Artigo Destaque dos editores

Repensando a cultura jurídica:

um diálogo entre a antropologia e o direito

Exibindo página 2 de 3
10/11/2015 às 14:02
Leia nesta página:

3. Cultura e Direito: os debates clássicos SOBRE CULTURA JURÍDICA

Para iniciar uma caracterização do conceito de “cultura jurídica” relembre-se uma interessante passagem de Plínio Barreto em seu livro “A Cultura jurídica no Brasil (1822/1922)” referida por Alfredo Venâncio Filho:

Há 100 anos, quando se emancipou definitivamente da soberania portuguesa, era o Brasil uma terra sem cultura jurídica. Não a tinha de espécie alguma, a não ser, em grau secundário, a do solo. Jaziam os espíritos impotentes na sua robustez meio rude da alforria das crendices e das utopias, à espera de charrua e sementes. O Direito, como as demais ciências e, até, como as artes elevadas não interessava ao analfabetismo integral da massa. Sem escolas que o ensinassem, sem imprensa que o divulgasse, sem agremiações que o estudassem, estava o conhecimento dos seus princípios concentrado apenas no punhado de homens abastados que puderam ir a Portugal apanhá-la no curso acanhado e rude que se processava na Universidade de Coimbra. (BARRETO apud VENÂNCIO FILHO, 2004, P.13)

Percebe-se que o conceito de “cultura jurídica” presente na passagem citada está diretamente relacionado nessa passagem a noção de conhecimento erudito. Rememora a versão francesa de cultura, na qual se identificava cultura a idéia de erudição, cultivo do homem.[xxv] Além disso, percebe-se que a escolarização seria o processo central para a caracterização da “cultura jurídica brasileira”. O mesmo Plínio Barreto completava:

O direito era, no Brasil, quando se operou a Independência, uma ciência estudada por um grupo insignificante de homens e não era estudada, mesmo neste grupo, com profundeza e pertinácia. Nem podia sê-lo. Não há ciência que se desenvolva sem ambiente apropriado, e o de uma colônia onde mal se sabia ler não é, com certeza, o mais adequado para o crescimento de uma disciplina, como a de direito, que supõe um estado de civilização bem definido nos seus contornos e bem assentado nos seus alicerces. (BARRETO apud VENÂNCIO FILHO, 2004, P.14)

Tal autor reflete uma época em que no Brasil a valorização dos ideais europeus ressaltava os valores iluministas de desenvolvimento e progresso.[xxvi] Para ir além desse conceito de “cultura jurídica”, e resgatar inclusive a possibilidade de debater o que Plínio Barreto chamou de “cultura do solo” é preciso abrir um diálogo mais amplo entre a Antropologia e o Direito.

Para Geertz (1997) a Antropologia e Direito seriam a princípio duas disciplinas ideais para dialogarem. Isso porque existem diversas semelhanças em seus métodos (ao menos na cultura anglo-saxã), tanto a presença de linguagem erudita, quanto uma aura de fantasia, mas especialmente no tocante a sua artesania local. Tal característica pode ser visualizada na busca de princípios gerais em fatos paroquiais. As duas disciplinas partem do específico para o geral (ao menos na tradição do common law), mas sempre buscando uma perspectiva compreensiva. De qualquer forma, e apesar da limitação de tal comparação no sistema da civil law, Geertz aponta duas idéias base para identificar o Direito e a Antropologia (etnografia).

Entre uma simplificação dos fatos que torna as questões morais tão limitadas que podem ser solucionadas através do simples uso de regras específicas (a meu ver, a característica que define o processo jurídico) e a esquematização da ação social de modo que seu significado possa ser expresso em termos culturais (a característica, também a meu ver, que define a análise etnográfica), existe algo mais que uma simples semelhança entre membros de uma mesma família. (GEERTZ, 1997, p. 253-4)

