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Repensando a cultura jurídica:

um diálogo entre a antropologia e o direito

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10/11/2015 às 14:02
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A conceituação de Cultura Jurídica parte da noção de mundo simbólico e de algumas etnografias clássicas, para construir a abertura ao outro, à diversidade e aos direitos humanos.

1 Cultura Jurídica como chave interpretativa?

O conceito de cultura nas ciências humanas ressurgiu, entre as décadas de 1970 e 1980, como medida para interpretação e análise da diversidade humana. Anteriormente havia caído em relativo ostracismo devido ás tendências evolucionistas que efervesceram durante o final do século XIX e primeira metade do século XX. Após a Segunda Guerra tais teorias foram, em parte, soterradas, ao menos como centrais, no debate sobre o homem.

Em seu retorno, o conceito cultura atingiu em especial a Antropologia e a História, que vivenciaram em seus meios intelectuais um verdadeiro boom de problemas e hipóteses. Geertz (1989) apontava que certas idéias serviam para solucionar um enorme rol de problemas centrais de uma ciência que pareciam servir para solucionar quase todos. Susane Langer teria apontado que quase todas as mentes criativas do momento teriam pensado a idéia de “cultura” como uma chave explicativa para compreender o homem. A antropologia, portanto, teria sido posta como missão central:

 (...) limitar, especificar, enfocar e conter [o conceito de cultura]. É justamente a essa redução do conceito de cultura a uma dimensão justa, que realmente assegure a sua importância continuada em vez de debilitá-lo. (GEERTZ, 1989, p.14).

Ao mesmo tempo que se tornava um recurso significativo para pensar o ser humano, o conceito de cultura sofreu com a impossibilidade de delimitação. Por mais que na prática os antropólogos soubessem seu sentido, não conseguiam chegar a um acordo sobre sua delimitação, “(...) como [afirmava] Murdock (1932): ‘Os antropólogos sabem de fato o que é cultura, mas divergem na maneira de exteriorizar este conhecimento’.”(LARAIA, 2000, p.63).

Parecia existir tantos conceitos de cultura quanto existem antropólogos no mundo.[i] E quando uma palavra pode significar “quase” tudo, em certo aspecto explica “quase” nada. “Quase” um contra-senso lógico e intelectual (talvez uma contradição performativa, como diria Habermas).


2 Cultura: uma chave e muitas portas

Para compreender o sentido de cultura vale inicialmente distinguir-lhe, ainda que superficialmente, de sociedade. Esses dois conceitos apesar de serem complementares não são coincidentes. Segundo Giddens (2005, p.38) cultura e sociedade podem ser conceitualmente separadas, mesmo existindo muitas conexões. Enquanto a sociedade está relacionada a um sistema de “inter-relações” que conecta indivíduos, a cultura seria a forma como essas inter-relações se realizam, de uma forma tipicamente humana. A tal ponto que cultura seria a liga entre os indivíduos. “Sem cultura, não seríamos sequer ‘humanos’ ” (...) ou seja, “Não teríamos línguas em que nos expressar, nenhuma noção de auto-consciência e nossa habilidade de pensar ou raciocinar seria severamente limitada”. (GIDDENS, 2005, p.38)

Nesse sentido, é preciso levar em conta alguns pontos significativos que diferem a cultura de sociedade, isso porque cultura deve ser compreendida: 1) dentro de um contexto histórico; 2) não a partir de uma congruência ou coerência com a sociedade em seu sentido amplo, o que algumas vezes pode não acontecer ao primeiro olhar; 3) dentro de um contexto de diversidade de ações, na qual atores num sistema singular podem empregar formas culturais variáveis, mas aceitáveis numa manobra social ampla. (MINTZ, 2010, p.234). Para entender como essa variação cultural ocorre dentro das sociedades, é preciso detalhar o desenvolvimento do conceito de cultura.

