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Lei nº 10.257/2001: o Estatuto da Cidade

Lei nº 10.257/2001: o Estatuto da Cidade

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A urbanização crescente é vista como solução para a miséria e preservação da natureza, mas gera desafios para regular a ocupação do solo.

Resumo: A presente monografia jurídica consiste num relato sobre a Lei Federal nº 10.257/01, o Estatuto da Cidade, seus objetivos e instrumentos. O trabalho enfoca ainda o Direito Urbanístico Brasileiro, suas origens e os aspectos fáticos e principiológicos que informam a criação deste direito, que tem no Estatuto da Cidade seu mais importante instrumento. O Estatuto da cidade, lei criada em 2001 tem como objetivo orientar o processo de crescimento das áreas urbanas, fornecendo diretrizes para a criação de políticas públicas. Esta lei e também o direito urbanístico se estruturam em torno da função social da cidade e também da função social da propriedade, que também são temas abordados neste trabalho


Introdução

A revista National Geographic Brasil, em sua edição de dezembro de 2011, traz uma reportagem com o seguinte título: Sete bilhões - A Cidade é a solução - porque a vida urbana pode acabar com a miséria e preservar a natureza. Esta reportagem encerrava uma série de artigos sobre a superação do marco de sete bilhões de habitantes sobre a Terra e as consequências disto para o mundo e para as pessoas que nele habitam.

Os autores da reportagem apontaram para um fenômeno irreversível, que é a urbanização crescente. Hoje a maior parte da população, em praticamente todos os países, vive nas cidades. Este fenômeno é mais acentuado nos países desenvolvidos, mas a América Latina, que apesar de não poder ser incluída entre as regiões desenvolvidas, tem uma das taxas de urbanização mais altas do mundo, em média 70% dos habitantes dos países da América Latina vivem nas cidades.

As cidades são pontos de intersecção na estrutura que se forma ao longo do processo histórico de ocupação do território, e as vantagens de se concentrar a população na área urbana são apontadas no seguinte trecho da reportagem citada acima

"Graças às cidades, metade de todos os seres humanos ocupam cerca de 4% das terras cultiváveis, liberando espaço para a agricultura. Os moradores urbanos têm ainda um impacto relativo mais reduzido, explica David Owen no livro Green Metropolis. Nas cidades, as vias pavimentadas, os esgotos e as linhas de transmissão elétricas são menos extensos, portanto demandam menos recursos. Prédios de apartamentos requerem menos energia para ser aquecidos e iluminados que casas isoladas. Nas cidades, as pessoas usam menos os carros. Parte de seus deslocamentos pode ser feita a pé, e há uma quantidade de pessoas que frequentam os mesmos lugares suficiente para viabilizar transportes coletivos. Em Nova York, o consumo de energia e as emissões de dióxido de carbono per capta são bem mais baixos que a média nacional". (National Geographic Brasil, 2011, p. 42, 54)

Esses dados dão uma visão das possibilidades trazidas pelo incremento da urbanização, que tomou corpo na segunda metade do século XX, e vai dando forma ao mundo em que vivemos não apenas em termos econômicos e espaciais, mas também em termos sociais, culturais e políticos. Manuel Castells define o processo de urbanização deste modo:

"O termo urbanização refere-se ao mesmo tempo à constituição de formas espaciais específicas das sociedades humanas, caracterizadas pela concentração significativa das atividades e das populações num espaço restrito, bem como à existência e à difusão de um sistema cultural específico a cultura urbana." (Castells, 1983, p. 377)

Cada cidade, portanto é o resultado de uma forma original de ocupação do solo, onde a população se concentra ao redor de pontos de atração, dentro de um determinado padrão de adensamento. A concentração urbana adquire uma conformação própria ao longo do tempo, que varia de um lugar para outro, mas esta conformação está sempre relacionada às funções que os habitantes da cidade exercem no seu dia a dia, como o trabalho e a circulação. A forma da ocupação espacial deixa explícito o conteúdo histórico das relações sociais, do modo de produção que se estabelece e da cultura, expressando o que o urbanista Manuel Castello denomina de ”relações estabelecidas historicamente entre o espaço e a sociedade”. (Castells, 1983, p. 41)

Pode-se dizer então que a característica mais marcante das cidades é a intensidade da convivência humana com todas as implicações que isto traz, não apenas em termos sociais e culturais, mas também em termos da necessidade de criação de uma estrutura concreta para a ocupação do solo.

Os padrões de ocupação das cidades foram se estabelecendo de forma espontânea ao longo do tempo, no entanto a partir do que se pode chamar de transição urbana, ou seja, a partir do momento em que a população das cidades passou a ser maior do que a população do campo, trazendo para a área urbana uma massa de trabalhadores, em grande parte excluídos dos direitos de cidadania, as regras que regem os padrões de uso do solo passaram a ser indispensáveis para imprimir racionalidade a esta ocupação territorial.

A criação de regras para reger o fenômeno da urbanização foi resultado de processos políticos que exprimiram a forma como as autoridades respondiam às demandas que tomavam forma dentro das cidades, mas que acabavam refletindo as necessidades da sociedade como um todo. Manuel Castells resume tal processo da seguinte forma "o tema da política urbana está imbricado com o do poder local, entendido ao mesmo tempo como processo político e como expressão do aparelho do Estado". (Castells, 1983, p. 353)

Estabeleceu-se no Brasil, a partir da segunda metade do século passado, a necessidade de elaboração de regras nacionais de ordenação urbanística que dessem conta das necessidades das cidades que cresciam e se proliferavam. O instrumental técnico criado pelos urbanistas e também pelos juristas, foi então incorporado ao ordenamento, ou seja foi transformado em institutos jurídicos. Isto se deu num período relativamente recente, pois tal processo de criação legislativa teve como principal fato gerador a transição urbana ocorrida na segunda metade do século XX.

José Afonso da Silva, na introdução ao livro Direito Urbanístico Brasileiro conta que em 1976 foi instituído na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo o curso de pós-graduação em Direito Urbanístico, e que neste momento a disciplina foi sendo criada através de pesquisa e com a contribuição dos alunos, ajudando a dar forma ao que hoje é um conjunto de normas e princípios chamado de Direito Urbanístico Brasileiro. (Silva, 2008, p. 19)

As normas de Direito Urbanístico conferem caráter legal ao corpo teórico da disciplina que estuda a ocupação e a organização do território que é o Urbanismo. O jurista Hely Lopes Meirelles define Urbanismo nos seguintes termos:

"O Urbanismo de hoje, como expressão do desejo coletivo na organização dos espaços habitáveis, atua em todos os sentidos e em todos os ambientes. (...) Não se compreende o Urbanismo isolado, não se realiza Urbanismo particular, não se faz Urbanismo por conta própria, nem há imposições urbanísticas sem normas gerais que as determine. O Urbanismo é, em última análise, um sistema de cooperação. Cooperação do povo, das autoridades, da União, do Estado, do Município, do bairro, da rua, da casa, de cada um de nós!" (Meirelles, 1993, p. 379)

O Direito Urbanístico ao incorporar as técnicas de gestão urbana, que possuem caráter multidisciplinar; por envolverem em na sua elaboração, profissionais das mais diversas áreas de conhecimento, como a sociologia, a arquitetura e a economia; vincula o processo de ocupação do espaço ao acatamento dos padrões que este direito impõe, tentando imprimir à forma de ocupação do território um caráter de racionalidade e justiça.

Em 1928 na Cidade de Atenas, a reunião do Congresso Internacional de Arquitetura moderna, citada por José Afonso da Silva, definiu o Urbanismo e as funções da cidade nos seguintes termos:

"o Urbanismo é a ordenação dos lugares e dos locais diversos que devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e espiritual em todas as suas manifestações individuais ou coletivas. Abarca tanto as aglomerações urbanas como os agrupamentos rurais. O urbanismo já não pode estar submetido às regras de esteticismo gratuito. É por sua essência mesma, de ordem funcional. As três funções fundamentais para cuja realização deve velar o Urbanismo são: 1) habitar; 2) trabalhar; 3) recrear-se. Seus objetivos são: a) a ocupação do solo; b) a organização da circulação; c) a legislação". (Silva, 2008, p. 130, 131).

Para dar conta de organizar as funções sociais que se efetivam nas cidades, o Poder Público cria regras de gestão urbana, que são definidas pelo jurista Edésio Fernandes deste modo:

"A questão da gestão urbana envolve aspectos e considerações transdicisplinares, que, além da necessidade de uma integração entre os profissionais das diversas áreas, requerem, dentre outros fatores, a capacitação técnica e financeira dos governos municipais, a difusão da informação sobre as leis existentes e o combate à corrupção. Da perspectiva jurídica mais imediata, a discussão sobre a gestão urbana - sua natureza, seus problemas, obstáculos e possibilidades - requer a integração de três dimensões interrelacionadas, quais sejam: gestão político institucional, gestão político social e gestão político administrativa. As duas primeiras dimensões tradicionalmente estão no âmbito do Direito Constitucional; a última no âmbito do Direito Administrativo. A proposta do Direito Urbanístico é integrá-las de maneira renovada". (Fernandes et al., 2008, p. 50)

O Direito Urbanístico é portanto, um direito inovador assim como o seu principal instrumento, o Estatuto da Cidade, não apenas por incorporar aspectos transdisciplinares, mas também por dar uma interpretação nova aos institutos jurídicos tradicionais que incorpora. O autor Márcio Cammarosano expressa este espírito inovador deste modo:

"A lei que consubstancia o denominado Estatuto da Cidade não se limita a estabelecer regras orgânicas e procedimentos para a execução dos dispositivos constitucionais que regulamenta. Inova originariamente a ordem jurídica, estabelece obrigações e proibições a particulares e a agentes públicos, cria institutos jurídicos, prevê sanções para os que violarem as regras que prescrevem". (Cammarosano et al., 2006, p. 23)

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira Constituição brasileira a dedicar um capítulo à política urbana. Este capítulo foi regulado pela Lei Federal no 10.257/01, o Estatuto da Cidade, que é o objeto de estudo deste trabalho. Esta lei federal tem sido saudada pelos estudiosos da área como um marco que traz para os administradores das cidades instrumentos que possibilitam criar um projeto de cidade que corresponda às aspirações e às necessidades sociais.

Os institutos jurídicos previstos no Estatuto da Cidade podem e devem ser usados para resolver os problemas da realidade das cidades brasileiras, onde a ocupação feita às margens do sistema legal criou cidades com dimensões metropolitanas, mas com um padrão de urbanização, que em boa parte de seu território, é mais parecido com o de uma aldeia medieval do que com o de um grande centro urbano. As cidades brasileiras refletem literalmente o padrão sócioeconômico do país, a concentração de renda e a exclusão social.

Aprovado em 2001, o Estatuto da Cidade é ainda desconhecido pela maior parte dos cidadãos, e sua divulgação pode fazer com que a população tome consciência das possibilidades de planejamento racional, participação popular e redistribuição de riquezas que esta lei traz em si. A urbanista Lucia Leitão coloca a questão desta forma:

"Não se tem o hábito, no Brasil, de planejar as cidades junto com a sociedade. Esta, por sua vez, por não ter tal prática, não faz cobranças por um ambiente construído qualitativamente adequado. Afinal, nunca se lastima o que não se conhece, ensinava Etienne de La Boétie, nos idos do século XVI". (Leitão et al., 2006, p. 324)

O desconhecimento das leis de regulação urbanística faz com que a população perceba os direitos que estas regras protegem como mera expectativa de direito, enquanto na realidade estes direitos por já estarem previstos e normatizados, são direitos subjetivos dos cidadãos. O Estatuto da Cidade foi criado pelo esforço coletivo com o objetivo de proteger um bem coletivo, o direito de viver com dignidade no território das cidades.


Porque a Cidade não cria nada, mas centralizando as criações, ela permite que elas brotem.

Manuel Castells


1. Direito Urbanístico

1.1. Desenvolvimento Histórico e Social do Direito Urbanístico

Norberto Bobbio no livro "A Era dos Direitos" (2004, p. 149), afirma que "a democracia moderna repousa na soberania não do povo, mas dos cidadãos". O autor refere-se aos cidadãos enquanto detentores de direitos, mas é possível entender também estes cidadãos como os habitantes dos centros urbanos, onde a intensidade do contato humano difunde as ideias, os valores e as expectativas que fundamentam as atuais democracias.

A vida urbana cria novas necessidades que decorrem de circunstâncias sociais, econômicas, ambientais e demográficas. As regras de ordenamento de uso do solo têm que se adaptar a essas circunstâncias e para isto criam novos direitos e dão nova concepção a alguns direitos que fazem parte da ordem jurídica tradicional. Estes direitos trazem em si novos sentidos e aplicações que a eles foram incorporados por força das mudanças que ocorrem no processo de formação e conformação das cidades.

Manuel Castells, apresenta o modelo urbano de ocupação do solo, deste modo:

"a história humana define-se pela sucessão emaranhada de três eras, campos ou continentes: a agrária, a industrial e a urbana. A cidade política da primeira fase cede lugar à cidade mercantil, que é varrida pelo movimento de industrialização, negador da cidade, mas no final do processo, a urbanização generalizada suscitada pela indústria, reconstitui a cidade num nível superior: é assim que o urbano ultrapassa a cidade". (Castells, 1983, p. 143).

As áreas urbanas criadas após a revolução industrial se diferenciam das áreas urbanas anteriores pelo tamanho da população, pela complexidade de sua estrutura e pela escala de suas necessidades. Para atender às demandas de ordenação territorial criadas pelas cidades industriais, surge o Direito Urbanístico, que é conceituado por Hely Lopes Meirelles deste modo:

"O Direito Urbanístico ordena o espaço urbano e as áreas rurais que nele interferem, através de imposições de ordem pública, expressas em normas de uso e ocupação do solo urbano ou urbanizável, ou de proteção ambiental, ou enuncia regras estruturais e funcionais da edificação urbana coletivamente considerada." (Meirelles, 1993, p. 381).

A cidade considerada do ponto de vista coletivo é diferente da cidade que é percebida pelos particulares. O indivíduo vê a cidade como um local onde pode satisfazer seus interesses. Já do ponto de vista da coletividade a área urbana é um organismo complexo, cujo funcionamento deve estar voltado e ajustado para o atendimento conjunto das necessidades de uma grande quantidade de indivíduos. Os interesses dos cidadãos tomados coletivamente correspondem a mais do que a mera soma dos interesses individuais e no processo de gestão urbana devem ser somadas aos interesses coletivos as ideias, decisões e ações necessárias para a satisfação das demandas sociais que decorrem do processo de urbanização e que tomam forma nos planos urbanísticos, ou seja no planejamento urbano.

O planejamento é um instrumento de intervenção na realidade futura. Então as funções principais do direito urbanístico que são planejar e direcionar a ocupação do território se traduzem em entender como a sociedade se estabelece hoje para poder definir como ela irá se conformar no futuro. O direito urbanístico e o planejamento urbano são mais do que instrumentos técnicos, são instrumentos de ação política cuja importância só irá aumentar nas sociedades pós-industriais, onde a área rural tende a se unir à área urbana formando uma rede única de produção e circulação de riqueza.

José Afonso da Silva afirma que: "A urbanização criou problemas que precisavam ser corrigidos pela urbanificação, mediante a ordenação dos espaços habitáveis, de onde se originou o urbanismo como técnica e ciência" (Silva, 2008, p. 27). O urbanismo surgiu com o crescimento das cidades industriais e nessa época foram elaboradas várias teorias tentando estabelecer modelos ideais de urbanização. O estabelecimento desses modelos ideais mostrou-se inviável, mas as críticas às formas de ocupação urbana da época, estabeleceram critérios que até hoje são utilizados no planejamento das cidades o que é afirmado no trecho escrito pelo mesmo autor: "percebem-se ideias que voltaram a aflorar no urbanismo contemporâneo: zoneamento, áreas verdes, espaços livres, taxa de ocupação e coeficiente de aproveitamento do terreno. E não era só. As taxas de recuos, afastamentos e gabaritos também foram lançadas." (Silva, 2008, p. 29).

A cidade de Paris na época da Revolução Francesa tinha o mesmo padrão de urbanização da época medieval, com ruas estreitas e tortuosas, o que durante a revolução permitiu que a população se escondesse em seus meandros e foi importante para vitória dos revoltosos. Após a Revolução foi empreendida uma grande reforma no centro de Paris, que colocou abaixo a cidade medieval e reconstruiu a cidade como se conhece hoje com largas avenidas arborizadas. Este é um exemplo do novo modo de planejar as cidades que surgiu a partir do sec. XIX e a este modo de planejar foram conectados instrumentos técnicos e jurídicos que tinham como objetivo implementar as mudanças necessárias para adaptar o meio urbano às novas demandas nascidas com a cidade industrial.

Num primeiro momento as regras urbanísticas tinham um caráter embelezamento da cidade, mas o crescimento da desordem urbana que ocorreu principalmente após a Revolução Industrial fez com fossem criadas normas de conteúdo técnico. O jurista Carlos Ari Sundfeld descreve deste modo o papel que o direito urbanístico passou a desempenhar, (o que no Brasil vem ocorrendo desde a década de 60 do século passado).

"O direito urbanístico surge, então, como o direito da política de desenvolvimento urbano, em três sentidos: a) como conjunto das normas que disciplinam a fixação dos objetivos da política urbana (exemplo: normas constitucionais); b) como conjunto de textos normativos em que estão fixados os objetivos da política urbana (os planos diretores, por exemplo), c) como conjunto de normas em que estão previstos e regulados os instrumentos de implementação da política urbana (o próprio Estatuto de Cidade, entre outros)." (Sundfeld et al., 2006, p. 48, 49)

No Brasil a necessidade de criação de regras de ordenamento territorial ficou patente na segunda metade do séc. XX, quando ocorreu o fenômeno denominado de transição urbana. Nesta época as populações que viviam no campo migraram em massa para as cidades, indo principalmente para as grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Começou-se então a implementar um projeto nacional de ocupação do território que teve como um de seus pontos principais a construção de uma nova capital, Brasília, que foi construída segundo um projeto-modelo de urbanização de inspiração modernista. Tal modelo acabou sendo superado pela realidade social e hoje Brasília é composta por um centro de alta qualidade urbanística cercado por vastas periferias parecidas com as periferias de qualquer outra cidade brasileira.

Durante todo o século XX foi amplamente discutida a necessidade de integrar as técnicas de urbanização com as expectativas sociais, em 1996 a Conferência Habitat das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos criou um documento, a Agenda Habitat, que procura explicitar as bases do urbanismo democrático. Maria Paula Dallari Bucci, afirma que "A Agenda Habitat compreende um amplo programa de ação no qual é enfatizado a relação entre a habitação adequada e a proteção ao meio ambiente, bem com o acesso à moradia, acesso entendido como garantia de um custo acessível para todos". (Bucci et al., 2006, p. 338, 339).

Edésio Fernandes coloca a importância do crescimento da população que vive nas cidades, deste modo:

"A urbanização intensiva foi certamente o fenômeno sócioeconômico mais significativo do século XX, tendo provocado mudanças drásticas de todas as ordens. O impacto desse processo na ordem jurídica não pode ser mais ignorado". (Fernandes et al., 2008, p. 59)

Pode-se afirmar que o processo de urbanização desenha no território uma rede de relações econômicas, sociais, culturais e políticas, e como fruto destas relações surge o ordenamento jurídico que exerce uma função legitimadora das aspirações da coletividade expressas na forma de direitos. Existe uma relação entre o processo de urbanização e o desenvolvimento do direito urbanístico. O Estatuto da Cidade nasceu deste processo com poderes para condicionar e limitar o direito de propriedade urbana com o objetivo de construir uma ordem territorial que corresponda às necessidades de toda a população.

O Estatuto da Cidade é portanto, um instrumento do Direito dos Cidadãos. É uma presença na realidade jurídica material e se destina a legitimar e dirigir o processo de organização da ocupação do espaço urbano. A compreensão do alcance desta lei pode dar ao fenômeno da urbanização contornos mais democráticos e à gestão urbana um caráter de maior eficiência e racionalidade.

1.2. A Inserção do Direito Urbanístico na Ordem dos Direitos Fundamentais como um Direito Social

Direitos fundamentais e direitos humanos são expressões com o mesmo sentido. Os direitos humanos incorporados à Constituição Federal são denominados direitos fundamentais. O Título II da Constituição Federal de 1988 chama-se Dos Direitos e Garantias Fundamentais e nele se insere a Ordem Urbana. A expressão dos direitos fundamentais na Ordem Urbana pode ser encontrada na determinação de que a propriedade cumpra sua função social prevista no inciso XXIII do art. 5º da CF 88, incluída entre os direitos e deveres individuais e coletivos e no art. 6º que dispõe sobre os direitos sociais e inclui entre eles algumas das funções sociais da cidade como o trabalho, a moradia, o lazer e a segurança.

Os direitos humanos foram incorporados à ordem jurídica no Brasil e no resto do mundo após a Segunda Guerra Mundial, quando as atrocidades cometidas pelos países envolvidos no conflito, deixou clara a necessidade de uma proteção mais efetiva da dignidade humana. A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi assinada em 1948 e a sua existência não garante o respeito aos direitos humanos, mas tem servido sempre para legitimar a ação daqueles que lutam pela sua efetivação.

A luta pela conquista dos direitos humanos como expressão do valor de cada pessoa como ser único e dotado de dignidade, atravessa a história da humanidade. O autor Fabio Konder (Comparato, 2010, p. 70) afirma que a consciência ética coletiva amplia-se e aprofunda-se com a história e se traduz na formulação de novos direitos humanos que se complementam solidariamente e são irrevogáveis. Afirma ainda que "as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem certa ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado" (Comparato, 2010, p. 74).

Utilizando o lema da revolução Francesa; Liberdade, Igualdade e Fraternidade (solidariedade), o autor faz uma explanação sobre a forma como os direitos humanos foram se afirmando ao longo da história. (Comparato, 2010, p. 75) Desta forma os direitos de Liberdade foram os primeiros a serem alcançados e correspondem à conquista da possibilidade de participação política dos cidadãos e também da autonomia privada entendida num primeiro momento como liberdade de ação no campo econômico, tendo sido depois estendida a outras dimensões da liberdade, como a liberdade de expressão. Estes direitos demandam uma abstenção por parte do Estado no sentido de não interferir na fruição do direito por parte dos cidadãos.