O Direito segundo Geertz se caracterizaria num processo de “simplificação dos fatos que torna as questões morais tão limitadas que podem ser solucionadas através do simples uso de regras específicas” (p.253). Bruno Latour explica o jogo das regras específicas, apresentando um esquema de ação de julgamento. Assim, Pode-se afirmar assim que a redução da vida para a linguagem jurídica visa rapidamente “estabilizar o mundo dos fatos”, tornando-os indiscutíveis (o que significa dizer, em outras palavras, que a defesa não os contesta mais) recolocando o fato numa regra abstrata de direito (na prática, um texto) para produzir um julgamento (na realidade um freio (definição interpretativa) ao texto). “A redução erudita obtida cria a mesma economia cambaleante, uma vez que substitui o mundo, e sua complexidade, riqueza e inumeráveis dimensões, por um papel e seus textos”. (LATOUR, 2004, p.242, trad.livre) [xxvii]

Esse processo que faz transitar uma linguagem designativa (denotativa) pra uma linguagem figurativa (conotativa), e vice-versa, ou seja, que faz a descrição dos fatos se ajustarem ao julgamento dos mesmos, caracterizaria o que os ocidentais chamam de Direito. Esse processo cognitivo foi certamente pensado através da comparação cultural na obra de Montesquieu. Este considerava a essência (espírito) das leis vinculada à razão, apontando que cada povo detinha características próprias que inclusive impediam uma lei de fazer sentido em locais diferentes de sua origem.

A lei, em geral, é a razão humana, enquanto governa todos os povos da terra; e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas casos particulares onde se aplica esta razão humana. Devem ser tão próprias ao povo para o qual foram feitas que seria um acaso muito grande se as leis de uma nação pudessem servir para outra. (MONTESQUIEU, 1996, p.16)

Essa “razão” que Montesquieu enxergava como essencial ao Direito era em parte era universalista, compartilhando dos nascentes ideais iluministas, e em parte voltada à diversidade. Montesquieu já percebia que o direito no mundo oriental era ligado a outras dimensões da vida, imbricadas numa dimensão maior da razão. E pensar o Direito desconectado da religião, hábitos, costumes, entre outros, seria impossível.

Daí resulta que a China não perde suas leis com a conquista. Sendo as maneiras, os costumes, as leis e a religião a mesma coisa, não se pode mudar tudo isto ao mesmo tempo. E como é necessário que o vencedor ou o vencido mudem, na China foi sempre preciso que fosse o vencedor a mudar, pois como seus costumes não eram suas maneiras, suas maneiras suas leis, suas leis sua religião, foi mais fácil que ele se dobrasse pouco a pouco diante do povo vencido do que o povo vencido diante dele. Segue-se ainda daí uma coisa muito triste: é quase impossível que o cristianismo algum dia se estabeleça na China. Os votos de virgindade, as reuniões das mulheres nas igrejas, sua necessária comunicação com os ministros da religião, sua participação nos sacramentos, a confissão auricular, a extrema-unção, o casamento com uma só mulher, tudo isto subverte os costumes e as maneiras do país, e fere ainda com o mesmo golpe a religião e as leis. (MONTESQUIEU, 1996, p.326)

Entretanto a geração seguinte a Montesquieu, em especial os filósofos iluministas, apostaram nos valores universais como resposta a idéia de ser humano. Tal ideal político consagrado nas declarações de Direitos atinentes ao movimento de Independência Estadunidense e da Revolução Francesa apontavam um sujeito de direitos universal.[xxviii]

Esse apriorismo tem fortes ligações com o jusnaturalismo moderno e com a doutrina liberal. “A idéia da ‘unidade psíquica da humanidade’ não morreu, apenas se refugiou no credo do liberalismo.” (BOHANNAN, 1973, p.111). O contratualismo foi talvez o maior guardião desses preceitos.

Porém, mesmo prevalecendo os ideais iluministas dentro da visão de Direito, um olhar tipicamente fundamentado na diversidade continuou a existir quando os interesses políticos não eram convergentes com os valores revolucionários. Influenciados em parte por Montesquieu, existiram opositores aos valores universais do Direito, como exemplo vale referir a Escola histórica alemã.