E conceito de cultura variou muito junto com o desenvolvimento das ciências sociais. Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo, Configuracionismo, Estruturalismo, dentre outras correntes, demarcaram a história do conceito de cultura.[ii] Nessa ampla diversidade, os conceitos de cultura estiveram por vezes predeterminados por interesses distorcidos. Não é difícil constatar que o conceito de cultura já foi considerado dogma do evolucionismo,[iii] já serviu para justificar o autoritarismo durante o regime militar brasileiro,[iv] também foi argamassa em teorias rácicas.[v] Todas essas formas, mesmo com marcantes diferenças, tiveram algo em comum. Todas vislumbravam a cultura como destino e o homem como seu elemento passivo e sujeitado.

Tais concepções não traziam novos problemas às ciências sociais, antes as prendiam num mar de determinismos. Suas concepções epistemológicas fundamentavam-se num objetivismo raso, justificado a imagem das ciências naturais no século XIX. Porém, a “Vida é uma entidade suprema que não pode ser descrita pela física ou química” (CASSIRER, 1984, p.21, trad. livre). Muito menos por conceitos como raça ou evolução. Depois de muito embate de cunho político e as vezes bélico, tais olhares naufragaram.

Freud, mesmo não sendo um especialista em antropologia, e talvez até mesmo por esse motivo, conseguiu visualizar o cerne do conceito de cultura.

A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível. (FREUD, 1927,  p.15-6)[vi]

O conceito de Cultura, portanto, tem dois importantes aspectos a serem levados em consideração. Por um lado articula as inter-relações humanas para o conhecimento do controle da natureza e por outro lado para ajustar as relações entre os homens.[vii] Esses dois campos não são distintos ou podem ser pensados isoladamente, em especial porque o que lhes é comum é a idéia de conhecimento. E exatamente sobre essa idéia de conhecimento foi construído o conceito de cultura. Passando-se de um conceito de visualizava o conteúdo do conhecimento para outro que visualizava o processo de conhecer. Antes, porém, de aprofundar tal idéia vale ressaltar outros aspectos.

Hoje, ainda se discute se “cultura” é um elemento essencialmente e exclusivamente humano[viii]. Trata-se de um olhar “vislumbrante” do homem em relação e do mundo natural (que nem mesmo Freud parece se desligar) colocando o homem numa posição evolutiva superior as demais espécies. Ressalte-se que, em seu desenvolvimento biológico, o homem desenvolveu um mundo próprio, compartilhável com outros homens. Entretanto isso não significa que seja a única espécie a ter experiências vividas únicas.

A realidade não é uma coisa singular e homogênea; é imensamente diversificada, e tem tantos esquemas e padrões diferentes quanto há organismos diferentes. Cada organismo é por assim dizer um ser monádico. Tem um mundo só seu porque tem uma experiência só sua. Os fenômenos que encontramos na vida de uma determinada espécie biológica não são transferíveis para nenhuma outra espécie. (CASSIRER, 1984, p.25, trad. livre)

Deixando de lado pesquisas que tente desenvolver novas formas de comunicação entre seres de espécie diferentes, vale ressaltar que os homens, mesmo quando de culturas completamente distintas, podem criar estratégias de contato comunicacional.[ix] Isso ocorre porque o mecanismo elementar da cultura funciona de forma similar em todos os homens. Esse mecanismo elementar, a chave que está no cerne de toda a cultura, é o elemento simbólico.

(...) no mundo humano encontramos uma característica nova que parece ser a marca distintiva da vida humana. O circulo funcional do homem não é só quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador que são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como o sistema simbólico. (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre)

O sistema simbólico se caracteriza como recurso evolutivo do homem para mediar suas relações com o ambiente, com outras espécies animais e com outros seres humanos. Assim, o homem amplia sua experiência com a realidade, vivendo numa dimensão diferente de outras espécies. Enquanto outras espécies têm como principal forma de reação a estímulos externos a ação fundamentada no instinto (reação orgânica), o homem desenvolveu uma resposta diferida, baseada na ação do pensamento (CASSIRER, 1984, p.26, trad. livre).[x]

