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A impossibilidade de afirmação de dolo eventual com base exclusiva na presença de embriaguez ou excesso de velocidade ao volante

A impossibilidade de afirmação de dolo eventual com base exclusiva na presença de embriaguez ou excesso de velocidade ao volante

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Recente alteração no CNT cria tipo de homicídio culposo de trânsito qualificado. Importa verificar os impactos desta alteração em torno do tema da presença de dolo eventual incidente sobre quem dirige sob efeito do álcool ou em excesso de velocidade.

Retrocessos havidos, no Brasil, nos últimos anos, na questão dogmático-penal

A estrutura dogmático-penal dominante, no mundo ocidental, é a que se fundamenta nas estruturas onto-ontológicas welzenianas, que obtiveram notável prestígio após o término da segunda guerra mundial, a partir da inevitável constatação de que o modelo estrutural do sistema jurídico penal até então existente, com forte vinculação ao neokantismo em seu modelo produtor do positivismo kelseniano, atuou como elemento essencial a que as matanças dos regimes nazifascistas fossem cometidas, sem que se pudesse dizer que isto ocorreu sem amparo da legislação ou das categorias jurídicas existentes. [1]  

Assim é que se valendo da estrutura de pensamento própria do positivismo jurídico, CARL SCHMITT e EDMUND MEZGER, entre outros, conseguiram formular um sistema de pensamento muito bem estruturado, e formalmente bem desenvolvido, mas que foi absolutamente apto a produzir as ações de extermínio do Estado Nazista, assim como, foi também absolutamente funcional em justificá-las quando questionadas.

Com a percepção de que a afirmação das categorias de Direito Penal integralmente na vontade do legislador foi hábil a permitir, por exemplo, criar leis estabelecendo que ser cigano era crime, para ato contínuo exterminar comunidades ciganas inteiras, obtém espaço e credibilidade o pensamento que defende a estrutura de contenção do poder punitivo pelo Direito Penal, com base em rigoroso controle dogmático sobre as estruturas de direito positivo. [2]

Essas estruturas dogmáticas tem sua base nas verificações onto-ontológicas, ou seja, na descoberta da essência das coisas e das relações, a partir do emprego de método lógico-real, pelo qual a verificação da realidade se impõe ao idealismo legislativo, de sorte que a lei não pode criar a realidade a partir de afirmações idealizadas, mas deve necessariamente se curvar a ela.

O conjunto dessa estrutura de pensamento tem o fim de salvaguardar a sociedade em momentos de irracionalismo, ou mesmo de infelicidade histórica, decorrente da estruturação do poder comandado por pessoas de índole autoritária, impedindo a destruição das próprias vigas mestras da sociedade livre e democrática pela simples afirmação legislativa de regras ofensivas da condição humana ou da normalidade da relação entre os seres humanos e o Estado. [3]

Ocorre que a implementação do pensamento welzeniano sempre ocasionou certo desconforto, justamente por cumprir com razoável eficácia a tarefa a que se propõe, por conseguinte, debilitando as possibilidades de quem tem poder de exercê-lo de forma ilimitada, o que fez, tão logo fossem deixadas de lado as lembranças das carnificinas ocorridas na segunda grande guerra, ressurgissem pregações propondo o retorno ao modelo neokantista.

Por certo, essas pregações, como aconteceu nos autoritarismos europeus do século passado, não foram aleatórias, mas contaram com refinada construção teórica, de sorte que fundamentalmente nas décadas de 1970 e 1980, a doutrina Alemã passa a defender o retorno das estruturas de Direito Penal ao modelo anterior, a fim de que o legislador possa atuar, de forma mais livre, aumentando a carga punitiva, a partir da sustentação de sua debilidade pelas exigências dogmáticas, decorrentes da análise onto-ontológica das categorias.

Não há dados de que essas reflexões tivessem objetivo autoritário, mas, aparentemente, foram embaladas pela perspectiva de que a formação de comunidades supranacionais, particularmente a União Europeia, bem como a confecção de Tratados Internacionais de Direitos Humanos seriam meios hábeis a proteger a sociedade de novos massacres, o que acabou por se mostrar absolutamente falso, porque, por exemplo, nenhum tratado tem impedido o genocídio palestino, ou mesmo, quando a maior potencia mundial decidiu destruir um país inteiro, o fez e massacrou a população iraquiana, estuprando mulheres, promovendo repugnantes torturas e matando milhares de pessoas, sem que tratados internacionais o impedissem.

O modelo comunitário, igualmente, não conseguiu ir além da Europa e todas as demais tentativas, como MERCOSUL e ALCA, resultaram em fracassos evidentes, ademais de que a própria União Europeia não tem conseguido frear rivalidades internas, impedir atos de xenofobia e desabilitar parlamentos locais a propor “leis de exceção”, retirando direitos e ampliando poderes cerceadores das liberdades individuais.

Com isso, na mesma velocidade com que foram geradas as teorias de retorno neokantista, a experiência real das estruturas de poder nos anos 1990 e 2000 fez com que fossem severamente combatidas em solo Europeu, pelo chamado pensamento neo-finalista, que encontrou na América Latina a mais conhecida repercussão na obra de ZAFFARONI. [4]  

Por outro lado, no Brasil, as propostas de retorno ao neokantismo tiveram seu momento de maior destaque, quando já eram combatidas na Europa, ou seja, a partir dos anos 2000, repercutindo em uma série de propostas desestruturantes da dogmática penal e habilitadoras do positivismo jurídico, como por exemplo, a responsabilização penal das pessoas jurídica, a definição normativa de categorias penais e o estabelecimento de conteúdos ideológicos para preencher distintos conceitos, como o de dolo eventual. 