O sentido da variedade da história devido à variedade do próprio homem: não existe o Homem (com H maiúsculo) com certos caracteres fundamentais sempre iguais e imutáveis, como pensavam os jusnaturalistas, existem homens, diversos entre si conforme a raça, o clima, o período histórico... De Maistre (considerado o predecessor do historicismo), defensor do Ancien Régime e opositor da Revolução Francesa, num panfleto anti-revolucionário, Considerations Sur Lê France, falando da Constituição francesa de 1795, que foi difundida pelos franceses em toda a Europa invadida pelas tropas da Revolução, apresenta uma afirmação que exprime causticamente essa atitude dos historicistas polemizando com os racionalistas: “A constituição de 1795 é feita pelo homem. Ora, não existem homens no mundo. Tenho visto, na minha vida, franceses, italianos, ingleses; e Montesquieu me ensinou que também existem os persas; mas o homem, essa criatura que chamam de homem, essa eu não vi em lugar nenhum”. (BOBBIO, 1995, p.48).

O debate sobre a universalidade ou particularidade do Direito está inserido numa tradição cultural que enxerga sua forma de pensar, a ocidental, como universal. As conseqüências desse debate foram se desenvolvendo durante a construção do campo da chamada Antropologia do Direito, que já durante o século XIX buscava decifrar as diversas manifestações de Direito orientais e antigas.[xxix] E os primeiros debates no campo estiveram voltados ao que buscar responder a pergunta: o Direito é universal?

Certamente a mais curiosa dessas curiosidades é o eterno debate sobre o conteúdo do direito; ou seja, se ele consiste de instituições ou regulamentos, de procedimentos ou de conceitos, de decisões ou de códigos, de processos ou de formas, e, portanto, se ele é uma categoria tal como o trabalho, que existe praticamente em qualquer parte do mundo onde nos deparemos com uma sociedade humana, ou algo assim como o contraponto, que certamente não é universal. (GEERTZ, 1997, p.250)

Seria o Direito é universal, como uma estrutura social? Talvez como o trabalho (se ele puder ser considerado universal)? Ou o Direito é um instituto cultural não universal? Essas perguntas guardam uma perigosa armadilha acadêmica.

(...) de uma forma muito pouco útil, colocou-se em campos opostos o enfoque forense e o enfoque etnográfico das análises jurídicas, o que nos leva a crer que a série de livros e artigos com títulos como "o direito sem advogados", "o direito sem sanções", "o direito sem os tribunais" ou "o direito sem precedentes" poderia ter, como conclusão apropriada, um cujo título fosse "o direito sem o direito". (GEERTZ, 1997, 251).

Talvez a melhor pergunta seria: como observar formas de Direito diversas da forma que culturalmente estamos ligados?


4. Um Direito “sem Direito”: Etnografias corrosivas

As etnografias em grupos culturais diversos da tradição ocidental deixaram grande parte da base do conhecimento jurídico em xeque. A primeira aproximação nesse sentido foi de Bronislaw Malinowski. Em seu estudo “Crime e Costume na sociedade selvagem” fazendo etnografia com algumas tribos das Ilhas Trobiands na Nova Guiné, Indonésia, chega à hesitante conclusão de que não é possível encontrar um conjunto rígido de normas ou regras que formem algo como um corpus iuris dos nativos. (MALINOWSKI, 2003, p. 94). O próprio título é uma provocação, pois na Ilhas Trobriand a noção de crime punido com uma sanção pública não existe.

As mesmas conclusões chegaram alguns juristas ao ler a famosa etnografia de Evans-Pritchard denominada “Os Nuers”. Um grupo social da região do rio Nilo que não tem juízes, tribunais, regras gerais, nem processo, resolvendo os problemas sociais através das denominadas “vendetas” (lutas entre indivíduos, clãs e aldeias) que também não eram obrigatórias ou sempre necessárias. A conclusão diante do diverso foi frustrante, diziam os juristas: Os Nuers não têm Direito! Observe-se a descrição do referido antropólogo:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Em sentido estrito, os Nuer não têm lei. Há ressarcimentos convencionais por danos, adultério, perda de membros, etc, mas não há qualquer autoridade com poder para pronunciar sentenças sobre tais questões ou para fazer cumprir vereditos. Na terra dos Nuer, os poderes legislativo, judiciário e executivo não estão investidos em quaisquer pessoas ou conselhos. Entre membros de tribos diferentes não há de se falar em ressarcimento; e, mesmo dentro de uma tribo, pelo que vi, os danos não são apresentados sob o que chamaríamos de forma legal, embora o ressarcimento por danos (ruok) seja pago algumas vezes. Um homem que acha ter sido prejudicado por outro, não pode processá-lo porque não existe tribunal para citá-lo, mesmo que este estivesse disposto a comparecer. Vivi em intimidade com os Nuer durante um ano e jamais ouvi uma questão ser apresentada perante um indivíduo ou tribunal de qualquer tipo e, além disso, cheguei à conclusão de que é muito raro que um homem obtenha ressarcimento a não ser pela força ou pela ameaça de empregar a força. A recente introdução de cortes governamentais, perante as quais, hoje, algumas vezes as questões são resolvidas, de modo algum invalida essa impressão, porque sabe-se muito bem que, entre outros povos africanos, são apresentadas questões perante cortes sob a supervisão do governo que anteriormente não foram resolvidas num tribunal, ou mesmo conciliadas, e como durante muito tempo depois da instituição de tais tribunais governamentais eles vêm operando lado a lado com os antigos métodos de fazer justiça. (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.173).

