Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/44250
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Repensando a cultura jurídica

um diálogo entre a antropologia e o direito

Repensando a cultura jurídica: um diálogo entre a antropologia e o direito

Publicado em . Elaborado em .

A conceituação de Cultura Jurídica parte da noção de mundo simbólico e de algumas etnografias clássicas, para construir a abertura ao outro, à diversidade e aos direitos humanos.

1 Cultura Jurídica como chave interpretativa?

O conceito de cultura nas ciências humanas ressurgiu, entre as décadas de 1970 e 1980, como medida para interpretação e análise da diversidade humana. Anteriormente havia caído em relativo ostracismo devido ás tendências evolucionistas que efervesceram durante o final do século XIX e primeira metade do século XX. Após a Segunda Guerra tais teorias foram, em parte, soterradas, ao menos como centrais, no debate sobre o homem.

Em seu retorno, o conceito cultura atingiu em especial a Antropologia e a História, que vivenciaram em seus meios intelectuais um verdadeiro boom de problemas e hipóteses. Geertz (1989) apontava que certas idéias serviam para solucionar um enorme rol de problemas centrais de uma ciência que pareciam servir para solucionar quase todos. Susane Langer teria apontado que quase todas as mentes criativas do momento teriam pensado a idéia de “cultura” como uma chave explicativa para compreender o homem. A antropologia, portanto, teria sido posta como missão central:

 (...) limitar, especificar, enfocar e conter [o conceito de cultura]. É justamente a essa redução do conceito de cultura a uma dimensão justa, que realmente assegure a sua importância continuada em vez de debilitá-lo. (GEERTZ, 1989, p.14).

Ao mesmo tempo que se tornava um recurso significativo para pensar o ser humano, o conceito de cultura sofreu com a impossibilidade de delimitação. Por mais que na prática os antropólogos soubessem seu sentido, não conseguiam chegar a um acordo sobre sua delimitação, “(...) como [afirmava] Murdock (1932): ‘Os antropólogos sabem de fato o que é cultura, mas divergem na maneira de exteriorizar este conhecimento’.”(LARAIA, 2000, p.63).

Parecia existir tantos conceitos de cultura quanto existem antropólogos no mundo.[i] E quando uma palavra pode significar “quase” tudo, em certo aspecto explica “quase” nada. “Quase” um contra-senso lógico e intelectual (talvez uma contradição performativa, como diria Habermas).


2 Cultura: uma chave e muitas portas

Para compreender o sentido de cultura vale inicialmente distinguir-lhe, ainda que superficialmente, de sociedade. Esses dois conceitos apesar de serem complementares não são coincidentes. Segundo Giddens (2005, p.38) cultura e sociedade podem ser conceitualmente separadas, mesmo existindo muitas conexões. Enquanto a sociedade está relacionada a um sistema de “inter-relações” que conecta indivíduos, a cultura seria a forma como essas inter-relações se realizam, de uma forma tipicamente humana. A tal ponto que cultura seria a liga entre os indivíduos. “Sem cultura, não seríamos sequer ‘humanos’ ” (...) ou seja, “Não teríamos línguas em que nos expressar, nenhuma noção de auto-consciência e nossa habilidade de pensar ou raciocinar seria severamente limitada”. (GIDDENS, 2005, p.38)

Nesse sentido, é preciso levar em conta alguns pontos significativos que diferem a cultura de sociedade, isso porque cultura deve ser compreendida: 1) dentro de um contexto histórico; 2) não a partir de uma congruência ou coerência com a sociedade em seu sentido amplo, o que algumas vezes pode não acontecer ao primeiro olhar; 3) dentro de um contexto de diversidade de ações, na qual atores num sistema singular podem empregar formas culturais variáveis, mas aceitáveis numa manobra social ampla. (MINTZ, 2010, p.234). Para entender como essa variação cultural ocorre dentro das sociedades, é preciso detalhar o desenvolvimento do conceito de cultura.

E conceito de cultura variou muito junto com o desenvolvimento das ciências sociais. Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo, Configuracionismo, Estruturalismo, dentre outras correntes, demarcaram a história do conceito de cultura.[ii] Nessa ampla diversidade, os conceitos de cultura estiveram por vezes predeterminados por interesses distorcidos. Não é difícil constatar que o conceito de cultura já foi considerado dogma do evolucionismo,[iii] já serviu para justificar o autoritarismo durante o regime militar brasileiro,[iv] também foi argamassa em teorias rácicas.[v] Todas essas formas, mesmo com marcantes diferenças, tiveram algo em comum. Todas vislumbravam a cultura como destino e o homem como seu elemento passivo e sujeitado.

Tais concepções não traziam novos problemas às ciências sociais, antes as prendiam num mar de determinismos. Suas concepções epistemológicas fundamentavam-se num objetivismo raso, justificado a imagem das ciências naturais no século XIX. Porém, a “Vida é uma entidade suprema que não pode ser descrita pela física ou química” (CASSIRER, 1984, p.21, trad. livre). Muito menos por conceitos como raça ou evolução. Depois de muito embate de cunho político e as vezes bélico, tais olhares naufragaram.

Freud, mesmo não sendo um especialista em antropologia, e talvez até mesmo por esse motivo, conseguiu visualizar o cerne do conceito de cultura.

A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível. (FREUD, 1927,  p.15-6)[vi]

O conceito de Cultura, portanto, tem dois importantes aspectos a serem levados em consideração. Por um lado articula as inter-relações humanas para o conhecimento do controle da natureza e por outro lado para ajustar as relações entre os homens.[vii] Esses dois campos não são distintos ou podem ser pensados isoladamente, em especial porque o que lhes é comum é a idéia de conhecimento. E exatamente sobre essa idéia de conhecimento foi construído o conceito de cultura. Passando-se de um conceito de visualizava o conteúdo do conhecimento para outro que visualizava o processo de conhecer. Antes, porém, de aprofundar tal idéia vale ressaltar outros aspectos.

Hoje, ainda se discute se “cultura” é um elemento essencialmente e exclusivamente humano[viii]. Trata-se de um olhar “vislumbrante” do homem em relação e do mundo natural (que nem mesmo Freud parece se desligar) colocando o homem numa posição evolutiva superior as demais espécies. Ressalte-se que, em seu desenvolvimento biológico, o homem desenvolveu um mundo próprio, compartilhável com outros homens. Entretanto isso não significa que seja a única espécie a ter experiências vividas únicas.

A realidade não é uma coisa singular e homogênea; é imensamente diversificada, e tem tantos esquemas e padrões diferentes quanto há organismos diferentes. Cada organismo é por assim dizer um ser monádico. Tem um mundo só seu porque tem uma experiência só sua. Os fenômenos que encontramos na vida de uma determinada espécie biológica não são transferíveis para nenhuma outra espécie. (CASSIRER, 1984, p.25, trad. livre)

Deixando de lado pesquisas que tente desenvolver novas formas de comunicação entre seres de espécie diferentes, vale ressaltar que os homens, mesmo quando de culturas completamente distintas, podem criar estratégias de contato comunicacional.[ix] Isso ocorre porque o mecanismo elementar da cultura funciona de forma similar em todos os homens. Esse mecanismo elementar, a chave que está no cerne de toda a cultura, é o elemento simbólico.

(...) no mundo humano encontramos uma característica nova que parece ser a marca distintiva da vida humana. O circulo funcional do homem não é só quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador que são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como o sistema simbólico. (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre)

O sistema simbólico se caracteriza como recurso evolutivo do homem para mediar suas relações com o ambiente, com outras espécies animais e com outros seres humanos. Assim, o homem amplia sua experiência com a realidade, vivendo numa dimensão diferente de outras espécies. Enquanto outras espécies têm como principal forma de reação a estímulos externos a ação fundamentada no instinto (reação orgânica), o homem desenvolveu uma resposta diferida, baseada na ação do pensamento (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre).[x]

Isso não significa que o homem não possa agir pelo instinto, o que faz normalmente como qualquer espécie, porém que tende a agir de forma diferida num maior número de situações, inclusive de forma mais intensa e generalizada. A questão da resposta diferida se funda na idéia de reflexão antes da ação. Nem todas as ações realizadas pelos homens são ações diferidas, afinal o homem também compartilha de certo instinto natural, porém as ações consideradas estritamente humanas, que contém sentido subjetivo[xi], são diferidas. Essas ações com caráter diferido, ou talvez melhor referidas como refletidas, são o substrato de toda análise cultural. Assim o homem conseguiu criar um novo processo de interação entre seu mundo biológico e seu mundo próprio, simbólico.[xii]

Essa realidade parece ser insuperável para qualquer estudioso das ciências humanas, pensar o homem fora de sua vida cultural seria perder importante elemento constitutivo do “humano”.[xiii] Sobre a teia de significados que rodeia o homem, forma-se sua própria consistência como ser. Portanto, a idéia de cultura está inserida diretamente na construção pelos homens de representações simbólicas compartilhadas para compreensão diferida da realidade. Assim, não é propriamente a existência de linguagem que formula certa singularidade à espécie humana.[xiv] A característica da linguagem humana que a demarca é a representação simbólica. Para perceber a diferença entre a linguagem humana e a de animais, segundo Ernest Cassirer, pode-se avaliar a diferenças entre linguagem emotiva e proposicional. Ou seja, os animais não conseguem passar da linguagem emotiva para a proposicional:

A diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem emotiva representa o verdadeiro limite entre o homem e o animal. Todas as teorias e observações sobre a linguagem animal em que não se reconheça essa diferença fundamental são sem sentido. Ao longo da extensa literatura sobre o assunto parece existir provas conclusivas de que nenhum animal jamais deu o passo decisivo na linguagem do subjetivo ao objetivo, da linguagem emocional à linguagem proposicional. (CASSIRER, 1984, p. 30, trad. livre)

A proposição de Cassirer supõe que todos os animais conseguem exprimir emoção e inteligência prática (animais), o que o homem acrescentou a essa habilidade é a razão e inteligência simbólica. Para compreender melhor tal perspectiva pode-se referir a diferença entre “Sinal” e “Símbolo”. Enquanto o sinal é relacionado a representações objetivas, simplificando a realidade e oferecendo uma linguagem designativa (denotativa), o simbólico supera o sensorial e apresenta uma capacidade de interpretação lingüística, uma linguagem figurativa (conotativa). Em outras palavras, enquanto diversos animais conseguem desenvolver emoções e inteligência prática a partir da linguagem (incluindo-se aí também o homem), os homens, além dessa habilidade, têm a capacidade de desenvolver linguagem abstrata, fundamentada na razão, e inteligência simbólica. Diferença entre o Sinal e o Símbolo é exposta por Cassirer:

Todos os fenômenos comumente descritos como reflexos condicionados não estão apenas distantes, mas em total oposição à natureza essencial do pensamento simbólico humano, os símbolos, no sentido próprio da palavra, não pode ser reduzido a meros sinais. Sinais e símbolos correspondem a dois universos diferentes do discurso: um sinal é uma parte do mundo físico do ser, um símbolo é uma parte do mundo humano do significado. Os sinais são "operadores", os símbolos são "designadores". Os sinais, mesmo quando compreendidos ou utilizados como tais, possuem, não obstante, uma espécie de ser físico ou substancial, símbolos têm apenas um valor funcional. (CASSIRER, 1984, p. 32, trad. livre)

Para melhor elucidar esse exemplo vale explicitar a capacidade humana de compartilhar o mundo a partir da linguagem figurativa. Cassirer relembra o famoso caso de Ellen Keller e dos esforços de sua professora Sullivan. Ellen Keller era uma aluna surda, muda e cega, que conseguiu aprender a se comunicar com o mundo exterior devido ao aprendizado mediado pelo mundo simbólico. Cassirer anota parte do diário da professora Sullivan, que apesar de extenso é significativo para demonstrar a importância do elemento simbólico na linguagem humana:

Eu tenho que escrever algumas linhas esta manhã porque algo de muito importante aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua educação. Aprendeu que tudo tem um nome e que o alfabeto manual é a chave para tudo o que quer saber ... Esta manhã, enquanto eu estava lavando, queria saber o nome da "água". Quando ela quer saber o nome de algo aponta em sua direção e acaricia minha mão. Eu escrevi "á-g-u-a" [com linguagem dos sinais] e não pensei mais no assunto até depois do almoço ... Depois fomos para a fonte e fiz Helen apanhar un jarro com água da torneira, enquanto eu estava na bomba. Ao sair derramei água fria da jarra na mão aberta de Helen e indiquei a palavra "á-g-u-a" [com a linguagem de sinais]. A palavra, que foi acoplada à sensação de água fria que caia em sua mão, pareceu colocá-la em movimento. Ela tomou a jarra e entrou em estado de êxtase. Seu rosto parecia brilhar. Ela soletrou "água" várias vezes. Ela se inclinou e pediu para que eu indicasse [na linguagem dos sinais] o seu nome e apontou para a fonte e rapidamente, pediu para o meu nome. Soletrei "professora". Ao voltar para a casa estava muito animada e aprendeu o nome de cada objeto que ela tocou, de modo que em poucas horas adicionou 30 novas palavras ao seu vocabulário. Na manhã seguinte, ela caminhou como uma fada radiante. Voando de um objeto a outro, perguntando o nome de tudo e me beijando de alegria... Tudo tem que ter um nome agora. Onde quer que você vá pergunta ansiosamente pelo nome das coisas que ela não aprendeu em casa. Ela está ansiosa para soletrar com seus amigos e mais ansiosa ainda ensina palavras para qualquer pessoa que encontra. (CASSIRER, 1984, p.33-4, trad. livre).

Esse exemplo demonstra que, mesmo sem compartilhar as mesmas informações sensoriais, o homem compartilha a realidade além da mera constatação feita imediatamente pelos sentidos, Ou seja, é pelo compartilhamento simbólico que Ellen Keller pode participar do mundo humano, através da cultura. Em sentido oposto, Cassirer cita exemplos da existência de diversos casos de crianças perdidas, os chamados meninos lobos, os quais não aprenderam a compartilhar linguagem simbólica, ficando alheios a outros seres humanos quando reencontrados. Nesse sentido, parece impossível averiguar elementos considerados culturais de forma inata ao homem.[xv]

Ellen Keller aprendeu a utilizar as palavras, não meramente como signos ou sinais mecânicos, senão como um instrumento inteiramente novo de pensamento. A linguagem é a simbologia utilizada pelo homem para referir-se ao mundo. Enquanto os outros animais, por vezes remetem-se ao mundo de forma descritiva por uma linguagem limitada, o homem abstrai da simbologia a reflexão sobre a própria simbologia. Assim, através de Cassirer, chega-se a uma conclusão interessante: Os homens não pensam pela representação física, mas pelos signos (linguagem) (CASSIRER, 1984). O pensamento humano, portanto, é instrumentalizado pela cultura.

Do que foi proposto pode-se concluir que não existe um conteúdo cultural fixo, pré-existente ou pré-determinado. Ou ainda, rememorando a crítica de Norbert Elias, que “[h]oje em dia, o termo "cultura" é empregado freqüentemente como se designasse um fenômeno livre e independente, pairando acima dos homens e não em conexão com o desenvolvimento social de associações humanas, dentro das quais é possível esclarecer e estudar de fato os fenômenos culturais — ou, para usar outras palavras, as tradições sociais.” (2001, p.194).  A própria cultura é aprendida. Por isso não é possível pensar numa perspectiva humana essencial, inata. Aliás, a busca da essência humana, durante a história ocidental, teve como objetivo a justificativa de certo tipo de dominação. Seja a dominação do homem sobre o animal, seja a dominação de um homem sobre outro homem. Observar outras culturas ocasiona exatamente a quebra do sentido absoluto da própria forma de enxergar a realidade.[xvi]

O atual contexto das ciências sociais rejeita a idéia de essência humana, ou de natureza humana ínsita.[xvii] Diversos estudos têm demonstrado que a própria biologia humana tem evoluído com o desenvolvimento da cultura. O neo-cortex humano precisa, necessariamente, de instruções culturais para tornar-se funcional.[xviii] Um homem que crescesse de forma isolada provavelmente não teria nenhum intelecto ou sentimento reconhecíveis.

(...) O fato aparente de que os estágios finais da evolução biológica do homem ocorreram após os estágios iniciais do crescimento da cultura implica que a natureza humana “básica”, “pura” ou “não-condicionada”, no sentido da constituição inata do homem, é tão funcionalmente incompleta a ponto de não poder ser trabalhada. As ferramentas, a caça, a organização familiar e, mais tarde, a arte, a religião e a “ciência” moldaram o homem somaticamente. Elas são, portanto, necessárias não apenas à sua sobrevivência, mas à sua própria realização existencial. (GEERTZ, 1989, p.60)

Isso significa que o ser humano se desenvolveu dentro de um ambiente socializado, necessitando de compartilhamento social para se tornar um sujeito existencial pleno.[xix] (LARAIA, 2000. p. 45). Assim, o desenvolvimento do arsenal simbólico humano foi substanciado nas relações sociais desenvolvidas durante a sua vida, na ação.[xx] Pela análise dos acontecimentos humanos e da História, podemos visualizar a cultura, como afirmou Sahlins: “(...) a cultura é historicamente reproduzida na ação (...) um evento é uma atualização única de um fenômeno geral, uma realização contingente do padrão cultural (...)”. (1990, p.7).

Esse embate real (pela ação) na sociedade pode ser visualizado, seguindo Keith Thomas, a partir dos efeitos reais de distinção entre seres humanos ocasionados pela noção de essência humana e de ideal de comportamento humano, gerando explicações sobre “os mais” e “os menos” humanos.

Robert Gray declarava que, em 1609 que “a maior parte” do globo era “possuída e injustamente usurpada por animais selvagens ou por selvagens brutais, que, em razão de sua ímpia ignorância e blasfema idolatria, são ainda piores que os animais” (...) relata sir Thomas Hebert, a respeito dos habitantes do Cabo da Boa Esperança; “duvido que a maioria deles tenha antepassados melhores que macacos” (...) No início dos tempos modernos essa atitude persistia. “Os membros da vasta ralé que parece portar os sinais do homem no rosto”, explicava sir Thomas Pope Blount, em 1693, “não passavam de seres rudes em seu entendimento (...) é por metáfora que os chamamos de homens pois na melhor da hipóteses nada mais são que os autômatos de Descartes, molduras e sombras de homens, que têm tão-somente a aparência para justificar seus direitos à racionalidade”. Para outros observadores, os pobres eram “a parcela mais vil e grosseira da humanidade” (...) (THOMAS, 1988, p. 50; 52).

Tais afirmações retratam algo que, antes de ser um ajustamento natural entre homens, é uma construção social significativa e que deve ser levada em conta ao se trazer o debate sobre cultura de um plano abstrato para um plano concreto. O preconceito com o diferente demarcou o que se considerava como culturalmente relevante. Fazer a filtragem do que é cultural dentro do conceito de cultura perpassa por uma análise histórica e crítica da realidade e suas diversas relações de poder.