Isso não significa que o homem não possa agir pelo instinto, o que faz normalmente como qualquer espécie, porém que tende a agir de forma diferida num maior número de situações, inclusive de forma mais intensa e generalizada. A questão da resposta diferida se funda na idéia de reflexão antes da ação. Nem todas as ações realizadas pelos homens são ações diferidas, afinal o homem também compartilha de certo instinto natural, porém as ações consideradas estritamente humanas, que contém sentido subjetivo[xi], são diferidas. Essas ações com caráter diferido, ou talvez melhor referidas como refletidas, são o substrato de toda análise cultural. Assim o homem conseguiu criar um novo processo de interação entre seu mundo biológico e seu mundo próprio, simbólico.[xii]

Essa realidade parece ser insuperável para qualquer estudioso das ciências humanas, pensar o homem fora de sua vida cultural seria perder importante elemento constitutivo do “humano”.[xiii] Sobre a teia de significados que rodeia o homem, forma-se sua própria consistência como ser. Portanto, a idéia de cultura está inserida diretamente na construção pelos homens de representações simbólicas compartilhadas para compreensão diferida da realidade. Assim, não é propriamente a existência de linguagem que formula certa singularidade à espécie humana.[xiv] A característica da linguagem humana que a demarca é a representação simbólica. Para perceber a diferença entre a linguagem humana e a de animais, segundo Ernest Cassirer, pode-se avaliar a diferenças entre linguagem emotiva e proposicional. Ou seja, os animais não conseguem passar da linguagem emotiva para a proposicional:

A diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem emotiva representa o verdadeiro limite entre o homem e o animal. Todas as teorias e observações sobre a linguagem animal em que não se reconheça essa diferença fundamental são sem sentido. Ao longo da extensa literatura sobre o assunto parece existir provas conclusivas de que nenhum animal jamais deu o passo decisivo na linguagem do subjetivo ao objetivo, da linguagem emocional à linguagem proposicional. (CASSIRER, 1984, p. 30, trad. livre)

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A proposição de Cassirer supõe que todos os animais conseguem exprimir emoção e inteligência prática (animais), o que o homem acrescentou a essa habilidade é a razão e inteligência simbólica. Para compreender melhor tal perspectiva pode-se referir a diferença entre “Sinal” e “Símbolo”. Enquanto o sinal é relacionado a representações objetivas, simplificando a realidade e oferecendo uma linguagem designativa (denotativa), o simbólico supera o sensorial e apresenta uma capacidade de interpretação lingüística, uma linguagem figurativa (conotativa). Em outras palavras, enquanto diversos animais conseguem desenvolver emoções e inteligência prática a partir da linguagem (incluindo-se aí também o homem), os homens, além dessa habilidade, têm a capacidade de desenvolver linguagem abstrata, fundamentada na razão, e inteligência simbólica. Diferença entre o Sinal e o Símbolo é exposta por Cassirer:

Todos os fenômenos comumente descritos como reflexos condicionados não estão apenas distantes, mas em total oposição à natureza essencial do pensamento simbólico humano, os símbolos, no sentido próprio da palavra, não pode ser reduzido a meros sinais. Sinais e símbolos correspondem a dois universos diferentes do discurso: um sinal é uma parte do mundo físico do ser, um símbolo é uma parte do mundo humano do significado. Os sinais são "operadores", os símbolos são "designadores". Os sinais, mesmo quando compreendidos ou utilizados como tais, possuem, não obstante, uma espécie de ser físico ou substancial, símbolos têm apenas um valor funcional. (CASSIRER, 1984, p. 32, trad. livre)

Para melhor elucidar esse exemplo vale explicitar a capacidade humana de compartilhar o mundo a partir da linguagem figurativa. Cassirer relembra o famoso caso de Ellen Keller e dos esforços de sua professora Sullivan. Ellen Keller era uma aluna surda, muda e cega, que conseguiu aprender a se comunicar com o mundo exterior devido ao aprendizado mediado pelo mundo simbólico. Cassirer anota parte do diário da professora Sullivan, que apesar de extenso é significativo para demonstrar a importância do elemento simbólico na linguagem humana:

Eu tenho que escrever algumas linhas esta manhã porque algo de muito importante aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua educação. Aprendeu que tudo tem um nome e que o alfabeto manual é a chave para tudo o que quer saber ... Esta manhã, enquanto eu estava lavando, queria saber o nome da "água". Quando ela quer saber o nome de algo aponta em sua direção e acaricia minha mão. Eu escrevi "á-g-u-a" [com linguagem dos sinais] e não pensei mais no assunto até depois do almoço ... Depois fomos para a fonte e fiz Helen apanhar un jarro com água da torneira, enquanto eu estava na bomba. Ao sair derramei água fria da jarra na mão aberta de Helen e indiquei a palavra "á-g-u-a" [com a linguagem de sinais]. A palavra, que foi acoplada à sensação de água fria que caia em sua mão, pareceu colocá-la em movimento. Ela tomou a jarra e entrou em estado de êxtase. Seu rosto parecia brilhar. Ela soletrou "água" várias vezes. Ela se inclinou e pediu para que eu indicasse [na linguagem dos sinais] o seu nome e apontou para a fonte e rapidamente, pediu para o meu nome. Soletrei "professora". Ao voltar para a casa estava muito animada e aprendeu o nome de cada objeto que ela tocou, de modo que em poucas horas adicionou 30 novas palavras ao seu vocabulário. Na manhã seguinte, ela caminhou como uma fada radiante. Voando de um objeto a outro, perguntando o nome de tudo e me beijando de alegria... Tudo tem que ter um nome agora. Onde quer que você vá pergunta ansiosamente pelo nome das coisas que ela não aprendeu em casa. Ela está ansiosa para soletrar com seus amigos e mais ansiosa ainda ensina palavras para qualquer pessoa que encontra. (CASSIRER, 1984, p.33-4, trad. livre).

Esse exemplo demonstra que, mesmo sem compartilhar as mesmas informações sensoriais, o homem compartilha a realidade além da mera constatação feita imediatamente pelos sentidos, Ou seja, é pelo compartilhamento simbólico que Ellen Keller pode participar do mundo humano, através da cultura. Em sentido oposto, Cassirer cita exemplos da existência de diversos casos de crianças perdidas, os chamados meninos lobos, os quais não aprenderam a compartilhar linguagem simbólica, ficando alheios a outros seres humanos quando reencontrados. Nesse sentido, parece impossível averiguar elementos considerados culturais de forma inata ao homem.[xv]

Ellen Keller aprendeu a utilizar as palavras, não meramente como signos ou sinais mecânicos, senão como um instrumento inteiramente novo de pensamento. A linguagem é a simbologia utilizada pelo homem para referir-se ao mundo. Enquanto os outros animais, por vezes remetem-se ao mundo de forma descritiva por uma linguagem limitada, o homem abstrai da simbologia a reflexão sobre a própria simbologia. Assim, através de Cassirer, chega-se a uma conclusão interessante: Os homens não pensam pela representação física, mas pelos signos (linguagem) (CASSIRER, 1984). O pensamento humano, portanto, é instrumentalizado pela cultura.

Do que foi proposto pode-se concluir que não existe um conteúdo cultural fixo, pré-existente ou pré-determinado. Ou ainda, rememorando a crítica de Norbert Elias, que “[h]oje em dia, o termo "cultura" é empregado freqüentemente como se designasse um fenômeno livre e independente, pairando acima dos homens e não em conexão com o desenvolvimento social de associações humanas, dentro das quais é possível esclarecer e estudar de fato os fenômenos culturais — ou, para usar outras palavras, as tradições sociais.” (2001, p.194).  A própria cultura é aprendida. Por isso não é possível pensar numa perspectiva humana essencial, inata. Aliás, a busca da essência humana, durante a história ocidental, teve como objetivo a justificativa de certo tipo de dominação. Seja a dominação do homem sobre o animal, seja a dominação de um homem sobre outro homem. Observar outras culturas ocasiona exatamente a quebra do sentido absoluto da própria forma de enxergar a realidade.[xvi]

O atual contexto das ciências sociais rejeita a idéia de essência humana, ou de natureza humana ínsita.[xvii] Diversos estudos têm demonstrado que a própria biologia humana tem evoluído com o desenvolvimento da cultura. O neo-cortex humano precisa, necessariamente, de instruções culturais para tornar-se funcional.[xviii] Um homem que crescesse de forma isolada provavelmente não teria nenhum intelecto ou sentimento reconhecíveis.