Falamos de "lei", aqui, no sentido que parece mais adequado quando se está escrevendo sobre os Nuer, ou seja, uma obrigação moral de resolver questões por métodos convencionais, e não no sentido de procedimento legal ou instituições legais. E falamos apenas sobre a lei civil, pois não parece haver ações consideradas ofensivas a toda comunidade e punidas por ela. Os informantes que disseram que algumas vezes as bruxas e os mágicos eram mortos, afirmaram que eram sempre indivíduos ou grupos de parentes que os emboscavam e os matavam como desforra. (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.178-9).

Dois detalhes podem ser levantados. Primeiramente a tradução da palavra Law na etnografia do inglês Evans-Pritchard pode ser tão confusa para o português quanto à própria diferenciação entre Lei e Direito. (Afinal deve-se traduzir Law como Direito ou como Lei?). Além disso, outra afirmação demonstra a dificuldade para referir culturas jurídicas diversas da ocidental: “Os Nuer possuem um agudo senso de direito e dignidade pessoal. A idéia de direito, cuong, é forte.” (2005, p.180). Como descrever esse “Direito” sem reduzi-lo ao Direito ocidental ou a afirmação de sua inexistência?[xxx]

Outras pesquisas clássicas acabaram trazendo novos enfoques para esse problema. “The judicial process among the barotse of northern rhodesia” de Max Gluckman; e “Justice and Judgment Among the Tiv” de Paul Bohannan, partindo de pressupostos diferentes expuseram culturas jurídicas diversas, ora tentando aproximar o direito de povos não-ocidentais aos ocidentais como forma de valorização, como fez Gluckman, ora tentando descrever a cultura jurídica não-ocidental sem tentar aproximá-la dos conceitos ocidentais, com fez Bohannan, sempre geraram surpresa e desconfiança nos círculos jurídicos.

Veja-se inicialmente a proposição de Gluckman. Em sua descrição pretende demonstrar que apesar de diferenças existentes, é possível visualizar semelhanças significativas entre o direito dos africanos e o Direito europeu ocidental:

Aqueles que ocupam diversos status podem ter direitos ao mesmo tempo sobre um pedaço de terra ou sobre bens móveis. Todos esses direitos são descritos por um só termo, "posse". No caso, a ciência do direito Barotse não refinou ou elaborou sua terminologia. A complexidade do vocabulário dessa ciência do direito está na definição de posições sociais — status — e de diferentes tipos de propriedade. Como os Barotse estão interessados na propriedade à medida que ela vincula pessoas em diferentes relações de status, eles tendem a enfatizar as obrigações decorrentes de posse de propriedade, mais do que os direitos sobre ela. (GLUCKMAN, 1973, p.56)

Tal perspectiva pretende gerar o que Gluckman reconhece como empoderamento dos povos africanos num momento em que o colonialismo ainda prevalece. Bohannan porém discorda de tal hipótese pretendendo demonstrar que as categorias jurídicas dos povos africanos são inconciliáveis com as categorias européias. Bohannan afirma que “É na justaposição de idéias previamente desconexas que se encontra o ato de interpretação.” (1973, p.102). Esse ato de interpretação, para Gluckman deveria ocorrer já na própria descrição. Bohannan ao contrário rechaça tal idéia, apresentando a necessidade de ater-se aos conceitos nativos para que a etnografia seja um referencial aos leitores.