Para uma primeira reorganização de um conceito de cultura, é possível retirar algumas considerações iniciais. Primeiramente o Direito, assim como outras áreas da vida humana é um fenômeno plenamente cultural. O padrão de comportamento estabelecido nas práticas conhecidas como “Direito” está intimamente ligado ao mundo simbólico humano.

(...) Os padrões de comportamento que constituem a cultura de um grupo social são - para usar a expressão de Cassirer - formas simbólicas, "sistemas de símbolos", ou seja cada um dos quais está organizado como um mundo em si mesmo, relativamente de forma independente, a totalidade desses sistemas representa um ambiente distinto, pelo menos em linha em princípio, a partir do ambiente natural em que o grupo tem para viver. Essas formas simbólicas envolvem uma técnica de organização - e sua diferenciação mútua é de fato ligado à diversidade de técnicas elaboradas (técnicas da vida moral e religiosa, a produção literária e artística, a teoria científica, a investigação filosófica), exceto que tais técnicas não são mais técnicas de adaptação ambiente, mas são em vez disso técnicas para a criação de um ambiente diferente do natural. (ROSSI, 1983, p. 25-6) [xxi]

Portanto, o Direito é um fenômeno que em sua estrutura elementar é formado por representação simbólica.

Outra consideração inicial é que a cultura é pública, ou em outras palavras, compartilhada em sociedade (socialmente, portanto). Geertz explica que na cultura os significados são compartilhados publicamente[xxii], ou seja, mesmo quando existem distinções de acesso a integralidade da informação, muitas vezes inclusive como forma de distribuição de poder na sociedade, tal informação simbólica precisa ser compartilhada entre os membros de uma sociedade. Esses sentidos circulam e formam uma cadeia de significação que forma a “cultura”.

As pessoas adquirem experiência enquanto estão sendo acionadas e enquanto agem. Na maior parte do tempo e na maioria das formas, elas agem de acordo com um código socialmente herdado de comportamento padronizado, um código histórico de longa permanência. Mas esse código não é jamais uma camisa-de-força; existem escolhas e alternativas. Estas – incluindo a opção pela não ação – são utilizadas em várias permutações, embora finalmente sujeitas às condições externas. (MINTZ, 2010, p.235-6).

Por isso, para Geertz cultura irá ser compreendida como uma “teia de significados que o próprio homem teceu” (1989, p.4). Ou seja, “Cultura é, em última análise e finalmente, comportamento mediado através de símbolos”. (MINTZ, 2010, p.237). Além disso, deve-se ressaltar que ao aceitar-se a necessidade de compreensão individual dos sentidos culturais, é possível dentro desse conceito criar um importante elo entre o social e o individual. “Clifford Geertz, levando adiante o trabalho importantíssimo de Max Weber, é central nesse ponto por causa do que chamei anteriormente de sua teoria da cultura orientada para a subjetividade.”. (ORTNER, 2007, p.400). Ora, nesse sentido cultura é a construção humana necessária para viver coletivamente.[xxiii] O seu significado vai variar conforme os valores, conhecimentos e costumes compartilhados que fazem parte do modo de viver de cada um. Enfim, “(...) creio que temos de renunciar à antiga visão de cultura, lembrar que é a nossa identidade comum de criaturas que utilizam símbolos que faz o mundo único (...)”. (MINTZ, 2010, p.237)

Atualmente, segundo Roque Laraia (2000), atualmente existem três perspectivas conceituais aceitas de cultura, as quais mais se complementam do que se contradizem, são elas:

1) Cultura como sistema cognitivo (Sistema de conhecimento): Cultura é tudo aquilo que é necessário se conhecer para ser aceito em certa sociedade. Em última análise, não se diferencia da linguagem.

2) Cultura como sistemas estruturais: Cultura é definida como os princípios da mente que organizam os símbolos. Aproxima-se a visão de Cassirer e de Levi-Strauss.

3) Cultura como sistemas simbólicos: Cultura como conjunto de símbolos que estruturam o processo de representação humana, modelo de Clifford Geertz.

Ressalte-se que tais perspectivas podem ser conciliadas, pois são complementares. Parecem demonstrar três faces de um mesmo fenômeno.

Por fim, o grande desafio de trabalhar com o conceito de cultura é superar uma visão simplista. Inclusive em termos de pesquisa. Antigamente “A cultura era pensada como um conjunto de comportamentos, cerimônias e gestos característicos passíveis de registro e explicação por um observador treinado” (CLIFFORD, 1998, p.29). O trabalho de um etnógrafo, era considerado antes de mais nada um trabalho físico de observação e descrição, hoje porém é visto como um trabalho de interpretação.[xxiv] Enfim, “O processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes cabe evocar. A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada”. (CLIFFORD, 1998, p.42).


3. Cultura e Direito: os debates clássicos SOBRE CULTURA JURÍDICA

Para iniciar uma caracterização do conceito de “cultura jurídica” relembre-se uma interessante passagem de Plínio Barreto em seu livro “A Cultura jurídica no Brasil (1822/1922)” referida por Alfredo Venâncio Filho:

Há 100 anos, quando se emancipou definitivamente da soberania portuguesa, era o Brasil uma terra sem cultura jurídica. Não a tinha de espécie alguma, a não ser, em grau secundário, a do solo. Jaziam os espíritos impotentes na sua robustez meio rude da alforria das crendices e das utopias, à espera de charrua e sementes. O Direito, como as demais ciências e, até, como as artes elevadas não interessava ao analfabetismo integral da massa. Sem escolas que o ensinassem, sem imprensa que o divulgasse, sem agremiações que o estudassem, estava o conhecimento dos seus princípios concentrado apenas no punhado de homens abastados que puderam ir a Portugal apanhá-la no curso acanhado e rude que se processava na Universidade de Coimbra. (BARRETO apud VENÂNCIO FILHO, 2004, P.13)

Percebe-se que o conceito de “cultura jurídica” presente na passagem citada está diretamente relacionado nessa passagem a noção de conhecimento erudito. Rememora a versão francesa de cultura, na qual se identificava cultura a idéia de erudição, cultivo do homem.[xxv] Além disso, percebe-se que a escolarização seria o processo central para a caracterização da “cultura jurídica brasileira”. O mesmo Plínio Barreto completava:

O direito era, no Brasil, quando se operou a Independência, uma ciência estudada por um grupo insignificante de homens e não era estudada, mesmo neste grupo, com profundeza e pertinácia. Nem podia sê-lo. Não há ciência que se desenvolva sem ambiente apropriado, e o de uma colônia onde mal se sabia ler não é, com certeza, o mais adequado para o crescimento de uma disciplina, como a de direito, que supõe um estado de civilização bem definido nos seus contornos e bem assentado nos seus alicerces. (BARRETO apud VENÂNCIO FILHO, 2004, P.14)

Tal autor reflete uma época em que no Brasil a valorização dos ideais europeus ressaltava os valores iluministas de desenvolvimento e progresso.[xxvi] Para ir além desse conceito de “cultura jurídica”, e resgatar inclusive a possibilidade de debater o que Plínio Barreto chamou de “cultura do solo” é preciso abrir um diálogo mais amplo entre a Antropologia e o Direito.

Para Geertz (1997) a Antropologia e Direito seriam a princípio duas disciplinas ideais para dialogarem. Isso porque existem diversas semelhanças em seus métodos (ao menos na cultura anglo-saxã), tanto a presença de linguagem erudita, quanto uma aura de fantasia, mas especialmente no tocante a sua artesania local. Tal característica pode ser visualizada na busca de princípios gerais em fatos paroquiais. As duas disciplinas partem do específico para o geral (ao menos na tradição do common law), mas sempre buscando uma perspectiva compreensiva. De qualquer forma, e apesar da limitação de tal comparação no sistema da civil law, Geertz aponta duas idéias base para identificar o Direito e a Antropologia (etnografia).

Entre uma simplificação dos fatos que torna as questões morais tão limitadas que podem ser solucionadas através do simples uso de regras específicas (a meu ver, a característica que define o processo jurídico) e a esquematização da ação social de modo que seu significado possa ser expresso em termos culturais (a característica, também a meu ver, que define a análise etnográfica), existe algo mais que uma simples semelhança entre membros de uma mesma família. (GEERTZ, 1997, p. 253-4)

O Direito segundo Geertz se caracterizaria num processo de “simplificação dos fatos que torna as questões morais tão limitadas que podem ser solucionadas através do simples uso de regras específicas” (p.253). Bruno Latour explica o jogo das regras específicas, apresentando um esquema de ação de julgamento. Assim, Pode-se afirmar assim que a redução da vida para a linguagem jurídica visa rapidamente “estabilizar o mundo dos fatos”, tornando-os indiscutíveis (o que significa dizer, em outras palavras, que a defesa não os contesta mais) recolocando o fato numa regra abstrata de direito (na prática, um texto) para produzir um julgamento (na realidade um freio (definição interpretativa) ao texto). “A redução erudita obtida cria a mesma economia cambaleante, uma vez que substitui o mundo, e sua complexidade, riqueza e inumeráveis dimensões, por um papel e seus textos”. (LATOUR, 2004, p.242, trad.livre) [xxvii]

Esse processo que faz transitar uma linguagem designativa (denotativa) pra uma linguagem figurativa (conotativa), e vice-versa, ou seja, que faz a descrição dos fatos se ajustarem ao julgamento dos mesmos, caracterizaria o que os ocidentais chamam de Direito. Esse processo cognitivo foi certamente pensado através da comparação cultural na obra de Montesquieu. Este considerava a essência (espírito) das leis vinculada à razão, apontando que cada povo detinha características próprias que inclusive impediam uma lei de fazer sentido em locais diferentes de sua origem.