A esse propósito ganhou corpo a defesa de que, havendo direção de veículo automotor com produção de atropelamento, estando o condutor do veículo sob o efeito do álcool ou dirigindo com excesso de velocidade, estaria caracterizado o dolo eventual.

O que se passou a defender, portanto, foi uma espécie de presunção de dolo em delitos de trânsito, quando o condutor do veículo tivesse ingerido álcool ou se valesse de velocidade excessiva.

Por certo, a raiz desta construção foi o alarmante número de acidentes de trânsito no Brasil e, dentro da opção ideológica histórica do Estado brasileiro, de não desenvolver políticas públicas de educação cidadã, houve a opção por presumir o dolo eventual em algumas hipóteses, limitando o enfrentamento do problema ao aumento da carga punitiva.

Ocorre que é da própria essência do dolo, como reflexo real do subjetivismo humano, a não possibilidade de que seja ele presumido, mas dependa de provas de que a pessoa tinha conhecimento de que seu atuar poderia produzir determinado resultado e, de posse deste conhecimento decidiu atuar, por desejar o resultado, no caso do dolo direto, ou, por não se importar com ele, quando diante do dolo eventual.

O que passou a ocorrer no Brasil foi, portanto, um retrocesso em relação à dogmática penal, limitadora do poder punitivo e garantidora dos direitos e garantias fundamentais, prevalente nos anos posteriores à segunda guerra mundial, com a inserção da lógica pela qual a realidade não limita a matéria do exercício das intervenções nas liberdades pelo Estado, com isso habilitando a que toda estrutura penal brasileira seja deslocada do modelo lógico-real, com suas barreiras onto-ontológicas, para o modelo normativista.

Vale a refletir que a proposta é de abdicar da proteção fornecida pela dogmática penal, mas não há comunidades supranacionais sólidas das quais o Brasil faça parte a impedir o exercício indiscriminado do poder punitivo e igualmente os tratados de Direitos Humanos pouco impacto produzem no território brasileiro, restando a não implementação do modelo punitivo de índole autoritária e cerceador das liberdades como puro ato de fé. [5]

O retrocesso dessa linha discursiva, quando lhe retira a roupagem do glamour de sua apresentação como algo contemporâneo, mais avançado, “da moda” etc., é evidente e faz reafirmar a necessidade permanente de defesa e salvaguarda da estrutura de Direito Penal com base em forte estruturação dogmática, decorrente das estruturas onto-ontológicas, obtidas pelo método lógico-real, até porque o implemento prático recente mais evidente do normativismo penal se deu nos Estados Unidos, após os atentados de 11 de setembro, e o que produziu foi a prisão de Guantánamo e a política antiterror norte-americana, com a corrosão dos valores humanitários mínimos, experiência da qual seguramente o mundo se envergonha. [6]  

Contudo, nem a experiência europeia da segunda grande guerra, nem a política antiterror norte-americana fizeram frear as tentativas brasileiras de produzir a derrocada nos limites de contensão do poder punitivo, sendo a experiência recente em torno do dolo nos delitos de trânsito, com a busca de sua afirmação nos casos de embriaguez e/ou excesso de velocidade, exemplo bastante evidente deste processo. 


A questão específica da embriaguez ao volante, sob a ótica do dolo eventual em sua leitura dogmática

A tentativa de trazer os delitos de trânsito para o campo dos crimes dolosos, a partir da afirmação da embriaguez ou do excesso de velocidade, sob a ótica da dogmática penal é desprovida de sustentáculo técnico, por isso sua realização representa completa alteração do modelo de Direito Penal existente, fazendo-o retroceder ao pensamento próprio de ordem normativa, estruturante do poder punitivo nos Estados autoritários europeus do século passado.

A afirmação da presença de dolo eventual nos crimes praticados na direção de veículos automotores, a partir da constatação de que o motorista ingeriu álcool ou substancia de efeito análogo ou dirigia em alta velocidade, ignora a distinção, constatada, a partir da analise realística do agir humano, entre dolo eventual e culpa consciente, para conseguir, a partir do preenchimento retórico-ideológico do conceito de dolo eventual, punir na modalidade dolosa delitos que, em verdade, são culposos.

A culpa e o dolo, embora tenham contornos distintivos há mais de meio século estabelecidos, a partir da verificação lógico real dos aspectos subjetivos do ser humano quando pratica um ato, foram deliberadamente inseridos em confusão para impor a pena do crime doloso para quem agiu na modalidade culposa, ou seja, o abandono da estrutura welzeniana é, como sempre, proposta para ampliar o poder punitivo e diminuir as liberdades e os direitos e garantias fundamentais.

Tanto dolo quanto culpa decorrem de um agir com duplo desvalor, um valor negativo incidente sobre a conduta e outro incidente sobre o resultado.

Para ambas as modalidades (dolo ou culpa), o resultado deve representar ofensa a um bem jurídico para que possa ser considerado desvalorado. [7]

Já o desvalor da conduta, no dolo decorre de o agente efetivamente querer produzir o resultado descrito na lei penal, no momento da prática do ato (dolo direto) ou da previsibilidade e ACEITAÇÃO deste resultado, no momento da prática do ato (dolo eventual).