Na minha opinião, cada etnógrafo tem o compromisso com ele mesmo, com o povo que estuda e com seus colegas de ser rigoroso com seu material. é claro que deve traduzir tanto quanto possível. Ele deve avaliar o momento em que a dificuldade de ler se transforma na impossibilidade de ler. Mas há um momento análogo em que o método da nota explicativa causa dificuldades ainda maiores, porque simula compreensão através do uso das palavras familiares. Esta simulação leva quase inevitavelmente — creio eu — a uma suposição de que tudo o que é denominado pela mesma palavra é comparável, sendo esta uma dificuldade quase impossível de ser corrigida. (BOHANNAN, 1973, p.103)

E completa de forma significativa sobre o problema da construção teórica do povo Tiv:

A ciência do direito inglesa desenvolveu um vocabulário para exprimir o direito inglês (e em menor escala para os ramos comparativo e internacional privado do direito). Os Tiv não desenvolveram uma ciência do direito. Logo. mesmo para tomar as duas matérias comparáveis, o etnógrafo tem que fazer pelos Tiv o que e eles não fizeram por eles mesmos: encontrar uma "teoria" Tiv sobre a ação legal (...) (BOHANNAN, 1973, p.104-5)

Essa dificuldade faz com que a antropologia do Direito busque compreender as culturas dentro de seus próprios referenciais lingüísticos. Tal perspectiva já havia sido percebida anteriormente, por outro enfoque, por Marcel Mauss, quando afirma que o Direito é um fenômeno essencial para definir um povo, e que “o fenômeno do direito é o fenómeno específico de uma sociedade [...] o que nos define não é extensível para além das nossas fronteiras”(1993, p.140). Completava ainda “O direito é o meio de organizar o sistema das expectativas colectivas, de fazer respeitar os indivíduos, o seu valor, os seus agrupamentos. A sua hierarquia. Os fenómenos jurídicos são os fenómenos morais organizados.” (1993, p.141). Nesse sentido, cada sociedade desenvolve valores morais próprios, compartilhados por códigos simbólicos específicos.

Marcel Mauss aprofundou sua perspectiva de Direito no estudo “Ensaio sobre a Dádiva” (1974). Nesse estudo Maus explica a questão da dádiva em diversas culturas mediante o debate através de etnografias que circulavam em sua época. Chega à conclusão que o próprio Direito tende a delimitar o que o “Direito é”, ou seja, o Direito se autolimita conceitualmente. Esse modelo de reflexão acaba por se limitar a possibilidade do próprio discurso se autoexplicar. Esse mesmo problema encontra-se na definição de Bohannan que usa a própria linguagem nativa para se autoexplicar. E para que serve um conhecimento sobre um formato de Direito incomunicável com outras formas de Direito? Portanto, a grande dificuldade da relação entre Antropologia e o Direito encontra-se no diálogo intercultural.

Por isso, a relação entre a Antropologia e o Direito desenvolveu-se recentemente para considerar o Direito como parte de um fenômeno maior, condizente com a noção de mundo simbólico. A base do Direito para Geertz não é o que os próprios nativos falam sobre o seu Direito, mas o processo maior de representação que perpassa na linguagem local. Assim está o Direito ligado a:

(....) um fenômeno um pouco mais crucial, um fenômeno aliás que é a base de toda a cultura: isto é, o processo de representação. A descrição de um fato de tal forma que possibilite aos advogados defendê-lo, aos juízes ouvi-lo, e aos jurados solucioná-lo, nada mais é que uma representação: como em qualquer comércio, ciência, culto, ou  arte, o direito, que tem um pouco de todos eles, apresenta um mundo no qual suas próprias descrições fazem sentido. Discutiremos, mais adiante, os paradoxos que este tipo de descrição pode gerar; o argumento aqui, no entanto, é que a parte "jurídica" do mundo não é simplesmente um conjunto de normas, regulamentos, princípios, e valores limitados, que geram tudo que tenha a ver com o direito, desde decisões do júri, até eventos destilados, e sim parte de uma maneira específica de imaginar a realidade. Trata-se, basicamente, não do que aconteceu, e sim do que acontece aos olhos do direito; e se o direito difere, de um lugar ao outro, de uma época a outra, então o que seus olhos vêem também se modifica. (GEERTZ, 1997, p.250)

