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Possibilidade de a Fazenda Pública requerer falência de contribuintes

Possibilidade de a Fazenda Pública requerer falência de contribuintes

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"Falir é praticar a ação mais degradante entre todas que podem desonrar um homem. É um furto, que infelizmente a lei coloca sob a sua proteção.

Algumas pessoas confiaram seus bens a Guillaume Grandet, pela sua reputação de honra e probidade.

Mas ele consumiu com tudo e só lhes deixou os olhos para chorar".

Pai Grandet, de Honoré de Balzac.


INTRODUÇÃO

Falência é a insolvência do devedor comerciante que tem seu patrimônio submetido a um processo de execução coletiva. [1] Seus bens são arrecadados e levados à venda judicial forçada, com a distribuição proporcional do ativo entre os credores habilitados. A falência, bem como a concordata, são regidas pelo Decreto-Lei 7.661/45, também conhecido como Lei de Falências.

Em nosso ordenamento jurídico, a falência caracteriza-se pela impontualidade, que faz presumir o estado de insolvência do devedor comerciante, melhor dizendo, é aquele devedor que não consegue pagar pontualmente seu débito. Tal inadimplemento poderá ocorrer em face de vários fatores, entre eles o erro, negligência, ou, mesmo intencionalmente. Mas, não obstante quais desses fatores levaram ao inadimplemento, este constitui um fato jurídico próprio da pessoa. Daí porque o diferenciamento de insolvência e inadimplemento, onde aquele se constitui em um estado e este em um ato. [2]

Podemos denotar a possibilidade do requerimento da falência mesmo não ocorrendo a impontualidade, onde por exemplo, mesmo sem ser impontual, o comerciante pratique atos suspeitos, aos quais a doutrina denomina como "atos de falência".

Ressalte-se, em suma, as seguintes características da falência, senão vejamos:

a)aplicável somente ao devedor comerciante;

b)decretada somente pela autoridade judiciária;

c)não há falência ex officio, é necessário o requerimento de um ou mais credores ou pelo próprio devedor;

d)compreende todo o patrimônio disponível do devedor, tanto o ativo, quanto o passivo;

e)suspende todas as ações e execuções individuais dos credores contra o devedor;

f)instaura um juízo universal para qual devem concorrer todos os credores (comerciais e civis);

g)se procede nas seguintes fases: requerimento da falência, decretação judicial, arrecadação do ativo, habilitação dos credores, verificação e classificação dos créditos, liquidação do ativo, pagamento do passivo, encerramento.

Para o requerimento da falência do devedor comerciante, com base na impontualidade, deverá o credor juntar título líquido e certo, que legitime ação executiva, devidamente protestado (art.11 da LF).

Adentrando em nosso estudo, verifica-se neste ponto a discussão se a Fazenda Pública possuiria legitimidade ativa para propor ação de falência em face do contribuinte insolvente, uma vez que a mesma alega ser seu título (CDA) passível de todos os requisitos necessários para requerimento da referida quebra.

Este assunto encontra-se em árdua discussão doutrinária e jurisprudencial. Existe hoje, duas correntes, sendo a majoritária, a que entende ser inaplicável o requerimento da falência por parte da Fazenda Pública em face do contribuinte e outra, minoritária, entendendo ser possível tal requerimento por parte do Erário.

Desta feita, demonstraremos o entendimento de ambas correntes, senão vejamos.


1ª CORRENTE : NÃO ADMITINDO O REQUERIMENTO

Nossa doutrina pátria hoje se diverge sobre a possibilidade da Fazenda Pública requerer falência dos contribuintes comerciantes. Entretanto, é de se estranhar o interesse que a Fazenda Pública possa ter no requerimento de falência do devedor dos tributos.

Esta questão fora levantada nos anos 70, onde a Fazenda Pública do Estado de São Paulo consultou consagrados juristas, destacando-se, entre eles, o Professor Fábio Konder Comparato, quem, emitiu parecer afirmativo sobre o mérito. Referido texto mereceu publicação pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (Falência de Contribuinte Promovida pelo Fisco, Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo).

O Código Tributário Nacional, elenca que os créditos fiscais não estão sujeitos ao processo concursal, e a declaração de falência não obsta o ajuizamento do executivo fiscal, hoje de processamento comum.