O desvalor da conduta no delito culposo surge de negligência, imprudência ou imperícia, em hipótese em que seria previsível a produção do resultado, mas o agente não o previu (culpa inconsciente) ou na situação de haver previsibilidade pelo próprio agente que, porém, não aceita que o resultado se produza (culpa consciente).

O dolo direto não se confunde com nenhuma das outras categorias, pois a necessidade de que agente, no momento de sua ação, queira o resultado desvalorado, cria um campo próprio, sem similitude com nenhuma outra.

O mesmo ocorre com a culpa inconsciente, pois a ausência de previsibilidade do resultado pelo agente também afasta seu confronto, pois se demonstrado que o agente não previa o risco de seu agir, quando o praticou, somente é permitida a inserção da hipótese na modalidade culposa, pois a premissa do dolo, direto ou eventual é a previsibilidade pelo agente das possibilidades resultantes de seu atuar.

Mais sensível um pouco, mas também de fácil resolução, é a distinção entre culpa consciente e dolo eventual, campo específico onde tem sido produzidas as mais intensas confusões retóricas para, permitir punir como delito doloso o que não passou de um atuar culposo.

Vale observar que tanto dolo eventual quanto culpa consciente tem a presença da previsibilidade subjetiva, o que significa dizer que a afirmação de que o agente poderia visualizar quando atuou que seu comportamento era de risco, em nada contribui para distinguir as categorias em análise, mantendo a hipótese no campo do crime culposo.

Isso se dá porque o dolo eventual exige mais que a simples previsibilidade, dependendo da comprovação, que não pode ser presumida, de que o agente no momento da pratica da conduta, ao prever a possibilidade do resultado, o aceitava, o que permite afirmar sua indiferença ao bem jurídico ofendido. [8]  

De forma sintética assim pode ser observada a questão:

Critério

Dolo Eventual

Culpa Consciente

Desejo do resultado

Não

Não

Previsibilidade do resultado

Sim

Sim

Aceitação do resultado no momento da prática da conduta

Sim

Não

Nos crimes praticados na direção de veículos, em especial naqueles em que se produz a morte da vítima, é bastante difícil verificar que, no momento da prática da conduta pelo agente, ou seja, quando conduzia o veículo, ele tinha previsibilidade do resultado e mesmo que a tivesse que o aceitava mostrando sua indiferença ao bem jurídico, o que faz a hipótese, em regra, dever ser tratada como delito culposo.

É bastante evidente que não há como afirmar que quem bebe e dirige ou quem dirige em alta velocidade age com dolo eventual, em relação ao resultado lesão corporal ou morte de outra pessoa, até porque, em especial na embriaguez, a alteração da capacidade de percepção do agente decorrente do consumo da substância que gera a ebriedade, faz com que mais além da aceitação do resultado, seja bastante difícil afirmar que haja, até mesmo, previsibilidade, o que faz a hipótese dotada de probabilidade de presença da culpa inconsciente. [9]

Por certo, a embriaguez ao volante, bem como o excesso de velocidade, podem ser elementos adicionais na compreensão de um fato, porém, em hipótese alguma permitem a formação do juízo de presença do dolo eventual, quando não presentes outros elementos que de forma contundente demonstrem que o agente visualizava como possível o resultado ofensivo a terceiros e o aceitava, enquanto conduzia o veículo. [10]

Em resumo, para que haja presença de dolo eventual, há de se demonstrar, que quando a pessoa dirigia em alta velocidade ou embriagada, visualizava o risco que seu comportamento lesionasse a terceiros e que dispunha de aceitação para com esta lesão se ela efetivamente ocorresse, demonstrando total descaso com o bem jurídico objeto de ofensa.

Certamente, a partir da simples afirmação de alguém ingeriu álcool ou outra substância ou mesmo que guiava em alta velocidade não se pode inferir linearmente que a pessoa anteviu o risco de atropelar alguém e ao fazê-lo disse a si mesmo que pouco se importava caso este resultado efetivamente se efetivasse, até porque, ressalte-se, em especial na embriaguez há uma notória redução da capacidade de compreensão do agente, o que seguramente atua sobre a previsibilidade e capacidade de aceitação de resultados não queridos diretamente.

Fica evidente, portanto, que, em regra nos delitos de trânsito, sob enfoque dogmático, não se tem dolo eventual, mas crime culposo e, como tal, deve ser estabelecida a punição pelo ato praticado.    


3. A reafirmação normativa da matéria havida no Brasil

Do tratado no item anterior, é bastante claro que a verificação dogmática da matéria da embriaguez e do excesso de velocidade ao volante conduz a algumas certezas, ao partir da premissa de que para a presença do dolo eventual deve ser somada a previsibilidade do resultado danoso, com sua aceitação no momento da prática da conduta:

  1. o fato de o agente dirigir embriagado não é suficiente a afirmar presença de dolo eventual;
  2. a presença de excesso de velocidade não permite afirmar por si só a presença de dolo eventual;
  3. o somatório de embriaguez ao volante e excesso de velocidade não afirma a presença de dolo eventual;
  4. a embriaguez ao volante, pela alteração sensorial que o álcool provoca, indica presença de culpa inconsciente, por não ser visualizável, em um primeiro momento, sequer previsibilidade do resultado pelo agente.

Embora essas conclusões dogmáticas sejam bastante evidentes, a resistência encontrada no Brasil, a partir da segunda metade dos anos 2000, fez com que houvesse a necessidade de um reforço normativo da matéria, trazendo ao interprete brasileiro, relutante em impor à legislação os dogmas penais, decorrentes da estruturação lógico-real, dentro da linguagem do positivismo jurídico, um claro comando de que embriaguez ou excesso de velocidade ao volante não são sinônimos de dolo eventual.

Nesse sentido, em 09 de maio de 2014 foi sancionada a Lei nº 12.971 que passou a estabelecer tipicidade direta em relação ao homicídio de trânsito quando ele é cometido sob a influência do álcool ou do excesso de velocidade, de sorte que se supera o debate sobre a possibilidade de caracterizar o dolo eventual quando há embriaguez ou a velocidade excessiva, dependendo a afirmação de dolo eventual necessariamente de outros elementos que não a mera afirmação de consumo de álcool ou de alta velocidade.

A Lei nº 12.971/2014 alterou o Código Nacional de Trânsito para assim disciplinar o tema:

“Art. 302.  Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor (...)

§ 2o  Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:

Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” (grifo nosso).

O novo dispositivo de lei traz exatamente como hipótese de homicídio culposo aquela em que o agente atinge a vítima enquanto dirige sob o efeito do álcool ou substância de efeito análogo, bem como participando de competição, corrida, demonstração de perícia, ou seja, quando está em excesso de velocidade.

Anteriormente a essa mudança o Código de Trânsito não possuía um dispositivo específico para casos dessa espécie, dessa forma, embora insustentável sob o ponto vista dogmático, em tese, havia um campo para debate em ótica estritamente de direito positivo, o que agora se vê completamente superado, pois, ao haver tipicidade direta em relação ao homicídio culposo de trânsito, quando a pessoa dirige embriagada ou em excesso de velocidade, não há como se sustentar que o consumo de álcool e/ou a velocidade excessiva sejam sinônimos de dolo eventual, sequer indicativos deste que, dentro da mais correta lógica jurídico penal, depende de demonstração indiscutível de previsibilidade de resultado e sua aceitação no momento da prática da conduta. [11]

Dessa forma, o sistema jurídico penal brasileiro passou a contar com um reforço normativo à afirmação dogmática de que dolo não se presume, dependendo sua afirmação da comprovação segura de seus requisitos, senão reflita-se:

  • o artigo 302 §2 do Código de Trânsito afirma que há homicídio culposo de trânsito qualificado se o agente conduz veículo sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou em hipóteses típicas de excesso de velocidade,
  • logo a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou o excesso de velocidade não são elementos de caracterização do dolo eventual,
  • portanto, a afirmação do dolo eventual depende de outros elementos que efetivamente demonstrem previsibilidade do resultado pelo agente quando da pratica da conduta, aliada a aceitação dele.

Assim sendo, sob qualquer ótica que se analise, são insustentáveis as denúncias criminais por crime doloso, cometido na direção de veículo automotor, baseadas na afirmação de que o dolo resta demonstrado da ingestão de álcool ou substância de feito análogo e/ou do excesso de velocidade.

Sem elementos claros e idôneos quanto à previsão e aceitação do resultado, no momento da prática da conduta, ainda que o resultado seja o de morte e que haja clamor da opinião pública, a única solução tecnicamente aceitável é a do processamento criminal da pessoa na modalidade culposa.


4. Necessidade de revisão das decisões condenatórias, quando a acusação para afirmar o dolo se baseia no consumo do álcool e/ou no excesso de velocidade

Do analisado acima, o conjunto jurídico nacional tem hoje, em leitura stricta lege, que a afirmação de um homicídio na direção de veículo automotor em estado de embriaguez ou excesso de velocidade é homicídio culposo qualificado, submetendo a pessoa condenada à pena de 2 (dois) a 4 (quatro) anos de reclusão, além da suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor, o que contrasta com a pena do homicídio doloso, mesmo em sua forma simples, que tem variação entre 6 a 8 anos de reclusão.

Ocorre que, em decorrência do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, o advento de nova lei mais favorável ao acusado sofrerá aplicação retroativa para disciplinar sua situação. [12]

Com isso, o conflito surgido entre o homicídio doloso, de 6 a 20 anos de reclusão e o culposo qualificado, de 2 a 4 anos de reclusão, somente pode ser resolvido com a aplicação da lei penal mais benéfica, de sorte que mesmo às hipóteses de processos já sentenciados, desde que ainda não tenha havido extinção da pena, a única consequência possível é a aplicação da disciplina estabelecida no artigo 302 do Código de Trânsito, regulando a matéria na forma do homicídio culposo qualificado.

Destarte, evidenciasse insustentável qualquer nova acusação de homicídio doloso no trânsito, escudada na afirmação de que comprovada a ingestão de álcool ou a velocidade elevada, e, caso já haja condenação não transitada em julgado, a hipótese é de provimento do recurso para cassar e não reformar a decisão condenatória, em respeito a soberania das decisões do júri, que terá sido o órgão julgador, uma vez se tratando de homicídio doloso, remetendo o processo a julgamento do juiz de direito como homicídio culposo qualificado.