Enfim, é possível delimitar o Direito como um produto puramente cultural, variável no tempo e no espaço e que depende de uma complexa teia de significados culturais para fazer sentido. Nem mesmo sociedades ocidentais têm o mesmo sentido para a própria palavra “Direito” em todas as suas camadas sociais e diversidade histórica.[xxxi]

Por isso, para compreender o Direito dentro de uma sociedade é necessário não esquecer que não se pode estudá-lo descontextualizado da sociedade aonde faz sentido. A inter-relação entre os conhecimentos responsáveis pelo desenvolvimento da vida do homem em seu ambiente e as relações entre os homens deve ter especial relevância para o estudo da cultura jurídica. Mesmo sendo a ciência, em sua essência cartesiana, um conhecimento repartido, o homem é um animal completo. “Como escreve Mauss, ‘o homem é indivisível’ e ‘o estudo do concreto’ é ‘o estudo do completo’.” (LAPLANTINE, 2003, p.129). Os fenômenos culturais interagem com o consciente e o inconsciente humano perfazendo sua vida na sua existência. “Todos estudam ou deveriam observar o comportamento de seres totais e não divididos em faculdades” (MAUSS, 1974, p.181).

Todos esses fenômenos são ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos e mesmo estéticos, morfológicos, etc. São jurídicos, de direito privado ou público, de moralidade organizada ou difusa, estritamente obrigatórios ou simplesmente louvados e atacados, políticos e domésticos ao mesmo tempo, interessando tanto às classes sociais como aos clãs e às famílias. (MAUSS, 1973, p.179)

As ciências políticas se dão por objeto de investigação um certo aspecto do real: as instituições que regem as relações do poder; as ciências econômicas, um outro: os sistemas de produção e troca de bens; as ciências jurídicas, o direito; as ciências psicológicas, os processos cognitivos e afetivos; as ciências religiosas, os sistemas de crença. Mas todos estes são para o antropólogo fenômenos parciais, isto é, abstrações em relação ao enfoque não parcelar que orienta sua abordagem. (LAPLANTINE, 2003, p.130)

Para ilustrar como as culturas jurídicas (também referidas como sensibilidades jurídicas) vale destacar os exemplos dados por Geertz. Durante as etnografias realizadas em sua carreira acadêmica tal autor percebeu três sensibilidades jurídicas orientais diversas. A islâmica com a idéia de haqq, a hindu com a noção de dharma, e a malaia com a perspectiva do adat.

Tentarei, em um espaço demasiado curto para ser de alguma maneira persuasivo e demasiado longo para poder falar total e verdadeiramente sobre uma única coisa, esboçar três variedades bastante distintas de sensibilidade jurídica a islâmica, a índica e a do chamado direito costumeiro que existe na parte malaia da Malásia-Polinésia - e estabelecer a conexão entre essas sensibilidades e as visões, nelas incorporadas, sobre o que é, realmente, a realidade. E o farei, desdobrando três termos, isto é, três conceitos, que, a meu ver, são centrais para essas visões do mundo: haqq, que significa "verdade" e muitas outras coisas mais, para os islâmicos; dharma, que significa "dever" e muitas outras coisas mais, para os índicos; e adat, que significa "prática" e muitas outras coisas mais, para os malaios. (GEERTZ, 1997, p. 275-4)

O objetivo de expor tais sensibilidades é demonstrar que o Direito pode manifestar-se de forma totalmente diversa em sociedades com elementos culturais diversos. Obviamente tal apreciação será resumida e recomenda-se a leitura do texto de Geertz (1997) para o aprofundamento de tal descrição. Inicialmente cabe ressaltar que nas sociedades orientais o Direito não está necessariamente ligado a noção de lei.