A Fazenda Pública do Estado de Minas Gerais submeteu a questão recentemente aos seus tribunais, ajuizando vários requerimentos de falência de contribuintes comerciantes, com suporte no inciso I do artigo 2º da Lei Falimentar. Dentre as várias ações ajuizadas, uma foi julgada pelo Superior Tribunal de Justiça que, por maioria, reformou o acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, admitindo o requerimento de quebra do contribuinte (Revista do STJ, 84/179).

Neste sentido foi o entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça naquele isolado julgado, mas, entretanto, o argumento usado para deferimento do recurso supra citado, abre bastante margem para discussão doutrinária, pois os ínclitos julgadores dissertaram que até o advento da Lei nº 2.204 de 17/12/1908, a falência só poderia ser decretada com base em dívida mercantil. Ademais, os doutos Carvalho de Mendonça e Paulo de Lacerda, ao tratarem da legitimidade ativa, dedicam-se somente à distinção entre dívida civil e comercial, e às condições para o credor privilegiado requerer falência, e silenciam sobre a Fazenda Pública. Desta feita, a controvérsia sobre o tema não restou dirimida.

Observamos, ademais, que no rol daqueles aptos a requererem a quebra de um devedor comerciante, na Lei Falimentar (arts. 10, 20, 80 e 90), não se inclui entre eles a Fazenda Pública.

A doutrina majoritária tem entendido que a Fazenda Pública padece de legítimo interesse econômico e moral para postular a declaração de falência de seu devedor.

Desde modo, conforme preconiza o Ilustre Trajano de Miranda Valverde, "a Fazenda só poderia requerer falência caso estivesse sujeita ao concurso universal do devedor comerciante. Assim, não se submetendo ao processo falimentar, não haveria razão para o requerimento, por parte da Fazenda, da quebra do contribuinte comerciante. É totalmente insensato que determinado credor requeira a falência de seu devedor, e em seguida à sua decretação, informe ao juízo competente que seu crédito não se sujeitaria de nenhuma forma ao processo da falência". [3]

Tal discussão se versa arduamente, face à incompatibilidade da Lei Falimentar e a Lei Tributária. Os institutos da Lei comercial alegam que a falência abrange todos os credores do devedor comerciante, ressalvados os discriminados no art. 23. Entretanto, temos no art. 187 do Código Tributário Nacional, dispositivo que determina que o crédito tributário não se sujeita a qualquer modalidade de concurso de credores.

Cumpre, entretanto, salientar, no que se refere à classificação de créditos, que a própria Lei Falimentar contém uma contradição no seu artigo 102, que está em desacordo com o restante da legislação falimentar.

A doutrina sempre intentou ressaltar a diferença entre os credores do falido e os credores da massa.

Desta forma, podemos perceber como finalidade da falência, no que se refere ao concurso universal, a divisão do patrimônio do devedor comerciante entre seus credores. Assim, os credores do falido, recebem conforme suas respectivas classificações, considerando as preferências e as garantias de cada crédito, recebendo o valor devido somente na fase final da falência, após a liquidação do ativo.

Os créditos contra a Massa decorrem de atos e de operações ocorridas após a decretação da quebra. Podemos dizer que são classificados, em suma, como despesas necessárias ao andamento da falência, por esse motivo, assumem posição privilegiadíssima e recebem antes de qualquer credor do falido. Ocorre que, caso a Massa possua recursos suficientes, esses credores podem ser pagos durante o andamento da falência, o que não ocorre com os credores do falido. [4]

Retomando a discussão entre o conflito existente entre a Lei de Falências e o CTN, urge frisar que a norma tributária deve predominar, face ao artigo 146, III, da Constituição Federal Brasileira, por se tratar esta de lei complementar. Assim, existindo regra (art.187 do CTN)que exclua crédito tributário da falência, esta deverá prevalecer.

A título de elucidação cumpre transcrever o artigo 187 do CTN, senão vejamos: "Art. 187- A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, inventário ou arrolamento". Outrossim, vale dizer que a referência à concordata é manifestamente descabida, pelo fato de abranger apenas os credores quirografários, jamais os preferenciais, como ocorre com o Fisco.