Mesmo eventual decisão já transitada em julgado não deve prevalecer, desde que ainda não tenha se dado a extinção da pena, comportando a hipótese inclusive revisão criminal, pois a continuidade de cumprimento da pena com base em condenação por homicídio doloso gera insuportável teratologia, pois, ao passo que a lei expressamente afirma estar diante de um crime culposo, é mantida uma pessoa submetida ao cumprimento de pena em um regime mais gravoso, em situação que, a bem da verdade, sempre subverteu a dogmática penal e agora é absolutamente contra legem. [13]

Qualquer outra solução decorre de afastamento da dogmática penal, dos estritos termos da lei, para agravar abusivamente o poder punitivo, o que, representa confronto sério coma estrutura democrática e republicana, pois, mesmo o clamor da opinião pública não é passível de habilitação punitiva marginal ao sistema de limites decorrentes da estrutura do Direito Penal, hipótese contrária ter-se-ia que admitir, por exemplo, que o Estado Nazista e suas ações, por contarem, na sua época, com amplo apoio da população alemã, são totalmente legítimas e inquestionáveis. [14]

Bem a propósito, vale ressaltar que, em verdade, a estrutura de contenção do poder punitivo pode ser operacionalizada contrária a eventual pressão exercida pelos meios sociais, pois exerce função profilática, inclusive de impedir que uma sociedade habilite o poder de forma abusiva, contra si própria, guiada pela irracionalidade ou sensação de medo gerado nos momentos de maior conflitividade social ou de maior implemento e exploração do discurso de pânico. [15]


4. Reflexão Final

A verificação conjugada da estrutura dogmático-penal em torno dolo, aliada à atual legislação de trânsito, torna seguro afirmar que a acusação de homicídio doloso contra quem mata por atropelamento depende necessariamente de outras variantes que não a embriaguez ou o excesso de velocidade, pois indispensável à comprovação segura da previsibilidade do resultado no momento da pratica da conduta de dirigir, somada à aceitação, neste momento, do resultado previsível.

Assim sendo, ainda que haja inegável problemática no Brasil com a violência no trânsito, a partir de fragilidade nos processos de educação cidadã que margeiam a noção do cumprimento por cada pessoa de sua tarefa no pacto de convívio social, gerando maior violência e menos tranquilidade social, o sistema jurídico penal bloqueia que o administrador tente com base nesta realidade implementar excessivamente o poder punitivo, deixando de enfrentar os reais problemas da agressividade existente na condução de veículos no País. [16]

Em outras palavras, é certo que a sociedade brasileira é violenta, como é certo que esta violência experimenta presença marcante na forma com que se dá a direção de veículos automotores no território nacional, mas também é certo que esta problemática não deita suas raízes na falta prisão para os que dirigem mal ou perigosamente, mas em uma fragilidade estrutural da noção de cidadania na sociedade brasileira, com o não desenvolvimento de uma cultura de colaboração e respeito aos espaços coletivos, mas de individualismo e contínuo desfrute pessoal, independente dos danos que possa produzir em terceiras pessoas.[17]

A inteligência da dogmática penal posterior à segunda guerra mundial é antever que ao administrador sempre será mais cômodo, em hipóteses como a em comento, nada fazer em relação às políticas públicas e simplesmente incrementar poder punitivo como resposta puramente retórica. [18]

Antevendo justamente essa tendência, em bloqueio à possibilidade de utilização desta estratégia, pois são gerados alguns campos infranqueáveis para qualquer ação punitiva, obrigando, em contrapartida, a que sejam efetivamente adotadas medidas reais de equacionamento e resolução dos conflitos sociais. [19]

No tema específico em análise, o dolo eventual não é dotado de incompatibilidade absoluta com os delitos de trânsito, o que significa afirmar que pode haver homicídio na direção de veículo automotor na modalidade dolosa, mas também é correto afirmar que presumir a presença de dolo com base na comprovação da embriaguez pelo motorista e/ou da presença do excesso de velocidade é medida de todo incorreta e sua sustentação decorre de evidente falta de compreensão dos pressupostos dogmáticos que estruturam o dolo, notadamente o eventual, atualmente sendo medida contrária à redação expressa do texto legal.

Dessa forma, há clara negativa ao implemento da estratégia retórica e ineficaz de transferência dos problemas decorrentes da direção agressiva praticada no trânsito brasileiro para o poder punitivo, impondo ao administrador que desta questão trate no seu universo próprio, o das políticas públicas de valorização da vida e do respeito ao próximo, mantendo submetida à instância punitiva claramente orientada por regra de proporcionalidade, fazendo com que a punição em geral aos delitos de trânsito seja na modalidade culposa e, somente possam as ações particularmente graves, que consigam , de forma indiscutível, preencher todas as exigências estruturais do dolo, sofrer punição nesta modalidade.

Sem dúvida há muitas dores decorrentes dos delitos de trânsito no Brasil e muitas vítimas inocentes, massacradas em uma inexplicável forma de dirigir automóveis, em que o motorista ingressa em um nível pleno de individualismo, fazendo da velocidade e da agressividade linguagens usuais.