Para expressar o que foi dito acima de uma maneira ligeiramente diferente, nossas três palavras têm mais semelhança com a noção ocidental de "direito" (right, recht, droit) que com a noção de "lei" (law; Gesetz, loi). Ou seja, o ponto central, comum às três, é menos relacionado com algum tipo de noção de "regulamento", "regras", "injunção" ou "decreto" e mais próximo a um outro conceito, ainda pouco nítido, que representaria uma conexão interna, original e inseparável, entre aquilo que é "próprio", "adequado", "apropriado", ou "condizente" e o que é "real", "verdadeiro","genuíno", ou "autêntico"; entre o "correto" de "um comportamento correto" e o "correto" de "um entendimento correto". (GEERTZ, 1997, p.280)

Geertz compara as sociedades orientais com a cultura ocidental no tocante, em especial a separação da esfera dos fatos da esfera do julgamento. Em suas palavras:

“(...) de que maneira as representações construcionais do "se/então" são traduzidas em representações diretivas do "como/portanto" e vice-versa. Ou seja, dadas nossas crenças, como devemos agir; ou, dados nossos atos, em que devemos acreditar.” (GEERTZ, 1997, p.270)

O contexto da prova, do “se/então” relaciona-se a forma com que as comunidades descrevem a existência, ou seja, dizendo o que é real e o que é irreal. Já o contexto do Julgamento, do “como/portanto”, relaciona-se a forma com que as comunidades expõe sua experiência, ou seja, dizendo o que é certo e o que é errado. Para Geertz a descrição da realidade e do julgamento acontece em momentos separados nas sociedades ocidentais. O que poderia, por exemplo, ser visualizado na própria concepção de normas jurídicas como imperativos hipotéticos (base da teoria da norma de Kelsen).[xxxii] Tal forma de representar o mundo não é igual a que existe nas sociedade orientais.

No mundo árabe os fatos se sobrepõem ao julgamento. A palavra “haqq”, traduzida como “verdade-realidade”, apresenta elementos que demonstram como na sensibilidade jurídica árabe os fatos se sobrepõem a esfera do julgamento. Tal característica pode ser percebida no ultravalorização da testemunha e de seu relato, contra outras esferas de comprovação da realidade. O que é verdadeiro para um bom islâmico não pode ser contestado. A possibilidade de falso testemunho é relativizada, pois a mentira deve apenas explicações a Deus. Uma prova factual poderia ser mitigada diante de um testemunho de um fiel. Para tanto existe uma rígida hierarquia de funções testemunhais, Enfim, a esfera dos fatos se sobrepõe a esfera do julgamento no momento que a descrição do fato inclui o que é certo e errado. O fato será descrito de uma forma “correta”.

No mundo Hindu a palavra “dharma”, traduzida como “obrigação-feição”, apresenta elementos que demonstram como na sensibilidade jurídica hindu o julgamento se sobrepõe a esfera dos fatos. Numa sociedade de castas a posição social e a própria idéia de destino servem de parâmetro de julgamento. Para apresentar tal característica Geertz explica que no mundo hindu a própria feição (boa ou má) transparece na vida das pessoas, como se todos os elementos da realidade fossem apenas uma conseqüência da própria essência do ser. Para tanto faz uso de duas parábolas tradicionais em que mesmo tentando mentir, o caráter e qualidade dos personagens acaba se sobressaindo e os fatos são mera conseqüência da moralidade interna.

Já no mundo Malaio (Bali) a palavra “adat”, traduzida como “decoro-etiqueta”, apresenta a concepção de justiça malaia a partir da idéia de que as duas esferas, dos fatos e do julgamento, acontecem simultaneamente e estão interligadas pelos costumes sociais. Para explicá-la Geertz conta a história de um morador de Bali denominado Regreg que ao infringir uma regra costumeira (deixando de assumir um cargo no conselho da tribo) acaba sendo banido da sociedade, tornando-se uma espécie de fantasma numa espécie de ostracismo tribal. E mesmo o rei de Bali comparecendo pessoalmente para requerer a reconsideração do conselho de tribo que o havia expulsado não gerou resultados. Os acontecimentos e o seu julgamento eram irretratáveis. Para ilustrar tais exemplos elaborou-se o seguinte gráfico:

TABELA 1 - ESQUEMA SOBRE AS SENSIBILIDADES JURÍDICAS APRESENTADAS POR GEERTZ (1997)