O CTN, em seu art. 186, elenca e reconhece a supremacia do crédito trabalhista em relação ao tributário, corroborando desta forma, que o crédito tributário depende da liquidação do crédito trabalhista, e assim sendo, podemos concluir que a Fazenda está sujeita ao processo falimentar, por estar ela subordinada ao crédito trabalhista. [5]

Assim, a Fazenda só poderá receber o seu crédito na fase de liquidação da própria falência, mesmo estando dispensada da habilitação. Desta forma, qualquer interpretação que se confronte com o artigo 186 do CTN, enseja grave violação ao dispositivo vigente e pertinente.

Ademais, poderemos concluir, portanto, que o débito fiscal só é admissível em execução, ressalvado as hipóteses excludentes do art. 38 da Lei 6.830/80 (LEF), cuja redação, por si só, esclarece quaisquer dúvidas existentes e futuras, verbis: "a discussão judicial da dívida ativa da Fazenda Pública é admissível em execução, na forma desta lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição de indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida..." (g.n).

Desta feita, somente no âmbito da execução fiscal é possível que a Fazenda reivindique seu crédito.

Retomando a impossibilidade de a Fazenda Pública requerer a falência do contribuinte comerciante, observamos entendimentos diversos, como os que admitem a habilitação na falência, bem como o entendimento que conclui ser a cobrança da dívida ativa regida por lei especial, a qual não concede à Fazenda uma faculdade, mas sim um poder-dever que corresponde a uma imposição de utilizá-la. Dentre estes entendimentos, temos em destaque, como defensor da primeira tese o douto José da Silva Pacheco, e da segunda, o respeitado Milton Flaks, ambos doutrinadores de renome nacional.

O entendimento majoritário entre nossos doutrinadores é que a Fazenda Pública possui outras ações para cobrança de seus créditos, como no caso de restituições que a Fazenda Nacional ajuíza para receber o valor do Imposto de Renda Retido na Fonte pelo empregador e não recolhido aos cofres públicos. Isto pelo simples fato do falido ser apenas o fiel depositário desse dinheiro, do qual não tinha disponibilidade.

Rubens Requião nesse diapasão preleciona:

"De nossa parte, estranhamos o interesse que possa ter a Fazenda Pública no requerimento da falência do devedor por tributos. Segundo o Código Tributário Nacional os créditos fiscais não estão sujeitos ao processo concursal, e a declaração da falência não obsta o ajuizamento do executivo fiscal, hoje de processamento comum. À Fazenda Pública falece, ao nosso entender, legítimo interesse econômico e moral para postular a declaração de falência de seu devedor. A ação pretendida pela Fazenda Pública tem, isso sim nítido sentido de coação moral, dadas as repercussões que um pedido de falência tem em relação às empresas solventes." (REQUIÃO, Rubens Curso de Direito Falimentar, Saraiva, 1978, 3ª ed., n 72).

Mesmo que a execução fiscal não fosse a única via a ser seguida pelo Erário, ainda seria inconveniente o requerimento da falência do devedor, por parte da Fazenda, com fulcro no art. 1º da Lei Falimentar, que cuida da impontualidade. Cumpre frisar que a impontualidade só pode ser provada por meio de protesto, o qual não se justifica no caso da Certidão de Dívida Ativa. Embora possa, juridicamente, esse título executivo ser levado a protesto, isso dificilmente ocorreu na prática, uma vez que o requerimento da falência com base em tal título ensejaria uma ampliação desnecessária da matéria de defesa do contribuinte, que poderia argüir, em suma, as exceções ligadas ao título protestado.

No que se refere à legitimidade da Fazenda para ajuizar o pedido de falência, temos que em regra, para requerer falência, o credor deve ser quirografário, isto é, desprovido de qualquer preferência ou privilégio, pois a tal classe pertence à maioria deles. A iniciativa sempre foi dada a esses credores, por serem os mais sacrificados na falência, pelo último lugar que ocupam na classificação dos créditos. [6]

Na legislação brasileira, sempre houve restrição apenas ao credor com garantia real, que para pedir a quebra deveria renunciar à garantia, ou então, demonstrar ser a mesma insuficiente, regra encontrada hoje no art. 9º, III, b, da Lei de Falências.