Por outro lado, também é certo que, assim como os aprisionamentos nunca fizeram diminuir os roubos, furtos, o tráfico de drogas, não é meio hábil para ensinar os motoristas, quando dirigem seus automóveis, os valores básicos da cidadania e, com a forçada imposição do dolo eventual, quando ele não está caracterizado, com o objetivo indisfarçado de punir mais e com maior severidade, o que se faz é corromper o sistema dogmático-penal desenvolvido no raciocínio lógico-real das estruturas ontológicos. [20]

Admitir a exceção para normatizar o que é dolo eventual nos delitos de trânsito é franquear a possibilidade de deslocamento do modelo jurídico penal brasileiro para o normativista de aporte neokantista, com todos os riscos dele decorrentes de produção de abusos, em nome do que está estabelecido nas normas, como já ocorrido tantas vezes na história humana.

E não se diga se tratar de apenas uma exceção, pois quando esta é admitida, está afirmado que o sistema admite exceções e, portanto, outras podem ser criadas e rapidamente há tendência em ocorrer uma total subversão estrutural, com a ampliação do poder punitivo e a redução das, no Brasil, já bastantes limitadas políticas públicas de enfrentamento da conflitividade social.

Como lembra Eduardo Galeano, “a história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.” É sabido o que a estrutura jurídica exclusivamente normativista, sem limites dogmáticos, representou para o poder punitivo – massacres -, portanto, nada justifica que a ela se retorne anunciando a chegada de novos massacres, sendo essencial à preservação, em última análise, da própria democracia, que os limites estruturais limitativos ao exercício do poder punitivo sejam inflexíveis e assim, dolo é dolo e culpa e culpa e neste universo nada é presumido ou fruto de pura imposição retórica decorrente de pânico social ou de pressão midiática, dependendo de atendimento às exigências lógico-reais que estruturam os conceitos.


Notas

[1] A questão é que “contra o conceito causal de ação Welzel formulou o conceito finalista. A formulação do conceito finalista da ação ocorreu dentro do marco da crítica a influência do naturalismo na ciência do Direito Penal, perceptível no conceito causal de ação, assim como na crítica à filosofia neokantiana, com sua inflexível separação do ser e do dever ser, da realidade e do valor.” CEREZO MIR, José. Obras Completas: Derecho Penal, Parte General. Lima: Aras: 2006 p.393-394, livre tradução.

[2] Ao tratar da distinção entre a Parte Geral e a Especial do Código Penal, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS traz importante aporte no esclarecimento das funções exercidas pela dogmática penal: “De um ponto de vista teórico e dogmático torna-se complexíssimo estabelecer a espécie e a natureza concretas das relações que, aos mais diversos propósitos, intercedem entre a PG e a PE do direito (e do próprio Código) penal. Seria demasiado simplista reconduzi-lo simplesmente a uma qualquer distinção ideal entre o abstrato e concreto, entre o comum e o particular ou mesmo entre a principiologia e a concretização. Importante neste enquadramento é acentuar que, de um ponto de vista funcional e racional, a autonomização de uma PG do direito penal serve o controlo racional da aplicação jurídico-penal, através do esclarecimento fundamental da matéria da regulamentação jurídica e do domínio dos critérios de valoração. De modo a evitar, até onde é possível, tanto as contradições normativas, como uma jurisprudência sentimental e, deste modo, a propiciar a ‘ descoberta’ da justiça do caso”. (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral. 2ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p.8.)

[3] No pensamento de “Maier, o poder penal do Estado, aplicado racionalmente, resguarda certos valores essenciais para a vida de uma comunidade e foi a criação do Estado de Direito que estabeleceu as garantias contra sua utilização arbitrária. As garantias, segundo a doutrina constitucionalista, são as asseguradas para impedir que seja atingido o rol de direitos que são atributos essenciais dos membros da comunidade(....) Por sua vez, a noção do que se deve entender por ‘bem jurídico’, segundo foi claramente explicado por Rudolphi, oferece uma perspectiva liberal ou substantiva, contraposta a noção meramente metodológica, que implica o reconhecimento da importância significativa das garantias contidas no conceito de Estado de Direito.” (HENDLER, Edmundo. La razonabilidad de las leyes penales: la figura del arrepentido. Teorías Actuales en el Derecho Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc. 1998, p. 393-394. Livre tradução).

[4] Veja-se: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Havia um realismo jurídico marginal. Caracas/Venezuela: Monte Ávila Editores. 1993, 186p.

[5] Vale referir a observação que “toda a América está sofrendo as consequências de uma agressão aos Direitos Humanos (que chamamos de injusto jus humanista), que afeta o nosso direito ao desenvolvimento, que se encontra consagrado no art. 22 (e disposições concordantes) da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este injusto jus humanista tem sido reconhecido pela Organização dos Estados Americanos (OEA), através da jurisprudência internacional da Comissão dos Direitos Humanos, que declara ter sido violado o direito ao desenvolvimento em El Salvador e no Haiti. A existência deste injusto jus humanista não é, pois, uma afirmação ética, mas uma afirmação jurídica, reconhecida pela jurisprudência internacional. Este injusto jus humanista de violação de nosso direito ao desenvolvimento não pode ser obstacularizado, uma vez que se resguarda de seus efeitos, que se traduzem num aumento das contradições e da violência social interna que, vista em perspectiva, nos levaria a genocídios internos e à destruição do sistema produtivo, submetendo-as a um desenvolvimento ainda pior, como decorrência de uma violência incontrolável. Se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que perigosamente, já produz o injusto jus humanista a que concomitantemente somos submetidos. Por conseguinte, o sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jus humanista, o que resulta um suicídio.”(ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 4.ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 80-81.)

