de drogas. As operações de compra e venda de substâncias entorpecentes e drogas afins não são realizadas com cartões de créditos ou cheques, são pagos em dinheiro vivo; esse fato ocasionou grandes dificuldades de investigação. Em meados dos anos setenta as organizações criminosas circulavam com maletas recheadas de dinheiro a procura de Instituições Financeiras que possibilitassem a abertura de conta bancária com sigilo absoluto, evitando os rastros das autoridades ao dinheiro sujo. Nos Estados Unidos essas constantes operações financeiras fizeram com que fosse promulgada a Lei de Sigilo Bancário em 1970, com nome estranho, pois ao invés de exigir o sigilo bancário, ela estabelecia uma obrigação aos bancos e outras instituições financeiras de informar ao governo federal de todas as transações em dinheiro de mais de $ 10,000 (dez mil dólares).

A oposição dos Bancos e Instituições a essa Lei e as demais formas de interferência governamental nas operações pessoais levantava a polêmica da inconstitucionalidade da lei por violar o direito à privacidade; a Lei de Sigilo Bancário, nos Estados Unidos, levou muitos bancos e instituições a processarem o governo norte - americano.

Apenas em 1986, a lavagem de dinheiro foi criminalizada, devido, principalmente a um flagrante de lavagem realizado por um procurador de justiça de Massachussets empenhado em acabar com um grupo de crime organizado. Ele descobriu vultosas transações em dinheiro feitas pelo Banco de Boston para o grupo, que simplesmente não eram notificadas. Conseguiu obter mandado de apreensão para os oficiais deste banco e chamou seus amigos da mídia para que trouxessem suas câmeras de televisão e testemunhassem as prisões.

O mesmo acontecia do outro lado do mundo, principalmente na Itália, onde o governo italiano se empenhava para desvendar práticas que ocultavam os produtos dos crimes organizados. Verificou-se que se fosse possível impedir que tais grupos criminosos viessem a desfrutar de seus lucros ilícitos poder-se-ia realizar um combate mais preciso e direcionado aos crimes precedentes. Foi o que ocorreu na Itália tempos atrás com uma operação dura e de grande potencial policial, denominada Operação Mãos Limpas.

As Instituições Financeiras e Bancárias tornaram-se verdadeiros paraísos fiscais, longe das fiscalizações acirradas de países que criminalizaram duramente práticas financeiras ilícitas, passaram a representar um refúgio para operações financeiras de produtos ilícitos, como os Bancos Suíços, as aplicações em dólares em Hong Kong, os investimentos imobiliários em Mônaco, etc.

Importante dizer que o delito de lavagem de dinheiro não está apenas adstrito às organizações criminosas, apesar se serem estas seus autores maioria das vezes, é possível verificar a prática deste delito também por empresários, quadrilhas, bandos, por uma pessoa que tenha cometido apenas um roubo a um Banco e deseja ocultar o valor roubado, etc.

Claramente que as organizações criminosas e terroristas [2] é que contribuem para uma maior problemática, vez que são estas que internacionalizam o delito de lavagem de dinheiro com maior facilidade.

Devidos às dimensões exorbitantes que adquiriu o delito de lavagem de dinheiro através da grave criminalidade, no ano de 1988, em dezembro na Convenção de Viena, diversos países participaram das discussões a respeito da criminalização do delito lavagem de dinheiro, utilizando-se das experiências de alguns países.

Pensaram diversas formas de crimes e condutas que poderiam ser reprimidas automaticamente com o combate direto ao delito de lavagem; assim, a criminalização do delito de lavagem de dinheiro representa mais uma forma de tentativa de se prevenir os delitos graves que o antecedem do que ele por si só, impedindo que o autor de delito grave fique impedido de usufruir dos lucros do crime.

O termo lavagem de dinheiro, utilizado pela Legislação Brasileira, remonta-se às organizações mafiosas norte-americanas, que, na década de 1920, aplicavam em lavanderias o capital obtido com atividades criminosas, é uma forma genérica de referir-se, segundo Marco Antônio de Barros, à operação financeira ou à transação comercial que oculta ou dissimula incorporação transitória ou permanente, na economia ou no sistema financeiro do país, de bens, direitos e valores que direta ou indiretamente são resultado ou produto de crimes.(BARROS, 1998, p.24).

Importante atentar-se a terminologia deste delito utilizada de maneiras diversas entre os países; isso se deve ao bem jurídico que se pretende proteger em cada país e ao direcionamento político-criminal que se pretende atingir.

Há três terminologias que os países utilizam para este delito, a primeira é a da língua francesa blanchiment d´argent, que resultou em espanhol e português na expressão ´branqueamento de dinheiro´; de outro lado, a experiência americana e alemã, money laundering e gueldwaschen, ou seja, que nominam o ilícito, tendo em vista a ação desenvolvida de lavagem ou de ação e conduta que produzam o resultado visado. Já as línguas francesa, espanhola e portuguesa, de Portugal, optavam pelo resultado, ou seja, o branqueamento. A única expressão autônoma é a dos italianos, que denominam o ilícito de riciclaggio.