Na observação da possibilidade de tal requerimento, devemos observar que preferência não se confunde com privilégios, principalmente no que se refere aos requerimentos de falência com base em créditos trabalhistas e tributários. Onde o privilégio se mantém em estado potencial, produzindo efeitos somente no caso de instauração do concurso de credores, e, integrando o próprio direito real, arroladas no Código Civil, encontram-se as preferências, do qual são indissociáveis.

Concernente à questão de "privilégios fazendários", ressalvamos a declaração de Carvalho Neto, dissertando que "a Fazenda Pública só poderia requerer a falência de seus devedores comerciantes, dentro da técnica da atual lei de quebras, se renunciasse a esse privilégio. Ora, como isso não é possível não é possível, é lógico que não pode a Fazenda Pública requerer a falência dos seus devedores". [7]

Corroborando o entendimento de que a Fazenda não pode requerer a falência do contribuinte, tendo em vista sua percepção de garantia real, versa sobre o assunto, o Ilustre Ruben Ramalho, em seu livro intitulado Curso Técnico e Prático de Falência e Concordata, da Editora Saraiva.

Falta a Fazenda Pública interesse econômico para requerer a quebra de contribuinte. "Permitir à Fazenda requerer a falência, a não ser que pudesse renunciar a seus privilégios, que são irrenunciáveis, seria um abuso de direito, destinado a causar escândalo e coagir moral e psicologicamente o contribuinte, que tem o direito de ampla defesa no processo de execução". [8]

A primazia de que a Fazenda Pública não poderia requerer a falência de contribuinte comerciante é de cunho constitucional, observando a supremacia das normas constitucionais, onde qualquer ato ou norma que se confrontar com a Constituição Federal, será invalidado.

Pelo aspecto da constitucionalidade, o requerimento da falência de um contribuinte comerciante por parte da Fazenda, fere dois dispositivos constitucionais, senão vejamos:

O primeiro deles é o Princípio da Razoabilidade, que deve sempre servir de parâmetro de validade dos atos emanados do Poder Público, o qual tem na adequação, na proporcionalidade e na necessidade da medida, os seus requisitos essenciais. Não obstante, o princípio da função social da empresa, como agente gerador de empregos é incompatível com o pedido de falência formulado pelo próprio Poder Público, uma vez que uma de suas funções é primar pela qualidade de vida de seus cidadãos.

Como segundo princípio constitucional ferido, temos o Princípio da Proporcionalidade, que consiste numa noção genérica, cuja apreciação exata depende de um elemento suplementar, que são os valores a serem comparados.

No entendimento do douto doutrinador Trajano de Miranda Valverde, ao considerarmos a proporção de benefícios em função dos malefícios, observaremos que o ajuizamento do pedido de quebra por parte do Fisco não é adequado para atingir os fins pretendidos, pois em nenhum momento "garante" o pagamento do crédito. Trajano também intenta demonstrar que tal pretensão é mais gravosa para o contribuinte, que corre risco de ter a sua falência decretada, mesmo tratando-se, como tem ocorrido freqüentemente, de um mero caso de dificuldades financeiras e não, necessariamente, de insolvência. Alega o ilustre autor que tal procedimento ensejaria o excesso e abuso de poder por parte do Poder Público.

Além do mais, o sentido social que gera em torno de uma empresa deve ser extremamente valorado, uma vez que a mesma gera empregos, ou seja, alude à função social da propriedade, devido ao interesse coletivo empreendido. Podemos, neste sentido, dizer que a empresa deixa de ser algo pertencente ao patrimônio do empresário, e do qual este disporia do seu bel prazer, para se tornar autônoma, um sujeito de direitos e deveres. Seria, pois, credora de infra-estrutura em relação ao trabalhador e ao restante da sociedade, bem como devedora do cumprimento de seu papel social em relação àqueles.

Não obstante, cumpre ressaltar que empresas socialmente responsáveis são mais lucrativas que as demais, portanto, o requerimento da falência, principalmente por parte da Fazenda Pública, ensejaria uma grande desilusão nos empregados, bem como nos próprios dirigentes da empresa, o que talvez, acarretaria na verdadeira "morte" do devedor.

No que tange ao aspecto moral, temos entendimento do douto Ministro Ruy Rosado, senão vejamos: "O juiz deve indeferir o pedido de falência que visa, unicamente, forçar o devedor impontual ao pagamento. A ameaça de quebra não substitui processo de execução ou a ação de cobrança. Cumpre ao Judiciário coibir tais abusos". (STJ, 4ª Turma, Resp 136.565-RS).

Nesse sentido é o entendimento do Ilustre Prof. Sacha Calmon, que entende que "o requerimento da falência por parte da Fazenda Pública ultrapassa certos limites, sendo o primeiro de ordem ética, não podendo o empresariado ser intimidado com ameaças de morte empresarial; e o segundo de ordem política, onde a ameaça seria apenas para atrair os devedores a um acordo. Onde a ameaça e a confissão de dívida, que precede o parcelamento, a democrática possibilidade de se discutir o débito, direto, de resto, de fundo constitucional, fica prejudicada. O terceiro é de ordem jurídica. Penso que os privilégios da Fazenda Pública não lhe permitem pedir a falência de ninguém. Ora, a Fazenda não cobra a título emitido e não honrado pelo devedor: cheque, nota promissória, letra de câmbio, contrato firma, etc. Ao contrário, cobra título por ela própria produzido unilateralmente, sem controle judicial: a certidão de dívida ativa. Será justo constituir o título e falir quem não o emitiu? Por isso, o Código Tributário Nacional, a contrário sensu, sabendo que a Fazenda não entra na falência, retira-a do rol dos credores, dispondo que o juiz separará bens da massa que sejam necessários para satisfazer a execuções de créditos da Fazenda. Há coisa melhor do que isso?

Se a Fazenda já credora privilegiada, que seguer entrar no juízo concentracionário da falência e prefere a todos os credores, exceto os detentores de créditos trabalhistas, ou que, ao cabo, admitir possa a Fazenda pedir a Falência da empresa? Será que ela vai dividir pro rata seus créditos com os quirografários, atrás dos que possuem garantia real?

Tenhamos juízo, nos dois sentidos. A seriedade faz parte do espírito de Minas. A Fazenda não pode renunciar aos seus privilégios, que são públicos. Em suma, não pode ir para o juízo da falência". [9]

O douto Professor Fábio Konder Comparato afirma que a insolvência das empresas de interesse social, ou seja, aquelas em que há interesse real na conservação de suas atividades, deve ser tratada com o objetivo de reerguimento econômico e financeiro, sacrificando-se o interesse de todos os credores não trabalhistas, inclusive o Poder Público, aos fins sociais que devem orientar a atividade empresarial. Ademais, alega que somente no tocante às empresas de interesse particular que se justifica tratar a insolvabilidade como questão meramente creditória.

O requerimento da falência do contribuinte comerciante, por parte da Fazenda Pública, mesmo que não houvesse interesse social na preservação da empresa, representaria clara violação ao princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, como já demonstrado acima.

A ação pretendida pela Fazenda Pública, qual seja o requerimento da falência do devedor comerciante, tem nítido sentido de coação moral, dadas às repercussões que tal requerimento tem em relação às empresas solventes.

Desde modo, é inaceitável que a Fazenda Pública requeira a falência de um contribuinte comerciante, nos moldes em que se encontra a economia nacional.


2ª CORRENTE: ADMITINDO A POSSIBILIDADE DO REQUERIMENTO

A Fazenda Pública, como já demonstrado anteriormente, goza de privilégio, colocando-se à sua frente tão somente o crédito trabalhista.

Desta forma, sendo ela privilegiada, alguns doutrinadores como Amador Paes de Almeida, entendem que a Fazenda não está sujeita às restrições do art. 9º, III, b, da Lei de Falências, qual seja a renúncia do credor com garantia real ao seu privilégio, para a propositura da ação de falência.

Compreende, esta parcela da doutrina, "que nada impede a Fazenda Pública de requerer a falência do contribuinte, por débitos fiscais, desde, obviamente, que o contribuinte seja comerciante" [10], intentando o revestimento de liquidez do crédito fiscal, quer com fundamento no art.1º, caput, da Lei de Falências, quer nos termos do art. 2º deste mesmo diploma, sem renunciar ao seu privilégio que, permanece íntegro e intocável.

Alegam tal liquidez ser decorrente da inscrição da dívida (art. 202 do CTN), enquanto a certidão da inscrição, habilita a Fazenda Pública a ingressar em juízo.

Corroborando a liquidez do título executivo, preceitua o artigo 204, do Código Tributário Nacional, verbis: "A dívida ativa regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez e tem o efeito de prova preconstituída".

Corroborando o entendimento elencado, o Ilustre doutrinador Amador Paes de Almeida se posicionou sobre o assunto: "Atendidos os pressupostos mencionados, dúvida não pode haver quanto à faculdade de a Fazenda Pública requerer a falência do contribuinte comerciante, uma vez que atendidas plenamente as exigências do art. 1º da Lei Falimentar.". [11]

Intentam o preenchimento dos requisitos descritos no art. 1º da Lei Falimentar, com base também no artigo 204 do CTN, onde assim, possibilitaria o requerimento por parte da Fazenda da falência do contribuinte comerciante.

Como o crédito fazendário pode ser reclamado no processo falimentar e se a lei só considera legítimos para fundamentar um pedido de falência os créditos que não possam na mesma reclamar (Decreto-Lei 7.661/45, art. 1º, § 2º), resulta claro que a Fazenda Pública é parte legítima para pedir em juízo a falência de seus devedores. Como aduzido acima, a certidão de dívida ativa é título hábil que legitima a execução, portanto, preenche os requisitos do art. 1º da Lei Falimentar.

Com base no artigo 9º, inciso II, letra b do Decreto-Lei 7.661/45, que restringe a renúncia do privilégio, àquele que pedir a quebra, somente ao credor com garantia real, não se admitindo interpretação extensiva, a Fazenda Pública, para peticionar a falência de seu devedor, não precisaria renunciar ao seu privilégio e nem provar que os bens do seu devedor são insuficientes para a solução do crédito tributário.

Desta forma, somente o credor possuidor de garantia real é que, para o requerimento de falência de devedor, terá de renunciar à referida garantia ou provar que os bens não são suficientes para solução do seu crédito.

A Lei de Falências usa a expressão "credor com garantia real", ou seja, os hipotecários, pignoratícios e anticréticos. Assim, particularizada a natureza do privilégio, afastou-se expressamente a hipótese de inclusão, nesta categoria, dos privilégios pessoais.

Neste sentido, assim decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no Agravo de Instrumento nº 217.658, verbis:

"A Fazenda do Estado, embora com o privilégio que lhe é reconhecido por lei, não é credora com garantia real. Conforme o ensinamento de Miranda Valverde, o citado dispositivo legal não abrange os privilégios pessoais. Tais credores podem, assim, requerer a falência do devedor, sem que fique prejudicado o privilégio, que só depois dela decretada, adere ao seu crédito (Comentários à Lei de Falências, 3ªed., vol. 86, pág.118). No mesmo sentido o entendimento de José da Silva Pacheco, para quem os credores privilegiados podem requerer a falência (Processo de Falência e Concordata, 2ª ed.,vol 1, pág.270).

Ao tratar do problema da competência, Miranda Valverde admite expressamente a possibilidade da Fazenda Pública requerer a falência de um seu devedor (ob. Cit, vol.1, pág. 103). Também José da Silva Pacheco, que apenas discorda de Valverde no tocante ao foro privativo da União".

Ademais, observa esta parcela doutrinária, que inúmeras vezes a Fazenda Pública não logra êxitos em suas cobranças e isto porque não consegue efetuar a penhora em bens dos citados contribuintes por insuficiência dos mesmos.

Nesse sentido, no intuito de preservar a Fazenda de sonegadores de impostos, a jurisprudência pátria possui alguns julgados consentindo com o requerimento da falência por parte do Fisco, como no Agravo de Instrumento nº 26.466, julgado em 25/08/76 – TJRS.

Por este motivo, muitas vezes, o único modo de cessar o inqualificável comportamento tributário do contribuinte comerciante para com o Erário, seria a completa cessação das atividades de tais fraudadores.