(...) O fato aparente de que os estágios finais da evolução biológica do homem ocorreram após os estágios iniciais do crescimento da cultura implica que a natureza humana “básica”, “pura” ou “não-condicionada”, no sentido da constituição inata do homem, é tão funcionalmente incompleta a ponto de não poder ser trabalhada. As ferramentas, a caça, a organização familiar e, mais tarde, a arte, a religião e a “ciência” moldaram o homem somaticamente. Elas são, portanto, necessárias não apenas à sua sobrevivência, mas à sua própria realização existencial. (GEERTZ, 1989, p.60)

Isso significa que o ser humano se desenvolveu dentro de um ambiente socializado, necessitando de compartilhamento social para se tornar um sujeito existencial pleno.[xix] (LARAIA, 2000. p. 45). Assim, o desenvolvimento do arsenal simbólico humano foi substanciado nas relações sociais desenvolvidas durante a sua vida, na ação.[xx] Pela análise dos acontecimentos humanos e da História, podemos visualizar a cultura, como afirmou Sahlins: “(...) a cultura é historicamente reproduzida na ação (...) um evento é uma atualização única de um fenômeno geral, uma realização contingente do padrão cultural (...)”. (1990, p.7).

Esse embate real (pela ação) na sociedade pode ser visualizado, seguindo Keith Thomas, a partir dos efeitos reais de distinção entre seres humanos ocasionados pela noção de essência humana e de ideal de comportamento humano, gerando explicações sobre “os mais” e “os menos” humanos.

Robert Gray declarava que, em 1609 que “a maior parte” do globo era “possuída e injustamente usurpada por animais selvagens ou por selvagens brutais, que, em razão de sua ímpia ignorância e blasfema idolatria, são ainda piores que os animais” (...) relata sir Thomas Hebert, a respeito dos habitantes do Cabo da Boa Esperança; “duvido que a maioria deles tenha antepassados melhores que macacos” (...) No início dos tempos modernos essa atitude persistia. “Os membros da vasta ralé que parece portar os sinais do homem no rosto”, explicava sir Thomas Pope Blount, em 1693, “não passavam de seres rudes em seu entendimento (...) é por metáfora que os chamamos de homens pois na melhor da hipóteses nada mais são que os autômatos de Descartes, molduras e sombras de homens, que têm tão-somente a aparência para justificar seus direitos à racionalidade”. Para outros observadores, os pobres eram “a parcela mais vil e grosseira da humanidade” (...) (THOMAS, 1988, p. 50; 52).

Tais afirmações retratam algo que, antes de ser um ajustamento natural entre homens, é uma construção social significativa e que deve ser levada em conta ao se trazer o debate sobre cultura de um plano abstrato para um plano concreto. O preconceito com o diferente demarcou o que se considerava como culturalmente relevante. Fazer a filtragem do que é cultural dentro do conceito de cultura perpassa por uma análise histórica e crítica da realidade e suas diversas relações de poder.

Para uma primeira reorganização de um conceito de cultura, é possível retirar algumas considerações iniciais. Primeiramente o Direito, assim como outras áreas da vida humana é um fenômeno plenamente cultural. O padrão de comportamento estabelecido nas práticas conhecidas como “Direito” está intimamente ligado ao mundo simbólico humano.

(...) Os padrões de comportamento que constituem a cultura de um grupo social são - para usar a expressão de Cassirer - formas simbólicas, "sistemas de símbolos", ou seja cada um dos quais está organizado como um mundo em si mesmo, relativamente de forma independente, a totalidade desses sistemas representa um ambiente distinto, pelo menos em linha em princípio, a partir do ambiente natural em que o grupo tem para viver. Essas formas simbólicas envolvem uma técnica de organização - e sua diferenciação mútua é de fato ligado à diversidade de técnicas elaboradas (técnicas da vida moral e religiosa, a produção literária e artística, a teoria científica, a investigação filosófica), exceto que tais técnicas não são mais técnicas de adaptação ambiente, mas são em vez disso técnicas para a criação de um ambiente diferente do natural. (ROSSI, 1983, p. 25-6) [xxi]

Portanto, o Direito é um fenômeno que em sua estrutura elementar é formado por representação simbólica.