[6] Sobre o tema veja: DENBEAUX, Mark P.; HAFETZ, Jonathan. Los abogados de Guántánamo: dentro de la prisión, fuera de la ley. Barcelona: sol90IDEA, 471 p.

[7] Observe-se que “o legislador ordinário deve sempre ter em conta as diretrizes contidas na Constituição e os valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, em razão do caráter limitativo da tutela penal. Aliás, o próprio conteúdo liberal do conceito de bem jurídico exige que sua proteção seja feita tanto pelo Direito Penal como ante o Direito Penal. Encontram-se, portanto, na norma constitucional, as linhas substanciais prioritárias para a incriminação ou não de condutas. O fundamento primeiro da ilicitude material deita, pois, suas raízes no Texto Magno. Só assim a noção de bem jurídico pode desempenhar função verdadeiramente restritiva. A conceituação material de bem jurídico implica o reconhecimento de que o legislador eleva à categoria de bem jurídico o que já na realidade social se mostra como um valor. Essa circunstância é intrínseca à norma constitucional, cuja virtude não é outra que a de retratar o que constitui os fundamentos e os valores de uma determinada época. Não cria os valores a que se refere, mas se limita a proclamá-los e dar-lhes um especial tratamento jurídico.” (PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 92-93.)

[8] Destaque-se que "o dolo eventual conta com três requisitos: (a) representação do resultado + (b) aceitação desse resultado + (c) indiferença frente ao bem jurídico. Na culpa consciente temos dois requisitos: o agente representa o resultado como possível, mas confia que não vai acontecer (confiança em sua habilidade para evitá-lo). Não o aceita. Não atua com indiferença frente ao bem jurídico. No dolo eventual o agente, mesmo sabendo certo o resultado, não se detém. Na culpa consciente caso o agente representasse como certo o resultado não prosseguiria (não atuaria, porque não lhe é indiferente o bem jurídico)." MOLINA, Antonio García-Pablos & GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 378.

[9] No sentido da necessidade de previsibilidade em relação ao dolo eventual, vale observar que “poder-se-á dizer que uma pessoa agiu com dolo eventual se, tendo previsto uma certa consequência como possível, a sua atitude foi mais ou menos: ‘aconteça o que acontecer, eu actuo’” (BELEZA, Teresa Pizarro. Direito Penal. Lisboa: AAFDL 1980, p. 201.).

[10] A construção do Direito penal liberal coloca em manifesto que “a autonomia da vontade é o principio de movimento próprio da subjetividade, independente da realidade. Deste modo aparece em contradição com a representação causal determinista, desde a qual é impossível qualquer imputação moral ou jurídica. A autonomia, assim entendida, é irrecusável em vários sentidos, como determinação livre do sujeito do processo na determinação de seu conteúdo. Somente sobre esta ideia de sujeito-vontade livre é pensável o conceito de imputação. Deste modo se pode dar a inter-relação entre o sujeito espiritual por uma parte, a realidade por outra e o Direito e sua negação, isto é, o ilícito. O Direito deve considerar o sujeito com um ‘ser da liberdade’, no qual, na realidade objetiviza sua autonomia com outros sujeitos tão autônomos como ele, mostrando que o injusto pessoal não é outra coisa que um relativo defeito nesta autonomia que requer uma objetivização livre da vontade na realidade.” DONNA, Edgardo Alberto. Derecho Penal: Parte General. Tomo I. Santa-Fe: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 27. Livre tradução.) 

[11] Já anteriormente a reforma no Código de Trânsito a doutrina especializada deixava patente que sob enfoque de direito positivo, considerando a regulamentação do dolo eventual, da parte geral do Código Penal brasileiro: “a questão não é tão simples como se pensa. Essa fórmula criada, ou seja, embriaguez + velocidade excessiva = dolo eventual, não pode prosperar. Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte ou mesmo lesões em outras pessoas. O dolo eventual, de acordo com, a teoria do assentimento, adotada na segunda parte do inciso II do art. 18 do Código Penal, reside no fato de não se importar o agente com a ocorrência do resultado por ele antecipado mentalmente.” (GRECO, Rogério. Curso de Direito penal: Parte Especial: crimes contra a pessoa. Niterói/RJ: Impetus, 2006, p. 165.)

[12] A propósito, vigora um “princípio de irretroatividade da lei e sua exceção: consagra-se aqui o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal, ressalvada a retroatividade favorável ao acusado – ‘ a lei penal não retroagirá salvo para beneficiar o réu’ (art. 5º, XL, CF; art. 2º, CP).” (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 8ª edição. São Paulo: revista dos Tribunais, 2008, p. 132.)

[13] Não se pode esquecer que “segundo MOMMSEN, o direito penal começa quando a lei do Estado coloca limites ao arbítrio dos magistrados. É, em sustância, a mesma idéia que pode encontrar-se expressada em uma obra clássica da matéria — clássica no sentido de sua perdurabilidade, não no de classificação de escolas que alguma vez se propôs com sentido pejorativo —. CARRARA, em seu monumental Programa, apontava que ‘a ciência criminal bem entendida é o supremo código da liberdade’.” (HENDLER Edmundo S.. Las garantías penales y procesales: un enfoque histórico-comparado; Presentación. Buenos Aires: Del Puerto, 2004, pág. I - II.).