Intentam os defensores desta corrente doutrinária, como o advogado Renan Kfuri Lopes, que "o título executivo constitui título de crédito circundado por obrigação líquida que enseja o manuseio da ação executiva fiscal, satisfazendo ao artigo 10, caput, da Lei de Falências". [12]

Com a falência requerida pela Fazenda, os créditos da Requerente vencidos e vincendos, exigíveis no decurso do processo de falência, classificar-se-iam como encargos da massa falida.

Ademais, não admitem os defensores da corrente em comento, o argumento de que as cobranças das dívidas da Fazenda somente operam-se pela via executiva, não podendo, desta forma,o Erário se utilizar da falência como veículo para as suas reivindicações. Alegam a improcedência deste argumento pelo fato de que o art. 1º do Decreto-Lei 960/38 preceitua que a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública "será feita por ação executiva, na forma desta lei", inexistindo neste decreto ou em qualquer outro diploma legal, dispositivo no teor de que tal cobrança só se faça por via executiva. Ademais, o artigo 1º da Lei de Falências exige precisamente que "legitime ação executiva" o título que consta obrigação líquida, cujo não pagamento, no vencimento, propicia o pedido de falência.

Não obstante o entendimento de que é possível que a Fazenda requeira a quebra, os doutrinadores de ambas correntes não divergem com relação a um ponto, qual seja, a necessidade de se continuar com as funções do contribuinte, colaborando assim, com sua função social, entrando, os próprios defensores da possibilidade do requerimento da falência pela Fazenda em contradição com os argumentos embasadores da tese defendida.


CONCLUSÃO

O cumprimento das obrigações por parte do devedor sempre foi uma preocupação da humanidade. Para tanto, desde o direito quiritário (no Direito Romano), procurou-se formas coercitivas para fazer o devedor cumprir suas obrigações.

Na tentativa de resguardar os direitos do credor, a legislação pátria procurou formas coercitivas para tal cobrança, onde, inicialmente, o próprio devedor respondia pela obrigação, na forma de execução pessoal, onde poderia o mesmo ser privado de sua liberdade. Com o passar dos tempos, bem como a evolução do próprio Direito, esta responsabilidade passou a recair sobre os bens do devedor, regra esta, que vigora até os dias atuais.

Em face da situação econômica em que se encontra a sociedade mundial, tem perdurado uma doutrina de menor coercibilidade nos atos da própria cobrança, isto porque, muitas vezes a impontualidade no cumprimento de obrigações não se dá por vontade do devedor, mas sim, atos que o envolvem, ou até mesmo, alheios à sua vontade.

Neste sentido tem sido várias decisões judiciais, onde julgadores de requerimentos de falências têm emitido pareceres contrários à mesma, face à grande dificuldade que um comerciante tem em se recuperar de um processo falimentar.

Ademais, como a maioria das falências tem gerado a "morte" do devedor comerciante, a doutrina atual prima por outros meios de obtenção de seus créditos. Isto porque, com a paralisação do devedor, o mesmo jamais poderá tentar reerguer-se, bem como gerará desemprego e não mais recolherá impostos aos cofres públicos.

Sem o recolhimento de tributos, a "máquina administrativa" não funciona e a falta de empregos requer um grande investimento do Estado a fim de evitar as privações que tal situação acarreta sobre a vida do povo.

Atualmente, existe uma presunção juris tantum favorável à empresa devedora para que o juiz conceda a medida de reorganização, [13] a não ser que as provas sejam cabais em demonstrar a inviabilidade econômica da empresa.

Mesmo superado o intuito de preservação da empresa que se encontra impontual com seus credores, a falência não pode ser considerada como meio de cobrança de crédito, visto importar um desvio da função específica da Lei de Falências, o que, conseqüentemente, acarreta constrangimento ilícito àquele comerciante.

Ressai hialino, após todo o elaborado, que em nenhuma linha sequer, a Lei de Execuções Fiscais ou o Código Tributário Nacional traçaram um perfil legitimando a Fazenda Pública para reclamar a falência do contribuinte devedor. [14]

Ressalte-se o atual entendimento doutrinário e jurisprudencial, no sentido que seria primordial que a empresa continuasse com suas atividades profissionais, primando pelo princípio do "soerguimento das empresas", manutenção do seu patrimônio, com o atendimento da produção e da preservação do trabalho, o que conclui para os fins sociais e o bem comum. Neste sentido é o que apregoa o Projeto de Lei nº 4376/93, que dispõe sobre falências e concordatas, e que, se editado, substituirá o Decreto-Lei nº 7661/45 e a legislação subseqüente que regem a matéria, claramente vinculado ao sistema francês, a começar pelas denominações dos institutos, recuperação judicial e liquidação judicial.