A lei, em geral, é a razão humana, enquanto governa todos os povos da terra; e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas casos particulares onde se aplica esta razão humana. Devem ser tão próprias ao povo para o qual foram feitas que seria um acaso muito grande se as leis de uma nação pudessem servir para outra. (MONTESQUIEU, 1996, p.16)

Essa “razão” que Montesquieu enxergava como essencial ao Direito era em parte era universalista, compartilhando dos nascentes ideais iluministas, e em parte voltada à diversidade. Montesquieu já percebia que o direito no mundo oriental era ligado a outras dimensões da vida, imbricadas numa dimensão maior da razão. E pensar o Direito desconectado da religião, hábitos, costumes, entre outros, seria impossível.

Daí resulta que a China não perde suas leis com a conquista. Sendo as maneiras, os costumes, as leis e a religião a mesma coisa, não se pode mudar tudo isto ao mesmo tempo. E como é necessário que o vencedor ou o vencido mudem, na China foi sempre preciso que fosse o vencedor a mudar, pois como seus costumes não eram suas maneiras, suas maneiras suas leis, suas leis sua religião, foi mais fácil que ele se dobrasse pouco a pouco diante do povo vencido do que o povo vencido diante dele. Segue-se ainda daí uma coisa muito triste: é quase impossível que o cristianismo algum dia se estabeleça na China. Os votos de virgindade, as reuniões das mulheres nas igrejas, sua necessária comunicação com os ministros da religião, sua participação nos sacramentos, a confissão auricular, a extrema-unção, o casamento com uma só mulher, tudo isto subverte os costumes e as maneiras do país, e fere ainda com o mesmo golpe a religião e as leis. (MONTESQUIEU, 1996, p.326)

Entretanto a geração seguinte a Montesquieu, em especial os filósofos iluministas, apostaram nos valores universais como resposta a idéia de ser humano. Tal ideal político consagrado nas declarações de Direitos atinentes ao movimento de Independência Estadunidense e da Revolução Francesa apontavam um sujeito de direitos universal.[xxviii]

Esse apriorismo tem fortes ligações com o jusnaturalismo moderno e com a doutrina liberal. “A idéia da ‘unidade psíquica da humanidade’ não morreu, apenas se refugiou no credo do liberalismo.” (BOHANNAN, 1973, p.111). O contratualismo foi talvez o maior guardião desses preceitos.

Porém, mesmo prevalecendo os ideais iluministas dentro da visão de Direito, um olhar tipicamente fundamentado na diversidade continuou a existir quando os interesses políticos não eram convergentes com os valores revolucionários. Influenciados em parte por Montesquieu, existiram opositores aos valores universais do Direito, como exemplo vale referir a Escola histórica alemã.

O sentido da variedade da história devido à variedade do próprio homem: não existe o Homem (com H maiúsculo) com certos caracteres fundamentais sempre iguais e imutáveis, como pensavam os jusnaturalistas, existem homens, diversos entre si conforme a raça, o clima, o período histórico... De Maistre (considerado o predecessor do historicismo), defensor do Ancien Régime e opositor da Revolução Francesa, num panfleto anti-revolucionário, Considerations Sur Lê France, falando da Constituição francesa de 1795, que foi difundida pelos franceses em toda a Europa invadida pelas tropas da Revolução, apresenta uma afirmação que exprime causticamente essa atitude dos historicistas polemizando com os racionalistas: “A constituição de 1795 é feita pelo homem. Ora, não existem homens no mundo. Tenho visto, na minha vida, franceses, italianos, ingleses; e Montesquieu me ensinou que também existem os persas; mas o homem, essa criatura que chamam de homem, essa eu não vi em lugar nenhum”. (BOBBIO, 1995, p.48).

O debate sobre a universalidade ou particularidade do Direito está inserido numa tradição cultural que enxerga sua forma de pensar, a ocidental, como universal. As conseqüências desse debate foram se desenvolvendo durante a construção do campo da chamada Antropologia do Direito, que já durante o século XIX buscava decifrar as diversas manifestações de Direito orientais e antigas.[xxix] E os primeiros debates no campo estiveram voltados ao que buscar responder a pergunta: o Direito é universal?

Certamente a mais curiosa dessas curiosidades é o eterno debate sobre o conteúdo do direito; ou seja, se ele consiste de instituições ou regulamentos, de procedimentos ou de conceitos, de decisões ou de códigos, de processos ou de formas, e, portanto, se ele é uma categoria tal como o trabalho, que existe praticamente em qualquer parte do mundo onde nos deparemos com uma sociedade humana, ou algo assim como o contraponto, que certamente não é universal. (GEERTZ, 1997, p.250)

Seria o Direito é universal, como uma estrutura social? Talvez como o trabalho (se ele puder ser considerado universal)? Ou o Direito é um instituto cultural não universal? Essas perguntas guardam uma perigosa armadilha acadêmica.

(...) de uma forma muito pouco útil, colocou-se em campos opostos o enfoque forense e o enfoque etnográfico das análises jurídicas, o que nos leva a crer que a série de livros e artigos com títulos como "o direito sem advogados", "o direito sem sanções", "o direito sem os tribunais" ou "o direito sem precedentes" poderia ter, como conclusão apropriada, um cujo título fosse "o direito sem o direito". (GEERTZ, 1997, 251).

Talvez a melhor pergunta seria: como observar formas de Direito diversas da forma que culturalmente estamos ligados?


4. Um Direito “sem Direito”: Etnografias corrosivas

As etnografias em grupos culturais diversos da tradição ocidental deixaram grande parte da base do conhecimento jurídico em xeque. A primeira aproximação nesse sentido foi de Bronislaw Malinowski. Em seu estudo “Crime e Costume na sociedade selvagem” fazendo etnografia com algumas tribos das Ilhas Trobiands na Nova Guiné, Indonésia, chega à hesitante conclusão de que não é possível encontrar um conjunto rígido de normas ou regras que formem algo como um corpus iuris dos nativos. (MALINOWSKI, 2003, p. 94). O próprio título é uma provocação, pois na Ilhas Trobriand a noção de crime punido com uma sanção pública não existe.

As mesmas conclusões chegaram alguns juristas ao ler a famosa etnografia de Evans-Pritchard denominada “Os Nuers”. Um grupo social da região do rio Nilo que não tem juízes, tribunais, regras gerais, nem processo, resolvendo os problemas sociais através das denominadas “vendetas” (lutas entre indivíduos, clãs e aldeias) que também não eram obrigatórias ou sempre necessárias. A conclusão diante do diverso foi frustrante, diziam os juristas: Os Nuers não têm Direito! Observe-se a descrição do referido antropólogo:

Em sentido estrito, os Nuer não têm lei. Há ressarcimentos convencionais por danos, adultério, perda de membros, etc, mas não há qualquer autoridade com poder para pronunciar sentenças sobre tais questões ou para fazer cumprir vereditos. Na terra dos Nuer, os poderes legislativo, judiciário e executivo não estão investidos em quaisquer pessoas ou conselhos. Entre membros de tribos diferentes não há de se falar em ressarcimento; e, mesmo dentro de uma tribo, pelo que vi, os danos não são apresentados sob o que chamaríamos de forma legal, embora o ressarcimento por danos (ruok) seja pago algumas vezes. Um homem que acha ter sido prejudicado por outro, não pode processá-lo porque não existe tribunal para citá-lo, mesmo que este estivesse disposto a comparecer. Vivi em intimidade com os Nuer durante um ano e jamais ouvi uma questão ser apresentada perante um indivíduo ou tribunal de qualquer tipo e, além disso, cheguei à conclusão de que é muito raro que um homem obtenha ressarcimento a não ser pela força ou pela ameaça de empregar a força. A recente introdução de cortes governamentais, perante as quais, hoje, algumas vezes as questões são resolvidas, de modo algum invalida essa impressão, porque sabe-se muito bem que, entre outros povos africanos, são apresentadas questões perante cortes sob a supervisão do governo que anteriormente não foram resolvidas num tribunal, ou mesmo conciliadas, e como durante muito tempo depois da instituição de tais tribunais governamentais eles vêm operando lado a lado com os antigos métodos de fazer justiça. (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.173).

Falamos de "lei", aqui, no sentido que parece mais adequado quando se está escrevendo sobre os Nuer, ou seja, uma obrigação moral de resolver questões por métodos convencionais, e não no sentido de procedimento legal ou instituições legais. E falamos apenas sobre a lei civil, pois não parece haver ações consideradas ofensivas a toda comunidade e punidas por ela. Os informantes que disseram que algumas vezes as bruxas e os mágicos eram mortos, afirmaram que eram sempre indivíduos ou grupos de parentes que os emboscavam e os matavam como desforra. (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.178-9).

Dois detalhes podem ser levantados. Primeiramente a tradução da palavra Law na etnografia do inglês Evans-Pritchard pode ser tão confusa para o português quanto à própria diferenciação entre Lei e Direito. (Afinal deve-se traduzir Law como Direito ou como Lei?). Além disso, outra afirmação demonstra a dificuldade para referir culturas jurídicas diversas da ocidental: “Os Nuer possuem um agudo senso de direito e dignidade pessoal. A idéia de direito, cuong, é forte.” (2005, p.180). Como descrever esse “Direito” sem reduzi-lo ao Direito ocidental ou a afirmação de sua inexistência?[xxx]

Outras pesquisas clássicas acabaram trazendo novos enfoques para esse problema. “The judicial process among the barotse of northern rhodesia” de Max Gluckman; e “Justice and Judgment Among the Tiv” de Paul Bohannan, partindo de pressupostos diferentes expuseram culturas jurídicas diversas, ora tentando aproximar o direito de povos não-ocidentais aos ocidentais como forma de valorização, como fez Gluckman, ora tentando descrever a cultura jurídica não-ocidental sem tentar aproximá-la dos conceitos ocidentais, com fez Bohannan, sempre geraram surpresa e desconfiança nos círculos jurídicos.