Outra consideração inicial é que a cultura é pública, ou em outras palavras, compartilhada em sociedade (socialmente, portanto). Geertz explica que na cultura os significados são compartilhados publicamente[xxii], ou seja, mesmo quando existem distinções de acesso a integralidade da informação, muitas vezes inclusive como forma de distribuição de poder na sociedade, tal informação simbólica precisa ser compartilhada entre os membros de uma sociedade. Esses sentidos circulam e formam uma cadeia de significação que forma a “cultura”.

As pessoas adquirem experiência enquanto estão sendo acionadas e enquanto agem. Na maior parte do tempo e na maioria das formas, elas agem de acordo com um código socialmente herdado de comportamento padronizado, um código histórico de longa permanência. Mas esse código não é jamais uma camisa-de-força; existem escolhas e alternativas. Estas – incluindo a opção pela não ação – são utilizadas em várias permutações, embora finalmente sujeitas às condições externas. (MINTZ, 2010, p.235-6).

Por isso, para Geertz cultura irá ser compreendida como uma “teia de significados que o próprio homem teceu” (1989, p.4). Ou seja, “Cultura é, em última análise e finalmente, comportamento mediado através de símbolos”. (MINTZ, 2010, p.237). Além disso, deve-se ressaltar que ao aceitar-se a necessidade de compreensão individual dos sentidos culturais, é possível dentro desse conceito criar um importante elo entre o social e o individual. “Clifford Geertz, levando adiante o trabalho importantíssimo de Max Weber, é central nesse ponto por causa do que chamei anteriormente de sua teoria da cultura orientada para a subjetividade.”. (ORTNER, 2007, p.400). Ora, nesse sentido cultura é a construção humana necessária para viver coletivamente.[xxiii] O seu significado vai variar conforme os valores, conhecimentos e costumes compartilhados que fazem parte do modo de viver de cada um. Enfim, “(...) creio que temos de renunciar à antiga visão de cultura, lembrar que é a nossa identidade comum de criaturas que utilizam símbolos que faz o mundo único (...)”. (MINTZ, 2010, p.237)

Atualmente, segundo Roque Laraia (2000), atualmente existem três perspectivas conceituais aceitas de cultura, as quais mais se complementam do que se contradizem, são elas:

1) Cultura como sistema cognitivo (Sistema de conhecimento): Cultura é tudo aquilo que é necessário se conhecer para ser aceito em certa sociedade. Em última análise, não se diferencia da linguagem.

2) Cultura como sistemas estruturais: Cultura é definida como os princípios da mente que organizam os símbolos. Aproxima-se a visão de Cassirer e de Levi-Strauss.

3) Cultura como sistemas simbólicos: Cultura como conjunto de símbolos que estruturam o processo de representação humana, modelo de Clifford Geertz.

Ressalte-se que tais perspectivas podem ser conciliadas, pois são complementares. Parecem demonstrar três faces de um mesmo fenômeno.

Por fim, o grande desafio de trabalhar com o conceito de cultura é superar uma visão simplista. Inclusive em termos de pesquisa. Antigamente “A cultura era pensada como um conjunto de comportamentos, cerimônias e gestos característicos passíveis de registro e explicação por um observador treinado” (CLIFFORD, 1998, p.29). O trabalho de um etnógrafo, era considerado antes de mais nada um trabalho físico de observação e descrição, hoje porém é visto como um trabalho de interpretação.[xxiv] Enfim, “O processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes cabe evocar. A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada”. (CLIFFORD, 1998, p.42).

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Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Repensando a cultura jurídica:: um diálogo entre a antropologia e o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4514, 10 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44250. Acesso em: 24 abr. 2024.

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