Tal entendimento, de recuperação empresarial, vem a confirmar a impossibilidade de a Fazenda Pública requerer a falência de um contribuinte comerciante, face à tendência universal. Nestes termos é o que ensina o Ilustre José da Silva Pacheco ao dizer que "verifica-se que a tendência, neste campo, será também, para a busca de soluções amigáveis, para a continuação da empresa, a manutenção do emprego e o prosseguimento da produção competitiva, deixando a falência ou liquidação do patrimônio para os casos em que não haja possibilidade de recuperação". [15]

No mesmo diapasão, a mensagem nº 1014, de 21/12/93, [16] confirma o entendimento de que seria impossível a Fazenda Pública requerer a falência de um contribuinte, uma vez que, seu tópico 14 recomenda que "de acordo com o princípio da unidade do juízo falimentar, todos os créditos devem ser verificados da mesma forma, ainda que tenham preferência. Executam-se os créditos trabalhistas e tributários anteriores à decretação da falência, cujo valor se apurará respectivamente na Justiça do Trabalho e no órgão de competência para esse fim." [17]

Assim, é o entendimento majoritário que deve prevalecer, no sentido de que falta à Fazenda Pública legitimidade ad causam para efetivar esta pretensão, quer no aspecto legal, como e principalmente, no moral.


NOTAS

01. Amaury Campinho.Manual de Falências e Concordatas. 7ª Ed. Lumen Juris.2001. pg1

02. J.C. Sampaio de Lacerda. Manual de Direito Falimentar.14ªEd. Freitas Bastos Editora. Pg 28

03. Trajano de Miranda Valverde.Comentários à Lei de Falências. Vol.1.4ªEd. pg 43

04. Trajano de Miranda Valverde.Comentários à Lei de Falências.4ªEd.Revista Forense. Pg 44

05. Trajano de Miranda Valverde. Comentários à Lei de Falências.4ªEd. Revista Forense. Pg.45

06. Trajano de Miranda Valverde.Comentários à Lei de Falências.4ªEd.pg.50

07. Carvalho Neto.Tratado das Defesas Falimentares.Vol II. 1967. pg 81

08. Coelho, Sacha Calmon Navarro, Curso de Direito Tributário Brasileiro, ed Forense, 1999, p. 754

09. Sacha Calmon. Publicação do Jornal Estado de Minas do dia 07/03/96

10. Amador Paes de Almeida, Curso de Falência e Concordata, 10ª ed, 1991, Saraiva, pág. 59.

11. Amador Paes de Almeida.Curso de Falência e Concordata.Saraiva.10ª Ed. 1991. p.59

12. Artigo retirado na Internet. Site www.falência.com.br escrito pelo advogado Renan Kfuri Lopes

13. Constitui em um procedimento judicial que visa sanear financeiramente a empresa, mantendo sua atividade funcional.

14. Artigo retirado na Internet. Site www.falência.com.br escrito pelo advogado Renan Kfuri Lopes

15. José da Silva Pacheco, Processo de Falência e Concordata, 9ª ed, 1999, pág.8.

16. Mensagem de envio, ao Congresso Nacional, do Projeto de Lei nº 4376/93, para deliberação.

17. Tópico 14 da Mensagem nº 1014, de 27/07/93, assinada pelo Ministro da Justiça Maurício Corrêa.


BIBLIOGRAFIA

Almeida, Amador Paes de. Curso de Falência e Concordata. 10ª Ed. Saraiva. 1991.

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Valdere, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 1º Vol. 4ª Ed. Revista Forense. 1999.

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Requião, Rubens. Curso de Direito Falimentar.1º Vol. 12ª Ed. Saraiva. 1998.

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LEÃO, Jardel Meireles. Possibilidade de a Fazenda Pública requerer falência de contribuintes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 71, 12 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4244. Acesso em: 1 maio 2024.