Veja-se inicialmente a proposição de Gluckman. Em sua descrição pretende demonstrar que apesar de diferenças existentes, é possível visualizar semelhanças significativas entre o direito dos africanos e o Direito europeu ocidental:

Aqueles que ocupam diversos status podem ter direitos ao mesmo tempo sobre um pedaço de terra ou sobre bens móveis. Todos esses direitos são descritos por um só termo, "posse". No caso, a ciência do direito Barotse não refinou ou elaborou sua terminologia. A complexidade do vocabulário dessa ciência do direito está na definição de posições sociais — status — e de diferentes tipos de propriedade. Como os Barotse estão interessados na propriedade à medida que ela vincula pessoas em diferentes relações de status, eles tendem a enfatizar as obrigações decorrentes de posse de propriedade, mais do que os direitos sobre ela. (GLUCKMAN, 1973, p.56)

Tal perspectiva pretende gerar o que Gluckman reconhece como empoderamento dos povos africanos num momento em que o colonialismo ainda prevalece. Bohannan porém discorda de tal hipótese pretendendo demonstrar que as categorias jurídicas dos povos africanos são inconciliáveis com as categorias européias. Bohannan afirma que “É na justaposição de idéias previamente desconexas que se encontra o ato de interpretação.” (1973, p.102). Esse ato de interpretação, para Gluckman deveria ocorrer já na própria descrição. Bohannan ao contrário rechaça tal idéia, apresentando a necessidade de ater-se aos conceitos nativos para que a etnografia seja um referencial aos leitores.

Na minha opinião, cada etnógrafo tem o compromisso com ele mesmo, com o povo que estuda e com seus colegas de ser rigoroso com seu material. é claro que deve traduzir tanto quanto possível. Ele deve avaliar o momento em que a dificuldade de ler se transforma na impossibilidade de ler. Mas há um momento análogo em que o método da nota explicativa causa dificuldades ainda maiores, porque simula compreensão através do uso das palavras familiares. Esta simulação leva quase inevitavelmente — creio eu — a uma suposição de que tudo o que é denominado pela mesma palavra é comparável, sendo esta uma dificuldade quase impossível de ser corrigida. (BOHANNAN, 1973, p.103)

E completa de forma significativa sobre o problema da construção teórica do povo Tiv:

A ciência do direito inglesa desenvolveu um vocabulário para exprimir o direito inglês (e em menor escala para os ramos comparativo e internacional privado do direito). Os Tiv não desenvolveram uma ciência do direito. Logo. mesmo para tomar as duas matérias comparáveis, o etnógrafo tem que fazer pelos Tiv o que e eles não fizeram por eles mesmos: encontrar uma "teoria" Tiv sobre a ação legal (...) (BOHANNAN, 1973, p.104-5)

Essa dificuldade faz com que a antropologia do Direito busque compreender as culturas dentro de seus próprios referenciais lingüísticos. Tal perspectiva já havia sido percebida anteriormente, por outro enfoque, por Marcel Mauss, quando afirma que o Direito é um fenômeno essencial para definir um povo, e que “o fenômeno do direito é o fenómeno específico de uma sociedade [...] o que nos define não é extensível para além das nossas fronteiras”(1993, p.140). Completava ainda “O direito é o meio de organizar o sistema das expectativas colectivas, de fazer respeitar os indivíduos, o seu valor, os seus agrupamentos. A sua hierarquia. Os fenómenos jurídicos são os fenómenos morais organizados.” (1993, p.141). Nesse sentido, cada sociedade desenvolve valores morais próprios, compartilhados por códigos simbólicos específicos.

Marcel Mauss aprofundou sua perspectiva de Direito no estudo “Ensaio sobre a Dádiva” (1974). Nesse estudo Maus explica a questão da dádiva em diversas culturas mediante o debate através de etnografias que circulavam em sua época. Chega à conclusão que o próprio Direito tende a delimitar o que o “Direito é”, ou seja, o Direito se autolimita conceitualmente. Esse modelo de reflexão acaba por se limitar a possibilidade do próprio discurso se autoexplicar. Esse mesmo problema encontra-se na definição de Bohannan que usa a própria linguagem nativa para se autoexplicar. E para que serve um conhecimento sobre um formato de Direito incomunicável com outras formas de Direito? Portanto, a grande dificuldade da relação entre Antropologia e o Direito encontra-se no diálogo intercultural.

Por isso, a relação entre a Antropologia e o Direito desenvolveu-se recentemente para considerar o Direito como parte de um fenômeno maior, condizente com a noção de mundo simbólico. A base do Direito para Geertz não é o que os próprios nativos falam sobre o seu Direito, mas o processo maior de representação que perpassa na linguagem local. Assim está o Direito ligado a:

(....) um fenômeno um pouco mais crucial, um fenômeno aliás que é a base de toda a cultura: isto é, o processo de representação. A descrição de um fato de tal forma que possibilite aos advogados defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos jurados solucioná-lo, nada mais é que uma representação: como em qualquer comércio, ciência, culto, ou  arte, o direito, que tem um pouco de todos eles, apresenta um mundo no qual suas próprias descrições fazem sentido. Discutiremos, mais adiante, os paradoxos que este tipo de descrição pode gerar; o argumento aqui, no entanto, é que a parte "jurídica" do mundo não é simplesmente um conjunto de normas, regulamentos, princípios, e valores limitados, que geram tudo que tenha a ver com o direito, desde decisões do júri, até eventos destilados, e sim parte de uma maneira específica de imaginar a realidade. Trata-se, basicamente, não do que aconteceu, e sim do que acontece aos olhos do direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro, de uma época a outra, então o que seus olhos vêem também se modifica. (GEERTZ, 1997, p.250)

Enfim, é possível delimitar o Direito como um produto puramente cultural, variável no tempo e no espaço e que depende de uma complexa teia de significados culturais para fazer sentido. Nem mesmo sociedades ocidentais têm o mesmo sentido para a própria palavra “Direito” em todas as suas camadas sociais e diversidade histórica.[xxxi]

Por isso, para compreender o Direito dentro de uma sociedade é necessário não esquecer que não se pode estudá-lo descontextualizado da sociedade aonde faz sentido. A inter-relação entre os conhecimentos responsáveis pelo desenvolvimento da vida do homem em seu ambiente e as relações entre os homens deve ter especial relevância para o estudo da cultura jurídica. Mesmo sendo a ciência, em sua essência cartesiana, um conhecimento repartido, o homem é um animal completo. “Como escreve Mauss, ‘o homem é indivisível’ e ‘o estudo do concreto’ é ‘o estudo do completo’.” (LAPLANTINE, 2003, p.129). Os fenômenos culturais interagem com o consciente e o inconsciente humano perfazendo sua vida na sua existência. “Todos estudam ou deveriam observar o comportamento de seres totais e não divididos em faculdades” (MAUSS, 1974, p.181).

Todos esses fenômenos são ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos e mesmo estéticos, morfológicos, etc. São jurídicos, de direito privado ou público, de moralidade organizada ou difusa, estritamente obrigatórios ou simplesmente louvados e atacados, políticos e domésticos ao mesmo tempo, interessando tanto às classes sociais como aos clãs e às famílias. (MAUSS, 1973, p.179)

As ciências políticas se dão por objeto de investigação um certo aspecto do real: as instituições que regem as relações do poder; as ciências econômicas, um outro: os sistemas de produção e troca de bens; as ciências jurídicas, o direito; as ciências psicológicas, os processos cognitivos e afetivos; as ciências religiosas, os sistemas de crença. Mas todos estes são para o antropólogo fenômenos parciais, isto é, abstrações em relação ao enfoque não parcelar que orienta sua abordagem. (LAPLANTINE, 2003, p.130)

Para ilustrar como as culturas jurídicas (também referidas como sensibilidades jurídicas) vale destacar os exemplos dados por Geertz. Durante as etnografias realizadas em sua carreira acadêmica tal autor percebeu três sensibilidades jurídicas orientais diversas. A islâmica com a idéia de haqq, a hindu com a noção de dharma, e a malaia com a perspectiva do adat.

Tentarei, em um espaço demasiado curto para ser de alguma maneira persuasivo e demasiado longo para poder falar total e verdadeiramente sobre uma única coisa, esboçar três variedades bastante distintas de sensibilidade jurídica a islâmica, a índica e a do chamado direito costumeiro que existe na parte malaia da Malásia-Polinésia - e estabelecer a conexão entre essas sensibilidades e as visões, nelas incorporadas, sobre o que é, realmente, a realidade. E o farei, desdobrando três termos, isto é, três conceitos, que, a meu ver, são centrais para essas visões do mundo: haqq, que significa "verdade" e muitas outras coisas mais, para os islâmicos; dharma, que significa "dever" e muitas outras coisas mais, para os índicos; e adat, que significa "prática" e muitas outras coisas mais, para os malaios. (GEERTZ, 1997, p. 275-4)

O objetivo de expor tais sensibilidades é demonstrar que o Direito pode manifestar-se de forma totalmente diversa em sociedades com elementos culturais diversos. Obviamente tal apreciação será resumida e recomenda-se a leitura do texto de Geertz (1997) para o aprofundamento de tal descrição. Inicialmente cabe ressaltar que nas sociedades orientais o Direito não está necessariamente ligado a noção de lei.