O Brasil optou pela expressão lavagem de dinheiro aproximando-se da experiência norte - americana e alemã. O termo lavagem de dinheiro para caracterizar este ilícito remonta ao crime primário, não considerando apenas a ação que origina o resultado (lavagem, branqueamento, reciclagem, etc.), isso porque a intenção da criminalização da lavagem de dinheiro não visa apenas impedir o resultado lucrativo oriundo da lavagem, mas principalmente pretende desinsentivar as práticas criminosas que precedem o delito de lavagem, evitando que os autores de crimes graves não possam usufruir os lucros com a operação de lavagem de dinheiro. Pretende também facilitar as investigações a respeito das organizações criminosas procurando evitar essa neocriminalização internacional, podendo, assim, garantir uma proteção mais eficaz e preventiva dos bens jurídicos protegidos pelos crimes graves que precedem obrigatoriamente o delito de lavagem de dinheiro; representa uma verdadeira medida político-criminal de prevenção de delitos graves de dimensões mundiais.


3.Aspectos Criminológicos:

As práticas das organizações criminosas mudaram sobremaneira os estudos criminológicos que vinham sendo desenvolvidos na década de trinta do século passado. As teorias criminológicas como a marxista e a positivista defendiam que a criminalidade direcionada aos bens patrimoniais era restrita às camadas mais pobres da sociedade; ocasionada, claramente pela necessidade material das pessoas. Os delitos contra as pessoas e os costumes eram vistos com mais facilidade entre pessoas em melhor situação financeira, principalmente os crimes passionais. Os estudos, muitas vezes, realizados por métodos empíricos e desenvolvidos por estatísticas, não demonstravam uma análise científica real.

A partir da eclosão das organizações criminosas, as teorias positivistas e as socialistas da criminologia foram sendo rebatidas quanto ao conceito que defendiam sobre "o meio como único responsável pelos índices de criminalidade" (o meio faz e direciona as atitudes humanas),como as teorias socialistas que sustentavam que o capitalismo originava a criminalidade patrimonial, pois as organizações criminosas não eram formadas por pessoas que possuíam necessidades materiais, pelo contrário, eram formadas por grandes empresários e famílias chefiadas por esquemas mafiosos, que cometiam crimes patrimoniais em sua maioria.

A vertente das pesquisas criminológicas passou de um estudo quantitativo para um estudo qualitativo (DIAS, 1997,p.68), pois os crimes patrimoniais de grande importância, cujas quantidades desviadas, sonegadas, contrabandiadas, etc., eram muitas mais significativas, em milhões e bilhões, do que simples roubos corriqueiros de centros de cidades, o que punha em perigo ou lesionava de forma muito maior o bem jurídico patrimônio.

Estas análises criminológicas ensejaram novas teorizações originando as Teorias Críticas que procuraram verificar o grau de criminalidade não apenas através do meio, mas também pelo bem jurídico essencial à sociedade e os problemas que ligam logicamente a criminalidade, sociedade e o comportamento.

Esta idéia da sociedade como intrinsecamente criminógena, que cedo se implantou na criminologia americana, viria ainda a reforçar-se com a teoria do white - collar crime. Teoria que, por um lado, invalidou definitivamente a representação tradicional do crime como exclusivo das classes deserdadas ou desqualificadamente inseridas na sociedade.

Assim, passou-se a análise de que não se poderia continuar a sustentar a idéia de que o crime era resultado apenas de anomalias patológicas ou miséria social, mas sim que se deveria realizar uma interpretação do funcionamento do sistema social para a averiguação real dos fatos que originam o crime, portanto, de domínio sociológico.

A sociedade americana, que viu a criminalidade crescer em meio ao bem-estar material, detectou a possibilidade de se localizar as causas do crime em algo que sempre será possível transformar através de adequado social engeneering.

As teses criminológicas fundamentais americanas foram desde a escola ecológica de Chicago, passando pelas teorias culturalistas e funcionalistas, até as modernas perspectivas interacionistas e, mais recentemente, a etnometodologia e as teorias críticas. Tal foi, de forma simplificada, a evolução da sociologia americana.

Os crimes denominados ´crimes de colarinho branco´ foram crimes que surgiram com a sonegação fiscal praticada pelos grandes empresários, políticos e chefes de organizações criminosas que, direta ou indiretamente, tinham alguma ligação. Como exemplo, o caso de Al Capone que, desconhecendo as formas de lavagem de dinheiro, acabou condenado por sonegação fiscal. Assim, a sonegação fiscal, quando seu autor ocultar ou dissimular bens derivados dessa ilegalidade, também será um crime precedente que caracterizará a lavagem de dinheiro (o crime de sonegação fiscal é um delito que também se pretende evitar com a criminalização do delito de lavagem).

As organizações criminosas são as principais responsáveis pelos delitos que precedem a lavagem de dinheiro e, conseqüentemente, por este delito. Há entretanto, grandes dificuldades para se conceituar o que vem a ser um crime organizado, bem porque em cada setor e em cada lugar o crime organizado já alcançou um estágio diferenciado.

De acordo com a doutrina de Manuel López - Rey, existem duas modalidades de crime organizado: a norte - americana - italiana, que tem uma certa categoria internacional, e a mais modesta, de índole regional ou local, que pode florescer em qualquer país. A primeira, principalmente, caracteriza-se por uma organização rígida, uma certa continuidade dinástica, pelo afã de respeitabilidade de seus dirigentes, severa disciplina interna, lutas intensas pelo poder, métodos poucos piedosos de castigo, extensa utilização da corrupção política e policial, ocupação tanto em atividades ilícitas como lícitas, simpatia de alguns setores eleitorais, distribuição geográfica por zonas, enormes lucros, etc. (GOMES,1997, p.74).

A criminalidade organizada, seguindo a linha argumentativa do autor acima citado, contribui amplamente para as chamadas cifras obscuras da criminalidade e se beneficia não menos amplamente da impunidade. São associações delinqüências complexas, com programa permanente e infiltrações no Estado - legal.(MAIEROVITCH, RT 694/445).

Como observa Hassemer,

A criminalidade organizada não é apenas uma organização bem feita, não é somente uma organização internacional, mas é, em última análise, a corrupção da legislatura, da Magistratura, do Ministério Público, da polícia, ou seja, a paralisação estatal no combate à criminalidade... é uma criminalidade difusa que se caracteriza pela ausência de vítimas individuais, pela pouca visibilidade dos danos causados bem como por um novo modus operandi (profissionalidade, divisão de tarefas, participação de gente insuspeita, métodos sofisticados etc.). Ainda mais preocupante, para muitos, é fruto de uma escolha individual e integra certas culturas.(HASSEMER,1993, p.85 e ss).

As explicações sobre o crime organizado são de extreme pertinência quando se fala de lavagem de dinheiro. O que se pode perceber é que as organizações criminosas são muito mais uma criminalidade grave (que envolve aspectos criminológicos, obviamente, e todo um contexto socio-cultural) do que um crime em si.

No Brasil, o conceito de crime organizado esta ainda em elaboração, mas é com toda certeza bem mais amplo que o conceito de quadrilha ou bando descritos no artigo 288, do Código Penal. Pode-se dizer, como saliente Flávio Gomes, que os crimes organizados englobam o substrato típico exigido pela citada lei penal, mas muito dificilmente a maioria das quadrilhas ou bandos chega a se aproximar de um crime organizado (em sentido estrito).(GOMES, 1997,p.75).

Alberto Silva Franco ressalta,

O crime organizado possui uma textura diversa: tem caráter transnacional na medida em que não respeita as fronteiras de cada país e apresenta características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder com base numa estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca danosidade social de alto vulto; tem grande força de expansão, compreendendo uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas; dispões de meios instrumentais de moderna tecnologia; apresenta um intricado esquema de conexões com outros grupos delinqüências e uma rede subterrânea de ligações com os quadros oficiais da vida social, econômica e política da comunidade; origina atos de extrema violência; exibe um poder de corrupção de difícil visibilidade; urde mil disfarces e simulações e, em resumo, é capaz de inerciar ou flagilizar os Poderes do próprio Estado. (FRANCO, Boletim IBCCrim, 1997, n.21, p.5).

O crime de quadrilha ou bando, como se sabe, possui como principais características a estabilidade e permanência da associação, e são exatamente estas características que permitem a distinção com o mero concurso de pessoas. Não se pode confundir o concurso de pessoas (eventual) com o crime de concurso necessário _ ou coletivo, ou de convergência, ou plurissubjetivo.(BITENCOURT, 1992,p.33). O crime organizado tem estas duas características da estabilidade e da permanência e algo mais.

O crime organizado caracteriza-se pela previsão de lucros, hierarquia, planejamento empresarial, divisão de trabalho, simbiose com o Estado, pautas de conduta estabelecidas em códigos, procedimentos rígidos, divisão territorial etc.(MINGARDI in GOMES, 1997, p.76). Configura um verdadeiro contrapoder criminal em concorrência ou em substituição aos poderes legais do Estado. O vínculo do crime organizado com os poderes públicos é realçado por grande parte da doutrina, inclusive estrangeira.(CHIAVARIO In GOMES,1997, p.77).

Estas questões a respeito das organizações criminosas foram apenas para demonstrar a imensidão do problema que se tem em mãos, de orla mundial, com relação à lavagem de dinheiro.


4. Bem Jurídico Penalmente Protegido nos Crimes de Lavagem de Dinheiro:

A delimitação do bem jurídico protegido pela lei de lavagem de dinheiro é bem difícil, uma vez que a prática deste delito lesiona um grande número de bens essenciais, sendo impossível dizer qual deles detêm maior importância.

Para o Direito Penal é indispensável o aspecto social do bem jurídico, devendo ser um bem imprescindível para a convivência humana em sociedade. A partir do momento que o crime de lavagem de dinheiro para ser típico deve possuir (como elementar do tipo) um crime precedente considerado grave, então qualquer bem jurídico que se definir como único a ser protegido pela lei de lavagem de dinheiro pode prejudicar a sua real finalidade: preventiva dos próprios delitos anteriores.

Em um primeiro momento, juntamente com as primeiras aparições das práticas que configuravam um delito de lavagem de dinheiro, definia-se como sendo o bem jurídico protegido o patrimônio, por aproximar-se este delito do crime de receptação dolosa.

Logo com as primeiras discussões internacionais a respeito do delito de lavagem, que tomou maior dimensão com o tráfico de drogas, acabaram por confundir o bem jurídico do crime precedente (no caso o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins) com o de lavagem de dinheiro, dizendo alguns doutrinadores ser o bem jurídico a saúde pública.

A ordem tributária foi erigida à bem jurídico, defendendo os adeptos desse posicionamento que o delito de lavagem de dinheiro interferia e acarretava prejuízo direto para o mercado econômico quanto à arrecadação do fisco.

Mais tarde, observando a restrição que a posição acima causada, alguns doutrinadores acreditavam ser a ordem sócio-econômica como um todo o bem jurídico protegido. No mesmo sentido, outro posicionamento destacou como sendo o bem jurídico o sistema financeiro como um todo, uma vez que a lavagem de dinheiro causava um prejuízo, não apenas financeira, à ordem econômica internacional como um todo.

Todos estes bens jurídicos são, sem embargos, protegidos pela lei da lavagem de dinheiro, o que ocasionou um outro posicionamento de que o bem jurídico protegido seria a Administração da Justiça, pelo cunho preventivo que a lei representa, a partir do momento que pretende evitar o crime precedente criminalizando-se a conduta que faz dos produtos ilícitos capitais com aparência legal, com lucro certo e sem vestígios dos crimes graves.

A lei de lavagem de dinheiro comporta uma preocupação político - criminal de cunho internacional, na tentativa de se evitar o financiamento e a lucratividade de organizações criminosas (principalmente, não só), bem como de evitar a impossibilidade de obtenção de provas que venham a incriminar os autores dos crimes graves, mesmo dos crimes contra o sistema financeiro.

Ante a dificuldade de se delimitar o bem jurídico protegido pela lei de lavagem de dinheiro os países, sabendo ser obrigatória a procedência ilícita do dinheiro lavado e, portanto, de crime grave, decidiram elencar um rol de crimes que pudessem configurar como elementar do tipo penal de lavagem de dinheiro.

Em uma primeira geração, originada pelas discussões da Convenção de Viena de 1988, o crime precedente ficou sendo apenas o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (talvez influenciada pela explosão lucrativa que o tráfico de drogas gerou por volta dos anos setenta e oitenta). Entretanto, observando que não era apenas esse delito de cunho grave e gerador de lucros exorbitantes, uma segunda geração apareceu ampliando o rol dos delitos precedentes, da qual a legislação brasileira se aproxima; foi adotada por países como a Alemanha, Espanha, Portugal e Brasil, apesar de a lei brasileira ter sido elaborada após a definição da terceira geração dos crimes precedentes.

A terceira geração prefere, por não definir de forma taxativa os delitos elementares do tipo do crime de lavagem, limitar-se a dizer "dos crimes graves", o que facilita muito mais a análise do delito de lavagem de dinheiro quando executado em pais diverso da execução do delito anterior, bem como corresponde, assim, uma verdadeira proposta preventiva político-criminal. Este posicionamento foi adotado pela Bélgica, França, Itália, México, Suíça e Estados Unidos.

O Brasil poderia ter adotado o posicionamento da terceira geração, o que possibilita uma melhor aplicabilidade da lei de lavagem de dinheiro e efetiva função de proteção aos bens jurídicos.

A lei de lavagem de dinheiro possui um bem jurídico complexo.


5. Natureza do Delito:

O delito de lavagem de dinheiro é um crime autônomo, apesar ter como elemento, obrigatoriamente, crime anterior. É autônomo por possuir todos os elementos do tipo, conduta própria e bem jurídico protegido, existe por si só, não dependendo do outro delito para existir (possui uma certa autonomia em relação aos demais tipos ainda que possa se apresentar de forma conectada a um outro tipo). O delito precedente obrigatório é elementar do tipo, frise-se, não o produto lavado não for ilícito não há que se falar em lavagem de dinheiro.

É um crime comum, ou seja, o agente do fato pode ser qualquer pessoa, não uma classe determinada de autores, o agente é indeterminado.

A maioria de seus dispositivos comporta a materialidade do delito, ou seja, caracterizam-no como crime material ou crime de resultado; são aqueles cuja conduta está relacionada com o resultado previsto no tipo, a não ocorrência desse resultado impede a consumação do crime (comporta as condutas comissivas e comissivas por omissão).

Entretanto, apresenta um dispositivo de mera conduta, no artigo 1°, § 2°, inciso II, quando diz: incorre, ainda, na mesma pena quem: II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei. Os delitos de mera conduta (ou crimes de atividade) são aqueles, no dizer de Maurach, em que a ação humana esgota a descrição do tipo, ´a própria ação constitui o ponto final do conteúdo típico; o resultado causal da ação, se eventualmente existente, não entra em consideração para o juízo de tipicidade, pois o tipo desses delitos encerra, de forma nítida, um desvalor da ação proibida. (TOLEDO, 1999, p.142).

Os delitos de mera conduta são formais.

Admitem claramente a tentativa às condutas comissivas do tipo penal da lei de lavagem de dinheiro. É um delito permanente. Ambas as condutas principais descritas no tipo penal : "ocultar ou dissimular" admitem a sustentação através do decurso do tempo; viabilizam a sua manutenção ou permanência com o transcurso do tempo.

Como ensina Roxin,

Delito permanente é aquele em que o delito não está concluído com a realização do tipo; senão que se mantêm por vontade delitiva do autor tanto tempo como subsiste o estado ilícito criado pelo mesmo. (ROXIN,1992, p.156).

A jurisprudência brasileira compreende o crime permanente como sendo:

Ocultar coloca o infrator na situação de flagrância, enquanto o objeto permanece escondido, o que patenteia os requisitos para a decretação de prisão preventiva ( STJ, RHC, n. 4.642 -2, rel. Fláques Scartezzini, DJU, de 21.08.95, p. 25.380).

O ato de ocultar coisa proveniente de crime configura, em tese, infração de natureza permanente, e, enquanto não cessar a permanência, entende-se o agente em flagrante delito (artigo 303, CPP_ TJ/MG, HC rel. Higa Nabukatsu, RT620/345).

Por ser um crime permanente não se pode falar da aplicação do Princípio da Anterioridade, artigo 5°, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1988. Muito se discutiu a respeito da aplicação deste princípio aos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil, uma vez que a lei foi publicada apenas no ano de 1998, o que proibiria a aplicação da mesma para os delitos desta natureza que tivessem sido praticados anteriormente, entretanto, tal argumentação decai por completo quando se trata de crime permanente.


6. Momentos da execução do delito lavagem de dinheiro:

O delito de lavagem de dinheiro possui três momentos de execução. O delito esgota-se e se configura apenas por uma das fases, não sendo necessária as demais para que o crime se consuma, pois é crime permanente, como acima esclarecido.

O primeiro momento é o de "ocultar", conduta descrita no tipo penal da lei brasileira, como na maior parte das legislações estrangeiras também. A ocultação consiste em ´desembaraçar-se´ materialmente de grande quantidade de dinheiro negro ou sujo. Geralmente a ocultação ocorre em localidade distinta de onde foi praticado o crime precedente.

Com a ocultação o bem é destinado a um local que possa ao mesmo tempo, ´camuflar´ o bem, direito ou valor arrecadado de maneira ilícita; é direcionado a locais tradicionais, como os Bancos e Instituições Financeiras, ou não-tradicionais, como Cassinos, Casas de Câmbios, ou, ainda para negócios de condições e natureza variadas, como a aplicação em hotéis, restaurantes, etc.

Exemplos da ocultação são o contrabando de dinheiro, passando-o pela fronteira de outro país, a cumplicidade do próprio pessoal do Banco e Instituições Financeiras que, muitas vezes recusam-se a dar informações devido as grandes quantidades investidas provenientes de dinheiro sujo ou negro [3], quando o autor mistura fundos lícitos com os ilícitos, as aplicações em entidades financeiras realizadas de maneira ilícita, etc.

O segundo momento da execução é o "mascaramento", uma etapa muito meticulosa e de grandes manobras, é a ocultação do produto ilícito mediante a realização de inúmeras transações financeiras. Diferencia-se pelo fato de ser a tentativa de fazer desaparecer o vínculo entre o criminoso e o bem procedente da sua atuação. É, com todas as palavras, a tentativa de se evitar a pegada ou rastro do dinheiro pelas autoridades, ou seja, apagar as pegadas contábeis destes fundos ilícitos através de um complexo sistema de transações financeiras dificultando a detectação desses fundos às autoridades.

Exemplos do mascaramento são a conversão de dinheiro em instrumentos financeiros, a aquisição de bens materiais com dinheiro em espécie, transferência eletrônica de fundos, etc.

Cada operação financeira realizada na fase do mascaramento geralmente ocorre em locais extremamente diferenciados, podendo ser realizado uma aplicação em fundos na Suíça, mais tarde esse dinheiro é trocado por libras em Londres e, posteriormente, investido na compra de imóveis na França ou na Austrália.

A ocultação e o mascaramento fazem parte da continuidade do delito, mantendo o estado de flagrância próprio dos delitos permanentes.

A terceira fase do delito de lavagem de dinheiro é a "integração", quando o dinheiro já lavado volta para reintegrar o mercado financeiro. Nesta fase o dinheiro sujo ou negro já assumiu uma feição legal, uma aparência legal, já não se tem mais como incriminar o autor devido à dificuldade para as autoridades obterem provas, que foram quase que definitivamente destruídas pelas fases anteriores.

O dinheiro pode ser utilizado no sistema econômico e financeiro como se se tratasse de dinheiro licitamente obtido, há agora uma explicação aparentemente legítima para a riqueza do autor. O dinheiro lavado na economia aparece como investimentos normais, créditos ou investimentos de poupança.

São exemplos claros de integração vendas de bens imóveis, empresas de fachada, empréstimos simulados, a cumplicidade de banqueiros estrangeiros, etc.

Para facilitar, um exemplo de todo o processo do delito de lavagem de dinheiro: um traficante de entorpecentes e drogas afins, arrecada uma quantia equivalente a quinhentos mil reais; abre uma conta fantasma no City Bank para ocultar o dinheiro proveniente do tráfico. Mais tarde retira certa quantia e aplica em fundos em um Banco Suíço, retira outra quantia e investe em turismo na Austrália, fecha a conta fantasma e pega o restante dos investimentos para uma aplicação em Bolsas de Valores, todo este processo é o mascaramento do dinheiro. Posteriormente, integra certa quantia no mercado financeiro brasileiro com a compra de uma casa noturna, como se o dinheiro fosse proveniente de investimentos lícitos e de negócios lucrativos.


7. Elementares do Tipo:

Capítulo I - Artigo 1° - Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:

I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;

II - de terrorismo e seu financiamento;

III - de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;

IV - de extorsão mediante seqüestro;

V - contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão dos atos administrativos;

VI - contra o sistema financeiro nacional;

VII - praticado por organização criminosa;

VIII - de tráfico ilícito de órgãos ou pessoas;

Pena: reclusão de três a dez anos e multa.

Primeiramente, são elementos descritivos objetivos:

*condutas principais Ocultar ou Dissimular;

*objeto material: bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crimes;

*bem jurídico: complexo, por comportar mais de um (como anteriormente discutido_ mantêm-se a preferência pelo bem jurídico Administração da Justiça por possibilitar uma maior absorção de todos os bens jurídicos que se pretende proteger, bem como demonstra a finalidade preventiva da lei);

*resultado: ocultação, dissimulação de produto ilícito, destruição de provas de crime grave precedente, manipulação do sistema financeiro e do mercado econômico por dinheiro sujo ou negro;

*sujeitos da conduta: ativo - qualquer pessoa; passivo - Administração Pública, Justiça Pública, ou, ainda, como preferem alguns doutrinadores difuso, devido a grande dimensão de prejudicados, direta ou indiretamente;

*atribuição: esgota-se com a configuração da tipicidade e ilicitude, impossível a verificação da culpabilidade. É crime material quanto às condutas comissivas e omissivas impróprias (comissivas por omissão) admitindo a tentativa. Quanto à mera conduta, esgota-se pelo simples fato de participar, exaurindo-se neste momento a atribuição.

Quanto aos elementos descritivos circunstanciais, quando o legislador delimita a conduta, não se fazem presentes neste artigo primeiro, caput e incisos.

Elemento normativo, sem embargos, são os crimes taxados pelo legislador brasileiro, de índole jurídica (foram descritos no tipo pelo legislador).

Elemento pessoal é o dolo (psicológico ou intelectual), a conduta ocultar ou dissimular não comporta o elemento pessoal da culpa strictu sensu.

Não possui elementos subjetivos.

Quanto ao parágrafo primeiro do artigo primeiro:

§1° - Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo:

I - os converte em ativos lícitos;

II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;

III - importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros;

As condutas principais continuam sendo ocultar ou dissimular; são condutas - meio todos os verbos dos incisos, que objetivam garantir a ocultação ou a dissimulação.

As modalidades de conduta podem ser diretas, quando o autor do delito de lavagem de dinheiro é o mesmo que o do crime precedente, e indireta, quando é terceiro que pratica o crime de lavagem, ou seja, que não praticou o delito anterior necessário para configurar a lavagem de dinheiro.

O parágrafo segundo do artigo primeiro traz uma conduta indireta em seu inciso primeiro: ´utiliza, a atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo´.

O inciso segundo do parágrafo segundo traz um delito formal de mera conduta "participar", como já ficou esclarecido anteriormente.

A tentativa é punida de acordo com o artigo 14, do Código Penal.

A lei brasileira comporta alguns problemas de relevância, primeiro, descreve como crime precedente o terrorismo, mas não existe uma tipificação do que seja o terrorismo para o Direito brasileiro; segundo, no artigo primeiro, parágrafo quarto, diz que se os crimes descritos nos incisos de I a VI forem praticados por organizações criminosas terão a pena aumentada de um a dois terços, mas ao mesmo tempo, traz o inciso VII, do artigo primeiro dizendo "praticado por organização criminosa", uma verdadeira incoerência; terceiro, no parágrafo quinto do artigo primeiro traz como causa de diminuição de pena a delação premiada, já descrita em lei própria, sendo então sem grande função este parágrafo.

São estas as explicações a serem feitas a respeito das elementares do tipo do delito de lavagem de dinheiro.


8. Participação:

O delito de lavagem de dinheiro permite a co-autoria bem como a participação. A co-autoria baseia-se no domínio do fato, mas, posto que em sua execução vários intervêm, o domínio do fato tem que ser comum. Cada co-autor domina o sucesso total em união com outra ou outras pessoas. A co-autoria consiste assim em uma divisão de trabalho, que é o que chega a fazer possível o fato, ou lhe facilita, ou reduz notavelmente o seu risco.( JESCHECK,1990, P.614).

Todos que dominam funcionalmente o fato, ainda que não realizem a conduta estritamente descrita no tipo, são co-autores.

A participação para que possa existir depende de um fato principal, todo o outro interveniente realiza uma atividade acessória. Essa acessoriedade, pois, que para a existência da participação é indispensável que se dê um fato principal, que é ele realizado pelo autor. O problema é determinar quando se dá um fato principal, posto que há que se considerar desde duas perspectivas: uma em relação ao desenvolvimento externo do fato e outra em referência à estrutura interna do delito. Do ponto de vista de desenvolvimento externo, é opinião geral que o delito deve-se encontrar em fase de tentativa, é dizer, tem que haver pelo menos um princípio de execução do fato principal. Do ponto de vista de estrutura interna do delito, isto é, dos requisitos que tradicionalmente se exigem para a existência (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), existem diferentes posições ou teorias da participação.(CALLEGARI, 2001, P.91).

A primeira teoria da participação é a Teoria da Acessoriedade Máxima, exigiam-se todos os requisitos para que houvesse um fato principal, isto é, tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Para que se desse o fato principal era necessário todas as características do delito. Essa teoria trouxe insolúveis problemas, por exemplo, quando o fato principal fosse cometido por um alienado e um menor de idade, inexiste a culpabilidade, logo não havia autor e tampouco podia haver partícipe.

A segunda teoria que se pode apresentar é a Teoria da Acessoriedade Mínima, para esta bastava a realização do fato típico, resultando excessiva, pois a tipicidade é apenas indício do injusto; chagava-se a condenar o partícipe de crime típico porém que não apresentava ilicitude com relação ao ordenamento.

A terceira teoria seria a da Acessoriedade Limitada, para qual a participação é a cooperação dolosa em um delito doloso alheio. Assim, a participação é um conceito de referência, já que supõe a existência de um fato alheio (do autor ou co-autores materiais), a cuja realização o partícipe contribui. Se não existe um fato pelo menos típico e ilícito, cometido por alguém como autor, não pode falar-se em participação, já que não há por que castigar alguém que se limita a participar num fato penalmente irrelevante ou ilícito para seu autor. A participação caracteriza-se pela ausência do domínio final do fato.

Adotando-se esta última teoria, acessoriedade limitada, só se pode castigar a conduta do partícipe quando o fato principal for típico e ilícito; se a culpabilidade não é requisito necessário para a configuração do fato prévio como delito, deduz-se que o são a tipicidade e a ilicitude.

O delito de lavagem de dinheiro é autônomo, assim, quando o autor participa da execução de ambos os crimes, da lavagem e do crime precedente, incorre em concurso material, de acordo com o artigo 69, do Código Penal. Não se pode falar da aplicação do Princípio da Consunção, cujo fato posterior é consumido pelo anterior, como ocorre nos delitos de receptação e favorecimento real, pois, nestes crimes, o bem jurídico é apenas um.

Para a aplicação no princípio da consunção nos delitos de lavagem de dinheiro os crimes antecedentes teriam que incluir o desvalor da própria lavagem. As condutas de lavagem de dinheiro possuem tipificação autônoma.

Como o delito de lavagem de dinheiro não comporta o elemento pessoal culpa, e uma vez que a culpabilidade não é requisito necessário para a configuração deste crime, as excludentes só poderão ocorrer quanto à ilicitude e à tipicidade.

Exclui-se a ilicitude quando há um juízo de necessidade (estado de necessidade e legítima defesa), uma previsão legal (exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal) ou por ausência de interesse (consentimento do ofendido).No caso do delito de lavagem de dinheiro decai na questão de ausência de interesse, o que retira a ilicitude do fato pela liberdade de manifestação da vontade do agente. Ocorrerá a exclusão da ilicitude, neste caso, quando o autor ´lavar o dinheiro´ sem ter qualquer conhecimento da procedência ilícita do produto que a ele foi destinado. Como exemplo, um corretor de imóveis que recebe uma grande quantia do autor de um crime de extorsão mediante seqüestro, para que seja lavado, sem ter qualquer conhecimento sobre a existência deste fato anterior.

Exclui-se a tipicidade por erro de tipo, no caso do delito de lavagem de dinheiro.A teoria do erro de tipo conecta-se diretamente com a teoria do dolo, porque o erro de tipo não é outra coisa que a negação do quadro de representação requerido para o dolo: o autor desconhece os elementos a que se devem estender o dolo segundo o correspondente tipo. Há erro de tipo quando alguém na comissão do fato desconhece uma circunstância que pertence ao tipo legal. O erro é a discrepância entre a consciência e a realidade. Portanto, o autor deve conhecer os elementos que integram o tipo de injusto, pois qualquer desconhecimento ou erro sobre a existência de algum destes elementos exclui o dolo e, se o erro for vencível, resta o tipo objetivo de um delito culposo. O erro, como o dolo, deve referir-se a qualquer dos elementos integrantes do tipo, seja de natureza normativa ou descritiva.

Nos delitos de lavagem de dinheiro, quando o autor lavar dinheiro pensando ser a quantia produto de práticas ilícitas estará cometendo erro de tipo uma vez que esse produto tenha uma procedência lícita; assim, o agente erra com relação a elementar do tipo penal, não existindo o delito que pretendia realizar.


9. Lavagem de dinheiro versus sonegação fiscal:

Com a publicação da Lei de Lavagem de Dinheiro inúmeras discussões vieram a tona com relação às práticas dos delitos de sonegação fiscal. Muitos juristas e doutrinadores sustentaram que o crime de sonegação fiscal não poderia ser tratado como crime precedente ao delito de lavagem de dinheiro, primeiramente porque os recursos decorrentes da sonegação fiscal, previstas na Lei n. 8.137/90, são recursos lícitos; segundo, porque na sonegação fiscal o autor não se desfaz de seu patrimônio para cumprir obrigação fiscal (o dinheiro é próprio do autor); e, terceiro porque a sonegação fiscal não está entre os delitos taxados como precedentes no artigo primeiro da lei de lavagem de dinheiro.

Rebatendo todas estas afirmações, a sonegação pode tranqüilamente ser um crime precedente ao de lavagem de dinheiro. Começa-se pela terceira observação, a sonegação fiscal é um delito realizado contra a Ordem Tributária, esta como bem jurídico defendido e responsável pela arrecadação e sustento do Estado, ditada pelo Direito Tributário está inserida, sem embargos, no inciso VI, do artigo primeiro da lei de lavagem de dinheiro, uma vez que este artigo fala de crimes contra o sistema financeiro. O Direito Tributário é espécie do gênero Direito Financeiro.

Os recursos desviados pela sonegação fiscal não são de procedência lícita, não pertencem ao autor, mas sim ao Estado; o dinheiro decorrente do tributo sonegado não pertence ao sonegador, dessa forma, ocorre um aumento patrimonial do sonegador da mesma forma que na lavagem de dinheiro, redunda num acréscimo ilícito da mesma forma.

Como exemplo, na hipótese de apropriação do imposto de renda retido na fonte por quem tem a obrigação legal de recolhê-lo aos cofres públicos; o caso da nota fria (famoso caixa dois) que causa um acréscimo ao patrimônio do autor da mesma forma, a despesa quando fictícia redunda num ganho da capital ilícito.

O ilícito fiscal pode estar conexo com um dos crimes precedentes expressamente previstos, por exemplo, crime fiscal com a evasão de divisas, afetando o sistema financeiro, a sonegação praticada por organização criminosa, etc.

Quando o autor da sonegação fiscal, pegando todo o dinheiro produto da sonegação, envia-o para outro país para aguardar o lapso temporal de cinco anos, está realizando a conduta de ocultar. Impede a Receita Federal de realizar fiscalização, não há, pois, meio de se apurar o débito quando o dinheiro voltar após os cinco anos, o autor ficará isento de qualquer acusação de lavagem de dinheiro por atipicidade após o lapso temporal?


10. Princípio da Dupla Incriminação:

Este princípio deverá ser aplicado quando o delito precedente for cometido em país diverso do de onde foi executada a lavagem de dinheiro. Há uma dificuldade imensurável com relação aos países que optaram por estipularem um rol taxativo de delitos precedentes, como ocorre no Brasil, o correto deveria ser a descrição de um tipo penal aberto, dizendo apenas que poderiam ser precedentes do crime de lavagem de dinheiro os delitos de maior gravidade. Assim, não se incorreria das dificuldades de se aplicar a lei quando os delitos precedentes são realizados em outro país.

Ocorre que se o delito condenado como precedente pelo Brasil não o for no país onde foi realizado, mesmo que o dinheiro for investido no Brasil, não se pode falar em lavagem, por atipicidade, uma vez que sua procedência não é ilícita, o mesmo se for ao contrário.

Somente poderá haver o crime de lavagem de capitais se o delito previsto na lei brasileira que erigiu os bens aptos a serem lavados também constituírem crime no estrangeiro. Não basta a previsão expressa do legislador brasileiro dos crimes antecedentes que são aptos a gerar bens idôneos à lavagem; torna-se necessário verificar se o fato é previsto como crime no país de origem.


11. Alguns apontamentos sobre os procedimentos especiais adotados pela lei de lavagem de dinheiro:

O processo penal traz claramente: ´para que seja possível a apresentação de denúncia é essencial indícios de autoria e prova da materialidade do crime’. Entretanto, a lei inovou ao exigir apenas os indícios do crime antecedente.

Até que ponto pode o Estado efetivar medidas de persecução penal sem ferir os direitos e garantias do cidadão?

O descrito no parágrafo primeiro do artigo segundo da lei de lavagem de dinheiro é uma proposta de política criminal expansionista, como vem sendo analisada na maioria das leis brasileiras; em nome da segurança pública viola-se direitos e garantias constitucionais. Com a apresentação da denúncia apenas com base em indícios, mesmo sem ter o conhecimento da autoria do crime precedente, se for aplicado de forma extremada ferirá o Princípio da Presunção de Inocência e Ampla Defesa.

Para que se possa apresentar a denuncia os indícios devem ser plenamente seguros (não são válidas meras probabilidades), deve haver a concorrência de uma pluralidade de indícios e a existência de razões dedutivas. Entre os indícios provados e os fatos que se inferem destes deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e racional segundo as regras do critério humano, bem mais que isso, é necessária a prova real do delito precedente.


Notas

01. O presidente Herbert Hoover frustrava-se diante da inabilidade da polícia de Chicago ou do novo FBI em apresentar um processo contra ´Big Al´ e ele pessoalmente realizou vários encontros para elaborar uma estratégia. Estava claro que Al Capone havia se isolado na conduta criminal e esta o conduziu a grande fortuna. Entretanto, ele não se isolou dos lucros do crime, afinal de contas, era para isso que ele estava no negócio. O grande Al Capone foi para a prisão não pelos crimes que organizou, mas porque não pagou os impostos sobre seus rendimentos. A falha de não lavar os rendimentos terminou sua carreira. In MORRIS, S. E. Ações de combate à lavagem de dinheiro em outros países_ experiência americana. Seminário Internacional Sobre Lavagem de Dinheiro. Série cadernos do Centro de Estudos Judiciários, n. 17, Conselho da Justiça Federal, Anais, Brasília, 2000, p.42.

02. Compreendo ser o terrorismo espécie do gênero organização criminosa, mesmo sendo o terrorismo motivado por juízos de valores diversos dos crimes mais comuns; mesmo assim, as práticas terroristas não deixam de ser criminosas e que atentam contra bens jurídicos essenciais. Por isso, compreendo ainda, ser as organizações criminosas uma forma de criminalidade mais grave e não um crime.

03. Apenas para esclarecer: dinheiro sujo é o proveniente de crimes como tráfico de drogas, órgãos, mulheres, crianças,, terrorismo, etc, dinheiro negro o proveniente de crimes contra o sistema financeiro, exemplo, sonegação fiscal.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Cláudia Fernandes dos. Lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3838. Acesso em: 26 abr. 2024.