MUNDO OCIDENTAL

Direito

Certo - Correto

ARABE

MARROCOS

Haqq

Verdade – Realidade

HINDU

INDIA

Dharma

Feição - Obrigação

MALAIO

BALI

Adat

Decoro – Etiqueta

Fonte: Autor com base em GEERTZ (2007)

Vale ressaltar ainda que Geertz prefere a expressão “sensibilidade jurídica” para descrever tais culturas, explicando tal conceito da seguinte forma:

Aquele sentido de justiça que mencionei acima - a que chamarei, ao deixar paisagens mais conhecidas na direção de lugares mais exóticos, de sensibilidade jurídica - é, portanto, o primeiro fator que merece a atenção daqueles cujo objetivo é falar de uma forma comparativa sobre as bases culturais do direito. Pois essas sensibilidades variam, e não só em graus de definição; também no poder que exercem sobre os processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir (...) (GEERTZ, 1997, p. 261)

Portanto, sensibilidade não tem o objetivo de ser um conceito totalizador ou voltado as práticas em si, mas de um grande referencial de justiça realizada. Essas sensibilidades têm por objetivo expor uma forma de mentalidade geral, modelo cultural trazendo certas noções gerais sobre como o processo de representação se dá em diferentes culturas. Tal perspectiva foi em alguns momentos criticada, mesmo que injustamente.[xxxiii] Porém Geertz em momento algum pretende criar uma caracterização  total, nem mesmo completa, explica apenas um processo mental comum. Dentro desse processo comum existem espaços para diferenças.

Temos também que nos contentar com uma simplificação radical tanto da dimensão histórica como da dimensão regional desses temas. "Islã", "Mundo Índico" e, sensu lato, "Malásia" não são - como dediquei uma grande parte do meu trabalho buscando demonstrar - entidades unitárias e homogêneas, constantes no tempo, no espaço e em população. Reificá-los como tais, aliás, sempre foi o artifício principal através do qual o "Ocidente", acrescentando uma outra nulidade à coleção, conseguiu evitar compreendê-los ou até mesmo vê-los com alguma clareza. (GEERTZ, 1997, p.278)

Por isso faz referência a não pretensão de homogenizar as culturas, ou seja, nem todo árabe, hindu ou malaio pensa da mesma forma. Mas pensá-los como grupo cria uma difícil tarefa de criar uma generalização aceitável. Além disso, vale ressaltar que essa tentativa de delimitação não pretende observar a realidade dos povos orientais como peças isoladas, as culturas cresceram interrelacionando-se. Uma visão limitada de sociedade pautada na separação e isolamento cultural não está presente na concepção atual de cultura jurídica.

(…) a etnografia sempre soube que as culturas nunca foram assim definidas, auto-suficientes e auto-sustentáveis, como os pós-modernistas afirmam sobre o que os modernistas afirmam. Nenhuma cultura é sui generis, nenhum só povo é único ou mesmo o autor de sua própria existência. A suposição de que a autenticidade significa automodelacão e que perde a dependência dos outros, parece apenas um legado da auto-consciência burguesa. Na verdade, esta determinação auto-centrada de autenticidade é o contrário da condição social humana. A maior parte dos povos encontra os meios críticos de sua própria reprodução em seres humanos e poderes presentes além de seus limites normais e controles habituais. (SAHLINS, 2001, p.312-3, trad. livre)

Por isso, ao avaliar o Direito dentro de uma sociedade diversa, é necessário ressaltar que uma concepção de Direito do passado pode ser diferente da atual, e a busca dessas diferenças é o grande desafio dos pesquisadores que não querem naturalizar o passado.

(...) dedicar-se a construir uma teoria geral do direito é uma aventura tão inverossímil como a de dedicar-se à construção de uma máquina de movimento perpétuo. (GEERTZ, 1997, p.327).

Por mais que tal máquina possa ser teorizada, ela se afasta tanto da realidade que perde sua utilidade. Hoje “(...) o estudo comparativo do direito não pode ser uma questão de transformar diferenças concretas em semelhanças abstratas”. (GEERTZ, 1997, p.325).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Repensando a cultura jurídica:: um diálogo entre a antropologia e o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4514, 10 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44250. Acesso em: 5 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos