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Da declaração incidental de constitucionalidade em acão civil pública

Da declaração incidental de constitucionalidade em acão civil pública

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1. INTRODUÇÃO

A idéia individualista dos direitos, vigorante no Estado Liberal, em que se visava proclamar a liberdade do homem em contraposição ao poder estatal, passou a perder forças diante das intensas transformações sociais, culturais, econômicas e tecnológicas que se sucederam a partir da segunda metade do século XIX e, especialmente, no decorrer do século XX.

Surgiram novas e diversas espécies de conflitos, decorrentes de sérias questões relacionadas ao interesse público, donde emergiu a consciência para direitos cujos titulares são incontáveis, muitas vezes até indeterminados, como ocorre nas tutelas referentes ao meio ambiente e à saúde pública.

Sob esta nova perspectiva, tornou-se necessária uma mudança na percepção do processo, originariamente dotado de cunho eminentemente individualista. Passou a ser imprescindível uma noção coletiva da tutela de direitos que são especiais, até então despercebidos: os interesses transindividuais ou metaindividuais, cujos titulares são classes, grupos, ou toda a coletividade.

No ordenamento jurídico brasileiro, muito embora já houvesse a disciplina da ação popular desde 1965, destinada a defender interesses de caráter geral, impunha-se a criação de um instrumento mais eficiente, que permitisse a um organismo agir em nome próprio na defesa de interesses alheios, o que até aquele momento era condicionado à autorização legal, conforme expressa disposição do art. 6.º do Código de Processo Civil, numa prova de que tradição jurídica ainda resiste a uma extensão da legitimidade processual.

Foi editada então, no ano de 1985, a Lei n.º 7347, intitulada de Lei da Ação Civil Pública, diploma de caráter instrumental, com o fito precípuo de oferecer proteção jurisdicional aos interesses de índole coletiva, com vários legitimados ativos, entre os quais o Ministério Público, a União, os Estados e os Municípios.

Aludido mecanismo legal trouxe à sistemática jurídica pátria grandes avanços, em decorrência de haver criado grande instrumento de tutela dos direitos metaindividuais, a já mencionada Ação Civil Pública, inovando ainda em vários aspectos processuais secundários, tais quais o efeito erga omens e a eficácia da coisa julgada.

É notório que após o advento de aludida lei, inúmeros conflitos e questionamentos emanaram quando do uso do novel instrumento processual, neste contexto incluído o debate referente ao pedido incidental de declaração de inconstitucionalidade.

Certos que a manutenção dos ditames constitucionais é premente, os titulares da Ação Civil Pública em várias oportunidades, balizados no controle difuso de constitucionalidade, utilizaram-se de tal fundamento para pautar seus pedidos, o que ocasionou aplausos e revoltas na seara jurídica.

A relevância do tema e os efeitos produzidos por uma e outra corrente é o objeto do trabalho que ora se apresenta, sendo intento cardeal, em síntese, delinear a função da Ação Civil Pública, bem como do Sistema de Controle de Constitucionalidade Difuso, revelando a compatibilidade entre ambos.


II. Da Constituição, importância, função e VALIDADE

Atribuir um conceito à Constituição não é tarefa fácil. E é exatamente por isso que o vocábulo mencionado pode ser definido de inúmeras maneiras, sob os mais diferenciados prismas.

Fala-se em Constituição em sentido amplo, material, formal, substancial, entre outros. É de se notar, todavia, que um e outro conceito não se excluem. Pelo contrário, somam-se e resultam na idéia contemporânea de Constituição trazida à baila por J.J. Canotilho segundo a qual cuida-se de "um conteúdo normativo específico"[1].

Para o jurista português, portanto, a Constituição de um Estado corresponde a um conjunto de regras jurídicas (normas e princípios) de fundo específico superior.

Desta definição, três caracteres imediatos são percebidos.

Primeiramente, é o fato de que uma vez reconhecido o sentido normativo do texto fundamental, clarividente é sua força vinculante, cogente e imperativa quanto aos órgãos públicos e aos componentes do Estado ao qual é dirigida.

Ressalta-se, por oportuno, que a Constituição, como foi delineada pelos iluministas, não emanava força coercitiva, intrínseca às normas jurídicas. Tratava-se de verdadeira carta de intenções, negada e ignorada quando bem conviesse.

Acerca desta situação, JJ Canotilho proclama:

"É através desta ‘mais-valia’ ou desta ‘bondade material’ que se distinguem as constituições verdadeiramente normativas das constituições semânticas (constituições de fachada). Não é pelo facto de existir um documento designada constituição que temos uma constituição. Esta existe, sim, quando o documento contém regras jurídicas materialmente consideradas ‘boas’, ‘valiosas’ ou ‘intrinsecamente legítimas’"[2].

Infere-se daí que o direito constitucional é um "direito vivo, direito de ação e não apenas um direito nos livros", dotado de efetividade e aplicabilidade, não se podendo apenas apontar-lhe valor programático e declaratório.

Por outro lado, aferível é que o texto constitucional constitui norma hierarquicamente superior do ordenamento jurídico, motivo pelo qual deve ser irremediavelmente obedecida pelas que lhe são inferiores:

"A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e, assim por diante, até buscar a norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética nestes termos – é, portanto, fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora"[3]. (sublinhou-se)

Portanto, a superioridade da Constituição evidencia a necessidade de qualquer ato normativo inferior estar materialmente (refere-se ao conteúdo das normas) e formalmente (refere-se à origem das normas) adequada às disposições insertas no texto fundamental, sob pena de vício de inconstitucionalidade, conforme os ingleses há quase dois séculos apregoavam: "an act againist Constitution is void"[4] (uma lei contra a Constituição é nula).

Tais considerações, como nos aponta o já citado JJ. Canotilho, pressupõem uma razão e uma lógica para o ideal de Constituição. A razão assenta-se na idéia de lei fundamental, através de um documento escrito, "realizar um projecto de conformação política"[5].

A lógica, ao seu turno, situa-se na concepção da pirâmide geométrica. A ordem jurídica estrutura-se em termos verticais, de forma escalonada, estando a constituição no vértice da pirâmide. Em virtude desta posição hierárquica ela atua como fonte de outras normas.

E, em terceiro plano, erradia a relevância dos preceitos de natureza constitucional, considerados como de valor supremo para o Estado e, por conseguinte, irrenunciáveis e inderrogáveis.

Desde que foi criada, a Constituição afigura-se essencial a qualquer Estado de Direito, enquanto reconhece, ordena e estipula a ordem política e jurídica de uma nação. Para que haja um Estado, deve haver um ordenamento jurídico que o embasa, por esta razão, Carl Schimit alinhavou que o Estado não tem Constituição, é a própria Constituição[6].

Além disso, o texto constitucional não se limita a estabelecer o Estado e limitar-lhe o poder, enuncia os direitos fundamentais, cuja imprescindibilidade parece inexistir controvérsia.

Na lição de Ingo Wolfgang Sarlet[7], os direitos fundamentais dividem-se em duas categorias, a saber: "direitos de defesa (que incluem os direitos de liberdade, igualdade, as garantias, bem como parte dos direitos sociais – no caso, as liberdades sociais- e políticos) e os direitos a prestações (integrados pelos direitos a prestações em sentido amplo, tais como os direitos à proteção e à participação na organização e procedimento, assim como pelos direitos a prestações em sentido estrito, representados pelos direitos sociais de natureza prestacional)."

1.1 A efetividade da Constituição:

Retratada a proeminência dos dispositivos constitucionais dentro do ordenamento jurídico, apresenta-se importante definir a necessidade de se conceder efetividade às suas normas.

Diga-se, a princípio, que a questão da vigência, validade e efetividade não se restringem à área constitucional, sendo problemática estendida a toda a ordem jurídica. Neste contexto, calha-se lição do mestre José Afonso da Silva ao citar Kelsen:

"A vigência da norma, para ele, pertence à ordem do dever-ser, e não à ordem do ser. Vigência significa a existência específica de uma norma; eficácia é o fato de que a norma é efetivamente aplicada e seguida; a circunstancia de que uma conduta humana conforme a norma se verifica na ordem dos fatos."[8]

Traduz-se, pois, a efetividade da norma na capacidade de atingir objetivos previamente fixados como metas. Diz a eficácia respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma como possibilidade de sua aplicação jurídica[9].

Veja-se que se é certo que toda norma é dotada de eficácia, mais acerto ainda é dizer que a Constituição, enquanto ente normativo, exige efetividade de seus dispositivos.

Relembre-se, por oportuno, que a carta constitucional não é tratado de intenções, sendo dotada de força normativa, conforme aponta Canotilho e Vital Moreira:

"Nos livros de estudo encontram-se fórmulas como estas: normatividade da constituição, força normativa da Constituição. Através destas expressões pretende-se significar – é esse o sentido atribuído pela doutrina dominante – que a constituição é uma lei vinculativa dotada de efectividade e aplicabilidade. A força normativa da constituição visa expremir, muito simplesmente, que a constituição sendo uma lei como lei deve ser aplicada. Afasta-se a tese generalizadamente aceite nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX que atribuía à constituição um ‘valor declaratório’, uma natureza de simples direcção política, um caráter programático despido da força jurídica actual caracterizadora das verdadeiras leis."[10]

Acerca do tema, Konrad Hesse afirma que "resulta de fundamental importância para a preservação e a consolidação da força normativa da Constituição a interpretação constitucional, a qual se encontra necessariamente submetida ao mandato de otimização do texto constitucional"[11].

Observando a prática jurídica, é correto asseverar que persiste um temor inexplicável de aplicação das regras constitucionais, dando-se especial atenção às normas infraconstitucionais, relegando-se o direito constitucional a um plano secundário.

Anote-se que referida situação constitui verdadeiro absurdo dentro de uma teoria do direito pautada na superioridade incontestável da Constituição em face das demais normas.

Neste contexto, o professor Lênio Luiz Streck, com propriedade, convida o jurista para a "tarefa do des-velamento", cujo sentido é tornar visível (eficaz) o texto constitucional. Afirma ele:

"O encobrimento/velamento é, assim, o esquecimento (ocultamento) do ser da Constituição. Esse esquecimento/ encobrimento é um não-pensar-na-verdade-do-ser constitucionalizante/ fundante (de um novo modelo de Direito, contendo o dever-ser do político-econômico-social originário do processo constituinte). (...) Por isso, o des-velar do novo (Estado Democrático de Direito, sua principiologia e a conseqüente força normativa e substancial do texto constitucional) pressupõe a desconstrução/ destruição da tradição jurídica inautêntica que é mergulhada na crise de paradigmas. Ao des-construir, a hermenêutica constrói, possibilitando manifestar-se de algo (o ente Constituição em seu estado des-coberto). O acontecimento da Constituição será a re-velação dessa existência do jurídico (constitucional), que esta aí, ainda por des-cobrir. O acontecer será, assim, a des-ocultação do que estava aí velado".[12]

Apresenta-se, pois, de extrema relevância reconhecer o valor normativo do texto constitucional, e, sendo assim, respeitar todos os efeitos jurídicos que este fato induz, não sendo possível negar vigor aos dispositivos fundamentais.


III. Do Controle de Constitucionalidade

A Constituição surgiu em meio a Revolução Iluminista do século XVIII como documento político que ordenava toda a vida estatal, impondo limites ao Estado e ao seu dirigente. De modo que sua meta era regular por completo a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias[13].

Referido documento, dada a essencialidade dos temas que albergava e ainda o faz, haveria de sobrepor-se a todas as demais legislações e situar-se no pico de uma pirâmide hierárquica, onde abaixo dela se encontrariam as leis ordinárias, leis complementares e decretos. Toda essa legislação haveria de estar em acordo com a norma maior, que é justamente a Constituição.

Com o tempo, a Constituição ampliou seu conteúdo, estabelecendo em seu texto disposições referentes aos direitos fundamentais do homem e sociais. A partir desse momento, a carta constitucional deixou de ser encarada como simples declaração de direitos e passou a ser reconhecida como fonte normativa essencial da sistemática jurídica, motivo pelo qual seria imprescindível delinear forma de proteção específica de suas regras. Esse sistema de defesa constitucional, denominado de controle de constitucionalidade, é meio de prevenir os eventuais atos e omissões contrários aos seus ditames, uma vez que se presume que, estando a Constituição num plano hierárquico superior às outras leis, não será tolerável tal desobediência.

Calha à fiveleta apontar ensinamento do mestre Clemerson Merlin Cléve que assim assevera: "o valor normativo da constituição deve ser potencializado, especialmente a normatividade dos capítulos condensadores dos interesses das classes não-hegemônicas. Mas, para isso, é necessário entender que a Constituição é, entre outras coisas, também norma, e não mera declaração de princípios e propósitos. E se é norma, dela decorrem, inexoravelmente, conseqüências jurídicas que são sérias e que devem ser tomadas a sério. E, mais que tudo, sendo norma suprema, o sentido de seu discurso deve contaminar todo o direito infraconstitucional, que não pode nem deve ser interpretado (concretizado/aplicado) senão à luz da Constituição. A filtragem constitucional consiste em interessante mecanismo propiciador de atribuição do novo, atualizado e comprometido sentido ao direito civil, direito penal, ao direito processual, etc"[14]. (sublinhou-se).

Controlar a constitucionalidade, pois, significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais.

Quanto aos pressupostos, é de se alinhavar que havendo desobediência dos procedimentos formais para reformar normas constitucionais, surgem atos contrários à Constituição, ou seja, frente a uma inconstitucionalidade, que tanto pode ser material - quando diz respeito ao conteúdo do ato normativo - quanto uma inconstitucionalidade formal - fazendo referência à maneira de procedimento, ou às formalidades a serem observadas. Inconstitucionalidade seria, portanto, uma desconformidade de normas inferiores - atos legislativos ou administrativos - com a norma superior. Seria uma contrariedade vertical, porque é sabido que, de acordo com a supremacia constitucional, todas as normas inferiores têm de estar em plena conformidade com os vetores da Constituição, que está situada no ápice da imaginária pirâmide hierárquica do ordenamento jurídico.

Não há que se falar apenas em atos normativos inconstitucionais, referindo-se tão-somente à legislação ordinária, haja vista que já é aceito na doutrina e no texto constitucional de outras legislações pátrias que o constituinte também é passível de praticar atos inconstitucionais. Daí falar-se em normas constitucionais originárias inconstitucionais. Existe a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias em caso de revisão ou emenda. Não obstante, afirma-se ainda que o próprio constituinte originário pode ser autor de uma norma constitucional inconstitucional a partir do momento em que ela não esteja observando os pressupostos fundamentais de justiça, que não é o fim apenas do Direito Constitucional, mas de toda a ciência jurídica. Nesse sentido, vai mais além o Preâmbulo da Constituição de 1988, nos seguintes termos: "(...) assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)"

O sistema de controle de constitucionalidade em muitos casos varia de país para país. No nosso caso, muito se absorveu do sistema norte americano. Dessa forma, pode-se inferir três sistemas de controle de constitucionalidade:

- Controle Político - o juízo de conformidade das normas imediatamente inferiores à Constituição, neste caso, fica ao encargo de um órgão político, como o próprio Poder Legislativo;

- Controle Jurisdicional - judicial review: há um órgão de cúpula do Poder Judiciário, legitimado pela própria Constituição para proceder ao controle constitucional de leis e atos normativos;

- Controle Misto - como o próprio nome indica, há uma conjunção das duas outras espécies de controle. Ocorre quando há certos tipos de leis sujeitas ao controle por órgãos jurisdicionais, e outras por órgãos políticos.

Á vista do tempo, pode-se dizer que há um controle preventivo, que ocorre numa fase anterior à publicação da lei, ou melhor dizendo, antes mesmo da produção final do ato legislativo. Neste caso, ainda se está diante da formação do ato, do estudo e da discussão do projeto de lei, constantes das seguintes fases: introdução, exame do projeto nas comissões permanentes, discussão, decisão e revisão.

Efetivamente, dá-se a aplicação deste controle quando o projeto de lei passa pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça, ou ainda quando o próprio Presidente da República veta o projeto (art. 66, § 1º, CF). Portanto, percebe-se que o controle preventivo é exercido tanto pelo Poder Legislativo, através das Comissões Permanentes, quanto pelo Poder Executivo, através do Presidente da República, no momento do veto.

Há ainda o controle repressivo, quando atua no momento em que o ato já está concluído, ou seja, após a publicação da lei. Também faz parte do controle repressivo o veto de competência do Congresso Nacional, no caso do art. 49, V, CF - quando os atos do Poder Executivo exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.

Para a efetivação do controle de constitucionalidades, são utilizados dois critérios, a saber:

- Controle Difuso - quando compreender uma pluralidade de órgãos legitimados para exercer a fiscalização, assim, todos os órgãos do Poder Judiciário podem atuar nesse sentido. Não há um órgão específico para tal finalidade, podendo tanto o juiz singular quanto o tribunal proceder ao controle sobre a norma que não está em conformidade com os ditames constitucionais;

- Controle Concentrado - há um órgão de cúpula, que no caso do Brasil é o Supremo Tribunal Federal, legitimado constitucionalmente para a guarda da Constituição.

Sabendo-se que não há uma ação sem demanda, haja vista que este é um pressuposto de existência do processo, e que só haverá demanda se houver um autor, é que, levando à risca o princípio do nemo iudex sine actore (não há juízo sem autor), o sistema de Controle Jurisdicional utiliza do Direito Constitucional Comparado dois modos para o exercício do controle de constitucionalidade: o controle por via de exceção e por via de ação.

2.1 Controle por via de exceção, incidental ou concreto

O Controle por via de exceção é próprio do controle difuso. Por ele, cabe ao próprio interessado, quando apresenta sua defesa num caso concreto, suscitar a inconstitucionalidade. Todavia, entende-se que também é legitimado para argüir a inconstitucionalidade todos os partícipes num processo, incluindo o Ministério Público, nos casos em que atua como custos legis. Responsável pelo julgamento é o próprio juiz que está presidindo o caso. A declaração não é o objeto principal do litígio, mas como o próprio nome está dizendo, é uma questão incidente surgida num caso concreto.

Na via de exceção a declaração da inconstitucionalidade constitui uma questão prejudicial, que deve ser sanada, pois dela depende a solução da causa principal do litígio. Não é ainda declaração de inconstitucionalidade de lei em tese, mas tão-somente declaração de inconstitucionalidade num caso concreto. Há que se dizer também que a decisão proferida pelo juiz, na via de exceção, gera efeito apenas entre as partes, não fazendo, desse modo, coisa julgada perante terceiros. Para tanto, seria necessário que a questão chegasse até o Supremo Tribunal Federal através de recurso extraordinário, nos termos do art. 102, inciso III e alíneas, da Constituição Federal. No momento em que isso ocorre, o controle deixa de ser o difuso, para se tornar um controle concentrado derivado da apreciação do caso concreto. A decisão que declara a inconstitucionalidade no caso concreto é apenas declaratória, não impedindo que outros órgãos do judiciário apliquem a respectiva lei, pelo menos até que o Senado Federal, por resolução, suspenda a sua executoriedade (art. 52, X, CF). O efeito da decisão no caso concreto é ex tunc, ou seja, fulmina a relação jurídica firmada entre as partes desde o início: retroage.

Nestes termos, a lei continua eficaz e aplicável em todo o território nacional, pois como já dito, necessária se faz a manifestação do Senado Federal, para suspender a sua executoriedade, mas essa manifestação tem efeito apenas ex nunc, ou seja, não retroage e gera seus efeitos daquele momento em diante. Importante é saber que até a atuação do Senado Federal a lei continua eficaz e aplicável, pois o que se sobrepõe é a presunção de validade das leis, daí dizer que a manifestação daquela Casa Legislativa não anula a lei, apenas lhe retira a eficácia.

2.2. Controle por via de ação, principal ou abstrato

Diferentemente da via de exceção, no controle abstrato, o fim primeiro da ação é a própria declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade, conforme o caso. Não há um caso concreto de onde surge uma questão incidente, porque o único objeto da ação já é a inconstitucionalidade da lei em tese. Não interessa, portanto, que haja previamente uma lide entre particulares. A ação surge por si mesma para expurgar do ordenamento jurídico a norma que se encontra em desacordo com a Constituição. A declaração de inconstitucionalidade já é, por assim dizer, o pedido da ação.

O art. 103 arrola as partes legitimadas a propor a ação declaratória de inconstitucionalidade: "I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa; V- o Governador de Estado; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; e VIII - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional".

Quanto ao efeito da sentença que profere a inconstitucionalidade, manifesta-se uma corrente doutrinária no sentido de que esta faz coisa julgada material, gerando, portanto, efeito erga omnes. Sustenta essa corrente que, por ser o pedido da ação a própria inconstitucionalidade de lei em tese, não é necessária a manifestação do Senado Federal, para retirar-lhe a eficácia, assim como o é na via de exceção. De acordo com o art. 52, X, da CF, cabe ao Senado a suspensão da execução de lei declarada inconstitucional por decisão "definitiva" do Supremo Tribunal Federal. O vocábulo "definitiva" compreende que tenha havido uma série de decisões acerca de uma questão e que, por via de recurso, tenha o caso chegado até o Supremo ao qual compete resolver as discussões acerca do respectivo litígio e assim fará através de uma decisão definitiva, no sentido de pôr uma palavra final à causa. Essa decisão, portanto, é originária de uma questão surgida incidentalmente num caso concreto, que chega à apreciação da Corte Superior através de um recurso extraordinário. Não há que se falar, portanto, em decisão definitiva referente às ações originárias do Pretório Excelso, pois o feito se originou na própria casa e não compreendeu decisões outras de instância anteriores antes de chegar ao órgão máximo do Judiciário.

Como a própria Constituição Federal não é explícita acerca dessa discussão, defende-se a corrente que afirma ter as decisões do Supremo efeito erga omnes, sem a necessidade de manifestação do Senado Federal. Nossa manifestação é no sentido de que, sendo o Supremo Tribunal Federal legitimado constitucionalmente como o guardião da Constituição, não haveria qualquer necessidade de manifestação de outro órgão para que as suas decisões tenham efeito vinculante contra todos. Seria até mesmo uma falta de lógica se pensar assim, porquanto as decisões dos feitos originários no próprio Supremo, referentes à inconstitucionalidade de lei em tese, têm força vinculante própria. O Supremo Tribunal Federal é o órgão máximo do ordenamento jurídico da nação e por isso suas decisões de mérito, principalmente quando relativas a feitos originários na própria casa, têm de valer por si mesmas.

Sujeitar essas decisões à manifestação daquela casa legislativa é inclusive atentar contra a separação dos poderes, haja vista que competente para dirimir questões puramente de direito é o Poder Judiciário. De certo que os poderes (ou funções do Poder Público) têm um estrito relacionamento entre si, o que justifica muitas vezes a atuação de um na esfera do outro para limitar a atividade daquele que estiver ultrapassando a sua competência, desde que esta limitação não prejudique a independência e harmonia de cada um deles (art. 2º, CF). Portanto, há entre os poderes um sistema de pesos e contrapesos: checks and balances.

Dentro do controle abstrato, existe a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, consistente de intervenção federal em algum Estado, ou Estado em Município, caso haja descumprimento das exigências do art. 34, III, alíneas "a" a "e", da CF. Só pode ser proposta pelo Procurador-Geral da República ou pelo Procurador de Justiça do Estado, conforme o caso.

Cuida-se de inovação trazida pela Constituição Federal de 1988, no seu art. 103, § 2º, é a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão, de influência da Constituição Portuguesa. Essa é uma medida que visa a dar plena eficácia aos princípios e às normas constitucionais, porque age diante do ato omissivo da autoridade responsável para dar efetividade aos preceitos da Constituição. Importante é observar que o constituinte não descreveu expressamente a competência para julgar as ações de inconstitucionalidade por omissão, entretanto, há que se entender ser o Supremo Tribunal Federal por ser o legítimo protetor da Constituição.

Em acordo com o art. 103, § 2º, da CF, declarada a inconstitucionalidade por omissão será dada ciência ao órgão administrativo responsável para, no prazo de trinta dias,providenciar a norma legal para tornar efetiva a norma constitucional. Neste caso, não há maiores problemas, pois decisão do Supremo Tribunal Federal sempre terá força de lei perante órgãos administrativos, não tendo estes por que desrespeitar aquela decisão, sob pena de sujeitar o agente público responsável pela prática do ato às sanções legais.

A maior problemática refere-se às hipóteses em que a norma omissa for de competência do Poder Legislativo, pois nesta hipótese não há prazo para o legislador tomar as medidas necessárias, além do que, não há como obrigar o Poder Legislativo a legislar. Entende parte da doutrina que a decisão declaratória de inconstitucionalidade por omissão deveria ter força de lei, caso o legislador, dentro de um determinado prazo, não agisse nesse sentido.

Outra grande novidade da Constituição de 1988 é a Ação Declaratória de Constitucionalidade, prevista no art. 102, § 4º. Competente para julgar e processar originariamente a ação declaratória consoante o art. 102, I, "a", da CF, é o Supremo Tribunal Federal. O mesmo dispositivo traz as hipóteses em que caberá a medida, a saber, lei e ato normativo federal. Propositadamente, não quis o constituinte destinar a ação declaratória às leis e atos normativos estaduais. O art. 103, § 4º arrola as partes legítimas para propor a referida ação, que são o Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República.

A finalidade da ação declaratória de constitucionalidade é pôr fim a uma série de decisões referentes a questões constitucionais em processos concretos. Dessa maneira, havendo decisões controvertidas em casos concretos, proferidas em diferentes unidades da federação, por exemplo, a referida ação teria a finalidade de estancar esses debates, através de uma decisão definitiva. A decisão proferida pelo Supremo, quer confirme a inconstitucionalidade, quer declare constitucional a lei ou o ato normativo federal, tem efeito erga omnes, assim dispõe o art. 102, § 2º, subjugando, por conseguinte, todos os órgãos do Poder Judiciário, bem como o Poder Executivo. Além de vincular àquela decisão todos os órgãos do Judiciário, o próprio Supremo também estará vinculado a ela, haja vista tratar-se de coisa julgada material, impedindo até mesmo a inaplicabilidade de uma eventual ação rescisória.

Sendo a Constituição a base de todo o ordenamento jurídico do Estado, além de ser o controle da constitucionalidade uma atividade extremamente relevante e sensível, o julgamento de questões dessa índole não poderia estar sujeito a um único magistrado, por isso, dispõe a Constituição no art. 97, que "Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público." Procedendo dessa maneira, haverá uma maior segurança dos julgados dessa natureza e, por conseguinte, ter-se-á a certeza de que os preceitos constitucionais estarão mais bem guardados.

Já foi dito que o legítimo guardião da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, entretanto, se este órgão atuasse por si só, sua atividade de proteção estaria com certeza fadada a uma imperfeição. De toda sorte é que se faz necessária a atividade de todos os entes federados para que em conjunto possam tirar do ordenamento jurídico aquelas normas que não estão em conformidade com a Carta Magna. Daí é que o constituinte, no art. 23, I, da CF, delegou competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para juntos zelarem pela guarda da Constituição.