[14] Interessante lembrar que “Morrison nega rotundamente esta explicação do caminho especial – o Sonderweg do nazismo y a patologização do holocausto com evidências de que as pessoas que participaram ativamente em estes crimes eram normais y logo muitos deles retornaram a sua vida normal sem dificuldades” ZAFFARONI, Eugenio Raul. La palavra de los muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 309. Livre tradução.

[15] É fato certo que “o recurso à intervenção penal cabe apenas quando indispensável em virtude de que tem o Direito Penal caráter subsidiário, devendo constituir a ‘ultima ratio’ e por isso ser fragmentário, pois o antijurídico penal é restrito em face do antijurídico decorrente do Ordenamento, por ser obrigatoriamente seletivo, incriminando apenas algumas condutas lesivas a determinado valor, as de grau elevado de ofensividade. A opção de se valer o legislador do Direito Penal, por seu aspecto simbólico, não se justifica nem mesmo na proteção de valores de patamar constitucional, não se legitimando muito menos seja o instrumento preferencial para imposição de interesse de menor relevo, como sucede hodiernamente com a denominada ‘administrativização do Direito Penal’, ou com a expansão exagerada para figuras de perigo abstrato e de formas culposas, às vezes sem resultado material significativo, com o recurso a elementos normativos com referência a outras leis, em avalanche de incriminações, própria de uma ilusão penal. Assim, sendo possível a tutela por via extrapenal esta deve prevalecer. É a tendência que se verifica na Itália com o processo de despenalização, que transformou delitos e contravenções em infrações administrativas, especialmente porque muitas destas infrações tinham cunho penal por ausência de previsão de prescrições de cunho administrativo. Dessa forma, o Direito Penal é de ser regido pelo princípio da intervenção mínima, subsidiária e fragmentária, como extrema ratio.”(REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 26).

[16] Nunca é demais referir que “notabilizam-se as políticas criminais inócuas pela edição contínua de leis penais novas mais severas e o corte de direitos e garantias fundamentais; o Estado assim procede para compensar sua falida política preventiva-social que é pouca coisa mais que zero (ou nula); ainda como compensação para os eu déficit preventivo segue a tendência do encarceramento massivo sem critério, aprisionando alopradamente inclusive os que não praticam crimes violentos; ostenta violência epidêmica (10 ou mais assassinatos para cada 100 mil pessoas) e boa parcela dessa tragédia jus-humanitária se deve ao quase absoluto descontrole da polícia, da Justiça e das prisões, que tanto matam como morrem numa ambiência laboral desumana, arbitrária, corrupta e violenta. No Brasil praticamos o modelo político-criminal mais aberrante possível porque esquecemos uma lição básica de Beccaria, que enfocava o direito penal como ultima et extrema ratio: o direito penal só faz sentido quando outros ramos do direito assim como outras medidas falharem.” (GOMES, Luiz Flávio. Beccaria (250 anos) e o drama do castigo penal: civilização ou barbárie. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 327.)

[17] Registre-se que “a primeira verificação importante é que argumentos, ainda que aparentemente bem intencionados, mas que produzam a ampliação do poder punitivo, não servem ao tratamento da questão criminal e são mecanismos de reafirmação de estigmas e preconceitos que fazem a humanidade dividir-se entre os cidadãos-fim, receptores dos bens da terra e usufrutuários de todos os confortos e, por outro lado, cidadãos-meio, a quem compete meramente existir para a geração de recursos que possibilitem o bem-estar dos outros, estando continuamente submetidos a limitações de direitos e garantias para que se possa aproximá-los ao máximo da imagem de um objeto.” EL TASSE, Adel. Criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 79.)

[18] A título de sistematização convém observar que “estrategicamente, portanto, exige-se a atuação do jurista em frear a lógica de contínuo crescimento do poder punitivo, pela já referida proclamação de sua integral ilegitimidade e manuseio das estruturas jurídicas como força de contenção do poder punitivo, o que somente o finalismo de WELZEL, conduzido ao seu extremo, no que se refere à teoria do delito e levado também à teoria da pena, permite, pois imediatamente lhe bloqueia a parte mais irracional, não permitindo que a atividade legislativa seja implementada por qualquer nível de pressão social para estabelecer uma lógica inversa.” EL TASSE, op.cit., p. 11.)

[19] Vale lembrar que justamente “o Poder Judiciário é o principal guardião da cidadania, por ser o órgão do Estado incumbido de proteger o particular e a sociedade contra abusos de quem, transitoriamente, detém o poder, ou mesmo, proteger os particulares dos desrespeitos e agravos perpetrados uns contra os outros. É o Poder Judiciário que tem a função de garantir à sociedade que o conjunto de direitos básicos da cidadania será rigorosamente observado, não sendo aceitas atitudes contrárias aos interesses maiores da mesma. (TASSE, Adel El. A “crise” no Poder Judiciário. Curitiba: Juruá, 2001, p. 55.)

[20] Em imagem de feliz crítica ao idealismo normativo no Direito Penal, tem-se que: “construem-se sobre uma norma que indica como deve ser a pena e para que deva servir. Propõem aos juízes que resolvam segundo como cada autor crê que deve ser a pena. Mas os juízes não tem outro recurso que impor as penas tais como são e não como devem ser, porque assim não são.” (ZAFFARONI, Eugenio Raul. Estructura Basica del Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar 2009, p. 20. Livre tradução.)


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