A seguir surgem os direitos de igualdade que são os direitos econômicos, sociais e culturais, que foram conquistados com a abolição dos privilégios das classes dominantes e com o estabelecimento na maior parte dos países de uma garantia de igualdade perante a lei. Quando, portanto as leis garantem determinados direitos, que demandam uma ação do Estado no sentido de garanti-los, este será colocado na posição de prestador de serviços à população. Os direitos trabalhistas, os direitos previdenciários e o direito à educação pública são exemplos de direitos que demandam uma prestação por parte do Estado. Entre estes incluem-se muitos dos deveres do Estado em relação à ordenação do território, como a criação de redes de abastecimento de água e de redes de coleta de esgotos, a criação de sistemas de transportes coletivos e o fornecimento de energia elétrica.

Os direitos de Solidariedades são expressos por Fábio Konder Comparato desta forma:

"A solidariedade prende-se à ideia de responsabilidade de todos pelas carências de qualquer indivíduo ou grupo social. (...) O fundamento ético deste princípio encontra-se na ideia de justiça distributiva, entendida com a necessária compensação de bens e vantagens entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência humana" (Comparato, 2010, p. 77).

Dentre os direitos ligados à solidariedade estão os direitos à paz, ao meio ambiente saudável e ao desenvolvimento.

Pode-se afirmar que, as funções sociais da cidade e da propriedade que fundamentam o direito urbanístico, são expressões dos direitos de solidariedade que têm por objetivo realizar direitos de igualdade no sentido mencionado por José Joaquim Gomes Canotilho no trecho em que comenta a ordem constitucional portuguesa, mas que pode ser utilizado para o entendimento da ordem constitucional brasileira:

"Existe uma relação indissolúvel entre direitos econômicos, sociais, culturais e direitos, liberdades e garantias. Se os direitos econômicos, sociais e culturais pressupõem a liberdade, também os direitos, liberdades e garantias estão ligados a referentes econômicos, sociais e culturais. Neste sentido se afirma que o paradigma estruturante da ordem jurídico-constitucional portuguesa é o paradigma da liberdade igual. A liberdade igual aponta para a igualdade real, o que pressupõe a tendencial possibilidade de todos terem acesso aos bens econômicos, sociais e culturais. 'Liberdade igual' significa, por exemplo, não apenas o direito à inviolabilidade de domicílio, mas o direito a ter casa; não apenas o direito à vida e à integridade física, mas também o acesso aos cuidados médicos; não apenas o direito de expressão, mas também à possibilidade de formar sua própria opinião; não apenas o direito ao trabalho e emprego livremente escolhido, mas também à efectiva posse de um posto de trabalho." (Canotilho, 2003, p. 480)

O direito urbanístico através de seu complexo de regras que visam orientar o processo de construção coletiva do espaço das cidades tem como fundamento o respeito aos direitos individuais entendidos como expressão da dignidade que reside em cada ser humano e atua coletivamente no sentido de beneficiar cada cidadão em particular. Norberto Bobbio afirma que o respeito aos indivíduos em sua singularidade está na base do Estado Democrático de Direito, o que aparece expresso no seguinte trecho:

"Não há nenhuma Constituição democrática que não pressuponha a existência de direitos fundamentais, ou seja, que não parta da ideia de que primeiro vem a liberdade dos cidadãos singularmente considerados, e só depois o poder do Governo, que os cidadãos constituem e controlam através de suas liberdades" (Bobbio, 2004, p. 130)

Portanto o regramento urbanístico tem como objetivo realizar o direito de viver em espaços verdadeiramente habitáveis, o que implica no acesso à moradia, mas também implica no acesso à educação, ao lazer, ao transporte e ao saneamento, direitos que podem encontrar na própria estrutura das cidades um instrumento para a sua efetiva realização.

1.3.O Direito Urbanístico como um Ramo Autônomo do Direito

O direito e seus institutos são uma criação da cultura humana e suas regras se aplicam aos mais diversos ramos de atuação sem deixar de ser um assunto único: o Direito. Miguel Reale coloca desta forma este conceito:

"É inegável que, apesar das mudanças que se sucedem no espaço e no tempo, continuamos a referir-nos a uma única realidade. É sinal de que existem nesta algumas 'constantes', alguns elementos comuns que nos permitem identifica-la como experiência jurídica, inconfundível com outras como a religiosa, a econômica, a artística, etc." (Reale, 2010, p. 130)

Esta realidade única que é o Direito se desdobra em inúmeros ramos como o direito civil, o direito penal e o direito processual, entre outros. Estes ramos do direito surgiram como forma de solucionar conflitos, foram se adaptando ao longo do tempo às novas realidades e necessidades criadas socialmente e foram adquirindo autonomia em relação aos outros ramos do direito, deste modo cada um desses ramos passou a ser regido por uma legislação específica e a ter também uma estrutura própria para sua aplicação.

O autor Eduardo Sabag ao descrever os motivos pelos quais o direito tributário deve ser considerado um ramo autônomo faz uma explanação que se aplica a todos os outros ramos do direito. Portanto para ser considerado autônomo um ramo do direito deve se encaixar nos pressupostos mencionados a seguir:

"Apresenta-se, pois com um direito autônomo, em face da homogeneidade de sua estrutura normativa e de seus preceitos elementares. Não é apenas um ramo didaticamente autônomo dos demais: frui sem sombra de dúvida uma autonomia dogmática ou científica (corpo de regras próprias orientadas por 'princípios jurídicos próprios, não aplicáveis aos demais ramos do direito')" (Sabag, 2012, p. 49)

O direito urbanístico é um ramo do direito que surgiu muito recentemente, sua inclusão na ordem jurídica constitucional ocorreu com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 que o regulou em linhas gerais, sendo que sua legislação específica surgiu em 2001 com a entrada em vigor do Estatuto da Cidade. O fato de ser um direito tão novo e que introduz mudanças na própria estrutura de alguns direitos tradicionais tem gerado controvérsias, que também ocorrem em relação à sua autonomia em face de outros ramos do direito.

Por ser este um direito que, em grande parte, é aplicado pela administração pública, é visto por parte da doutrina como fazendo parte do direito administrativo. Outros autores enxergam o direito urbanístico como parte do direito econômico devido à importância do ordenamento do território para a economia do país.

O direito urbanístico atual pode ser visto como um ramo autônomo do direito, pois possui "preceitos elementares e uma estrutura normativa própria" (Sabag, 2012, p. 49), que correspondem à inclusão da ordem urbana na Constituição Federal de 88 e à criação de lei específica, o Estatuto da Cidade. Possui também "princípios jurídicos próprios não aplicáveis a outros ramos do direito" (Sabag, 2012, p. 49) que já estão bem definidos, e uma estrutura jurídica totalmente diferenciada dos outros ramos do direito.

Pode-se afirmar, portanto que o Estatuto da Cidade trouxe para o direito urbanístico condições para que este adquira autonomia didática e científica. Edésio Fernandes comenta a polêmica em torno do reconhecimento da autonomia deste direito, assim:

"De modo geral, o Direito Urbanístico somente tem sido aceito como um sub-ramo do Direito Administrativo ou, em alguns casos do Direito Ambiental. Como tenho insistido, acredito que tal resistência é de natureza ideológica e tem a ver com noções pré-concebidas e inquestionadas acerca do direito de propriedade imobiliária. Já a maior aceitação do Direito Ambiental deve-se em parte ao fato de que a 'agenda verde' é frequentemente expressão de uma visão naturalista de um espaço abstrato e sem conflitos, sendo como tal certamente mais próxima da sensibilidade das classes médias do que a 'agenda marrom' das cidades poluídas que são estruturadas a partir dos conflitos políticos-sociais e jurídicos em torno da terra e das relações de propriedade." (Fernandes et al., 2008, p. 59).

O direito urbanístico possui condições formais para o reconhecimento de sua autonomia didática e científica, mas para atingir uma autonomia de fato, ainda terá de ser feito um trabalho pelos profissionais ligados a esta área no sentido de divulgar e reafirmar o seu conteúdo e suas metas.

1.4. O Direito à Cidade

As questões referentes à cidade, ao ordenamento do uso do solo e à apropriação social da estrutura urbana, além de serem objeto de estudo são também causas defendidas por urbanistas, juristas e outros estudiosos ligados a esta área. A partir principalmente da segunda metade do século XX, foram criadas regras de direito urbanístico que procuravam conciliar as exigências do uso correto do solo urbano com as demandas por uma distribuição mais justa do território e dos benefícios das cidades. A causa dos urbanistas e dos estudiosos do assunto foi sendo abordada e explicitada durante todo o século XX, mas o aparecimento dos Fóruns Sociais na década de noventa deu folego a esta causa, e começou a ser delineado o que Letícia Marques Osório definiu como: "concepção do Direito à Cidade como um novo direito humano coletivo, com base em uma plataforma de reforma urbana para ser implementada pelos países". (Osório et al., 2006, p. 194)

O jurista Jaques Tavora Alfonsin afirma que, "em matéria de direitos sociais, como se sabe, todos os possíveis de hoje residiram no impossível de ontem" (Alfonsin et al., 2006, p. 17), o que significa dizer que incrementos no acesso aos direitos sociais sempre ocorrem. É verdade também que ocorrem retrocessos, pois o acesso aos direitos sociais tem correlação direta com o desempenho econômico do país.

Fábio Konder Comparato coloca a necessidade de um movimento de acesso a direitos sociais acompanhado de um movimento no sentido do desenvolvimento econômico nestes termos: "é necessário levar-se em conta - ao contrário do que uma certa esquerda ingênua admitiu no passado - que sem crescimento econômico não há distribuição de renda". (Comparato, 1997, p. 2) No entanto sem um projeto político que vincule o desenvolvimento econômico ao desenvolvimento social, o país continuará tendo o mesmo padrão de urbanização excludente que tem sido visto nas últimas décadas.

O Fórum das Américas realizado em Quito em 2004, o Fórum Mundial Urbano realizado em Barcelona em 2004 e o Fórum Social Mundial de 2005 estabeleceram as bases da Carta Mundial do Direito à Cidade. As medidas propostas nesta carta em termos de defesa da função social da cidade e de uma nova ordem urbanística representam um instrumento que é posto nas mãos dos atores envolvidos no processo de construção das cidades para a criação de metas justas e democráticas.

A Carta define o Direito à Cidade desta forma:

"O direito à Cidade é definido como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre determinação e a um padrão de vida adequado.

O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecido, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a inclusão do direito ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias; de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saúde pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; à participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de organização, reunião e manifestação; à segurança pública e à convivência pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural, e o respeito aos migrantes.

O território das cidades e seu entorno também é espaço e lugar de exercício e cumprimento de deveres coletivos como forma de assegurar a distribuição e o desfrute equitativo, universal, justo, democrático e sustentável dos recursos, riquezas, serviços, bens e oportunidades que brindam as cidades. Por isso o Direito à Cidade inclui também o direito ao desenvolvimento, a um meio ambiente sadio, ao desfrute dos recursos naturais, à participação no planejamento e gestão urbanos e à herança histórica e cultural." (Osório et al., 2006, p. 201)

A Carta Mundial do Direito à Cidade é um documento redigido para "estabelecer mecanismos de fiscalização eficazes e instrumentos de exigibilidade dos direitos para complementar as lutas reivindicatórias dos movimentos" (Osório et al., 2006, p. 194). Esta carta exerce seu papel na luta por um ambiente urbano mais humano e mais justo, fornecendo instrumental teórico para a promoção da democratização do acesso aos benefícios criados pela vida urbana.

1.5. A Reforma Fundiária

O jurista e urbanista Edésio Fernandes afirma que: "não há como fazer reforma urbana sem enfrentar a ordem jurídica vigente" (Fernandes et al., 2008, p. 25). Em relação à regularização fundiária esta é uma verdade fundamental, pois esta regularização é feita através de mudanças na legislação com o objetivo de corrigir todo um processo de ocupação do espaço urbano feito de forma ilegal, irregular e precária.

O mesmo autor cita o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre que viu "na ilegalidade da favela, uma legitimidade, que é o direito que as pessoas têm de buscar uma residência qualquer, um espaço qualquer onde viver. E ele viu ali o embrião de uma nova sociedade, de uma nova sociabilidade." (Fernandes et al., 2008, p. 39) Esta legitimidade foi reconhecida pelo legislador constitucional ao incluir no art; 6º da Constituição Federal de 1988, o direito à moradia no rol dos direitos sociais.

O propósito da reforma fundiária é conferir título de propriedade aos moradores das áreas urbanas que foram ocupadas de forma ilegal ou irregular. O Estatuto da Cidade em seus artigos 55, 56 e 57 prevê mudanças na Lei de Registros Públicos para permitir o registro de imóveis independentemente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação, o que significa dizer que os imóveis que estiverem fora dos padrões exigidos pelas leis municipais que regulam o assunto, poderão ser levados a registro público, o que implica no reconhecimento do direito de propriedade.

A reforma fundiária é antes de tudo um pacto político que ao promover mudanças no regime jurídico que regula a propriedade urbana, acaba por modificar a própria estrutura da urbanização, pois a formalização das ocupações ilegais e irregulares permite que estas deixem de ser a regra na hora da obtenção da moradia por parte das classes menos favorecidas.

O urbanista Ricardo Cymbalista coloca as diferenças de oportunidades que decorrem da localização geográfica dentro da cidade, deste modo:

"À medida em que mora e transita nos locais desqualificados, a população que está em situação desfavorável acaba tendo muito pouco acesso às oportunidades de crescimento que a cidade oferece, sejam elas oportunidades de trabalho, cultura ou lazer. Simetricamente, aqueles que conseguem viver 'do lado de dentro' têm muito mais facilidade de acesso a oportunidades, inclusive aquelas decorrentes de investimentos públicos, pois bibliotecas, museus, universidades públicas em geral situam-se nas porções mais consolidadas da cidade, que sempre são povoadas pelos mais ricos." (Cymbalista et al., 2006, p. 281, 282)

As políticas públicas que a reforma fundiária busca implementar foram resumidas por Edésio Fernades desta forma:

"No Brasil, combinando políticas de urbanização: - implementação de infra estrutura e prestação de serviços e políticas de legalização das áreas e dos lotes individuais - e em que pesem suas diferenças, quase todos os programas de regularização de favelas têm sido estruturados em torno de dois objetivos principais: o reconhecimento da segurança jurídica da posse para os ocupantes das favelas e a integração socioespacial de tais áreas e comunidades no contexto mais amplo da estrutura e da sociedade urbanas". (Fernandes et al., 2006, p14)

Os objetivos descritos acima por Edésio Fernandes foram incorporados pela Lei nº 11.977/09, o Projeto Minha Casa Minha Vida que trata, entre outros assuntos, da regularização fundiária. O artigo 46 desta lei, a conceitua desta forma:

"A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam a formalização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado"

Portanto, pela definição do artigo acima a regularização fundiária é a intervenção do poder público nas áreas que foram ocupadas irregularmente durante o processo de crescimento das cidades, com o objetivo de regularizar a situação jurídica dos possuidores e também promover urbanificação. As áreas irregulares ou ilegais, são: as invasões de áreas públicas ou privadas denominadas de favelas ou aglomerados subnormais; os loteamentos irregulares, ou seja os loteamentos que foram aprovados pelo Poder Público, mas não foram registrados, ou foram registrados, mas não foram construídos de acordo com o ato de aprovação; e os clandestinos, que são os loteamentos cuja existência é desconhecida pelo Poder Público ou que não cumprem os requisitos para aprovação.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) criou no censo de 2010 um critério para identificação dos assentamentos irregulares e deu a estes assentamentos o nome de aglomerados subnormais. Segundo os dados do censo de 2010 o Brasil possui 6.329 aglomerados subnormais distribuídos em 323 municípios. O total de habitantes destes aglomerados é de 11.425.644 pessoas, o que corresponde a 6% da população. Sendo que a maioria dos aglomerados subnormais, 75, 1% deles, se localiza nas regiões metropolitanas, sendo 49, 8%, na região sudeste. (www.ibge.gov.br)

Os números do censo são questionados por entidades como o Centro de Estudos da Metrópole CEM/CEBRAP (www.observatoriodasfavelas.org.br), que aponta para a existência de um número muito maior de aglomerados subnormais. Além disso nos dados levantados pelo IBGE não estão incluídos os loteamentos irregulares e os clandestinos. Portanto a população brasileira vivendo em condições irregulares ou ilegais é bem maior do que a que aparece no censo de 2010.

A inclusão de instrumentos de aferição do tamanho da população instalada ilegalmente e a criação de uma lei que instrumentaliza o Poder Público no sentido da regularização de tais assentamentos revela, portanto o peso que o problema das áreas ilegais tem para as cidades brasileiras.

1.6. Atuação do Judiciário

As regras de direito urbanístico têm como objetivo orientar o ordenamento do uso do solo. A implementação destas regras será feita principalmente no âmbito do Poder Executivo que as utilizará para planejar e executar as políticas públicas de ordenamento urbano e para sancionar em sede administrativa o uso do solo em desacordo com a planificação.

Já a tutela jurisdicional em matéria de direito urbanístico insere-se na tutela dos direitos metaindividuais, ou seja na tutela dos direitos de um grupo indeterminado de indivíduos. A este tipo de direitos tem-se dado o nome de "novos direitos". Cassio Scapinella Bueno coloca desta forma a inserção da tutela dos novos direitos na ordem jurídica:

"Na exata proporção em que se concederam 'novos' direitos, precisou-se conceber novas formas de aplicação compulsória desses mesmos direitos em conflito. Se o perfil do 'novo' direito é diverso do que lhe precedeu, o perfil dos mecanismos de resolução dos conflitos derivados desses 'novos' direitos também deverá ser." (Bueno et al., 2006, p. 394)

As decisões administrativas com base nas regras de direito urbanístico, especialmente as de caráter sancionatório poderão ser questionados junto ao judiciário que irá então decidir sobre a sua legalidade. O judiciário poderá ainda decidir sobre questões que envolvam a execução de leis municipais e por consequência dos planos diretores, nos casos em que houver omissão do poder executivo no cumprimento destas leis e nos casos em que ocorrerem ilicitudes na execução das políticas públicas.

O Estatuto da Cidade prevê a utilização da Ação Civil Pública na defesa da ordem urbanística ou seja na defesa dos direitos metaindividuais que estão implícitos nesta ordem. Dentro do âmbito do Poder Judiciário a competência para promover a Ação Civil Pública é do Ministério Público de acordo com o inciso II do art. 129 da Constituição Federal.

A importância da Ação Civil Pública está na possibilidade de ser usada para suprir falhas na legislação urbanística dotando a administração pública de um instrumento que permite perseguir o cumprimento efetivo da planificação urbanística, como afirma Cassio Scapinella Bueno, neste trecho:

"O que tem aptidão para ser diferente, se não novo no caso do Estatuto da Cidade, é que o Município que vê de qualquer forma, o particular frustrando o cumprimento de seu plano diretor ou, mais amplamente de quaisquer diretrizes urbanísticas pode valer-se da Ação Civil Pública para impor jurisdicionalmente ao particular o dever de fazer ou não fazer descumprido. Na exata proporção em que só a atuação administrativa mostrar-se insuficiente ou insatisfatória no perseguimento das políticas públicas e urbanísticas, a via jurisdicional potencializada da Ação Civil Pública está expressamente reconhecida também para o Município. (Lei 7.347/85)." (Bueno et al., 2010, p. 407)

Existe hoje instalada na capital do Estado de São Paulo uma Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo. As atribuições desta promotoria forma definidas pelo artigo 295, X, da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo que dispõe nos seguintes termos: Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo: defesa de interesses difusos ou coletivos nas relações jurídicas relativas a desmembramentos, loteamentos e uso para fins urbanos.

Na página do Ministério Público do Estado de São Paulo, os objetivos da atuação do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo são definidos desta forma: "a defesa da ordem urbanística de acordo com o art. 129 da Constituição Federal e com o art.1o, inciso III, da Lei nº 7.347/85, Lei de Ação Civil Pública". Define ainda a sua atuação em relação à ordem urbanística deste modo:

"As transformações e o crescimento das cidades, quer pela atuação do Poder Público, quer pelas ações dos particulares, podem afetar a ordem urbanística (padrões e regras urbanos definidos em leis e atos regulamentares que visam o uso e a ocupação do solo de maneira planejada e ordenada, para garantia da qualidade de vida sustentável nas cidades), com a consequente deterioração do ambiente urbano. Quando a ordem urbanística é atingida por ações que podem prejudicar o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho, à circulação e ao lazer, ou, ainda, quando o Poder Público Municipal deixa de regular as transformações do meio ambiente urbano, é possível provocar a intervenção do Ministério Público, por meio da Promotoria de Justiça de Habitação e do Urbanismo, a fim de que sejam adotadas todas as medidas jurídicas (inquérito civil, termo de ajustamento de conduta e ação civil pública) que visam recompor o bem estar de todos os que habitam ou circulam nas cidades, preservando o direito a cidades sustentáveis para as presentes e futuras gerações." (www.mp.sp.gov.br)

O Ministério Público da Habitação e do Urbanismo surgiu em 1993, e num primeiro momento a sua atuação foi exclusivamente para prevenir e reprimir na esfera civel os parcelamentos do solo ilegais, utilizando-se da Ação Civil Pública para regularizar os parcelamentos e requerer indenizações pelos danos causados ao meio ambiente natural e urbano, bem como dos adquirentes lesados.