Para expressar o que foi dito acima de uma maneira ligeiramente diferente, nossas três palavras têm mais semelhança com a noção ocidental de "direito" (right, recht, droit) que com a noção de "lei" (law; Gesetz, loi). Ou seja, o ponto central, comum às três, é menos relacionado com algum tipo de noção de "regulamento", "regras", "injunção" ou "decreto" e mais próximo a um outro conceito, ainda pouco nítido, que representaria uma conexão interna, original e inseparável, entre aquilo que é "próprio", "adequado", "apropriado", ou "condizente" e o que é "real", "verdadeiro","genuíno", ou "autêntico"; entre o "correto" de "um comportamento correto" e o "correto" de "um entendimento correto". (GEERTZ, 1997, p.280)

Geertz compara as sociedades orientais com a cultura ocidental no tocante, em especial a separação da esfera dos fatos da esfera do julgamento. Em suas palavras:

“(...) de que maneira as representações construcionais do "se/então" são traduzidas em representações diretivas do "como/portanto" e vice-versa. Ou seja, dadas nossas crenças, como devemos agir; ou, dados nossos atos, em que devemos acreditar.” (GEERTZ, 1997, p.270)

O contexto da prova, do “se/então” relaciona-se a forma com que as comunidades descrevem a existência, ou seja, dizendo o que é real e o que é irreal. Já o contexto do Julgamento, do “como/portanto”, relaciona-se a forma com que as comunidades expõe sua experiência, ou seja, dizendo o que é certo e o que é errado. Para Geertz a descrição da realidade e do julgamento acontece em momentos separados nas sociedades ocidentais. O que poderia, por exemplo, ser visualizado na própria concepção de normas jurídicas como imperativos hipotéticos (base da teoria da norma de Kelsen).[xxxii] Tal forma de representar o mundo não é igual a que existe nas sociedade orientais.

No mundo árabe os fatos se sobrepõem ao julgamento. A palavra “haqq”, traduzida como “verdade-realidade”, apresenta elementos que demonstram como na sensibilidade jurídica árabe os fatos se sobrepõem a esfera do julgamento. Tal característica pode ser percebida no ultravalorização da testemunha e de seu relato, contra outras esferas de comprovação da realidade. O que é verdadeiro para um bom islâmico não pode ser contestado. A possibilidade de falso testemunho é relativizada, pois a mentira deve apenas explicações a Deus. Uma prova factual poderia ser mitigada diante de um testemunho de um fiel. Para tanto existe uma rígida hierarquia de funções testemunhais, Enfim, a esfera dos fatos se sobrepõe a esfera do julgamento no momento que a descrição do fato inclui o que é certo e errado. O fato será descrito de uma forma “correta”.

No mundo Hindu a palavra “dharma”, traduzida como “obrigação-feição”, apresenta elementos que demonstram como na sensibilidade jurídica hindu o julgamento se sobrepõe a esfera dos fatos. Numa sociedade de castas a posição social e a própria idéia de destino servem de parâmetro de julgamento. Para apresentar tal característica Geertz explica que no mundo hindu a própria feição (boa ou má) transparece na vida das pessoas, como se todos os elementos da realidade fossem apenas uma conseqüência da própria essência do ser. Para tanto faz uso de duas parábolas tradicionais em que mesmo tentando mentir, o caráter e qualidade dos personagens acaba se sobressaindo e os fatos são mera conseqüência da moralidade interna.

Já no mundo Malaio (Bali) a palavra “adat”, traduzida como “decoro-etiqueta”, apresenta a concepção de justiça malaia a partir da idéia de que as duas esferas, dos fatos e do julgamento, acontecem simultaneamente e estão interligadas pelos costumes sociais. Para explicá-la Geertz conta a história de um morador de Bali denominado Regreg que ao infringir uma regra costumeira (deixando de assumir um cargo no conselho da tribo) acaba sendo banido da sociedade, tornando-se uma espécie de fantasma numa espécie de ostracismo tribal. E mesmo o rei de Bali comparecendo pessoalmente para requerer a reconsideração do conselho de tribo que o havia expulsado não gerou resultados. Os acontecimentos e o seu julgamento eram irretratáveis. Para ilustrar tais exemplos elaborou-se o seguinte gráfico:

TABELA 1 - ESQUEMA SOBRE AS SENSIBILIDADES JURÍDICAS APRESENTADAS POR GEERTZ (1997)

MUNDO OCIDENTAL

Direito

Certo - Correto

ARABE

MARROCOS

Haqq

Verdade – Realidade

HINDU

INDIA

Dharma

Feição - Obrigação

MALAIO

BALI

Adat

Decoro – Etiqueta

Fonte: Autor com base em GEERTZ (2007)

Vale ressaltar ainda que Geertz prefere a expressão “sensibilidade jurídica” para descrever tais culturas, explicando tal conceito da seguinte forma:

Aquele sentido de justiça que mencionei acima - a que chamarei, ao deixar paisagens mais conhecidas na direção de lugares mais exóticos, de sensibilidade jurídica - é, portanto, o primeiro fator que merece a atenção daqueles cujo objetivo é falar de uma forma comparativa sobre as bases culturais do direito. Pois essas sensibilidades variam, e não só em graus de definição; também no poder que exercem sobre os processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir (...) (GEERTZ, 1997, p. 261)

Portanto, sensibilidade não tem o objetivo de ser um conceito totalizador ou voltado as práticas em si, mas de um grande referencial de justiça realizada. Essas sensibilidades têm por objetivo expor uma forma de mentalidade geral, modelo cultural trazendo certas noções gerais sobre como o processo de representação se dá em diferentes culturas. Tal perspectiva foi em alguns momentos criticada, mesmo que injustamente.[xxxiii] Porém Geertz em momento algum pretende criar uma caracterização  total, nem mesmo completa, explica apenas um processo mental comum. Dentro desse processo comum existem espaços para diferenças.

Temos também que nos contentar com uma simplificação radical tanto da dimensão histórica como da dimensão regional desses temas. "Islã", "Mundo Índico" e, sensu lato, "Malásia" não são - como dediquei uma grande parte do meu trabalho buscando demonstrar - entidades unitárias e homogêneas, constantes no tempo, no espaço e em população. Reificá-los como tais, aliás, sempre foi o artifício principal através do qual o "Ocidente", acrescentando uma outra nulidade à coleção, conseguiu evitar compreendê-los ou até mesmo vê-los com alguma clareza. (GEERTZ, 1997, p.278)

Por isso faz referência a não pretensão de homogenizar as culturas, ou seja, nem todo árabe, hindu ou malaio pensa da mesma forma. Mas pensá-los como grupo cria uma difícil tarefa de criar uma generalização aceitável. Além disso, vale ressaltar que essa tentativa de delimitação não pretende observar a realidade dos povos orientais como peças isoladas, as culturas cresceram interrelacionando-se. Uma visão limitada de sociedade pautada na separação e isolamento cultural não está presente na concepção atual de cultura jurídica.

(…) a etnografia sempre soube que as culturas nunca foram assim definidas, auto-suficientes e auto-sustentáveis, como os pós-modernistas afirmam sobre o que os modernistas afirmam. Nenhuma cultura é sui generis, nenhum só povo é único ou mesmo o autor de sua própria existência. A suposição de que a autenticidade significa automodelacão e que perde a dependência dos outros, parece apenas um legado da auto-consciência burguesa. Na verdade, esta determinação auto-centrada de autenticidade é o contrário da condição social humana. A maior parte dos povos encontra os meios críticos de sua própria reprodução em seres humanos e poderes presentes além de seus limites normais e controles habituais. (SAHLINS, 2001, p.312-3, trad. livre)

Por isso, ao avaliar o Direito dentro de uma sociedade diversa, é necessário ressaltar que uma concepção de Direito do passado pode ser diferente da atual, e a busca dessas diferenças é o grande desafio dos pesquisadores que não querem naturalizar o passado.

(...) dedicar-se a construir uma teoria geral do direito é uma aventura tão inverossímil como a de dedicar-se à construção de uma máquina de movimento perpétuo. (GEERTZ, 1997, p.327).

Por mais que tal máquina possa ser teorizada, ela se afasta tanto da realidade que perde sua utilidade. Hoje “(...) o estudo comparativo do direito não pode ser uma questão de transformar diferenças concretas em semelhanças abstratas”. (GEERTZ, 1997, p.325).


5 Considerações finais: Cultura jurídica uma síntese

Para finalizar, sistematizando o conceito de “cultura jurídica”, a fim de facilitar sua utilização em pesquisas empíricas, podem-se apresentar algumas pontuações importantes:

1) Cultura provém da capacidade humana de se expressar mediante símbolos e pertence ao que se denomina “mundo simbólico”.

2) Cultura pode ser entendida como processo de representação global que compartilha sentidos e valores. Porém esse não é um processo homogêneo, existindo dentro de si disputas de poder e conflitos.

3) Cultura pertence a todos os membros da sociedade, ou seja, é pública. Além disso, circula entre os mais diversos estratos sociais, porém a circulação e sua intensidade pode ser variável.

4) O Direito é um fenômeno que pertence à cultura, está ligado portanto intrinsecamente a um processo de representação maior.

5) Cultura jurídica representa parte da cultura que não está separada de sua totalidade existencial, porém pode ser analisada academicamente a partir da busca de fenômenos morais organizados.

Além disso, tem-se sempre em mente a diversidade do discurso e da cultura. “Uma forma garantida de chegar a um fim trágico seria imaginar que a diversidade não existe, ou esperar, simplesmente, que ela desaparecesse”. (GEERTZ, 1997, p.331). Por isso, é importante valorizar as diferença da cultura tendo sempre como referência o pluralismo cultural proveniente da antropologia. Isto porque os “(...) antropólogos conhecem (...) o perigo de projetar as nossas categorias sobre culturas remotas” (GINZBURG, 1989, p.99) e talvez por isso deveriam ser ouvidos com mais freqüência pelos juristas que insistem na idéia de “Teoria Geral do Direito” ou desprezam a importância de um debate dos direitos humanos baseado na pluralidade..


Referências

BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Tradução: Alberto Candeias. Lisboa: livros do Brasil, 2000.

BOHANNAN, Paul. Etnografia e comparação em antropologia do Direito. In: DAVIS, Shelton H. Antropologia do Direito: estudo comparativo de categorias de dívida e contrato. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução Álvaro Cabral. 2.ed. Campinas (SP): Editora da UNlCAMP, 1994.

Cassirer, Ernst. Antropología filosófica: Introducción a una filosofía de la cultura.  Ciudad del México (México): Fondo de Cultura Económica, 1984.

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002.

DAVIS, Shelton H. Antropologia do Direito: estudo comparativo de categorias de dívida e contrato. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução Pedro Süssekind, Prefácio Roger Chartier. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

EVANS-PRITCHARD, E. E., Os Nuer : uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. Tradução Ana M. Goldberger Coelho. São Paulo : Perspectiva, 2005.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. (1927) Em: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

FREUD, Zygmunt. O mal-estar na cultura. Tradução Renato Zwick e revisão técnica e prefácio de Márcio Seligmann-Silva. Porto Alegre: L&PM, 2010.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989.

GEERTZ, Clifford. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In: _________. O saber local. Novos ensaios em antropologia interpretativa. (Tradução de Vera Mello Joscelyne). 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

GLUCKMAN, Max. Obrigação e dívida. In: DAVIS, Shelton H. Antropologia do Direito: estudo comparativo de categorias de dívida e contrato. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Tradução Marie-Agnes Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2003.

LARAIA, R. Cultura: um conceito antropológico. 13. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2000

LATOUR, Bruno. La Fabrique du Droit. Une Ethnographie du Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2004.

LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção primeiros passos, nº62)

Madrid (Espanha): Marcial Pons, 1996.

MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. Brasília/ São Paulo: Ed. UnB/ Imprensa Oficial do Estado, 2003. 

MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Com uma Introdução à obra de Marcel Mauss de ClaudeLévi-Strauss. Tradução de Lamberto Puccinelli. São Paulo: EPU, 1974.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Com uma introdução à obra de Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss. Tradução de Lamberto Puccinelli. São Paulo, EPU, 1974.

MINTZ, Sidney W. Cultura: uma visão antropológica. Tradução de James Emanuel de Albuquerque. Tempo , vol.14, n.28, pp.223-237, 2010.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das Leis. Tradução: Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

ORTNER, Sherry B. Subjetividade e crítica cultural. Horizontes antropologicos, Porto Alegre, ano 13, n.28, p. 375-405, jul./dez. 2007.

ROSSI, Pietro. Cultura e antropologia. Torino: Einaudi, 1983.

SAHLINS, Marshall. Dos o tres cosas que sé acerca del concepto de cultura. In: Revista Colombiana de Antropologia. Vol 37, pp. 290-327, enero-diciembre, 2001.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). Trad. João R. Martins Filho. São Paulo (SP): Cia das Letras, 1988.

TITIEV, Mischa. Introdução a Antropologia Cultural. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000.

VENÂNCIO Filho, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo : 150 anos de ensino jurídico no Brasil. São Paulo : Perspectiva, 2004.

Notas de Fim


NOTAS

[i] Nesse sentido, a dificuldade de apresentar um conceito de cultura foi demonstrado por Geertz relembrando o esforço de antropólogo contemporâneo. “Em cerca de vinte e sete páginas do seu capítulo sobre o conceito, Kluckhohn conseguiu definir a cultura como: (1) ‘o modo de vida global de um povo’; (2) ‘o legado social que o indivíduo adquire do seu grupo’; (3) ‘uma forma de pensar, sentir e acreditar’; (4) ‘uma abstração do comportamento’; (5) ‘uma teoria. elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente’; (6) ‘um celeiro de aprendizagem em comum’; (7) ‘um conjunto de orientações padronizadas para os problemas recorrentes’; (8) ‘comportamento aprendido’; (9) ‘um mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento’; (10) ‘um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos outros homens’; (11) ‘um precipitado da história’, e voltando-se, talvez em desespero, para as comparações, como um mapa, como uma peneira e como uma matriz.” (GEERTZ, 1989, p.14)

[ii] Marconi e Presotto afirmam que existem mais de 160 conceitos de cultura diferentes referendados por diversas correntes antropológicas academicamente relevantes (MARCONI; PRESOTTO, 2007, p.21-2).

[iii] Em relação ao evolucionismo na antropologia recomenda-se o livro CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Textos Selecionados. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

[iv] Um exemplo clássico é de Miguel Reale, Vide: FERNANDES, Pádua. A cultura jurídica brasileira e a chibata: Miguel Reale e a história como fonte do direito. In: Prisma Jurídico. Publicação Científica de Ciências Jurídicas. V5. São Paulo: UNINOVE, 2006. p. 237-255. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/934/93400515.pdf Acesso em 04.nov.2012.

[v] Como interessante exemplo de tais justificativas no Brasil Vide: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

[vi] Em outro momento vai um pouco além. Afirmando que (...) reconhecemos como culturais todas as atividades e todos os valores que servem ao homem na medida em que colocam a Terra a seu serviço, protegem-no contra a violência das forças da natureza etc. Acerca desse aspecto da cultura há pouquíssimas dúvidas. Para retroceder o suficiente, acrescentemos que os primeiros feitos culturais foram o uso de ferramentas, a domesticação do fogo e a construção de moradias. (...) (FREUD, 2010, p.87-8).

[vii] “Em 1917, Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e o biológico, postulando a supremacia do primeiro em detrimento do segundo em seu artigo, hoje clássico, "O Superorgânico" (in American Anthropologist, vol.XIX, n° 2, 1917). Completava-se, então, um processo iniciado por Lineu, que consistiu inicialmente em derrubar o homem de seu pedestal sobrenatural e colocá-lo dentro da ordem da natureza.” (LARAIA, 2000, p.28)

[viii] “A busca desse esquivo atributo foi um dos mais sérios desafios enfrentados pelos filósofos ocidentais, a maior parte dos quais tendeu a se fixar em um traço e a enfatizá-lo de maneira desproporcional, por vezes até o absurdo. Assim, o homem foi descrito como animal político (Aristóteles), animal de ri (Thomas Willis); animal que fabrica seus utensílios (Benjamin Franklin); animal religioso (Edmund Burke); e um animal que cozinha (James Boswell, antecipando Lévi-Strauss). Como observa o Sr. Cranium do romancista Peacock, o homem já foi definindo como bípede implume, como animal que forma opiniões e, ainda, animal que carrega um bastão. O que todas essas definições têm em comum é que assumem uma polaridade entre as categorias “homem” e “animal” e que invariavelmente encaram o animal como inferior”. Na prática, obviamente, o objetivo de tais definições nunca esteve tanto em distinguir os homens dos animais quanto em propor algum ideal de comportamento humano, como quando Martinho Lutero e o papa Leão XII afirmaram, um e 1530 e outro em 1891, que a propriedade privada constituía a diferença essencial entre os homens e os animais” (KEITH, 1988,. p.37-8)

[ix] “(...) a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas”. (LARAIA, 2000, p.67). Mas não deixam de usar lentes para ver o mundo. Exatamente na possibilidade de diálogo entre culturas reside a possibilidade de reconstituir, ainda que de forma míope, o passado como cultura diversa.

[x] “Muitos filósofos preveniram o homem contra esse pretenso progresso. ‘L’ homme qui médite’, diz Rousseau, ‘est um animal dépravé’; exceder os limites da vida orgânica não é um melhoramento, mas uma deterioração da natureza humana.”. (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre)

[xi] Relembrando a teoria da ação de Weber

[xii] “As sociedades humanas são os únicos grupos de todo o reino animal que delinearam formas de cultura que, por sua vez, exercem poderosas influências modificadoras nos mecanismos hereditários dos seus membros individuais. Algumas vezes os elementos culturais e biológicos coincidem ou reforçam-se uns aos outros ao procurarem os mesmos objectivos; outras vezes não têm nenhum efeito uns sobre os outros; e por vezes chegam a chocar-se ou a opor-se entre si”. (TITIEV, 2000, p.14)

[xiii] “Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Todo progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede, e a fortalece” (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre).

[xiv] Diversas espécies de animais detêm linguagem complexa, como os primatas superiores, as baleias, canídeos, felinos e até mesmo insetos como as abelhas. A complexidade dessas linguagens ainda não é plenamente compreendida pelo ser humano. 

[xv] Roque Laraia relembra um interessante relato sobre o assunto: “Kroeber, em seu artigo ‘O superorgânico’, refere-se a duas experiências que teriam sido praticadas no passado. Embora o autor duvide da veracidade das mesmas, ele as utiliza como exemplo de reflexão sobre a natureza humana: Heródoto conta-nos que um rei egípcio, desejando verificar qual a língua-mater da humanidade, ordenou que algumas crianças fossem isoladas da sua espécie, tendo somente cabras como companheiros e para o seu sustento. Quando as crianças já crescidas foram de novo visitadas, gritaram a palavra bekos, ou, mais provavelmente bek, suprimindo o final, que o grego padronizador e sensível não podia tolerar que se omitisse. O rei mandou então emissários a todos os países a fim de saber em que terra tinha esse vocábulo alguma significação. Ele verificou que no idioma frígio isso significava pão, e, supondo que as crianças estivessem reclamando alimentos, concluiu que usavam o frígio para falar a sua linguagem humana "natural", e que essa língua devia ser, portanto, a língua original da humanidade. A crença do rei numa língua humana inerente e congênita, que só os cegos acidentes temporais tinham decomposto numa multidão de idiomas, pode parecer simples; mas, ingênua como é, a inquirição revelaria que multidões de gente civilizada ainda a ela aderem. Contudo, não é essa a nossa moral da história. Ela está no fato de que a única palavra, bek, atribuída às crianças, constituía apenas, se a história tem qualquer autenticidade, um reflexo ou imitação - como conjeturam há muito os comentadores de Heródoto - do grito das cabras, que foram as únicas companheiras e instrutoras das crianças. Em suma, se for permitido deduzir qualquer inferência de tão apócrifa anedota, o que ela prova é que não há nenhuma língua humana natural e, portanto, nenhuma língua humana orgânica. Milhares de anos depois, outro soberano, o imperador mongol Akbar, repetiu a experiência com o propósito de averiguar qual a religião natural da humanidade. O seu bando de crianças foi encerrado numa casa. Quando decorrido o tempo necessário, ao se abrirem as portas na presença do imperador expectante e esclarecido, foi grande o seu desapontamento: as crianças saíram tão silenciosas como se fossem surdas-mudas. Contudo, a fé custa a morrer; e podemos suspeitar que será preciso uma terceira experiência, em condições modernas escolhidas e controladas, para satisfazer alguns cientistas naturais e convencê-los de que a linguagem, para o indivíduo humano como para a raça humana, é uma coisa inteiramente adquirida e não hereditária, completamente externa e não interna - um produto social e não um crescimento orgânico.” (LARAIA, 1990, p.102-4)

[xvi] “O estudo de culturas diferentes tem ainda outro alcance muito importante sobre o pensamento e o comportamento de hoje em dia. A vida moderna pôs muitas civilizações em contacto íntimo, e no momento presente a reacção dominante a esta situação é o nacionalismo e o snobismo racial. Nunca, mais do que hoje, a civilização teve necessidade de indivíduos bem conscientes do sentido de cultura, capazes de verem objectivamente o comportamento socialmente condicionado de outros povos sem temor e sem recriminação”. (BENEDICT, 2000, p.23)

[xvii] “O purista racial é a vítima de um mito”. (BENEDICT, 2000, p.27)

[xviii] “As pesquisas recentes da antropologia indicam como incorreta a perspectiva em vigor de que as disposições mentais do homem são geneticamente anteriores à cultura e que suas capacidades reais representam a amplificação ou extensão dessas disposições preexistentes através de meios culturais.” (GEERTZ, 1989, p.60)

[xix] “O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade”. (LARAIA, 2000. p. 45)

[xx] “As produções simbólicas são simultaneamente produções sociais que sempre decorrem de práticas sociais. Não devem ser estudadas em si, mas enquanto representações do social. (...) Quando se diz nessa perspectiva que a religião (da mesma forma que a arte ou a magia) é uma "representação", sublinha-se que não se deve atribuir-lhe nenhuma existência autônoma pois está vinculada a uma outra coisa, capaz de explicá-la: as relações de produção, de parentesco, as relações entre faixas de idade, entre grupos sexuais, todos estes níveis de realidade, mas que são sempre relações de poder (...)”. (LAPLANTINE, 2003, p.91-2)

[xxi] No original: “(...) i modelli di comportamento che costituiscono la cultura di un gruppo sociale sono - per usare l’espressione di Cassirer - forme simboliche, vale a diré «sistemi di simboli» ognuno dei quali si organizza come un mondo a sé, relativamente autonomo; il complesso di questi sistemi rappresenta un ambiente distinto, almeno inlinea di principio, dall'ambiente naturale in cui il gruppo si trova a dover vivere. Anche queste forme simboliche comportano tutte una organizzazione técnica - e il loro reciproco differenziarsi é legato infatti alla diversitá delle tecniche elabórate (le tecniche della vita morale e religiosa, della produzione letteraria e artistica, della teoria scientifica, della ricerca filosófica); solo che tali tecniche non sono piú tecniche di adattamento dell’ambiente, ma sono invece tecniche per i la creazione di un ambiente diverso da quello naturale”

[xxii] “(...) o que queremos dizer, precisamente, quando afirmamos que as tensões sócio-psicológicas são "expressas" em formas simbólicas? — leva-nos, diretamente, a águas muito profundas, na verdade a uma teoria um tanto não tradicional e aparentemente paradoxal da natureza do pensamento humano como atividade pública e não particular, pelo menos não fundamentalmente. (GEERTZ, 1989, p.121)

[xxiii] “O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”. (GEERTZ, 1989, p.4)

[xxiv] “A interpretação não é uma interlocução. Ela não depende de estar na presença de alguém que fala. (...) Em última análise, o etnógrafo sempre vai embora, levando com ele textos para posterior interpretação (e entre estes "textos" que são levados podemos incluir as memórias - eventos padronizados, simplificados, retirados do contexto imediato para serem interpretados numa reconstrução e num retrato posteriores)”. (CLIFFORD, 1998, p.40)

[xxv] Esclarecendo, “Este uso é consagrado, no fim do século, pelo Dicionário da Academia (edição de 1798) que estigmatiza "um espírito natural e sem cultura", sublinhando com esta expressão a oposição conceitual entre "natureza" e "cultura". Esta oposição é fundamental para os pensadores do Iluminismo que concebem a cultura como um caráter distintivo da espécie humana. A cultura, para eles, é a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo de sua história.” (CUCHE, 2002, p.20-1)

[xxvi] “‘Cultura’ se inscreve então plenamente na ideologia do Iluminismo: a palavra é associada às idéias de progresso, de evolução, de educação, de razão que estão no centro do pensamento da época. (...) A idéia de cultura participa do otimismo do momento, baseado na confiança no futuro perfeito do ser humano. O progresso nasce da instrução, isto é, da cultura, cada vez mais abrangente.” (CUCHE, 2002, p.21).

[xxvii] No original: “La réduction juridique vise à rapidement stabiliser le monde des faits indiscutables (ce qui signifie simplement qu'aucun mémoire en défense ne les contestera plus) pour rattacher le fait  à une règle de droit (en pratique un texte) de façon à produire un jugement (en réalité un arrêt, un texte). La réduction savante obtient la même stupéfiante économie puisqu'elle remplace le monde, sa complexité, sa richesse, ses innombrables dimensions, par du papier et des textes.”

[xxviii] A filosofia do Iluminismo vinculou-se primeiro, sem reservas, a esse "apriorismo" do direito, à idéia de que devem existir normas jurídicas absoluta e universalmente obrigatórias e imutáveis. A investigação empírica e a doutrina empirista não ruem nenhuma exceção nesse ponto. (CASSIRER,1994 , 327)

[xxix] Vide: MAINE, Henry. Ancient Law. Londres: Murray, 1961. MORGAN, Lewis H. La Societé Archaique. Paris, ed. Anthropus, 1971.

[xxx] Ressalte-se outra pesquisa clássica que trouxe problemas parecidos para o Direito: “The Cheyenne Way: Conflict and Case Law in Primitive Jurisprudence” de Karl N. Llewellyn.

[xxxi] “Se procurarmos a palavra que mais freqüentemente é associada a Direito, veremos aparecer a lei, começando pelo inglês, em que law designa as duas coisas. Mas já deviam servir-nos de advertência, contra esta confusão, as outras línguas, em que Direito e lei são indicados por termos distintos: ius e lex (latim), Derecho e ley (espanhol), Diritto e legge (italiano), Droit e loí (francês), Recht e gesetz (alemão), Pravo e zakon (russo), Jog e tõrveny (húngaro) e assim por diante”. (LYRA FILHO, 1982, p.7)

[xxxii] Vide: BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 181 e Ss.

[xxxiii] “Se o conceito de Geertz de cultura tem duas linhas, é bem claro que a linha problemática é a primeira, americana, de sentido, ou seja, a idéia de que grupos particulares “possuem” culturas particulares, cada um com a sua, e que esta cultura é “compartilhada” por todos os membros do grupo. As críticas a esse sentido de cultura tomam várias formas. Por um lado, o conceito de cultura é muito indiferenciado, muito homogêneo: dadas várias formas de diferença social e desigualdade social, como podem todos em determinada sociedade compartilhar a mesma visão de mundo, e a mesma orientação em relação a tal visão? Por outro lado, e esta era a crítica mais fatal, a homogeneidade e a falta de diferenciação no conceito de cultura, coloca-o muito próximo do “essencialismo”, a idéia de que “os Nuer” ou “os balineses” possuíam alguma essência única que os tornava do jeito que eram, a qual, além disso, explicava muito do que faziam e como faziam”. (ORTNER, 2007, p.382)


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Repensando a cultura jurídica: um diálogo entre a antropologia e o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4514, 10 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44250. Acesso em: 26 abr. 2024.