Um documento redigido pela Associação Paulista do Ministério Público, e disponível em sua página na internet, aponta para a insuficiência desta atuação deste modo:

"A noção de Urbanismo, todavia, encerra interesses diversificados, muito mais abrangentes do que apenas o parcelamento do solo urbano. Não são poucos os problemas que afligem o morador das cidades, especialmente o de metrópoles como São Paulo, e que atingem interesses relacionados à moradia, a circulação viária, à preservação de áreas verdes e de lazer, ao paisagismo, à qualidade do ar, etc. O desafio da Promotoria, portanto começou no próprio delineamento do objeto de seu trabalho. Hoje já é possível dizer que os Promotores vêm atuando em procedimentos que dizem respeito a vários aspectos que apresentam inegável impacto urbanístico: bolsões residenciais, fechamento de ruas, zoneamento, operações interligadas, disciplina da instalação de bancas de camelô, desafetação de áreas de uso comum do povo, áreas de risco e inundações, poluição visual, poluição sonora, etc. A principal dificuldade do dia-a-dia diz respeito à eleição de estratégias para resolver os complexos problemas que nos chegam" (www.apmp.sp.gov.br)

A resolução dos problemas das cidades só pode ser conseguida através da atuação coordenada dos três poderes, mas a atuação do Judiciário é fundamental para imprimir ao processo de construção das cidades uma qualidade de gestão que corresponda aos ideais constitucionais. Letícia Marques Osório coloca isto de forma bastante clara no seguinte trecho:

"O direito tem sido, em alguma medida, um instrumento a ser utilizado quando fracassam outras mediações, como a política e a demanda social. O movimento de direitos humanos tem comprovado que as estratégias sociais são insuficientes, de per si, para alcançar a justiça social e por isso foi necessário avançar na instrumentação de mecanismos jurídicos de exigibilidade dos direitos." (Osório et al., 2006, p. 194)


2. Princípios Informadores do Direito Urbanístico

Os Princípios Constitucionais que Informam o Direito Urbanístico e o Estatuto da Cidade

Princípios são valores socialmente construídos que fundamentam a criação dos direitos como função e do Direito como ciência. A Constituição Federal de 1988 positivou uma série de princípios e estes tiveram como meta reestabelecer e consolidar o Estado Democrático de Direito no Brasil. A criação desta nova Constituição teve lugar porque, como assinala Dalmo Dallari, "já estava madura no Brasil a consciência do valor de uma ordem constitucional democrática" (Dallari, D.; 2009, p. 338). A Constituição Federal de 1988 foi a mais democrática e tem se revelado a mais estável das Constituições brasileiras, segundo Dalmo Dallari: "aí são enumerados direitos identificados como valores supremos da sociedade brasileira, acrescentando-se o propósito de, usando a Constituição assegurar o exercício de tais direitos". (Dallari, D.; 2009, p. 324)

Os caminhos percorridos para a concretização dos princípios previstos na Constituição, indicam que em nosso país vem se estabelecendo um Estado Democrático Constitucional de Direito que representa uma ordem política onde nenhum ato jurídico tem validade se for contrário aos ditames da Constituição Federal, porque esta representa a garantia de efetivação dos direitos que ali estão inscritos por força da vontade de todos os cidadãos.

Com base no pensamento do jusfilósofo Miguel Reale pode-se dizer que princípios são objetos autônomos que expressam um valor fonte que é a pessoa humana e que condicionam todas as formas de convivência juridicamente ordenadas. Os princípios são elementos da cultura que se desenvolveram ao longo da história e têm três funções: -eles são elementos integrantes da realidade, - eles funcionam como fonte de entendimento, - eles funcionam como razão determinante de condutas. (Reale, 2010, p. 313, 314)

Miguel Reale divide ainda os princípios em duas categorias, neste trecho:

"Há com efeito, duas perspectivas do valor, uma transcendental, outra positiva ou empírica: numa o valor é condição transcendental da história do direito, o qual é substancialmente, um processo existencial de opções e realizações no sentido do justo: sob outro angulo, o valor se atualiza como valoração efetiva, isto é, de sistemas de modelos destinados a disciplinar comportamentos futuros segundo as diversas circunstâncias de lugar e tempo" (Reale, 1968, p. 26)

Os princípios são os fundamentos axiológicos dos direitos. Eles introduzem os valores no ordenamento jurídico e quando são positivados possuem status de norma legal. O jurista Karl Esser citado por André Rufino do Valle define princípios jurídicos "como ponto de encontro entre o direito e moral". (Valle, 2009, p. 49). O próprio André Rufino do Valle conceitua princípios desta forma:

"os princípios são pensamentos diretores que orientam a regulação jurídica na direção do justo e, nesse sentido, constituem a representação jurídico positiva dos princípios do Direito Justo. Os princípios ao funcionarem como causas de uma regulação, portanto, podem ser qualificados como princípios do Direito Justo introduzidas no direito positivo" (Valle, 2009, p. 52).

Portanto o legislador ao incluir um capítulo sobre política urbana na Constituição Federal, o fez com base não apenas nas necessidades concretas, mas também com base nos valores que orientam a organização da sociedade.

Dos princípios constitucionais que informam o direito urbanístico, o mais importante é sem dúvida o princípio da função social da propriedade, que será analisado no próximo item deste trabalho e que estabelece que o direito de propriedade deverá ser exercido não apenas de acordo com os interesses do proprietário, mas também de acordo com os interesses da coletividade.

A incorporação do princípio da função social da propriedade à Constituição foi feito em consonância com o princípio da supremacia do interesse público. Celso Antônio Bandeira de Mello citado por Hely Lopes Meirelles conceitua este princípio deste modo:

"o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo algum da Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele, como por exemplo, os princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art.170, III, V, VI), ou tantos outros. Afinal o princípio em causa é um pressuposto lógico do convívio social. Esta supremacia do interesse público é o motivo da desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados" (Meirelles, 2005, p. 103 e 104)

Na Constituição Federal de 88 os princípios surgem logo no preâmbulo e visam assegurar que o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça sejam os valores norteadores da vida em sociedade. Tais princípios informam todo o direito e também o direito urbanístico, pois cada um desses valores podem ser encontrados nos objetivos do Estatuto da Cidade e de todos as outras regras que regulam o uso do solo.

O artigo 1º da Constituição traz outros princípios que são caros ao direito urbanístico, como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o principal deles a cidadania, que no direito urbanístico pode ser entendida como a capacidade de ocupar um lugar no espaço e de fazer valer os direitos que decorrem desta ocupação. O artigo 3º determina que são fundamentos da República Federativa do Brasil, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Tais objetivos não poderão ser alcançados sem uma ordenação justa e democrática do espaço das cidades e, portanto estão entre os fundamentos do direito urbanístico.

A incorporação dos valores fundamentais à Constituição Federal é colocada por Dalmo Dallari nestes termos:

"Nesta visão humanista, tudo o que se refere às características naturais da pessoa humana, seus valores fundamentais, à satisfação de suas necessidades materiais e imateriais, ao desenvolvimento de suas potencialidades, tudo isso integra a noção de dignidade da pessoa humana e deve ter garantia jurídica. E o instrumento jurídico para a garantia desses direitos é a Constituição, que os proclama e prevê os meios para a busca de sua efetividade" (Dallari, D.; 2009, p. 314)

Vemos, portanto que a Constituição Federal não apenas determinou a criação dos instrumentos jurídicos que tomam forma no Estatuto da Cidade, mas também forneceu os valores que devem nortear a aplicação e a interpretação desses institutos

2.1. Princípio da Função Social da Propriedade

A função social da propriedade é um princípio e como tal representa um valor considerado fundamental pela maioria da sociedade e que por isso foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição Federal de 1988. A partir disto uma relação jurídica única, a propriedade privada, passou a ser regulada pelo direito público e pelo direito privado ao mesmo tempo.

A incorporação de uma função social à propriedade privada representa uma mudança no regime jurídico que regula o exercício deste direito. Tal mudança decorre do fato de ter sido atribuída a este direito uma função pública: a de contribuir para o desenvolvimento econômico e social e é sobre esta função pública atribuída à propriedade que o direito urbanístico se estrutura.

O que o legislador constitucional pretendeu ao incluir a função social da propriedade na Constituição de 88 foi dar a este princípio que está na base do planejamento urbanístico e da urbanificação, um caráter de norma superior à qual todas as outras ficam submetidas. O jurista Daniel Sarmento afirma que:

"nenhum ramo do Direito, público ou privado, sobrevive hoje às margens da normatividade constitucional. Pelo contrário, a supremacia formal e material da Constituição, fiscalizada e promovida por vários instrumentos de jurisdição constitucional, bem como o reconhecimento da força normativa de toda a Lei Maior induziram à fecundação de todos os ramos do direito pelos valores, princípios e diretrizes hospedados em sede constitucional. E no Brasil, a constitucionalização do direito privado não é sequer escolha do intérprete. A opção já foi feita pelo próprio constituinte que se dedicou a disciplinar em linhas gerais inúmeros institutos do Direito Privado como a família e a propriedade." (Sarmento et al., 2012, p. 163)

O art. 5º, inciso XXIII da Constituição Federal de 1988 determina que a propriedade deve cumprir sua função social, este preceito surge na Ordem dos Direitos Fundamentais que disciplina os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. O mesmo preceito se repete no art. 170, inciso II, que no Capítulo da Ordem Econômica e Financeira dispõe sobre os Princípios Gerais da Atividade Econômica. O art.182, incluso no capítulo que trata da Política Urbana, dispõe que a propriedade urbana cumprirá sua função social quando atender às exigências de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. As exigências fundamentais que deverão balizar a criação do Plano Diretor são dispostas como diretrizes nos artigos 1º e 2º do Estatuto da Cidade.

Pode-se afirmar que atribuir à propriedade uma função social é ampliar o sentido deste conceito, e este significado ampliado passa a existir em consonância com uma visão de funcionamento da sociedade na qual as atitudes individuais estão atreladas a um projeto comum de criação de uma sociedade mais justa e mais racional. Convém lembrar que como a função social da propriedade limita um direito e como a proteção dos direitos é fundamento da ordem jurídica, a interferência no poder de uso, gozo e disposição da propriedade deve acontecer de forma criteriosa e dentro dos parâmetros legais. Lembrando ainda que o acatamento das regras de direito civil que regulam o direito de propriedade não afasta a incidência das regras urbanísticas sobre este direito, pois como preceitua José Afonso da Silva: "o direito civil não regula a propriedade, mas apenas as relações civis a ela pertinentes" (Silva, 2008, p. 70).

O princípio da função social da propriedade pode ser definido como um comando juridíco que acopla um dever a um direito. Este direito será então exercido não apenas em função dos interesses de seu detentor, mas também em função dos interesses de terceiro, que neste caso será a sociedade como um todo.

A autora Marina Mariani Rabahie define desta forma esta nova relação que se forma:

"Quando a Constituição, ainda que de maneira programática incluiu, dentre os seus comandos, os da função social da propriedade, alterou substancialmente a situação jurídica comum daquele que é proprietário. Isto é, o proprietário, entendido somente como um fiel cumpridor de interesses próprios, passa a atuar, tal qual o Estado (ainda que este possua prerrogativas que lhe são exclusivas e próprias, o que o diferencia do particular) como um gestor de negócios da coletividade, um cumpridor de funções. Notamos, então, que ao menos desta função pública o particular é detentor. Além de usar, gozar e dispor do objeto de sua propriedade de modo a alcançar interesses próprios, deverá faze-lo de maneira qualificada, para que atinja, também, os interesses de toda a coletividade, da qual faz parte." (Rabahie et al., 1991, p. 227).

Ao incorporar ao direito de propriedade uma função social o legislador juntou a este direito princípios que fundamentam a ordem estabelecida pela Constituição Federal de 1988, como a cidadania e a proteção da dignidade humana. Os direitos que incorporam tais valores passam a integrar a realidade e a surtir efeito nela, não apenas em termos jurídicos, mas também em termos econômicos, sociais e políticos.

O entendimento dos direitos dos cidadãos como direitos fundamentais vem sendo incorporados à cultura geral. Isto acontece também em relação ao princípio da função social da propriedade, que vem ganhando força nos debates e nos embates que caracterizam a vida social e política do mundo atual.

2.2. Princípios Próprios do Direito Urbanístico

Regras e princípios são categorias jurídicas complexas que têm sido objeto de estudo de juristas e doutrinadores que criaram para os dois conceitos bastante diversos e sofisticados. Para os propósitos deste trabalho princípios e regras serão definidos desta forma: as regras jurídicas expressam o conteúdo dos direitos e dos deveres e os princípios expressam os motivos pelos quais os direitos e os deveres devem ser acatados.

Robert Alexy coloca a contraposição entre regras e princípios desta forma:

"aqui regras e princípios serão reunidos sob o conceito de normas, porque dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões deônticas do dever-ser, ainda que de espécies muito diferentes. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção entre duas espécies de norma." (Alexy, 2008, p. 87).

Afirmar, portanto que princípios são uma espécie de norma é afirmar que estes possuem caráter cogente, ou seja seu acatamento é obrigatório.

O acatamento obrigatório dos princípios, especialmente por parte do Poder Público no exercício de suas funções é demonstrado pelo ministro do STF, Celso de Mello, citado por Eduardo Sabag, no voto transcrito, em parte, a seguir:

"O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como um dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a estes valores que desempenham enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais e coletivos, introduz um perigoso fator de desiquilíbrio sistêmico e rompe por completo, a harmonia que deve presidir as relações sempre tão estruturalmente desiguais entre pessoas e o poder" (Sabag, 2012, p. 95).

O direito urbanístico possui princípios próprios, ou seja este direito é informado por valores que fundamentam seu objetivo maior que é ordenar a ocupação do solo urbano de modo racional e de maneira justa. Estes princípios são:

  • O princípio da função social da propriedade: é o mais importante do direito urbanístico e tem como desígnio a realização das funções sociais da cidade.

  • Urbanismo como função onde prevalece o interesse público sobre o interesse privado: está previsto nos artigos 5º, XXII, XXIII, XXIV, XXVI; 170, III; 182, caput, parágrafo único e 186 da Constituição Federal. Ao incidir sobre os interesses da sociedade como um todo, a função pública do direito urbanístico funciona como uma espécie de pacto social que objetiva ordenar de forma otimizada o meio urbano através da ação coordenada dos Poderes Públicos e dos indivíduos em geral.

  • Princípios da afetação das mais valias ao custo da urbanificação e da justa distribuição dos benefícios e ônus da urbanização: são interrelacionados e para fazer valer estes princípios o Poder Público poderá se utilizar de tributos como a contribuição de melhoria e o IPTU.

  • O princípio da afetação da mais valia ao custo da urbanificação, será implementado através da contribuição de melhoria decorrente de obras públicas, este tributo é previsto no art. 145, II da CF88 e tem como objetivo ressarcir o Poder Público do dispêndio econômico decorrente das atividades de urbanização, que resultam em valorização imobiliária e que é apropriada pelos proprietários de imóveis em áreas próximas às intervenções urbanizadoras. A cobrança deste tributo tem como fundamento a proibição ao enriquecimento sem causa.

    Para fazer valer o princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus da urbanização, o Estado tem vários recursos sendo um deles o imposto que alguns doutrinadores denominam de IPTU "seletivo" previsto no art.156, parágrafo 1º, I e II da CF88 e que prevê a progressividade do imposto em razão do valor do imóvel e permite ainda a criação de alíquotas diferenciadas de acordo com a localização e o uso do imóvel.

    A recuperação por parte do Estado do ganho especulativo obtido no processo de urbanização e a consequente aplicação dos recursos obtidos desta forma na melhoria das cidades ainda não foi efetivamente implementado em nosso país por dificuldades na aplicação da lei e por falta de vontade política.

  • Princípio da subsidiariedade: este princípio deriva da regra prevista no art.173 da CF 88 que determina que a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. O jurista Vicente de Abreu Amadei conceitua o princípio da subsidiariedade nos seguintes termos: "impõe o dever de abstenção ao Estado quando a sociedade, por si, atuar de modo eficaz, logo, este princípio, que está na raiz de toda a ordem econômica se faz presente também na ordem urbanística, indicando que é na apatia da sociedade frente aos graves problemas urbanísticos que se justifica ação do Estado." (Amadei, 2006, p. 32).

    Portanto, de acordo com o princípio da subsidiariedade a construção das cidades deve ser empreendida pela iniciativa privada em todas as frentes em que esta for suficiente para atender às necessidades públicas, o que significa dizer que o papel do Estado será subsidiário ao papel dos particulares. Um exemplo de aplicação deste princípio foi a criação do Programa Minha Casa Minha Vida pela Lei no11.977/[09].

    A possibilidade de se separar o direito de construir do direito de propriedade é um princípio jurídico, que implica na existência de duas formas de domínio: uma forma onde o direito de propriedade e o direito de construir estão nas mãos de um único detentor e uma forma de domínio onde o direito de propriedade está nas mãos de um detentor e o direito de construir está nas mãos de outro detentor, por força de um contrato. Este princípio jurídico está implícito no Direito de Superfície e na Transferência do Direito de Construir, entre outros, e flexibiliza e amplia as possibilidades de utilização da propriedade urbana.

Edésio Fernandes inclui o seguinte princípio ao direito urbanístico:

"O outro princípio estruturante da nova ordem jurídico-urbanística é o da indissociabilidade entre direito e gestão urbana. Esse princípio tem sido traduzido por meio de três eixos integrados de reformas jurídicas-políticas, quais sejam: a renovação da democracia, por meio da afirmação do direito coletivo a processos decisórios, no sentido não apenas do fortalecimento dos governos locais, mas também do enfrentamento da questão metropolitana e da necessidade de articulação intergovernamental para superação dos problemas urbanos, sociais, ambientais, e a criação de um novo quadro de referências juríco-administrativo para fornecer uma maior clareza de princípios às novas relações que estão se dando entre Estado e sociedade, sobretudo através de parcerias público-privado e outras formas de relações entre Estado com outros setores privado, comunitário e voluntário" (Fernandes et al., 2006, p. 18)

O direito urbanístico tem princípios próprios, que estruturam e conferem autonomia a este direito e fazem com que esta ordem jurídica corresponda aos valores constitucionais fundamentais.

2.3. Princípios do Direito Administrativo e do Direito Econômico que informam o Direito Urbanístico

O capítulo da Constituição Federal de 88 que dispõe sobre a política urbana, está inserido no Título de Ordem Econômica e Financeira, isto porque o, legislador constitucional entendeu que a urbanização em nosso país está na base do desenvolvimento econômico.

O artigo 170 da Constituição enumera os princípios gerais da atividade econômica, e os incisos II e III são princípios que informam também a ordem urbanística. Nestes incisos a Constituição protege a propriedade privada como fundamento da atividade produtiva e da circulação de riquezas (inciso II), mas condiciona o exercício do direito de propriedade ao cumprimento de sua função social (inciso III).

A propriedade privada e sua função social são, portanto princípios que se situam na intersecção da ordem urbanística com a ordem econômica. A função social da propriedade condiciona a sua função econômica, limitando-a, sem, no entanto impedir o seu exercício.

A aplicação das normas de direito urbanístico acontece, em regra através da atividade administrativa. São os administradores do Município, do Estado e da União que aplicam as leis urbanísticas, por isto os princípios básicos que regem a atividade administrativa aplicam- se também ao direito urbanístico.

O doutrinador Hely Lopes Meirelles enumera os princípios do direito administrativo desta forma:

"Os princípios básicos da administração pública estão consubstanciados em doze regras de observância permanente e obrigatória para o bom administrador: legalidade, moralidade, impessoalidade ou finalidade, publicidade, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, motivação e supremacia do interesse público. Por esses padrões é que deverão se pautar todos os atos e atividades administrativas de todo aquele que exerce o poder público. Constituem por assim dizer os fundamentos da ação administrativa, ou, por outras palavras, os sustentáculos da atividade pública" (Meirelles, 2005, p. 88, 89)

Dos princípios que informam o direito administrativo e que podem ser encontrados no caput do art. 37 da Constituição Federal, os que mais afetam o direito urbanístico são:

  • Princípio da legalidade: este princípio vincula a ação dos administradores ao cumprimento dos preceitos legais. O princípio da legalidade está na base do Estado Democrático de Direito, onde os Estado deve se submeter às leis que o criaram. Este princípio constitui uma limitação ao poder dos governantes, pois enquanto aos particulares é permitido fazer tudo que não é proibido pela lei, o Estado só pode fazer aquilo que é permitido pela lei.

  • Princípio da moralidade: está intimamente ligado à exigência de probidade administrativa, tanto por parte daqueles que aplicam o direito administrativo, quanto por parte daqueles que aplicam o direito urbanístico.

  • Princípio da publicidade: a gestão democrática da cidade deve ser exercida em consonância com este princípio, permitindo o acesso de toda a população aos documentos e decisões emitidos no processo de planejamento do território.

  • Princípio da supremacia da interesse público: decorre da ideia de que o bem comum deve prevalecer sobre os interesses individuais e legitima a existência da função social da propriedade e como decorrência disto, legitima o direito urbanístico como um todo.


3. O Estatuto da Cidade

Apresentação da Lei

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade incorporam o planejamento urbano ao ordenamento jurídico brasileiro. Depois da entrada em vigor destes dispositivos legais, a criação de planos de ordenamento do uso do solo urbano deixou de ser uma faculdade conferida ao Poder Público, e passou a ser uma obrigação. Os administradores, especialmente os administradores municipais são, por força da lei, obrigados a criar políticas de desenvolvimento e expansão urbana. A política urbana está então, atrelada aos fundamentos constitucionais presentes no projeto de ocupação do território, que foi expresso pela Lei 10.257/01 - Estatuto da Cidade.

Um longo caminho foi percorrido para chegar à incorporação do direito urbanístico pela Constituição Federal e à criação de seu principal instrumento, que é o Estatuto da Cidade, a primeira lei totalmente dedicada a orientar o processo de urbanização em nosso país.

Pode-se afirmar que se trata de uma lei recente, cujos institutos ainda são desconhecidos, não só pela população em geral, mas também por representantes do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, e por esta razão, além de outras, a efetivação dos propósitos da lei e a incorporação de seus institutos ainda vai demandar um grande esforço por parte dos urbanistas, dos estudiosos, dos administradores das cidades e dos membros do legislativo e do judiciário, no sentido de ampliar a sua capacidade de produzir efeitos reais no processo de urbanização.

Desde a década de 60 do século passado foram apresentados inúmeros projetos de lei que visavam normatizar o uso do solo urbano. Os projetos eram criados pelo Poder legislativo, mas no processo de aprovação tais projetos se tornavam alvo de críticas e de boicotes, da parte de entidades que representavam os proprietários de terra e os empresários da construção civil, e ao longo do tempo todos foram abandonados com argumentos como o de que tais projetos tinham caráter estatizante, ou se tratavam de ameaças à propriedade privada, ou que contrariavam a livre iniciativa.

De um modo geral, todos os planos tinham o mesmo objetivo, que era adequar o uso do solo urbano às necessidades de toda a população, o que é expresso pela urbanista Grazia de Grazia, coordenadora do Fórum Nacional de Reforma Urbana, como a "melhoria da qualidade de vida nas cidades por meio da adequada distribuição da população e da atividade economica". (Grazia et al., 2002, p. 16)

A instalação da Assembleia Nacional Constituinte que criou a Constituição Federal de 1988 trouxe para os defensores de uma nova ordem urbanística a oportunidade de participar da elaboração de normas sobre o assunto, Grazia de Grazia descreve o que aconteceu nesta época do seguinte modo:

"Em 1987 formou-se uma articulação do conjunto dos atores sociais urbanos envolvidos na negociação da Emenda Popular pela Reforma Urbana, dentro do processo de participação que se deu durante a elaboração da Nova Constituição Brasileira. Esta Emenda Popular foi responsável pelo capítulo urbano e contém um eixo fundamental que é a função social da cidade". (Grazia et al., 2002, p. 15)

O capítulo da política urbana foi incorporado à Constituição Federal de 1988, e em 1990 foi elaborado um projeto de lei pelo Senador Pompeu de Souza e seu assessor José Roberto Bassu, denominado "Estatuto da Cidade". As polêmicas em torno da reforma urbana proposta pela lei fizeram com que esta tramitasse por onze anos, sendo finalmente aprovada em 30 de Junho de 2001.

A Lei Federal 10.257/01 representou para o nosso país a institucionalização dos objetivos do urbanismo, e é descrita pela autora Mariana Moreira nos seguintes termos:

"O Estatuto da Cidade é assim denominado por refletir um conjunto de regras jurídicas que condicionam e pontuam a atividade urbanística, criando verdadeiro pacto entre governos, suas administrações, a população e a própria cidade". (Moreira et al., 2006, p. 30)

Uma das principais inovações trazidas por esta lei, foi incorporar a uma norma infraconstitucional o princípio da função social da propriedade. Antes do Estatuto da Cidade, este princípio era reconhecido apenas em sede constitucional, o que significava que os efeitos jurídicos produzidos por este preceito eram praticamente nulos, pois faltavam instrumentos jurídicos para a sua efetivação.

O Estatuto da Cidade incorporou também o conceito de função social da cidade que condiciona o exercício do direito de propriedade e o exercício das atividades do Poder Público à consecução dos objetivos previstos na Constituição Federal de 1988, e que atrelam a ocupação do solo urbano a critérios de justiça e distributividade. O jurista Edésio Fernandes coloca tais critério no seguinte trecho:

"Cabe especialmente ao governo municipal promover o controle do processo de desenvolvimento urbano, através da formulação de políticas de ordenamento territorial nas quais os interesses individuais dos proprietários de terras e construções urbanas necessariamente coexistam com outros interesses sociais, culturais e ambientais de outros grupos e da cidade como um todo". (Fernandes et al., 2002, p. 8)

Portanto conferir à cidade uma função social é reconhecer que a aglomeração urbana confere aos seus habitantes direitos que lhes são inerentes, os Direitos dos Cidadãos colocando a Constituição Federal de 88 e o Estatuto da Cidade na base da proteção a tais direitos.

A ocupação territorial que nós denominamos de cidade é uma formação complexa de instalações e vias, e a forma como os elementos são dispostos no espaço, e também a forma como estes são apropriados pela população é que determina a qualidade de vida nas cidades. No Brasil a ausência de um planejamento racional e includente fez com que as cidades crescessem cheias de conflitos e problemas que só poderão ser resolvidos através da organização da sociedade e da aplicação de instrumentos de intervenção urbanística, como os que estão previstos no Estatuto da Cidade. José Joaquim Gomes Canotilho expressa a necessidade da atividade mediadora do direito deste modo:

"Tal como os direitos, liberdades e garantias, também a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais assenta na existência de esquemas organizativos e procedimentais funcionalmente adequados, (...) reconhece-se que o acesso aos bens sociais é indissociável da preexistência de instituições que forneçam o suporte logístico instrumental e material da dinamização dos direitos sociais".

Em 1983, o Ministério do Interior contratou os juristas Miguel Reale e Hely Lopes Meirelles para emitirem pareceres que versavam principalmente sobre a competência da União para legislar sobre assuntos de desenvolvimento urbano. Ambos os pareceres concluíram que a União era competente para legislar sobre estes assuntos. Este entendimento teve importância para a integração das regras de direito urbanístico e das diretrizes gerais de desenvolvimento urbano ao ordenamento nacional.

Atualmente em nosso país existem basicamente três tipos de regras de ordenação do espaço urbano: - regras que dizem como e com que fundamentos devem ser fixadas as políticas urbanas e que estão presente na Constituição de 1988. - regras que criam instrumentos e estabelecem diretrizes para a implementação das políticas públicas de caráter urbanístico, o principal exemplo deste tipo de regra é o Estatuto da Cidade. - regras que fixam as próprias políticas públicas para a urbanização, que são os planos diretores e as leis municipais.

A incorporação dos preceitos urbanísticos ao ordenamento permite o enfrentamento das novas demandas sociais e econômicas decorrentes de fenômenos como a onda de migração da população do campo para as cidades ocorrida na segunda metade do sec. XX, que levou a um grande aumento do tamanho da população e das áreas urbanas e que acabou fazendo com que algumas cidades brasileiras se transformassem em metrópoles cercadas pelos seus parceiros inevitáveis, os aglomerados urbanos.

Pode-se afirmar que o direito urbanístico e o Estatuto da Cidade têm como função dar vida aos direitos da cidadania, entendidos como o direito a decisões político administrativas que levem em conta as reais expectativas das populações das cidades. As decisões que envolvem este direito são principalmente decisões políticas e produzem resultados concretos que perduram no tempo e por isso devem ser elaboradas com base em regras que visem otimizar o desenvolvimento físico das cidades, contribuir para o incremento da atividade econômica e também para a sustentabilidade ambiental.

3.1. Regiões Metropolitanas e Aglomerados Urbanos

A formação de metrópoles é um fenômeno recente na história da humanidade e trata-se de uma forma de ocupação espacial característica do capitalismo industrial e do pós-industrial. A área metropolitana reúne um grande contingente populacional em vários municípios, que crescem em função de uma cidade principal e cujos limites se confundem, tornando-se uma única e grande ocupação territorial.

No mundo atual, as metrópoles ocupam o posto mais alto da hierarquia em termos de poder político, econômico e social, além de abrigarem em seus territórios grande parte da produção científica e cultural.

O crescimento das regiões metropolitanas no Brasil é sempre acompanhado do crescimento dos aglomerados urbanos, entendidos como a ocupação de uma área extensa sem um ponto central. Os aglomerados urbanos cresceram sem uma ligação com a função econômica, isto porque foram criados por populações sem acesso ao próprio sistema econômico. Tais populações migraram para as cidades com expectativas de inclusão social, mas como a economia do país durante muito tempo não deu conta de incluir esta massa de trabalhadores, estas passaram a inchar as periferias destituídas de qualquer estrutura.

Edésio Fernandes descreve a geografia das metrópoles brasileiras como a "geografia da 'cidade real' que desconsidera limites administrativos e mesmo limites físicos", e descreve as razões pelas quais o Poder Público encontra dificuldades na administração destas áreas:

"Politicamente as regiões metropolitanas são frequentemente vistas como ameaças ao poder tradicionalmente estabelecido - sendo vistas como "super municípios"ou "mini estados" (...). Internamente às regiões metropolitanas, há tensões irresolúveis devido aos desequilíbrios causados pelo fato de que os maiores municípios (com frequência, grandes capitais) acabam por ter mais poder nos processos de gestão metropollitana. (...) No Brasil - e, de modo geral, pode-se dizer que o mesmo tem ocorrido internacionalmente, sobretudo no contexto dos países em desenvolvimento - a verdade é que, exatamente por não incorporar as regiões metropolitanas de maneira adequada, o "mapa" da ordem jurídico - institucional não espelha o mapa da ordem urbana - territorial existente, da mesma forma que o "mapa"da representação democrática não expressa as dinâmicas político sociais reais". (Fernandes et al., 2006, p. 351)

Os conceitos de metrópole e de aglomerados urbanos são também conceitos jurídicos, como demonstra o inciso II do artigo 41 do Estatuto da Cidade, que determina que o plano diretor é obrigatório para cidades integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas. A inserção das metrópoles dentro do sistema federativo, onde a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são os entes que detêm os poderes e as competências, e também dentro do sistema de representação política, é feita de maneira tensa e isto influi diretamente nas questões relativas à gestão metropolitana.

Edésio Fernandes explica a necessidade de uma ordem normativa voltada para a administração destas áreas, desta forma:

"Da perspectiva jurídico-política, a importância da constituição de uma ordem jurídico institucional metropolitana adequada, decorre do fato de que tal esfera é o elo perdido no processo de constituição de uma ordem verdadeiramente democrática nos países urbanizados, bem como de padrões de eficiência econômica, racionalidade administrativa, justiça social e equilíbrio ambiental para orientação dos processos de gestão urbana em áreas metropolitanas (...). No Brasil (...) a verdade é que exatamente por não incorporar as regiões metropolitanas de maneira adequada o "mapa" de ordem jurídica institucional não espelha o "mapa" da ordem urbano-territorial existente". (Fernandes et al., 2006, p. 53)

A redação final do Estatuto da Cidade aprovada em 2001 excluiu todo um capítulo destinado a regular as regiões metropolitanas, o que acabou situando as metrópoles num vazio jurídico, que os administradores urbanos tentam suprir. No entanto a importância das regiões metropolitanas para o país como um todo, determina a necessidade da criação de um ordenamento jurídico próprio para estas regiões.

3.2. Artigos 1 a 3 - Diretrizes Gerais e Competências

3.2.1 Artigos 1 e 2 - Diretrizes gerais

O jurista Carlos Ari Seinfield define política urbana deste modo "pode-se afirmar que o objeto da regulação promovida pelo direito urbanístico é o solo (espaço) da cidade. Nesse sentido, o direito urbanístico é o direito da política espacial da cidade". (Sundfeld et al., 2010, p. 49) A política urbana será portanto a explicitação de uma forma de ocupação do território expressa

num conjunto de normas. Para atingir os objetivos da política urbana, o legislador impõe diretrizes. No Estatuto da Cidade estas diretrizes gerais estão fixadas nos artigos 1, 2, e se destinam a integrar e concretizar os princípios constitucionais que informam as normas de caráter urbanístico.

Tais valores estão expressos no artigo 1º, onde o regramento que compõe o Estatuto da Cidade é definido como sendo de ordem pública e interesse social. Normas de ordem pública são uma categoria especial de normas e expressam a seguinte relação: nas normas de ordem pública o interesse do Estado sempre prevalece sobre o interesse do particular. A incidência destas normas não pode ser afastada pelas partes envolvidas na relação jurídica, e são cogentes, ou seja o acatamento de tais regras é compulsório.

O artigo 1º determina ainda que as normas de ordem pública e interesse social regulem o uso da propriedade urbana segundo o princípio da função social da propriedade, que foi definido neste lei como o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

Portanto, nos termos do artigo acima citado, o conceito de função social da propriedade está conectado às regras do direito urbanístico, que como direito público condiciona o uso da propriedade, e utiliza esta propriedade condicionada como meio para realizar as funções sociais da cidade, ou seja, tais diretrizes determinam que a ordem pública em seu aspecto mais democrático sirva como base da atividade administrativa.

O artigo 2º do Estatuto da Cidade explicita suas diretrizes gerais e será estudado juntamente com o artigo 4º, que define os instrumentos para a implementação das diretrizes, mostrando assim a correspondência entre os dois artigos.

3.2.2. Artigo 3 - Competências

O conceito de competência está ligado ao princípio da legalidade, pois a distribuição das atribuições de cada órgão legal ou de cada ente estatal é definida pela ordenamento jurídico, e os critérios que estabelecem esta distribuição são criados pelo legislador.

O artigo 24 da Constituição Federal de 1988 e o artigo 3, inciso I do Estatuto da Cidade determinam que compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre Direito Urbanístico. Legislar concorrentemente significa que compete à União legislar sobre tal assunto em suas diretrizes gerais, mas nos casos em que a União deixar de legislar sobre um determinado assunto, os Estados e o Distrito Federal poderão criar estas normas que serão substituídas pela legislação federal se a União vier a criar normas sobre o assunto.

O artigo 3º estabelece as atribuições da União no processo de criação de políticas urbanas e determina que esta deverá legislar sobre normas para a cooperação entre União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios em relação à política urbana, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem estar em âmbito nacional. Determina ainda que à União cabe promover, por inciativa própria, em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os municípios, programas de construção de moradia e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. Cabe ainda à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos, além de elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenamento do território e de desenvolvimento econômico e social.

O artigo 24, inciso I da Constituição Federal permite aos Estados e ao Distrito Federal complementar a legislação federal em termos de direito urbanístico, e o artigo 30 incisos I e II da Constituição Federal determinam que compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber. Portanto, por estes artigos, ficam estabelecidas em linhas gerais as competências da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em matéria de legislação urbana.

O Estado Brasileiro é uma federação da qual fazem parte a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, estes são os entes da federação e a competência de cada um dos poderes, ou seja, do Legislativo, do Executivo e Judiciário é exercida dentro do território de cada ente. Em termos de direito urbanístico, a União tem competência para matérias de interesse geral, os Estados têm competência para matérias de interesse regional, os Municípios tem competência para matérias de interesse local e o Distrito Federal tem competência para matérias de interesse local e regional.

A auto organização de cada ente da federação dentro de seu território será feita desta forma: a União, através da Constituição Federal, os Estados membros através da Constituição Estadual e os Municípios através da Lei Orgânica.

Os Municípios, entretanto serão os principais responsáveis pelo planejamento e implementação das políticas urbanas, com a competência que lhes foi dada pelo artigo 182 da Constituição Federal. Daniela Campos Libório di Sarno resume assim a importância dos municípios:

"o Poder Executivo Municipal tem um papel de grande importância (insubstituível até) na realização e concretização da organização e adequação do espaço urbano dentro de princípios e diretrizes que tragam um desenvolvimento equilibrado e saudável para a sua população. Necessitará a Prefeitura Municipal, da Câmara Municipal para aprovação das leis de cunho urbanístico que precisar". (Di Sarno et al., 2010, p. 65)

Portanto, em matéria de direito urbanístico, todos os entes da federação terão capacidade de implementar políticas, mas estas políticas deverão se ater ao que a Constituição Federal define como âmbito de competência de cada um.

3.3. Artigo 4º - Dos Instrumentos da Política Urbana e sua relação com as Diretrizes Gerais da Política Urbana (artigo 2º)

O Estatuto da Cidade tem como papel fornecer aos administradores um arsenal normativo que permite que estes criem planos urbanísticos, implementem o que foi planejado e ainda que punam em sede administrativa aqueles que não cumprem as determinações do planejamento. O artigo 2º e o artigo 4º do Estatuto da Cidade representam um resumo do escopo da lei, pois o primeiro cita as diretrizes gerais da política urbana e o segundo elenca os instrumentos que a lei criou, e que podem ser usados para a implementação de tal política.

As diretrizes previstas nos artigos 1 e 2 correspondem àquilo que o legislador pretendia implementar através da lei, ou seja, uma ordem urbanística justa e adequada ao bem estar coletivo. O jurista Carlos Ari Sienfield conceitua tais diretrizes da seguinte forma:

"Para viabilizar esta coordenação a Constituição adotou um sistema de racionalidade decisória em que as normas e decisões em matéria urbanística (isto é, de política espacial da cidade) têm a sua validade condicionada ao respeito de normas e decisões de maior abrangência, tanto no sentido territorial (a política espacial da cidade deve compatibilizar-se com a política nacional de ordenação do território) como temático (a política espacial da cidade deve compatibilizar-se com genérica política de desenvolvimento)". (Sundfeld et al., 2010, p. 48, 49)

As diretrizes da política urbana estão conectadas aos seus objetivos, que foram definidos pela Constituição Federal de 1988, e se prestam a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

Os instrumentos da política urbana previstos no artigo 4º do Estatuto da Cidade representam meios de intervenção nas relações entre particulares e o Estado e nas relações entre os órgãos da administração. Estes instrumentos expressam, principalmente, um poder que é dado ao administrador público de operar mudanças na forma como a propriedade se estabelece e também podem ser entendidos como poder de interferir na ordem econômica.

O autor Adilson Abreu Dallari comenta a utilização de tais meios deste modo:

"O mais importante, porém, é destacar a instrumentalização da atuação do Poder Público em matéria urbanística. Ou seja, a institucionalização de um conjunto de meios e instrumentos expressamente vocacionados para a intervenção urbana, possibilitando ao Poder Público uma atuação rigorosa e concreta nesse setor". (Dallari, A. et al., 2010, p. 73)

A artigo 2º, inciso I do Estatuto da Cidade define a garantia do direito às cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, tanto para as presentes quanto para as futuras gerações.

Para alcançar os objetivos descritos acima, o artigo 4º da mesma lei, preceitua os seguintes instrumentos: planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões.

O planejamento municipal que será feito através dos seguintes meios: plano diretor; disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo; zoneamento ambiental; plano plurianual; diretrizes orçamentárias e orçamento anual; gestão democrática participativa; planos, programas e projetos setoriais e planos de desenvolvimento econômico e social. As disposições elencadas acima representam os meios legais de que dispõe o administrador municipal para governar a cidade de acordo com o Estatuto da Cidade.

O inciso II do artigo 2º determina que o Poder Público Municipal deverá promover a gestão democrática da cidade, por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

A gestão democrática será feita nos termos do artigo acima citado e do inciso III, "g"do artigo 4º e do artigo 44 do Estuto da Cidade, que determinam a gestão orçamentária participativa, sendo que o artigo 44 determina a obrigatoriedade de realização de debates, audiências e consultas públicas para a aprovação das diretrizes orçamentária e do orçamento anual pela Câmara Municipal.

O inciso III do artigo 2º prevê a cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização em atendimento ao interesse social. O inciso XVI do artigo 2º cuida da mesma questão e determina que os agentes públicos e os agentes privados terão isonomia, ou seja, igualdade de condições na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.

Os incisos acima buscam implementar o princípio urbanístico da subsidiaridade, que prescreve que a construção do espaço urbano deve ser tarefa da atividade privada, devendo o setor público atuar apenas nas áreas em que o setor privado não se interessa, ou não pode atuar.

O artigo 4º, no inciso V, alíneas l - direito de superfície, n - outorga onerosa do direito de construir, o - transferência do direito de construir e p - operações urbanas consorciadas, elenca os instrumentos que foram pensados para permitir e coordenar a cooperação do setor público e do setor privado na construção do espaço urbano.

Segundo os incisos VI e V do artigo 2º, as diretrizes gerais devem determinar o planejamento: do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e a corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos sobre o meio ambiente, e ainda ordenar a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características do local.

As diretrizes acima deverão servir de guia para a criação do plano diretor e das leis municipais, que deverão contemplar obrigatoriamente tais matérias. O autor Carlos Ari Sundfield afirma esta obrigatoriedade no seguinte trecho:

"Assim, para informar todo o trabalho de produção - e posterior interpretação e aplicação - das múltiplas cadeias normativas do direito urbanístico brasileiro, o Estatuto da Cidade decidiu fixar, em seu artigo 2º, as diretrizes gerais da política urbana. Para tanto, valeu-se das competências recebidas dos artigos 21, XX e 24, I da Constituição Federal, pelo que essas diretrizes tem o status de normas gerais nacionais, sendo, portanto vinculativas para todos os entes da Federação, especialmente os Municípios". (Sundfeld et al., 2010, p. 53)

O inciso VI determina que a legislação municipal deverá ordenar e controlar o uso do solo de modo a evitar: a utilização inadequada dos imóveis urbanos; a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivo e inadequado em relação à infraestrutura urbana; a instalação de empreendimentos ou ativitidades que possam funcionar como polos geradores de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente; a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; a poluição e degradação ambiental.

Impedir que o solo seja ocupado de forma contrária aos interesses da coletividade é dever do Poder Público e o inciso VI do artigo 2º explicita tal dever, que será cumprido pela administração municipal, na medida em que inclui no plano diretor restrições ao uso inadequado do solo, e na medida em que se utiliza dos instrumentos previstos no artigo 4º do Estatuto da Cidade, como o IPTU progressivo no tempo, a desapropriação, o parcelamento ou a edificação ou a utilização compulsórios, como forma de sancionar o descumprimento das normas de ordenamento territorial.

O artigo 2º prevê ainda no inciso VII, a integração e complementariedade entre as áreas urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento sócio-econômico do Município e do território sob sua área de influência. A esta regra se relaciona a do artigo 40, parágrafo 2º da mesma lei, que determina que o plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.

O inciso VIII determina a adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços, e de expansão urbana, compatíveis com os limites de sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência.

As regras da Política Urbana estão incluídas na Constituição Federal de 1988, no título que cuida da Ordem Econômica e Financeira, pois os legisladores entenderam que a ocupação do território e especialmente a ocupação do território das cidades pode influenciar tanto positivamente quanto negativamente a economia do país. O inciso citado acima tem por objetivo ordenar a atividade econômica de acordo com as regras urbanísticas e ambientais.

O inciso IX determina a justa distribuição dos benefícios e dos ônus decorrentes do processo de urbanização. O processo de urbanização tem um custo, e este custo é pago por toda a sociedade, que o financia através do pagamento de tributos. No entanto, os benefícios gerados pelos investimentos do Poder Público nas atividades de urbanização e urbanificação serão apropriados de formas diferenciadas pelos habitantes da cidade. O proprietário de um imóvel que se acha próximo a uma intervenção melhoradora feita pela administração pública, irá se apropriar de uma riqueza que corresponderá à valorização do imóvel, por isso a Constituição Federal, o Estatuto da Cidade e o Código Tributário Nacional preveem a cobrança da contribuição de melhoria, cuja finalidade é ressarcir aos cofres públicos parte dos ganhos recebidos pela valorização imobiliária decorrente da atuação estatal.

A questão da distribuição e apropriação dos benefícios e ônus decorrente do processo de urbanização estão também relacionadas nos incisos X e XI do artigo 2º do Estatuto da Cidade. O inciso X determina a adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira, e dos gastos públicos aos objetivos de desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem estar geral e fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais. O inciso XI determina a recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos.

A estes incisos relacionam-se o inciso IV do artigo 4, que prevê os seguintes institutos tributários e financeiros: imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU), a contribuição de melhoria e os incentivos e benefícios fiscais e financeiros.

O inciso XII dispõe que as normas de cunho urbanístico deverão ter como objetivo proteger, preservar e recuperar o meio ambiente natural e construído, o patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico, e o inciso XIII determina a realização de audiência do Poder Público Municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população.

O inciso XIV define a realização da regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação sócio-econômica da população e as normas ambientais.

Este inciso foi regulamentado pela Medida Provisória 2.200/01, que prevê a concessão de uso especial de imóvel público para fins de moradia, e é complementado pelos institutos jurídicos e políticos previstos no artigo 4º, inciso V, que são: alíneas a - desapropriação; g - concessão de direito de real uso; h - concessão de direito de uso de imóvel público especial para fins de moradia (individual e coletivo); j - usucapião (individual e coletivo) especial de imóvel urbano; q - regularização fundiária; r - assistência técnica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos; t - demarcação urbanística para fins de regularização fundiária; u - legitimação de posse (as duas últimas alíneas foram acrescentadas pela Lei 11.977/09, o Programa Minha Casa, Minha Vida).

Em consonância com a determinação do inciso XIII de se considerar a situação sócio-econômica da população, sem descuidar do cumprimento das normas ambientais, no processo de criação da regulamentação urbanística, o inciso XV determina a simplificação da legislação do parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta de lotes e de unidades habitacionais.

Em relação aos institutos jurídicos e políticos previstos no artigo 4º, inciso V, para implementação das diretrizes urbanísticas previstas no plano diretor, pode-se citar ainda os previstos nas alíneas: b - servidão administrativa; c - limitações administrativas; d - tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; e - instituição de unidades de conservação; f - instituição de zonas especiais de interesses sociais (que são denominadas Zeis); m - o direito de preempção.

As zonas especiais de interesses sociais (Zeis) estão ligadas a programas de regularização de favelas e através destes programas serão criados setores com regras específicas de zoneamento, uso, parcelamento e ocupação do solo com gestão participativa dos programas de regularização. Estas áreas serão consideradas como setores especiais para fins de moradia social.

Outros instrumentos de política urbana previstos no artigo 4º são:

  • O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV);

  • A concessão coletiva de direito real de uso de imóveis públicos para a realização de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública, com atuação específica nessa área;

  • O controle social, através da participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil, do dispêndio de recursos por parte do Poder Público Municipal na implementação dos instrumentos previstos no artigo 4º

Todos os instrumentos previstos no artigo 4º regem-se por lei própria, mas devem observar as disposições do Estatuto da Cidade.

As diretrizes gerais previstas no artigo 2º, e os instrumentos de política pública definidos no artigo 4º do Estatuto da Cidade tem como fim, assegurar a implementação, a conservação e a expansão das funções sociais da cidade através de seus principal instrumento, que é a função social da propriedade.

Portanto, pode-se afirmar que as diretrizes e os instrumentos previstos pelo Estatuto da Cidade existem com o objetivo de criar e implementar um projeto de cidade comprometido com a justiça social, entendida como a extensão do acesso ao uso e gozo da estrutura urbana à população como um todo.

3.4 Artigos 5 e 6 - Do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios

O artigo 182 da Constituição Federal de 1988 não apenas define em que momento a propriedade urbana irá cumprir a sua função social, mas também aponta o instrumento que irá definir o conteúdo do conceito de função social da propriedade no âmbito das cidades, o plano diretor.

O plano diretor estabelece meios sancionatórios que podem ser utilizados pela administração pública para exigir dos cidadãos que utilizem a propriedade de acordo com suas diretrizes. O parágrafo 4, inciso I do artigo 182, dispõe sobre um destes meios sancionatórios que é a possibilidade de mediante lei específica, o Poder Público exigir do proprietário do solo urbano que não cumpra a sua função social, que promova o aproveitamento da área de acordo com o projeto da cidade contido no plano diretor.

Os artigos 5 e 6 do Estatuto da Cidade explicitam o conteúdo do artigo 182, parágrafo 4, inciso I, determinando as condições em que o Poder Público poderá exigir o parcelamento ou a edificação, ou a utilização compulsória do solo urbano que não estejam sendo ocupadas de acordo com as necessidades coletivas definidas em lei municipal com base no plano diretor, ou seja, áreas não edificadas, subutilizadas ou não utilizadas. O jurista Ricardo Pereira Lira citado por Vera Monteiro define assim tal atribuição legal:

"Em áreas previamente definidas em lei municipal, baseada em plano de uso do solo, o não-uso pode deixar de ser uma faculdade desse "dominus". Nas condições definidas no projeto de lei, o proprietário pode ser notificado para utilização do seu imóvel inclusive parcelamento ou edificação nos termos do plano, fundado em lei, sob pena de ocorrer a desapropriação do terreno pelo Município, com a possibilidade de aliena-lo a terceiro, que se comprometerá a utilizar o solo na conformidade do plano. Trata-se da possibilidade de criação da propriedade urbanística acompanhada de uma obrigação propter rem, consistente na obrigação de fazer, parcelar, edificar ou utilizar sobre o solo, baseada em plano de uso do solo" (Monteiro et al, 2010, p. 91).

O parágrafo 1º do artigo 5º do Estatuto da Cidade dispõe que o imóvel será considerado subutilizado quando seu aproveitamento for inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação decorrente deste. O Poder Executivo Municipal deverá notificar o proprietário quando seu imóvel for gravado por obrigação de parcelar ou edificar, ou utilizar compulsoriamente, devendo tal notificação ser averbada no cartório de registro de imóveis.

O proprietário terá prazo mínimo de um ano para promover a adequação do uso de seu imóvel ao exigido em lei, devendo protocolar o projeto no órgão municipal competente. Este prazo será contado a partir da notificação e o proprietário terá dois anos para iniciar as obras do empreendimento, contados a partir da aprovação do projeto. Em empreendimentos de grande porte, a conclusão do projeto poderá ser em etapas, mas o projeto deverá compreender o empreendimento como um todo.

O imóvel gravado pela obrigação definida nestes artigos poderá ter a sua propriedade negociada ou transmitida por herança, mas a obrigação de parcelamento ou utilização ou edificação irá permanecer ligada ao bem.

A função destes dispositivos legais é combater principalmente a especulação imobiliária, pois a existência de espaços vazios ou subutilizados dentro de áreas urbanas equipadas dentro dos parâmetros técnicos e urbanísticos mais atuais e prontas para desempenhar seu papel no desenvolvimento sustentável das cidades, não se justifica principalmente em face das necessidades que o processo de urbanização intensiva do país cria, e que representam um ônus para a administração pública e para toda a coletividade.

3.5 Artigo 7 - Do IPTU Progressivo no Tempo

O artigo 182 da Constituição Federal de 1988 institui três tipos de sanções que devem ser aplicadas sucessivamente ao proprietário do solo não edificado, subutilizado ou não utilizado. A primeira destas sanções é a exigência de parcelamento ou edificação compulsórios, a segunda sanção é o imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo e a terceira será a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.

O artigo 7º do Estatuto da Cidade disciplina uma destas sanções, o IPTU progressivo no tempo, e dispõe que nos casos em que o proprietário descumprir a obrigação imposta pelo administrador municipal com base no artigo 5º do Estatuto da Cidade de parcelamento ou edificação compulsórios dentro de determinado prazo, o Município procederá a cobrança do imposto sobre propriedade predial e territorial urbano progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos. Esta majoração da alíquota deverá ter seu valor fixado em lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitando a alíquota máxima de quinze por cento.

Se o proprietário não cumprir a obrigação de parcelar ou edificar, ou utilizar dentro de cinco anos o Município manterá a cobrança, pela alíquota máxima até que se cumpra a referida obrigação, sem prejuízo da possibilidade de uso da desapropriação, sanção prevista no artigo 8º do Estatuto da Cidade.

A extensão da possibilidade de cobrança do IPTU progressivo no tempo além do prazo de cinco anos tem a sua constitucionalidade questionada, pois representaria uma forma de confisco, ou seja, neste caso o Estado estaria se utilizando de um tributo para tomar para si um bem sem qualquer ressarcimento ao proprietário, o que é proibido pelo ordenamento jurídico brasileiro. Regina Helena Costa expressa este questionamento desta forma:

"a manutenção da exigência fiscal pela alíquota máxima além do prazo de cinco anos, caso não seja cumprida a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o solo urbano subutilizado ou não utilizado a que se refere o art.5o da lei, revela-se descabida, pois indubitavelmente, nesta hipótese o confisco restará consumado ". (Costa, 2010, p. 111, 112)

O parágrafo 3º do artigo 7º determina que são vedadas anistias ou isenção referentes ao IPTU progressivo no tempo, no entanto se o proprietário do imóvel gravado pela obrigação cumpri-la adequadamente tal imposto deixará de ser cobrado.

O tributo previsto no artigo 7º tem caráter extrafiscal; segundo o doutrinador Eduardo Sabag "os impostos extrafiscais são aqueles com finalidade reguladora (ou regulatória) de mercado ou da economia do país". (Sabag, 2012, p. 411). Portanto o IPTU sanção não tem função meramente arrecadatória, pois se presta a fazer cumprir as exigências da função social da propriedade e do interesse público.

O artigo 156 da Constituição Federal veio reafirmar a possibilidade de existência da progressividade no tempo referente ao IPTU em seu parágrafo 1º e também criou as seguintes possibilidades de cobrança: o IPTU poderá ser progressivo em razão do valor do imóvel e poderá ter alíquotas diferenciadas de acordo com a localização e o uso do imóvel . As diferenciações nas alíquotas previstas no artigo 156 foram denominadas por alguns doutrinadores de "seletivas" e tiveram a sua constitucionalidade questionada, mas a Súmula 668 do Supremo Tribunal Federal admitiu esta possibilidade a partir da edição da Emenda Constitucional no29/2000.

A contribuição de melhoria é outro tributo que incide no contexto do direito urbanístico pois se presta a ressarcir ao Poder Público uma parte do que este gasta no processo de urbanização e que resulta em valorização da propriedade imobiliária urbana. Este tributo está vinculado a uma atividade estatal, ou seja, só pode ser cobrado em decorrência da realização de uma obra pública.

Vera Monteiro aponta a necessidade da utilização de tributos no contexto das políticas urbanas no seguinte trecho:

"sublinhe-se que o interesse social é apontado pelo Estatuto como critério diferenciador das exigências estatais em matéria de tributos incidentes sobre a propriedade imobiliária urbana (...) traduz a idéia de que as imposições fiscais incidentes sobre a propriedade imobiliária urbana devem ser modulados de modo a alcançar a melhoria da qualidade de vida dos habitantes da cidade" (Monteiro et al., 2010, p. 115).

Convém observar que os institutos previstos no artigo 7º contém elementos cuja constitucionalidade é questionada por doutrinadores como Vera Monteiro. Contém ainda instrumentos como IPTU progressivo no tempo e a contribuição de melhoria que não são questionados neste sentido, mas podem ter a sua aplicação impossibilitada pela complexidade de seus requisitos e pela falta de estrutura de muitos municípios brasileiros.

3.6 Artigo 8 - Da Desapropriação com Pagamento em Títulos

A desapropriação é um instituto que permite ao Poder Público fazer perecer o exercício de propriedade em relação a um determinado bem, mediante ressarcimento. Note-se que o conteúdo jurídico da desapropriação não é a eliminação do direito de propriedade, pois a indenização paga ao titular deste direito permite que este continue a exerce-lo em outro local mediante a compra de outro imóvel. Resumindo, a desapropriação não faz desaparecer o direito de propriedade, mas faz com este seja redirecionado para a satisfação de um interesse público.

No ordenamento jurídico brasileiro existem dois tipos de desapropriação: uma se presta ao cumprimento de planos de urbanização e a outra tem caráter de sanção. A desapropriação prevista no artigo 182, parágrafo 4º, inciso III da Constituição Federal e no artigo 8 do Estatuto da Cidade, apesar de manter o intuito de redirecionar o direito de propriedade para a satisfação de um interesse público, tem caráter sancionatório e por isto o pagamento será feito em títulos da dívida pública que serão resgatados no prazo de até dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais de seis por cento ao ano. Em sentido contrário, na desapropriação prevista no artigo 182, parágrafo 3º da Constituição Federal e no artigo 1275 do Código Civil que não tem caráter de sanção, o ressarcimento será feito antecipadamente e em dinheiro.

A desapropriação sanção se dá em nome do interesse público e de acordo com o Estatuto da Cidade, o município deverá incorporar ao seu próprio patrimônio o imóvel que não cumpre a sua função social. Antes de promover esta desapropriação, o município deverá impor as sanções previstas no artigo 182, parágrafo 4º da Constituição Federal, ou seja, as autoridades municipais deverão primeiramente exigir o parcelamento ou a edificação, ou a utilização compulsória do imóvel e se a obrigação não for cumprida deverá instituir a cobrança do IPTU progressivo no tempo durante cinco anos e se mesmo assim a obrigação não tiver sido cumprida deverá então o Poder Público proceder a desapropriação nos termos do artigo 8º do Estatuto da Cidade.

O valor real da indenização ao proprietário do imóvel que foi desapropriado com base no artigo 8º do Estatuto da Cidade deverá refletir o valor da base de cálculo do IPTU, e a autoridade administrativa deverá descontar do montante da indenização o valor das obras públicas realizadas na área onde se localiza o imóvel. No valor da indenização não serão computados expectativa de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios.

O Município poderá promover o aproveitamento do imóvel desapropriado por inciativa própria ou através de alienação, ou concessão a terceiros. Se ao fim de cinco anos a administração municipal não tiver promovido o adequado aproveitamento do imóvel desapropriado, isto será considerado ato de improbidade administrativa do Prefeito Municipal. A alienação do imóvel por parte do Poder Público não faz desaparecer a obrigação e o adquirente de tal imóvel deverá parcelar ou edificar, ou utilizar o imóvel nos termos exigidos pelo Poder Público. O instituto da desapropriação sanção tem a sua aplicabilidade seriamente comprometida principalmente no que diz respeito a emissão de títulos da dívida pública pelos Municípios, pois isto depende de prévia aprovação pelo Senado, sendo que não são muitos os Municípios que possuem força política para conseguir tal aprovação pelo Senado.

3.7 Artigos 9 a 14 - Da usucapião especial de imóvel urbano

O Estatuto da Cidade em seus artigos 9 a 14 instituiu dois tipos de usucapião, a Usucapião Especial Individual prevista no artigo 183 da Constituição Federal e no artigo 9 do Estatuto da Cidade, e a Usucapião Especial Coletiva prevista no artigo 10 do Estatuto da Cidade, sendo os dois instrumentos da política urbana e normas de ordem pública que se prestam a fazer cumprir as exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Através da usucapião o direito de propriedade é considerado prescrito, ou seja, a titularidade do direito de domínio é substituída por outra titularidade, sem que esta substituição seja resultado de um negócio jurídico ou de sucessão. A substituição da titularidade acontecerá quando alguém for possuidor de um imóvel durante um determinado período de tempo de acordo com as regras previstas em lei. Silvio Rodrigues assim define este instituto jurídico:

"através da usucapião, o legislador permite que determinada situação de fato, que, sem ser molestada, alongou-se por um intervalo de tempo determinado na lei, transforme-se em situação de direito. Assim, se o possuidor sem ser molestado em sua posse (que por isso é mansa e pacífica), exerce sobre a coisa os poderes inerentes ao domínio por certo lapso de tempo, permite-lhe a lei obter a declaração judicial capaz de conferir-lhe o domínio, depois da respectiva transcrição" (Rodrigues, 2003, p. 109).

O Código Civil Brasileiro também prevê a usucapião em seus artigos 1238 a 1244, e neste diploma legal são previstos três tipos de usucapião, a usucapião extraordinária (artigo 1238), a usucapião ordinária (artigo 1242), e a usucapião especial ou "pro labore" (artigo 1240).

No Estatuto da Cidade o artigo 9º dispõe sobre a usucapião especial individual nos seguintes termos: quem possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe -a o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. O título de domínio que confere ao possuidor o direito de propriedade será conferido ao homem ou à mulher, independentemente do estado civil e este direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. O herdeiro legítimo receberá como herança a posse de seu antecessor, no entanto deverá estar residindo no imóvel na ocasião da abertura da sucessão.

O artigo 10 do Estatuto da Cidade disciplina a usucapião coletiva deste modo: as áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para a sua moradia, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. Este dispositivo permite que o possuidor acrescente a sua posse à de seu antecessor, contanto que sejam contínuas, para fim de contar o prazo exigido.

A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelos juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para o registro no cartório de registro de imóveis. Na sentença, o juiz atribuirá uma fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente de dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo entre os condôminos, que poderá estabelecer frações ideais diferenciadas.

Em relação a atuação do judiciário no processo de reconhecimento do direito de propriedade por usucapião coletivo, o jurista Sérgio Ferraz faz a seguinte observação:

"Não tendo a lei definido o que entenda por 'população de baixa renda', a substanciação dessa condição legal ficou delegada ao prudente arbítrio do juiz, na inspiração do 'logos del razonable'. (Ferraz et al., 2010, p. 146)

A usucapião coletiva cria um condomínio especial indiviso e a este se aplicam as regras dos artigos 1.314 e seguintes do Código Civil, sendo que onde a regulamenteção do Código Civil for incompatível com a do Estatuto da Cidade, prevalece o disposto nesta última lei. Uma característica do inciso que disciplina a usucapião coletiva e que dificulta a sua aplicação é a ausência de determinação para que o Poder Público urbanize a área usucapida, pois na prática, os contingentes populacionais atingidos por tais dispositivos tem pouca ou nenhuma condição de promover a urbanização da área por conta própria.

A urbanização poderá ser feita depois da constituição do condomínio, mas esta decisão deverá ser aprovada por dois terços dos condôminos, no entanto as deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos do condôminos presentes, obrigando também os demais. discordantes ou ausentes.

A ação de usucapião especial urbana suspende qualquer outra ação (petitória ou possessória) sobre o mesmo imóvel e será legitimado o possuidor isoladamente ou em litisconsórcio com possuidores em estado de composse. Serão legitimados ainda associações de moradores da comunidade, regularmente constituídas, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizadas pelos legítimados, e o autor ou os autores da ação terão direito aos benefícios da justiça gratuita. O rito processual a ser observado será o sumário. A sentença valerá como título aquisitivo, e poderá ser levada a registro no cartório de imóveis, independentemente da regularidade no parcelamento do solo e das edificações e poderá ser alegada como matéria de defesa. A interferência do Ministério Público na ação de usucapião será obrigatória.

A usucapião especial tem como objetivo conferir legalidade à posse de imóveis urbanos invadidos por contingentes populacionais de baixa renda formando o que o IBGE denomina de "aglomerados subnormais", mais conhecidos como favelas, destina-se ainda à regularização da posse dos adquirentes de lotes em loteamentos irregulares ou clandestinos e de imóveis urbanos sem registro ou com registro inválido. O doutrinador Silvio Rodrigues explica o porquê da existência da usucapião deste modo:

"o direito de propriedade é conferido ao homem para ser usado de acordo com o interesse social, e, evidentemente, não o usa dessa maneira quem deixa a terra ao abandono por longos anos" (Rodrigues, 2003, p. 109) .

Na opinião do jurista Sérgio Ferraz a função da usucapião é a "composição da litigiosidade aguda", (Ferraz et al., 2010, p. 143) opinião que pode ser estendida a outros instrumentos previstos no Estatuto da Cidade cuja necessidade se faz presente em face da precariedade de grande parte da estrutura urbana no Brasil, onde se encontram ilhas de bem estar cercadas por áreas periféricas onde imperam a deficiência de estrutura e a carência de recursos e planejamento, fatos que acabam gerando tensões e a litigiosidade aguda mencionada pelo jurista.

3.8 Artigos 21 a 24 - Do direito de superfície

O direito de superfície sobre imóvel urbano é um instrumento previsto pelo Estatuto da Cidade que se destina a otimizar o uso do solo urbano. O direito de superfície é determinado pelo Código Civil Brasileiro como um direito real sobre coisa alheia, ou seja como um direito de usar, gozar e dispor de um bem independentemente do exercício da titularidade de domínio.

Maria Sylvia Zanela Di Pietro assim o define

"No caso do direito de superfície, enquanto o mesmo perdura, a propriedade do dono do solo coexiste com a propriedade do dono das plantações ou construções que se acrescentam ao solo. Trata-se de exceção ao princípio de que o acessório segue o principal" (Di Pietro et al., 2010, p. 173).

Vê-se portanto que no direito de superfície a propriedade do solo será de um titular e o direito de construir sobre este mesmo solo pertencerá a outro titular. Este direito será estabelecido mediante pacto contratual e com a extinção do contrato o bem imóvel retorna para seu proprietário com tudo o que foi acrescido a ele.

O direito de superfície de um terreno urbano será concedido pelo seu proprietário, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis. Este direito abrange a possibilidade de utilização do solo, do subsolo e espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, em consonância com a legislação urbanística e poderá ser concedido de forma gratuita ou onerosa.

O contratante do direito de superfície, o superficiário, poderá dispor do direito de superfície transferindo seu direito a terceiros, obedecidos os termos do contrato respectivo, e no caso de sua morte seus direitos são transmitidos aos seus herdeiros. O superficiário responderá integralmente pelos tributos e encargos que incidirem sobre a propriedade superficiária, ou seja sobre aquilo que foi acrescido ao terreno, e também responderá pelos engargos e tributos incidentes sobre o próprio terreno, de forma proporcional à sua parcela de ocupação efetiva, sendo que esta obrigação pode ser estabelecida de forma diferente pelos contratantes.

Em caso de alienação do imóvel que foi objeto do direito de superfície, o superficiário terá direito de preferência na compra e no caso de alienação do direito de superfície será o proprietário quem terá o direito de preferência, sendo ambos em igualdade de condições à oferta de terceiros.

O direito de superfície será extinto no dia definido pelo contrato ou pelo descumprimento das obrigações assumidas pelo superficiário.

Se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para o qual foi concedido o direito de superfície será extinto mesmo antes do final do contrato.A extinção do direito de superfície deverá ser averbada no cartório de registro de imóveis e o proprietário irá recuperar seu imóvel com todas as construções e melhorias a ele acrescidas independentemente de indenização, a não ser que esta esteja prevista no contrato.

O direito de superfiície coloca o exercício da propriedade urbana em consonância com a sua função social ao permitir que pessoas que não possuem capital suficiente para comprar e construir num determinado terreno possam ter acesso ao uso do solo mediante um contrato de direito de superfície. A lei concedeu aos contratantes flexibilidade para determinar a onerosidade ou não e para determinar prazos contratuais, ve-se portanto que este instumento pode ser utilizado para modificar a realidade da ocupação territorial no Brasil. A doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que

"o direito de superfície pode revelar-se importante instrumento para que a propriedade imobiliária cumpra a sua função social (...) e mais do que a função social da propriedade, apresenta-se o instituto como um dos meios de implementar a função social da cidade, conforme referido no caput do artigo 2 do Estatuto da Cidade". (Di Pietro et al., 2010, p. 187, 188)

O direito de superfície permite ainda que o proprietário de imóvel urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado possa cede-lo ao superficiário que poderá então utlizar-se do imóvel de acordo com as funções requeridas pela administração municipal.

3.9 Artigos 25 a 27 - Do direito de Preempção

O direito de preempção é uma obrigação imposta ao proprietário de um imóvel urbano. É uma forma de preferência exercida pelo poder público ou pelo particular que incide sobre a alienação onerosa, ou seja o detentor deste direito terá preferência na compra do imóvel gravado por tal obrigação. Se este direito for exercido pelo Poder Público com base no Estatuto da Cidade, deverá estar previsto em lei municipal baseada nas determinações do plano diretor que definirá as áreas em que tal direito irá incidir e fixará seu prazo de vigência, que poderá ser renovado a partir de um ano após o decurso do prazo inicial de vigência.

Durante o prazo de vigência do direito de preempção o imóvel poderá ser objeto de negócio oneroso entre particulares e mesmo assim o direito de preferência pelo Poder Público permanecerá assegurado. No entanto o proprietário que pretender alienar o imóvel deverá notificar o Município, que poderá exercer ou não seu direito à aquisição do imóvel. Se este não adquirir o imóvel, o proprietário alienante deverá apresentar ao município no prazo de trinta dias, cópia do instrumento público de venda do imóvel para outro particular.

Se o negócio for realizado em condições diversas daquelas que o proprietário apresentou ao município, será considerado nulo de pleno direito e o Município poderá adquirir o imóvel pelo valor da base de cálculo do IPTU.

No Estatuto da Cidade, o artigo 26 estabelece que o direito de preempção poderá ser exercido sempre que o Poder Público necessitar de áreas para uma ou mais das seguintes finalidades:

  • regularização fundiária;

  • execução de programas e projetos habitacionais de interesse social;

  • constituição de reserva fundiária;

  • ordenamento e direcionamento de expansão urbana;

  • implantação de equipamentos urbanos e comunitários;

  • criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes;

  • criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental;

  • proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico;

O direito de preempção tanto pode ter um caráter privado, tendo como base um contrato, como pode ter um caráter público, como previsto no Estatuto da Cidade e quando seu caráter for público terá como base os fundamentos mencionados por Diogenes Gasparini no seguinte trecho:

"Pode-se afirmar que o direito de preferência tem tríplice fundamento: um principiológico, um legal geral e um legal específico. O fundamento principiológico do direito de preferência é a função social da propriedade. Tal princípio, previsto no art.170, III, da Constituição Federal, pode ser indicado como seu fundamento constitucional. De outro lado, seu fundamento legal geral é o art 513 do Código Civil, enquanto seu fundamento legal específico é o art. 25 do Estatuto da Cidade, que atribui ao Poder Público Municipal preferência para aquisição de imóvel urbano, objeto de alienação onerosa entre particulares, quando situado em área delimitada por lei municipal baseada no plano diretor e sujeita ao regime de preempção". (Gasparini et al., 2006, p. 197)

Assim como outros institutos previstos no Estatuto da Cidade, o direito de preempção representa uma limitação a uma das faculdades previstas no Direito Civil para o titular da propriedade que é a faculdade de dispor do bem, que fica portanto limitada pelas normas que impõem a prevalência do interesse coletivo.

3.10 Artigos 28 a 31 - Da Outorga Onerosa do Direito de Construir

3.10.1 O solo criado

Uma das vantagens das cidades é a possibilidade de adensamento da ocupação, permitindo que o acesso aos equipamentos e à infraestrutura urbana seja estendida a um número muito maior de pessoas. Outra vantagem é a possibilidade de ter acesso a escolas, bancos, unidades de atendimento à saúde, áreas de lazer e principalmente aos locais de trabalho sem a necessidade de grandes deslocamentos. O adensamento das áreas urbanas no entanto, deve ser regulado pelo Poder Público de acordo com os interesses da coletividade, que em tese, devem ser definidos no projeto de cidade expresso no plano diretor, que se utilizará do coeficiente de aproveitamento para definir o melhor nivel possível de densidade ocupacional. O conceito de solo criado foi desenvolvido a partir da constatação de que os coeficientes de aproveitamento poderiam servir como mecanismos de intervenção no processo de ocupação do solo, visando torná-lo mais racional, e foi resultado do esforço comum de estudiosos ligados à área do direito urbanístico e que contribuiram para o desenvolvimentop desse conceito no Brasil. Em 1973, num encontro de jurístas, arquitetos, urbanistas e economistas, na cidade de Embu, SP, o assunto foi introduzido e discutido dando ensejo a um documento, a Carta de Embu, que entre outras definições, conceitua solo criado desta forma:

"Toda edificação acima do coeficiente único é considerado solo criado, quer envolva ocupação do espaço aéreo, quer a do subsolo". (Silva, 2008, p. 258)

Portanto, de acordo com as regras deste instrumento de manejo do uso do solo urbano, o plano diretor deveria definir áreas onde seria possível construir acima do coeficiente único, e nestes locais o proprietário poderia adquirir do Poder Público o direito de construir acima deste coeficiente, ampliando assim a taxa de acupação e aumentando a rentabilidade econômica do investimento.

A questão da fixação de um índice único de aproveitamento gerou controvérsias pelas razões apontadas por José Afonso da Silva, um dos signatários da Carta de Embu, no seguinte trecho:

"duas correntes se formaram; uma que podemos chamar de urbanística, despreza os aspectos financeiros do instituto, para realçar sua características de instrumento de controle do uso do solo, a outra, financista, preocupada em conseguir mais um instrumento de arrecadação para o Tesouro Municipal". (Silva, 2008, p. 262)

Nota-se então que o conceito de solo criado está vinculado à existência de um coeficiente único de aproveitamento do solo para toda a cidade, o que na prática não foi recepcionado pela legislação, que permite a fixação de coeficiente de aproveitamento básico único ou de coeficiente diferenciado para áreas específicas.

3.10.2 Outorga Onerosa do Direito de Construir

O instrumento previsto no artigo 28 do Estatuto da Cidade, a outorga onerosa do direito de construir, deriva do conceito de solo criado e esta vinculação é expressa por José Afonso da Silva do deste modo

"a outorga onerosa do direito de construir é um novo instrumento da política urbana instituido pelo Estatuto da Cidade (art.4º, V, 'm'). As normas que regulam o instituto geram uma espécie de solo criado, ou seja, um espaço edificável acima do coeficiente de aproveitamento". (Silva, 2008, p. 264)

O Estatuto da Cidade define a outorga onerosa do direito de construir nos seguites termos: O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário. Define ainda o coeficiente de aproveitamento como a relação entre a área edificável e a área do terreno, e dispõe que este coeficiente de aproveitamento poderá ser único para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana.

Os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento serão definidos pelo plano diretor, considerando a proporcionalidade entre a infraestrutura existente e o aumento da densidade esperada em cada área.

O plano diretor poderá ainda fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração do uso do solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo proprietário beneficiado pelo direito de construir acima do limite.

Uma Lei Municipal baseada no plano diretor deverá estabelecer as condições a serem observadas para a alteração de uso que será propiciada pela outorga onerosa do direito de construir, determinando assim, a fórmula de cálculo para a cobrança, os casos passiveis de isenção do pagamento da outorga e a contrapartida dos benefícios.

Os recursos que o Poder Público vier a receber em virtude da outorga onerosa do direito de construir deverão ser utilizados para suprir as necessidades previstas no artigo 26, incisos I a IX do Estatuto da Cidade, tais como a execução de programas e projetos habitacionais de interesse social.

O doutrinador Floriano de Azevedo Marques Neto discorre sobre as necessidades supridas pelo instrumento em questão do seguinte modo

"O potencial de exploração de uma propriedade urbana depende sempre da existência ou da criação de uma infraestrutura pública (gerada com recursos de toda a coletividade) sem a qual a atividade aplicada à propriedade individual não se viabiliza. Doutro lado, a destinação que o proprietário dá à sua propriedade gera externalidades que afetam toda a coletividade . Se tal finalidade envolve a alocação de um significativo contingente populacional, haverá, cedo ou tarde, a saturação da infraestrutura viária, de transportes públicos ou das ambientais, de habitabilidade, paisagísticas, de salubridade - enfim todo o meio ambiente urbano - sâo afetadas conforme o uso que se dá à propriedade inserida no contexto da cidade". (Marques et al., 2010, p. 224, 225)

Define-se então a outorga onerosa do direito de construir como a possibilidade de construir em determinada área com base num coeficiente de aproveitamento acima do que está previsto na Lei Municipal, como um bem público que será alienado a um particular que dele se apropriará como um ativo patrimonial destacado do direito de propriedade. O Plano Diretor e a Lei Municipal deverão definir então os critérios e a proporcionalidade entre os custos do adensamento e os benefícios que este proporciona às cidades.

3.11 Artigos 32 a 34 - Das Operações Urbanas Consorciadas

O conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público Municipal com a participação dos proprietários, dos moradores, dos usuários permanentes e dos investidores privados em uma determinada área da cidade é o que o Estatuto da Cidade define como Operação Urbana Consorciada.

Este tipo de operação se diferencia de outras intervenções promovidas pelo Poder Público porquê neste tipo de operação deverão ser cumpridos concomitantemente os objetivos previstos no caput do artigo 32 do Estatuto da Cidade, que são: promover transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental.

Segundo o urbanista Pedro Jorgensen Junior, citado por Paulo José Villela Lomar, "operação urbana é uma expressão que no urbanismo se refere a diferentes gêneros de ação urbanística, que embora conexos, podem diferir consideravelmente dependendo do lugar e circunstância". (Lomar et al., 2010, p. 249)

As operações urbanas previstas no Estatuto da Cidade são aquelas que pretendem uma modificação estrutural do ambiente urbano. Elas não se destinam ao controle do desenvolvimento, mas sim à implementação de um projeto urbanístico, utilizando-se de investimentos públicos e privados visando a modificação das características de determinadas áreas.

Nas operações urbanas consorciadas, os administradores públicos poderão utilizar-se de medidas como a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e do subsolo, bem como alterações das normas edílicas, poderão ainda promover a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente.

O projeto da operação consorciada deverá ser aprovado por lei específica que definirá no mínimo a área a ser atingida, o programa básico de ocupação da área, o programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação, além de suas finalidades, e deste projeto deverá fazer parte também o Estudo do Impacto de Vizinhança, pois as alterações de uso e as regularizações nele previstas deverão respeitar os limites da estrutura urbana. O Poder Público ao fazer uso de tais medidas deverá exigir dos que dela se beneficiam, ou seja, dos proprietários, dos usuários permanentes e dos investidores privados uma contrapartida do valor econômico que corresponderá à outorga onerosa do direito de construir.

A forma de controle da operação e também a forma de seu compartilhamento com representantes da sociedade civil deverão estar definidas na lei.

Os recursos obtidos pelo Poder Público na exigência de contrapartida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados, deverão ser aplicados exclusivamente na própria operação urbana consorciada e as licenças e autorizações emitidas pelas autoridades municipais em desacordo com o plano de operação urbana consorciada serão consideradas nulas.

De forma conexa à operação urbana consorciada, o município poderá emitir uma quantidade determinada de certificados de potencial adicional de construção válidos unicamente na área da operação urbana consorciada, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras da operação, sendo que os detentores destes certificados poderão negociá-los livremente ou usá-los no pagamento da área de construção que supere os padrões estabelecidos pela legislação de uso e ocupação do solo.

As Operações Urbanas Consorciadas podem ser utilizadas pela administração municipal para, conforme Paulo José Villela Lomar "revitalização, preservação, indução de novas características ou correção das já existentes", (Lomar et al., 2010, p. 249) e poderão ser usadas como estratégia em conjunto com os demais mecanismos de planejamento urbano para o redesenho da estrutura fundiária.

3.12 Artigo 35 - Transferência do Direito de Construir

O direito previsto neste artigo assim como a outorga onerosa do direito de construir foi instituido com base no conceito de solo criado que estabeleceu os fundamentos teóricos para o estabelecimento destes institutos, cuja característica principal é separação entre direito de construir e o direito de propriedade. Assim, o direito de construir que um proprietário poderia exercer em relação a um determinado terreno poderá ser transferido para outro terreno como forma de compensar o proprietário que tenha um bem afetado por necessidades estabelecidas por políticas de urbanização.

A autorização para que o proprietário de imóvel urbano privado ou público, possa exercer em outro local ou alienar mediante escritura pública o direito de construir deverá estar prevista em Lei Municipal baseada no plano diretor. Tal autorização será dada quando o Poder Público considerar o imóvel necessário para a implementação de equipamentos urbanos e comunitários, para a preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural, ou para servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social. A lei municipal irá estabelecer as condições em que se dará a transferência do direito de construir, e este também será concedido ao proprietário que doar seu imóvel para o Poder Público para suprir as necessidades previstas no artigo 35 do Estatuto da Cidade.

A transferência do direito de construir está, portanto vinculada à realização de um programa de ordenamento de uso do solo comprometido com o aproveitamento do espaço, de acordo as necessidades sociais, econômicas e funcionais expressas na legislação urbanística.

3.13 Artigos 36 a 38 - Do Estudo de Impacto de Vizinhança

As cidades se organizam ao longo do tempo e nelas se estabelece uma relação entre o espaço ocupado e as necessidades sociais. A organização da cidade, sua malha viária, e as redes que formam todo o suporte físico do espaço urbano, como rede de energia elétrica, sistema de abastecimento de água, a rede de esgoto e a malha viária, são feitas para servir com eficiência um número limitado de pessoas. O crescimento das cidades tem que ser, portanto, controlado pelo Poder Público para evitar que as cidades se tornem improdutivas e impossíveis de administrar devido ao excesso de adensamento.

A implantação de empreendimentos de grande porte dentro de áreas urbanas consolidadas podem provocar impactos tão grandes a ponto de inviabilizar o funcionamento da área onde foram instalados. Para impedir este tipo de problema, o Estatuto da Cidade criou o Estudo de Impacto de vizinhança, que tem como objetivo preservar as funções da cidade que são basicamente habitação, trabalho, circulação e recreação.

Os impactos causados pela criação de projetos de grande porte por iniciativa pública ou privada em área urbana, deverão ser mensurados por um estudo prévio e com base neste estudo o Poder Público irá decidir sobre a sua viabilidade, sempre procurando a otimização das funções da cidade.

O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) servirá para obtenção de licenças e autorizações de construção, ampliação ou funcionamento junto ao Poder Público Municipal. Uma Lei Municipal com base no plano diretor definirá os empreendimentos e atividades privadas ou públicas em área urbana, que dependerão de tal estudo para sua aprovação.

Tal estudo deverá ser executado de forma a contemplar tanto os efeitos positivos quanto os negativos do empreendimento, ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e nas suas proximidades.

O Estudo de Impacto de Vizinhança deverá analisar, no mínimo, as seguintes questões: o adensamento populacional, a presença de equipamentos urbanos e comunitários, o uso e a ocupação do solo, a valorização imobiliária, a geração de tráfego e a demanda por transporte público, se a ventilação e a iluminação correspondem aos padrões técnicos e também as mudanças na paisagem urbana, e no patrimônio natural e cultural.

Os documentos integrantes do Estudo de Impacto Vizinhança poderão ser consultados por qualquer interessado, pois estes ficarão disponíveis no orgão competente do Poder Público Municipal. O Estudo de Impacto de Vizinhança não substitui o Estudo Prévio de Impacto Ambiental, que diz respeito à legislação ambiental.

É possível que um projeto esteja de acordo com o Código de Obras Municipal, mas que mesmo assim não esteja apto para receber a licença de construção, pois o seu impacto no entorno é que deverá orientar a decisão sobre a possibilidade de sua implantação.

Para Lucéia Martins Soares:

"Voltando ao Estatuto da Cidade, faz-se necessário ressaltar-e nisto ele foi expresso - que a obrigação de elaboração do EIV não é dirigida apenas aos particulares, mas também ao próprio Poder Público quando executor de obras inseridas nas características previstas em lei municipal. E isso é a maior prova de que o Estudo de Impacto de Vizinhança é uma exigência que não visa a diminuir a liberdade do proprietário como na restrição ou na limitação administrativa, mas apenas adequar o empreendimento ao meio do qual fará parte." (Soares et al., 2010, p. 311)

O Estudo de Impacto de Vizinhança é uma ferramenta de planejamento urbanístico que integra o conhecimento técnico ao processo político de definição do ordenamento territorial, e pode ajudar a criar cidades menos caóticas e mais funcionais

3.14 Artigos 39 a 42 - Do Plano Diretor

Dirigir o processo de ocupação do solo urbano é uma função pública que na legislação brasileira é tarefa imposta principalmente aos administradores municipais. Através de escolhas políticas que serão expressas no Plano Diretor, o Poder Público Municipal irá delimitar a densidade ocupacional e determinar os padrões de uso e de apropriação do solo, criando então um modelo de cidade.

A criação de um modelo ou projeto de cidade pelo plano diretor é uma atividade de planejamento urbano. Este tipo de planejamento será feito de acordo com as regras da ciência do urbanismo cujas funções são descritas por José Afonso da Silva deste modo:

"o urbanismo apresenta-se como ciência do estabelecimento humano, preocupando-se com a racional sistematização do território, como pressuposto essencial e inderrogável de uma convivência sã e ordenada dos grupos de indivíduos, que nele transcorre sua existência." (Silva, 2008, p. 31)

O Estatuto da Cidade conferiu caráter de norma pública aos institutos do Direito Civil e aos instrumentos e diretrizes de planejamento urbanístico que a ele foram incorporados, e estes se tornaram instrumentos de políticas públicas, que têm por objetivo conformar a ocupação do território urbano às exigências do bem estar de toda a coletividade, ou seja tais instrumentos deverão ser utilizados para dar à cidade e à propriedade uma função social.

As políticas públicas municipais de ordenamento territorial, por determinação constitucional, serão expressas principalmente através do plano diretor, que deverá não apenas determinar o conteúdo da função social da propriedade, mas também o projeto da cidade como um todo. Estas funções do plano diretor foram determinadas no art. 182, parágrafo 3º da Constituição Federal de 1988.

O legislador municipal tem poder de decisão para criar o plano diretor de sua cidade respeitando as necessidades do local, mas este poder de decisão deve estar pautado pelos critérios do artigo 39 caput, do Estatuto da Cidade, ou seja, deve assegurar o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas.

O plano diretor é o instrumento através do qual o legislador municipal comunica as diretrizes que irão nortear o desenvolvimento físico, econômico e social do município. O plano diretor traz em si uma ideia de cidade que deve corresponder tanto no plano legal, quanto no plano das atividades concretas ao conceito de função social da cidade e da propriedade. Hely Lopes Meirelles define plano diretor como nos seguintes termos:

"É o instrumento técnico legal definidor dos objetivos de cada Municipalidade, e por isso com supremacia sobre outros, para orientar toda a atividade da Administração e dos administrados nas realizações públicas e particulares que interessam ou afetam a coletividade". (Meirelles, 1993, p. 394)

A política de desenvolvimento e expansão urbana contida no plano diretor será aprovada por lei municipal e suas diretrizes deverão ser incorporadas ao orçamento anual e às diretrizes orçamentárias do município. Tais diretrizes deverão englobar toda a área do município, inclusive a rural, e deverão ser revistas a cada dez anos.

Os Poderes Executivos e Legislativos Municipais deverão conceber o plano diretor e fiscalizar a sua execução, garantindo a participação de representantes de comunidades e da população em geral, deverão dar publicidade aos documentos e informações produzidos e garantir o acesso a eles.

O plano diretor é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, e também para as cidades que integram regiões metropolitanas e aglomerações urbanas.

Nos municípios onde o Poder Público Municipal pretende utilizar os instrumentos sancionatórios previstos no parágrafo 4º do artigo 182 da Constituição Federal, o plano diretor será obrigatório, assim como nas áreas de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental, de âmbito regional ou nacional, e neste caso os recursos para a elaboração do planejamento técnico deverão vir de compensações, feitas pelo empreendedor, definidas no próprio plano diretor.

É necessária a elaboração de uma plano de transporte urbano integrado que deve estar inserido no plano diretor, ou ser compatível com ele, nas cidades com mais de quinhentos mil habitantes.

O plano diretor também deverá delimitar as áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, a edificação ou edificação compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado fixando as condições e os prazos para o cumprimento da obrigação. Deverá ainda conter o Plano de Expansão Urbana nos municípios que possuem tais áreas.

A utilização dos seguintes instrumentos de política urbana: direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir, alteração do uso do solo mediante contrapartida, operações urbanas consorciadas e transferência do direito de construir, deverão estar expressas no plano diretor.

Os instrumentos de política urbana, segundo José Afonso da Silva devem direcionar o crescimento da cidade através da ordenação dos seguintes elementos:

"o plano há de conter disposições sobre os três sistemas gerais - vias, zoneamentos, espaços verdes. Conterá, enfim normas e diretrizes sobre: o sistema viário do município (da zona urbana, urbanizável e de expansão urbana e da zona rural), que envolve, portanto o arruamento, a previsão de estradas municipais e o loteamento (parcelamento do solo); o sistema de zoneamento, que abrange o estabelecimento de zonas de uso do solo e os modelos de assentamento urbano (regras sobre a ocupação do solo urbano), inclusive de renovação urbana; sistema de recreação e revitalização, com estabelecimento de áreas de preservação de setores históricos, paisagísticos e ambientais." (Silva, 2008, p. 139).

O plano diretor é de fundamental importância para o direito urbanístico, pois através dele é definido o conteúdo da função social da propriedade, como enfatiza o jurísta Edésio Fernandes no seguinte trecho:

"O plano diretor é a lei municipal que, ao expressar um projeto de ordenamento e desenvolvimento territorial para os municípios, afirma a função social da propriedade, as condições de gestão do solo e de recursos naturais, e a qualidade política do processo de planejamento e gestão municipal." (Fernandes, 2006, p. 351)

Mesmo podendo ser alvo de críticas, e de ter sua eficácia limitada pelo autoritarismo e pela descontinuidade administrativa, o plano diretor estabeleceu-se como o instrumento onde serão expressas as escolhas dos administradores da cidade em relação à forma de ordenação e de uso do solo, e do desenvolvimento da ocupação territorial, fixando assim os critérios que permitem ao Poder Público reconhecer quando uma propriedade cumpre a sua função social, além de identificar as escolhas em relação aos instrumentos jurídicos do Estatuto da Cidade, que serão utilizados para a implementação do projeto de cidade, o que irá refletir na adequação das políticas públicas às realidades encontradas nos municípios brasileiros.

3.15 Artigos 43 a 45 - Da Gestão Democrática da Cidade

Este instituto novo, criado pelo Estatuto da Cidade que determina a participação popular nos processos de formulação das políticas públicas municipais, implica objetivamente num compartilhamento do poder de gestão da cidade, no compartilhamento do poder de decidir como irá ocorrer a ocupação do território da cidade.

O artigo 43 do Estatuto da Cidade define os instrumentos que poderão ser utilizados para garantir a gestão democrática da cidade, e que são respectivamente, os órgãos colegiados de política urbana nos níveis nacional, estadual e municipal, os debates, audiências e consultas públicas, as conferências sobre assuntos urbanos, nos níveis nacional, estadual e municipal, a iniciativa popular em relação a projetos de lei, planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. A utilidade de tais instrumentos é enfatizada por Maria Paula Dallari Bucci, no seguinte trecho

"A gestão democrática remete à ideia de um novo pacto territorial, em que o direito não se distancie da justiça, mas garanta que a cidade seja espaço de convivência de todos os seus habitantes, onde cada um possa desenvolver plenamente suas potencialidades." (Bucci et al., 2010, p. 337, 338)

O artigo 44 regula o disposto no artigo 4º, III, "f" do Estatuto da Cidade que prevê a utilização da gestão orçamentária participativa no planejamento municipal, com a realização de debates, audiências e consultas. Este artigo determina que para a aprovação das propostas do plano plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e do orçamento anual pela Câmara Municipal deverão ser obrigatoriamente utilizados os instrumentos previstos no artigo 4º, III, "f", os debates, audiências e consultas públicas. Neste caso as consultas conjugam-se com mecanismos previstos na Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, no sentido de conferir transparência e permitir o controle popular das contas públicas.

A mesma obrigatoriedade não existe em relação ao processo de criação e aprovação do plano diretor, esta ausência de obrigatoriedade de consulta popular causa polêmica, por permitir que as decisões que dizem respeito aos interesses da população como um todo, sejam embasados apenas nas opiniões de quem exerce o poder.

O artigo 45 dispõe sobre controle direto das atividades dos organismos gestores das

regiões metropolitanas e aglomerações urbanas. Assim, ao definir como obrigatória a participação da população e de associações de vários segmentos da comunidade, atuando de forma significativa no controle direto das atividades administrativas metropolitanas, o Estatuto da Cidade procura responder às necessidades criadas por estas áreas, definindo a gestão participativa como meio de resolver questões são próprias das áreas metropolitanas e que têm influência na qualidade de vida de grandes contingentes populacionais. Os mecanismos de gestão destas áreas ainda estão em processo de construção, e a possibilidade de participação democrática neste processo permite a criação de mecanismos de gestão mais adequados à ordem político-econômica e social.

O instrumento em questão, a gestão democrática da cidade, vincula a atuação da administração da cidade ao Estado Democrático de Direito, quando propõe a substituição do procedimento administrativo enquanto ato discricionário deste poder pelo processo administrativo, onde a tomada de decisões poderá ser precedida por um "procedimento em contraditório" (Bucci et al., 2006, p. 346), com a realização de coleta de opiniões, debates, consultas públicas, colegiado público e várias outras formas de co-gestão e onde as opiniões emitidas em nome da coletividade poderão embasar os processos de regulação dos direitos dos cidadãos e da coletividade em relação ao ordenamento do espaço urbano.

A nova instrumentalidade do direito definida por este instituto tem a sua razão de ser, na medida em que impõe um padrão de racionalidade ao processo de gestão das cidades, que tradicionalmente no Brasil sempre foi definido de acordo com os interesses das classes que controlam o poder econômico. Robeto Cymbalista, citado por Maria Paula Dallari Bucci, define o porquê da necessidade de participação popular no seguinte trecho:

"O Estatuto da cidade dá aos municípios o poder de interferir sobre os processos de urbanização e sobre o mercado imobiliário. Isso significa que a prefeitura pode mexer com práticas e privilégios muito arraigados, principalmente no que se refere aos maiores proprietários urbanos. Também as práticas clientísticas envolvendo a regularização fundiária podem ser combatidas. Alguns setores provavelmente insistirão na manutenção desses privilégios. É fundamental que a prefeitura envolva ativamente os diferentes setores da sociedade nos debates dos instrumentos e do plano diretor. Apenas dessa maneira poderá ficar claro para todos que em alguns casos é preciso que uma minoria abra mão dos seus privilégios para que sejam garantidos os recursos materiais que permitirão um crescimento mais equilibrado da cidade". (Bucci et al., 2010, p. 339, 340)

As regras previstas no artigo 43 e seguintes do Estatuto da Cidade, ao permitirem o acesso democrático ao processo de tomada de decisões, ampliam o alcance das políticas públicas e da própria democracia, incluindo em seu escopo reividicações de setores da sociedade que antes de sua criação só tinham acesso a determinados direitos através do clientelismo político.

3.16 Artigo 52 - O Estatuto da Cidade e a Lei de Improbidade Administrativa

O princípio da Moralidade Administrativa é definido por Helly Lopes Meirelles deste modo:

"O servidor (público, grifo nosso)jamais poderá desprezar o elemento ético de sua conduta, devendo decidir não somente 'entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente, o oportuno e o inoportuno', mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art.37, caput e parágrafo 4º da Constituição Federal." (Meirelles, 2005, p. 91).

Tal princípio é expresso no direito urbanístico através do artigo 52 do Estatuto da Cidade que sanciona determinados atos do prefeito municipal nos termos da Lei nº 8.429/92, a Lei da Improbidade Administrativa. O jurista Marcelo Figueiredo define esta relação entre a regra do Estatuto da Cidade e a Lei da Improbidade Administrativa nos seguintes termos:

"Todos esses mecanismos são hábeis para a tutelar a moralidade administrativa - conceitos que expressam um dever-ser jurídico do agente público, amplamente considerado, e do particular que se relaciona com a Administração Pública". (Figueiredo et al., 2010, p. 376)

No exercício de atividades públicas, os agentes podem cometer delitos de natureza penal, administrativa e de improbidade, definida por Marcelo Figueiredo como "uma modalidade de ilícito jurídico que está a meio caminho do ilícito penal e do ilícito administrativo clássico" (Figueirado, 2010, p. 377), e afirma ainda que

"a Lei 8.429/92 contempla, basicamente, três categorias de improbidade administrativa: 1) atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito; 2) atos de improbidade que causam prejuízo ao erário; 3) atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração pública". (Figueiredo, 2010, p. 376, 377)

E o mesmo autor aponta as causas do cometimento de atos de improbidade:

"A ausência de planejamento (orçamentário, fiscal, econômico) do administrador público brasileiro, associada à necessidade de interromper programas da gestão anterior (sobretudo quando vencedor o partido adversário), ou mera ilegalidade ou desvio de poder". (Figueiredo, 2010, p. 385)

De acordo com o artigo 52 do Estatuto da Cidade, o prefeito receberá sanções nos termos da Lei de Improbidade Administrativa quando:

  • Deixar de proceder, no prazo de cinco anos, o adequado aproveitamento do imóvel incorporado ao patrimônio público, através de desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública;

  • Utilizar as áreas obtidas por meio do direito de preempção e os recursos obtidos com a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso do solo, em desacordo com o previsto no art.26 do Estatuto da Cidade, (para fim de regularização fundiária por exemplo);

  • Deixar de utilizar os recursos obtidos com operação urbana consorciada na própria operação urbana consorciada;

  • Se o administrador da cidade deixar de promover debates e audiências públicas com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, deixar de dar publicidade aos documentos e informações produzidas no processo de elaboração do plano diretor, e na fiscalização de sua implementação, e ainda, impedir o acesso a qualquer interessado a tais documentos e informações;

  • Se o administrador deixar de aprovar o plano diretor dentro do prazo previsto em lei e deixar de rever o plano diretor municipal a cada dez anos;

  • Se adquirir imóvel que foi objeto de direito de preempção por valor comprovadamente superior ao de mercado;

Cumpre ressaltar que o artigo 51 equipara para fins de responsabilização por improbidade administrativa, o Governador do Distrito Federal ao Prefeito Municipal e também equipara o Distrito Federal ao Município.

A administração do espaço urbano traz em si uma gama de possibilidades de cometimento de atos de improbidade administrativa, e o legislador ao criar o dispositivo em questão visava conferir legitimidade aos atos do Poder Público, vinculando tais atos à uma moral jurídica formulada para fazer com que tais dispositivos sejam utilizados em correspondência às diretrizes de ordenamento do território.

3.17. Normas de Direito Administrativo e o Estatuto da Cidade

O artigo 49 do Estatuto da Cidade que dispõe sobre os prazos para os municípios adaptarem os seus procedimentos às regras desta lei e é uma norma que regula a prática de atos administrativos, portanto se coloca dentro das regras do direito administrativo.

Outra regra que faz parte do Estatuto da Cidade, mas é uma regra do direito administrativo é a prevista no artigo 50, que determinou que os municípios com mais de vinte mil habitantes e os integrantes das regiões metropolitanas e aglomerados urbanos e que não tivessem plano diretor aprovado na data da entrada em vigor da lei, deveriam aprova-lo até junho de 2008.

Pode-se ainda citar a Lei Federal 9.784/99, a Lei de Procedimentos Administrativos que disciplina a realização de audiências e consultas pública, que complementa os artigos 43 a 45 do Estatuto da Cidade que cuidam da gestão democrática da cidade.

3.18. A Lei de Registros Públicos e o Estatuto da Cidade

No Brasil a propriedade imobiliária se transmite mediante a transcrição da escritura pública no cartório de registros públicos e a Lei 6.015/73, a Lei de Registros Públicos disciplina a forma como se dá esta transmissão do direito real sobre a propriedade imobiliária. O contrato de transmissão de bens cria um direito obrigacional entre o proprietário e o adquirente, mas o adquirente só obterá o direito real sobre o bem, quando do assento da escritura pública no cartório de registro de imóveis.

Vários dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade preveem a transmissão da propriedade como forma de fazer cumprir as metas da planificação urbanística. Os artigos 55, 56 e 57 desta lei, disciplinam a forma como tal transmissão de bens efetivará este direito, fazendo incluir na Lei de Registros Públicos determinações que permitem que os beneficiários das políticas públicas que preveem mudanças na titularidade de bens imóveis, se tornem proprietários de tais bens mediante registro, nos termos do Estatuto da Cidade.

O registro da transmissão do domínio no cartório deverá ser precedido de sua matrícula no mesmo cartório. A matrícula é definida pela doutrinadora Maria Helena Diniz do seguinte modo:

"A matrícula é imprescindível por consistir na individuação ou especialização do imóvel registrado (Lei 6.015/73, art.176, parágrafo 1º) constituindo, como já dissemos, um primeiro passo para um possível cadastro técnico" (Diniz et al., 2010, p. 417).

Em regra, depois de matriculado o imóvel deverá ser registrado, ato pelo qual se dará a transmissão da propriedade e que consiste num serviço concernente ao registro público, estabelecido pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

No cartório de registros públicos, além da matrícula e do registro pode ser feita ainda a averbação, ou seja a anotação de fatos que dizem respeito ao bem e que podem transformar a forma do domínio, mas que não se constituem nos objetos da matrícula e nem do registro. A averbação destina-se a informar que o imóvel se encontra gravado por uma determinada obrigação.

Os dispositivos do Estatuto da Cidade modificam o conteúdo das regras de direito civil acima descritas, visando adequá-las aos fins urbanísticos. O art.55 do Estatuto da Cidade institui uma mudança no art.167, I, 28 da Lei de Registros Públicos, permitindo o registro das sentenças declaratórias de usucapião, independentemente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação.

A usucapião especial urbana criada pelo Estatuto da Cidade tem como finalidade transformar a posse em propriedade através da outorga de título constitutivo de direito real, combater a ilegalidade e ampliar o acesso ao uso do solo e à moradia. Maria Helena Diniz dispõe sobre a possibilidade de registro de sentenças declaratórias que reconhecem a usucapião, desta forma:

"O usucapião tem por fundamento a consolidação da propriedade dando juridicidade a uma situação de fato: a posse justa unida ao tempo fixado em lei. Será preciso que o usucapiente, adquirindo o domínio pela posse, requeira ao órgão judicante que assim declare por sentença, a qual deverá ser registrada. Tal registro não será necessário para que haja a aquisição do domínio do imóvel usucapido, visto que esta já se operou pelo preenchimento dos requisitos legais, a sentença tão-somente dará publicidade àquele fato, permitindo a disponibilidade do imóvel" (Diniz et al., 2010, p. 413).

O artigo 56 do Estatuto da Cidade determina que poderão ser levadas a registro público os termos administrativos e as sentenças declaratórias da concessão de uso especial de imóveis públicos para fins de moradia, independentemente da regularidade do parcelamento do solo e da edificação. Este artigo tem como objetivo conferir legalidade ao instrumento previsto na Medida Provisória 2.220/01 que rege a concessão de uso especial de imóvel público, àquele que possua como seu, respeitando os requisitos previstos na Medida Provisória, até 30 de junho de 2001, imóvel público urbano, e que por isso poderia requerer o direito real de uso, nos termos do Estatuto da Cidade, tanto para fins residenciais como para fins comerciais.

O possuidor que tiver cumprido os requisitos necessários para obter a concessão de uso especial de imóvel público deverá requere-la ao órgão competente da Administração Pública ou em caso de recusa ou omissão deste órgão, poderá recorrer ao judiciário. O termo administrativo é o documento emitido pela Administração Pública reconhecendo o direito de uso do imóvel público e a sentença declaratória é o documento emitido pelo Poder Judiciário reconhecendo o mesmo direito, ambos poderão ser levados a registro público e este registro permitirá ao concessionário usar, gozar e dispor do bem.

A Medida Provisória 2.220/01 estipulou em seu artigo 8º, incisos I e II que o direito às concessões de uso de imóvel público se extinguirá se o concessionário der ao seu imóvel destinação diversa da determinada no ato de concessão ou se este adquirir outro imóvel urbano ou rural, este artigo determina ainda que tal extinção de direitos deverá ser averbada no cartório de registro de imóveis por meio de declaração do Poder Público que o concedeu.

O artigo 56 do Estatuto da Cidade modifica o artigo 39 da Lei de Registros Públicos dispondo que serão feitos, além da matrícula, os registros da constituição do direito de superfície do imóvel urbano. No Estatuto da Cidade o direito de superfície destina-se a ampliar a oferta de terrenos urbanos que sirvam para a habitação e para o comércio. O adquirente do direito de superfície poderá usar gozar e dispor do terreno durante o período previsto no contrato, seja ele com particular ou com o poder público ou ainda estabelecido no termo administrativo emitido pela Administração Municipal.

O direito de superfície extingue-se pelo fim do contrato ou pelo descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário. Pela extinção do direito de superfície o proprietário recuperará o domínio do terreno com tudo o que foi acrescentado a ele, ou seja as construções e plantações. A extinção do direito de superfície altera, portanto o domínio e deverá ser averbada junto à matricula do imóvel no cartório de registro de imóveis.

O artigo 167, II, incisos 18, 19 e 20 da Lei de Registros Públicos é modificado pelo Estatuto da Cidade e determina que serão objeto de averbação: a notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de imóvel urbano, da extinção da concessão de uso especial para fins de moradia e a extinção do direito de superfície do imóvel urbano.

O parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de imóvel urbano foi previsto primeiramente no art.182, parágrafo 4º, I, da Constituição Federal e no art.5o do Estatuto da Cidade e trata-se de uma sanção imposta ao proprietário de imóvel que não cumpre a sua função social. A notificação deverá ser averbada junto à matrícula do imóvel no cartório competente. A averbação destina-se a conferir validade à notificação emitida pela Administração Municipal determinando a inclusão de uma obrigação de fazer ao destino deste imóvel.

Vale destacar que a criação de um cadastro urbanístico de imóveis, contendo dados de zoneamento, índices urbanísticos e restrições administrativas, ainda não existe de forma efetiva em nenhuma cidade do país, apesar de se fazer bastante necessário. Vicente de Abreu Amadei afirma isto no seguinte trecho:

"Não há dúvida de que o conjunto de restrições administrativas que incidem nos imóveis e a situação jurídica do seu zoneamento interferem na negociação e, quando não conhecidas com clareza, até podem comprometer a segurança no tráfico imobiliário" (Amadei, 2004, p. 75)

Os instrumentos previstos nos artigos 55, 56 e 57 do Estatuto da Cidade conectam esta lei à Lei de Registros Públicos com o objetivo de conferir legalidade às soluções de caráter urbanístico que visam melhorar a qualidade da ocupação territorial estendendo aos beneficiários de tais instrumentos de política urbana o domínio do imóvel através do registro público.

3.19. Medida Provisória no 2.220/01, Concessão Especial de Uso de Imóvel Público para Fins de Moradia

A concessão especial de uso de imóveis públicos para fins de moradia está prevista no artigo 4º do Estatuto da Cidade e os artigos 15 a 20 da mesma lei asseguravam e detalhavam esse direito. No entanto tais artigos foram vetados por razões de interesse público, sendo que o Chefe do Executivo ao expor as razões pelas quais tais artigos foram vetados determinou a edição de uma medida provisória regulando o mesmo assunto.

Foi então criada a Medida Provisória 2.220/01 que regulamenta a concessão de uso de imóveis públicos para fins de moradia, o que reconhecidamente é uma necessidade que não pode ser ignorada pelo Poder Público, pois o modelo de desenvolvimento das áreas urbanas

Brasileiras, nas últimas décadas do séc.XX, desconectado com a realidade social e profundamente excludente, ignorou o processo de inchamento das áreas precárias das cidades, habitadas pelas populações carentes. Desta forma tais populações se instalavam onde podiam e da maneira como conseguiam, invadindo muitas vezes áreas públicas que eram destinadas a praças em loteamentos, áreas de várzea e encostas de morros.

O urbanista Manuel Castells explica tal fenômeno desta maneira:

"Enfim o que sucede quando, numa situação de congelamento, o Estado não vem ajudar a construção (da moradia, grifo nosso) ou o faz de forma insuficiente? A resposta é clara: é a invasão de terrenos livres pelos que não têm casa e a organização de um habitat rude, obedecendo às normas culturais de seus habitantes, equipados conforme seus meios, e que se desenvolve numa luta contra a repressão policial, as ameaças e às vezes os atentados criminosos das sociedades imobiliárias, derrotadas desta maneira em seus projetos. É um fenômeno maciço nas grandes cidades latino-americanas, mas faz parte da cotidianidade das metrópoles ocidentais, como testemunham as favelas do subúrbio parisiense, moradia de uma grande massa de moradores imigrantes" (Castells, 1983, p. 249)

No Brasil as invasões ou favelas foram se expandindo ilegal e informalmente, ignoradas pelo Poder Público, principalmente nas décadas de 70 e 80 do século passado. Para regularizar estes assentamentos e adequá-los às normas legais, os legisladores criaram institutos como a concessão especial de uso de imóveis públicos. Este instituto incorporou ao ordenamento jurídico uma exceção à previsão do art. 183 parágrafo 3º da Constituição Federal, que dispõe que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião, pois de acordo com a MP 2.220/01, é possível a concessão do uso de imóvel público, desde que os titulares do direito tenham cumprido os requisitos da usucapião especial urbana até o dia 30 de junho de 2001.

O art.1o da Medida Provisória 2.220/01 dispõe sobre a concessão individual de uso para

aquele que por cinco anos ininterruptos e sem oposição possui como seu, imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família e que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.

A Medida Provisória 2.220/01 dispõe em seu artigo 2º, que haverá concessão coletiva de

de uso de imóvel público onde não for possível identificar os terrenos ocupados e onde os possuidores preencherem os requisitos da usucapião especial coletiva prevista no Estatuto da Cidade. A concessão de uso será feita de forma coletiva, sendo que a cada possuidor será atribuída uma fração ideal de terreno, que nunca poderá ser maior do que duzentos e cinquenta metros quadrados, esta fração independe da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo nas hipóteses em que houver acordo escrito entre os ocupantes, estabelecendo frações diferenciadas.

O instrumento previsto neste artigo é de duvidosa eficácia, como explica Maria Silvia Zanella Di Pietro no seguinte trecho:

"Fácil é avaliar as dificuldades de aplicação da concessão de uso coletivo em decorrência da pouco provável existência de elementos comprobatórios da posse pelo período de cinco anos, sem falar da cobiça que suscitará, nas disputas e nos conflitos que inevitavelmente surgirão entre os vários ocupantes. (...) Pela maneira como a concessão coletiva está disciplinada, ela será de difícil ou improvável aplicação." (DiPietro et al., 2010, p. 168).

Portanto para servir aos seus propósitos o dispositivo do art. 2º da MP 2.220/01 deve ter suas hipóteses de aplicação definidas de uma maneira mais clara pelos legisladores.

O artigo 3º da Medida Provisória permite que os ocupantes dos imóveis públicos pertencentes à União, aos Estados e aos Municípios com até duzentos e cinquenta metros quadrados de área, que estejam regularmente inscritos, terão garantido o direito de concessão de uso especial para fins de moradia. Os ocupantes de áreas que ofereçam risco à vida e à saúde terão garantidos pelo Poder Público o direito de exercer a concessão de uso em outro local.

Os ocupantes de áreas de uso comum do povo, áreas destinadas a projetos habitacionais, de interesse da defesa nacional, de preservação ambiental e de proteção aos ecossistemas naturais, áreas reservadas à construção de represas e congêneres ou situados em via de comunicação, poderão ter o seu direito de uso de imóvel público assegurado pelo Poder público, podendo assim exerce-lo em outro lugar. O Poder Público poderá dar autorização de uso àqueles que preencherem os requisitos da usucapião e que ocupam imóvel público, para fins comerciais.

O título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido perante o órgão competente da Administração Pública ou em caso de recusa ou omissão deste poderá ser obtido pela via judicial. O título de concessão e a sentença judicial serão ambos constitutivos de direito real nos termos do Estatuto da Cidade, ou seja o direito incidirá entre o titular e a coisa, podendo ser exercido apenas para fins de moradia, será transmissível a herdeiros desde que já residam no local por ocasião da abertura da sucessão e pode ser defendido em relação a terceiros perante o judiciário. Os títulos advindos da Administração Pública e a sentença judicial que concedem o uso especial de imóvel público para fins de moradia poderão ser usados para registro no cartório de registro de imóveis.

A concessão de uso especial de imóvel público para fins de moradia é um instrumento que permite ao Poder Público concretizar a função social da propriedade na medida em que permite que as populações mais carentes tenham acesso à moradia de forma legal. Maria Silvia Zanella Di Pietro define a concessão de uso nos seguintes termos; "definimos a concessão de uso como o contrato administrativo pelo qual a Administração faculta ao particular a utilização privativa do bem público, para que a exerça conforme a sua destinação" (Di Pietro et al., 2006, p. 1620), e explica a diferença entre os direitos concedidos pela usucapião e pela concessão de uso deste modo:

"Em um esforço de interpretação, baseada no próprio conceito da concessão de uso no Direito Brasileiro, é possível concluir que o constituinte quis distinguir duas hipóteses:

a) Em relação a imóveis privados aplica-se o usucapião previsto no caput (do art.183 da CF 88, grifo nosso), com a outorga do título de domínio, já que o dispositivo prevê expressamente a aquisição do domínio como direito do possuidor que preencher os requisitos legais; nem seria possível a outorga de título de concessão de uso para transferência de domínio, uma vez que, neste tipo de ato, o que se transfere é tão somente o direito de uso;

b) Em relação a imóveis públicos aplica-se a concessão de uso, com a outorga do respectivo título de concessão de uso previsto no mesmo parágrafo primeiro (do art.183 CF, grifo nosso) já que o parágrafo 3º expressamente proíbe o usucapião de imóveis públicos." (Di Pietro, 2010, p. 157)

A concessão por sua natureza contratual oferece garantias ao possuidor, mas não transmite o domínio do bem, ou seja o bem deve ser concedido para fins de interesse público, onde o uso do imóvel para fins de moradia esteja em correspondência ao projeto de cidade previsto pelo plano diretor e com os princípios urbanísticos expressos na Constituição Federal.

3.20. Lei Federal no 6.766/79, Lei de Parcelamento do Solo

A Lei nº 6.766/79 dispõe sobre o parcelamento do solo urbano mediante loteamentos e desmembramentos que serão considerados regulares na medida em que cumprirem as determinações desta lei. Os artigos 40 e 41 da Lei de Parcelamento do Solo estabelecem a ligação entre esta lei e o Estatuto da Cidade.

O artigo 40 determina que a Prefeitura Municipal ou o Distrito Federal poderão regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos adquirentes de lotes. Este artigo determina ainda que o adquirente do lote deverá depositar as prestações do preço avençado em nome do município como forma de ressarcir o município das despesas com a implementação de equipamento urbano que não foi realizada pelo loteador.

O artigo 41 permite que o adquirente de lote que foi regularizado pelo Poder Público nos termos do art.40 acima, poderá obter o registro de propriedade do lote mediante a comprovação do depósito de todas as prestações do preço avençado valendo-se para tanto do compromisso de compra e venda devidamente firmado.

A criação da Lei de Uso do Solo em 1979 teve como objetivo instituir parâmetros para regular a urbanização como um todo, inclusive a urbanização precária que acontecia em todo o país, por meio de loteamentos clandestinos ou irregulares. O objetivo do legislador era instituir padrões ideais de urbanização com a imposição de regras de parcelamento do solo.

Os padrões urbanísticos determinados por esta lei, tais como o tamanho mínimo do lote, elitizaram o acesso ao solo urbano, pois tais padrões determinaram um valor para os lotes inacessível para a maior parte da população. Tal lei acabou tendo um caráter excludente e o resultado foi o crescimento dos assentamentos irregulares, tanto através de invasões de áreas públicas ou particulares quanto através de loteamentos clandestinos e irregulares.

3.21 Lei Federal no 11.977/09, Programa Minha Casa Minha Vida

O programa Minha Casa Minha Vida instituído pela Lei Federal no 11.977 de 2009, é um programa do Governo Federal que visa enfrentar as principais questões que dificultam o acesso à casa própria por parte da população carente, que são o alto custo da moradia e das taxas cartorárias que são cobradas pelos atos de transferência da propriedade.

Este programa tem como objetivo incentivar a produção e a aquisição de novas unidades habitacionais urbanas e rurais, destina-se a famílias com renda mensal de até dez salários mínimos e por esta lei a União fica autorizada a conceder subvenção econômica aos beneficiários pessoas físicas, no ato de contratação de financiamento habitacional.

O objetivo deste programa é subsidiar a compra da casa própria, contribuir para a diminuição do déficit habitacional e para o incremento da atividade econômica, pois as habitações que são adquiridas pelos beneficiários do plano são construídas pela iniciativa privada. A Caixa Econômica Federal em página na internet descreve este programa desta forma:

"O Programa Minha Casa Minha Vida - PMVCMV - Recursos FAR é um programa do Governo Federal, gerido pelo Ministério das Cidades e operacionalizado pela Caixa Econômica Federal, que consiste em aquisição de terreno e construção ou requalificação de imóveis contratados como empreendimentos habitacionais em regime de condomínio ou loteamento, constituídos de apartamentos ou casas que depois de construídos são alienados às famílias que possuem renda de até R$1.600, 00."

Portanto, de acordo com o texto acima, os recursos do Programa Minha Casa Minha Vida são aplicados unicamente em empreendimentos imobiliários, deixando de contemplar a possibilidade de uso destes recursos para a aquisição de imóveis que se encontram vazios ou subutilizados e que se localizam nas porções consolidadas da área urbana, ou seja nas áreas ocupadas e dotadas de infra estrutura.

Edésio Fernandes, membro do Conselho Consultivo do Departamento de Habitação da ONU, O Habitat, em entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo, descreve tal política como uma forma de: "empurrar os pobres para a periferia, e não por o dedo na ferida da desapropriação de propriedades vazias, públicas ou privadas". (...) "O que ninguém fala é que os imóveis vazios somam quase 6 milhões" (O Estado de S.Paulo, 11 de abril de 2009) Ao permitir a participação da livre iniciativa no processo de urbanização por meio da construção de empreendimentos habitacionais, a lei resolve a questão da moradia por um lado, mas acaba incrementando a exclusão por outro, pois tais conjuntos habitacionais costumam ser construídos em áreas periféricas. A construção de conjuntos habitacionais em áreas cada vez distantes, impede que o comprador se instale mais próximo de seu trabalho e com melhor acesso à infraestrutura viária e institucional da cidade.

Edésio Fernandes na entrevista citada acima, faz as seguintes afirmações:

"Enquanto o poder público não zonear as áreas vazias que têm serviços como áreas de interesse social, ele vai continuar refém de si mesmo. É interessante observar os planos de municípios: todos têm zonas industriais, zonas de equipamentos, mas não se criam zonas de habitação de interesse social. Onde elas seriam criadas? Onde já exista infraestrutura, onde seja possível adensar mais a população. Esse modelo de estender de periferia para periferia, atravessando fronteiras de municípios, causa uma conurbação perigosa e irracional do ponto de vista administrativo e degradante do ponto de vista ambiental. Além de caríssima. Nosso urbanismo é caríssimo. Temos dados mostrando que prevenir é muito mais barato e fácil do que regularizar." (O Estado de São Paulo, 11 de abril de 2009) .

Portanto, esta lei acaba por ignorar a questão dos vazios encontrados em áreas urbanas consolidadas que poderiam ser ocupados se houvesse financiamento subsidiado para a compra destes imóveis.

O Programa Minha Casa Minha Vida trata ainda a partir de seu artigo 46 da regularização fundiária de assentamentos urbanos e cria dispositivos legais com o objetivo de garantir o direito social à moradia, regularizando o direito de propriedade dos habitantes de favelas e dos loteamentos irregulares e clandestinos, conferindo título de domínio aos seus ocupantes. Esta parte da lei conceitua para efeitos legais vários termos que são caros aos administradores e legisladores urbanos e aos membros do judiciário que devem interpretar as leis urbanísticas, como área urbana consolidada, regularização fundiária e outros.

3.22 Ação Civil Pública e o Estatuto da Cidade

As disposições do artigo 53 e 54 do Estatuto da Cidade inseriram a ordem urbanística no escopo da Lei de Ação Civil Pública, que é conceituada por Hugo Nigri Mazzilli desta forma:

"Dentro da acepção que lhe deu a Lei nº 7.347/85, a ação civil pública é ação para a defesa em juízo de interesses transindividuais (difusos e coletivos, em sentido lato, incluídos, pois os interesses individuais homogêneos), como aqueles ligados ao meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural e outros análogos, cujos legitimados são o Ministério Público, as pessoas jurídicas de direito público interno, as associações e órgãos indicados na lei." (Mazzilli, 2004, p. 75).

A Ação Civil Pública representa uma ampliação do acesso ao Poder Judiciário, ela é um instrumento de acesso coletivo ao judiciário em defesa de direitos coletivos. Edésio Fernandes conceitua estes novos instrumentos da seguinte forma:

"Outra discussão muito importante é a do acesso coletivo ao poder judiciário, e aí temos que empreender um esforço ainda maior de reforma do positivismo jurídico liberal, na medida em que a proposta progressista é a do reconhecimento dos direitos coletivos - e não somente dos direitos individuais típicos do liberalismo jurídico. Essa mudança é o que possibilita, por exemplo, que as ONGs tenham acesso ao poder judiciário, implicando numa visão da sociedade como algo mais que a mera somatória de indivíduos." (Fernandes et al., 2008, p. 23).

O artigo 53 que visava modificar o inciso III do artigo 1º da Lei de Ação Civil Pública foi revogado. No entanto o objetivo deste artigo que era garantir a possibilidade de se tutelar a ordem urbanística através da Ação Civil Pública foi alcançado com a edição da Medida Provisória 2.180-35, que restou convalidada pelo artigo 2º da Emenda Constitucional 32/2001. Como afirma o jurista Cassio Scapinella Bueno:

"Tomando como constitucional, válido e eficaz o art.1º, VI, da Lei 7.347/85, a ação civil pública pode voltar-se à tutela da 'ordem urbanística'. Para usar a linguagem legislativa, regem-se pelas disposições daquele diploma legal, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e materiais causados à ordem urbanística." (Bueno, 2010, p. 403)

Outro artigo, o artigo 54 do Estatuto da Cidade veio modificar o art. 4º da Lei da Ação Civil Pública permitindo o ajuizamento de ação cautelar, ou seja de ação que segundo o doutrinador Marcus Vinícius Rios Gonçalves, "Pressupõe uma crise de segurança, em que se buscam providências que assegurem o resultado final do processo." (Gonçalves, 2010, p. 217). A ação cautelar irá requerer providências preventivas que visem evitar danos ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

A Ação Civil Pública se estabelece então como um meio sancionatório que vem se somar aos outros instrumentos previstos no Estatuto da Cidade para a defesa das metas do plano diretor. Lembrando que a lei civil prevê ainda a Ação Popular para defesa desses interesses coletivos.

Cassio Scapinella Bueno afirma que estes dispositivos devem juntamente com o Código de Defesa do Consumidor formar uma base para a defesa de novos direitos, expressando-se da seguinte maneira:

"Afirmar que a ordem jurídica nacional expressamente admite a ação civil pública para a tutela da ordem urbanística significa que todo o mecanismo processual da Lei 7.347/85 complementado com os dispositivos processuais do Código de Defesa do Consumidor, em suma: o 'micro sistema do processo civil coletivo', está como nunca à disposição da implementação compulsória das políticas urbanísticas desejadas pelo constituinte (CF, arts. 182-183), pelo legislador da Lei 10.257/01 e, mais amplamente, para realização da ordem urbanística de maneira geral, inclusive as normas decorrentes da Lei 6.766/79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e dá outras providências." (Bueno et al., 2010, p. 408)

Ao permitirem que o Poder Público Municipal possa se valer da Ação Civil Pública para impor o cumprimento das diretrizes urbanísticas previstas no plano diretor os dispositivos em questão ampliam a eficácia do Estatuto da Cidade e se tornam uma importante ferramenta tanto reparatória quanto acautelatória, na implementação das políticas públicas, permitindo que o judiciário tutele a ordem urbanística usando de medidas como a imposição de obrigação de fazer ou não fazer, inclusive com a adoção de multas diárias (as astreintes), isto possibilita o enfrentamento de problemas que o processo civil tradicional não tem como enfrentar, ao oferecer soluções para a tutela de interesses metaindividuais.

3.22.1 A defesa dos Interesses Metaindividuais

A Ação Civil Pública tem por objeto a sanção aos atos danosos que atentam contra interesses metaindividuais, ou seja direitos de uma coletividade, onde não se pode individualizar os sujeitos.

Lucia Valle Figueiredo define a necessidade de defesa de tais direitos da seguinte forma:

"Começo por destacar que a atribuição do poder judiciário é para compor conflitos de interesses, quando se verificar qualquer lesão ou ameaça a direito.

Deveras, o artigo 5º, XXXV, expressamente declara: 'A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.'

Destarte, não mais se necessita de esforços doutrinários para abrigar na noção de direitos individuais, também os metaindividuais.

Deveras, as agressões aos direitos dos indivíduos não são apenas diretas. Podem transcendê-los e efetivamente transcendem-nos e muito" (Figueiredo et al., 1991, p. 23)

Os direitos metaindividuais são um gênero e dentro deste gênero encontramos duas espécies que são os direitos difusos e coletivos, sendo que dentro destes últimos encontra-se uma subespécie que são os direitos individuais homogêneos.

Os direitos difusos possuem características que são definidas por Rodolfo de Camargo Mancuso, citado por Lucia do Valle Figueiredo deste modo:

"são interesses metaindividuais que, não tendo atingido o grau de agregação e organização necessário à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses socialmente definidos, restam em estado fluido, dispersos pela sociedade civil como um todo, podendo, por vezes, concernir a certas coletividades de conteúdo numérico indefinido. Caracterizam-se: pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade e por sua tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço." (Figueiredo et al., 1991, p. 22).

Podemos afirmar que os contornos dos direitos difusos não são previamente definidos, e que estes se configuram através dos movimentos que se dão em sua defesa.

Já os direitos coletivos são direitos pertencentes a uma categoria de indivíduos, sendo que esta categoria é sempre definida pelos vínculos jurídicos ou pelos interesses que compartilha. Diferentemente os direitos individuais homogêneos são interesses de indivíduos em particular que podem ser defendidos de forma coletiva porque seu conteúdo é igual.

Portanto o que diferencia os interesses coletivos dos interesses difusos é a existência ou não de uma base legal ligando os indivíduos, entendendo-se a base legal como uma prefixação do conteúdo do direito que existe nos interesses coletivos, mas não existe nos interesses difusos.

O Estatuto da Cidade nos termos da Constituição Federal de 1988 normatiza a função social da propriedade e da cidade. Os dois são exemplos de direitos difusos por possuirem as características definidas por Rodolfo Mancuso, citado por Lucia do Valle Figueiredo, desta forma:

"Dir-se-ia que, enquanto o interesse geral ou público concerne primordialmente ao cidadão, ao Estado, ao Direito, os interesses difusos se reportam ao homem, à nação, ao justo." (Figueiredo et al., 1991, p. 22).

No direito urbanístico a tutela dos direitos difusos, como a função social da cidade e a função social da propriedade se dá principalmente através da atividade administrativa, portanto o plano diretor e as leis municipais devem ter como escopo a defesa destes direitos que são comprometidos com a sociedade e que têm como sujeito uma coletividade de pessoas consideradas em sua individualidade e não como membros de grupos determinados.

No entanto, quando os conflitos acerca dos interesses difusos se estabelecem o Estatuto da Cidade prevê a utilização da Ação Civil Pública para sua resolução, por ter o legislador considerado ser esta a forma mais adequada de resolver tais questões e de dar forma à tutela destes novos direitos que correspondem a novos objetivos socialmente definidos.

Conclusão

O Estatuto da Cidade, lei que é objeto de estudo deste trabalho tem como objetivo orientar a ação do Poder Público no processo de ordenação do uso do solo das cidades, ou seja ele orienta a criação de políticas públicas de caráter urbanístico.

As normas jurídicas, em regra são entendidas como comandos jurídicos dotados de abstração e generalidade. Já as políticas públicas possuem objetos e sujeitos determinados . Elas não descrevem os direitos, como os princípios, mas criam estratégias para realização dos direitos. Para os autores Fábio Konder Comparato e Robert Dworkin (Bucci et al., 2006, p. 24, 26) as políticas públicas são normas de caráter multidisciplinar cuja inserção no ordenamento jurídico está conectada à realização de novos direitos, como os direitos sociais. Maria Paula Dallari Bucci, comenta isto desta maneira:

"Ter se firmado como campo autônomo dotado de 'objetividade' e 'cientificidade' - é um objetivo até certo ponto realizado pelo Direito, o que permite a seus pesquisadores voltar os olhos às demandas sociais que fundamentam a construção das normas jurídicas" (Bucci et al., 2006, p. 2)

No direito urbanístico as políticas públicas, que se expressam principalmente através dos planos diretores e das leis municipais, têm como função realizar princípios previstos na Constituição Federal de 1988, como os da preservação da dignidade humana e da cidadania, e garantir o acesso aos direitos sociais como o trabalho, a moradia, o lazer, a educação e a segurança. O Poder Público pode e deve se valer dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade para a realização das funções sociais da propriedade e da cidade que também são princípios constitucionais.

A função social da propriedade, este atributo inovador conferido ao domínio de qualquer tipo de bem coloca a propriedade no centro da estrutura funcional da urbanização e também da economia. O direito de propriedade é hoje um direito renovado que permite encontrar novas soluções para velhos problemas.

O arcabouço normativo do direito urbanístico brasileiro está voltado para a orientação da ação governamental, mas a reforma urbana que é hoje o seu objetivo principal, não será implementada sem a intervenção do Poder Judiciário no sentido de construir uma doutrina e uma jurisprudência com base no regramento urbanístico e nas políticas públicas.

Edésio Fernandes expõe a necessidade de participação do judiciário no processo de criação da ordem urbanística desta forma:

"A verdade é que os urbanistas têm feito um esforço maior para entender o papel que a lei tem no processo de produção das cidades que os juristas. Mais do que nunca, espera-se dos juristas que também façam esse esforço no sentido de entender o papel que o Direito tem tido na produção deste padrão excludente de urbanização no Brasil - bem como o papel que o direito pode vir a ter na reforma urbana. Um desafio duplo se encontra colocado para os juristas brasileiros." (Fernandes et al., 2006, p. 8).

As políticas públicas que visam realizar as funções da cidade expressam mais do que apenas imposições legais elas expressam um compromisso no sentido do bem comum que devem permear as ações de todos os atores envolvidos no processo de criação das cidades e neste sentido expressam um novo tipo de ética, a ética urbana, ética da cidadania.

A infraestrutura urbana pode ser utilizada como instrumento de inclusão social aproveitando o potencial que o adensamento da ocupação traz em si. O seguinte trecho da reportagem da Revista National Geographic Brasil, mencionada no início deste trabalho ilustra as possibilidades de realização de direitos que as áreas urbanas encerram:

"Não há nenhum país urbano pobre, e também não há nenhum país rural rico. (...) Para Glaeser (Eduard Glaeser, economista da Universidade Harvard, grifo nosso), as favelas são exemplo do vigor das cidades e não de seu colapso. Os mais pobres afluem para as áreas urbanas porque alí está o dinheiro, e as cidades produzem mais riqueza porque "a proximidade das pessoas" reduz os gastos com transporte de bens, pessoas e idéias." (...) O conhecimento é mais valioso do que o espaço. É isso que caracteriza a urbe moderna. "As cidades bem sucedidas "aumentam as recompensas aos mais inteligentes ", ao permitir que as pessoas aprendam umas com as outras. Nas cidades onde a população é mais instruida, até os menos letrados ganham melhor. Isso, diz Glaeser é indício de um "transbordamento de capital humano." (National Geographic Brasil, 2011, p. 47)

As cidades brasileiras têm sido criadas com base na desigualdade social, mas estas mesmas cidades trazem em si um potencial de produção de igualdade. E o Estatuto da Cidade e o Direito Urbanístico existem para proteger este patrimônio coletivo que é posto nas cidades como instrumento de realização das possibilidades humanas.


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  • Vários autores; Sarlet, Ingo Wolfgang, organizador; DIREITOS FUNDAMENTAIS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Balanço e crítica; texto: a Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais, o Debate Teórico e a Jurisprudência do STF; autor: Sarmento, Daniel, Lumen Juris Editora; 2001.

  • Binenbojm, Gustavo; UMA TEORIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO; Ed. Renovar; Rio de Janeiro, RJ; 2006; capítulo: A Crise dos Paradigmas do Direito Administrativo.

  • Lemos Filho, Arnaldo; As ciências Sociais e o Processo Histórico; in INTRODUÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS; Papirus Editora; Campinas, SP.

  • Popper, Karl; A LÓGICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS; Editora Universidade de Brasília, 1968.

  • REVISTA TEORIA E DEBATE, nº 36; 15/05/2006; Fundação Perseu Abramo; entrevista concedida por Fábio Konder Comparato.

  • REVISTA CARTA CAPITAL; edição de 08 de agosto de 2012, p. 47.

  • REVISTA NATIONAL GEOGRAFHIC, Brasil; dezembro 2011, artigo: A Cidade é a Solução, porquê a vida urbana pode acabar com a miséria e preservar a natureza?

  • JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO; 11 de abril de 2009; título: Bolsões de Sonhos Perdidos; entrevista concedida por Edésio Fernandes.


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