O constituinte de 1988 alargou a legitimidade ativa para propor a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, CF), fato que não ocorria nas constituições anteriores. Agora não mais apenas órgãos públicos têm legitimidade para defender a ordem jurídica. Todavia, dentro do rol do art. 103, em meio aos inúmeros agentes, que nele foram arrolados, o constituinte achou por bem não incluir o cidadão, o que se apresentou como erro perante os fundamentos e alcance da Constituição.


IV. Declaração Incidental de Constitucionalidade em sede de Ação Civil Pública

Conforme observado, o controle de constitucionalidade difuso é espécie de jurisdição constitucional reconhecida amplamente, através do qual todos os magistrados têm a possibilidade de aferir ante o caso concreto a compatibilidade vertical entre o fundamento normativo invocado e o texto da Constituição.

À evidência que inexistindo restrição na própria Constituição para estabelecer que tipo de ação seria apta a utilizar-se do controle difuso, não se poder admitir a recusa de controle de constitucionalidade em sede de ação civil pública.

Ocorre, todavia, que consoante se observou alhures, a referida ação possui entre seus atributos o chamado efeito erga omnes, o que, aos olhos de alguns, impediria a análise difusa da constitucionalidade, pois que esta não seria restrita às partes, ocasionando usurpação de competência do STF.

Nesta hipótese, à luz da própria interpretação do Supremo Tribunal Federal, a ação civil pública seria utilizada como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade, tendo como fito exercer controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo.

Note-se que a justificativa para impedir que o autor da Ação Civil Pública se pauta na inconstitucionalidade está adstrita somente ao efeito erga omnes, que seria exclusivo do controle concentrado, cuja competência exclusiva pertence ao STF.

Acerca do assunto, proclamou o Min. Moreira Alves:

"O controle de constitucionalidade in abstracto (principalmente em países em que, como o nosso, se admite, sem restrições, o incidenter tantum) é de natureza excepcional, e só se permite nos casos expressamente previstos pela própria Constituição, como consectário, aliás, do princípio da harmonia e independência dos Poderes do Estado"[15].

Seguindo essa linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal teve o ensejo de cassar julgamentos de primeira instância e liminares concedidas em ações civis públicas que consideravam certas normas inconstitucionais erga omnes, entendendo haver no caso verdadeira usurpação de competência da Suprema Corte.

Volvendo-se os olhos a um aresto especificamente, afigura-se salutar transcrever a ementa e parte do voto:

"Ação Civil Pública – Ação Direta de Inconstitucionalidade de tributo travestida de ação civil pública – Descabimento. (...) Admitida, portanto, a ação civil pública para obstar à cobrança de tributo havido por inconstitucional, abre-se a possibilidade de prolação de sentenças contraditórias, com efeitos igualmente erga omnes, o que resulta absurdo. Imagine-se, no caso do Rio Grande do Sul, uma ação civil pública, julgada pelo Tribunal de Alçada, afirmando a inconstitucionalidade de um tributo municipal e uma outra ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente pelo Tribunal de Justiça. Qual decisão prevalecerá erga omnes? A proferida em primeiro lugar? A proferida por último? A proferida pelo Tribunal Superior? A simples possibilidade desse caos está a demonstrar a impossibilidade de se admitir a ação civil pública quando possível a ação direta de inconstitucionalidade"[16].

Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes[17] também assinala que: "tem-se de admitir a inidoneidade completa da ação civil pública como instrumento de controle de constitucionalidade, seja porque ela acabaria por instaurar um controle direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau, seja porque a decisão haveria de ter, necessariamente, eficácia transcendente das partes formais".

Apesar de apresentar-se coerente a tese esposada, não é de se dar guarida a mesma. Veja que entre "processo objetivo" e "processo subjetivo" há grande diferença, devendo, por conseguinte, a questão ser analisada sob outros aspectos, notadamente, o do sistema processual civil vigente e o da hermenêutica constitucional de proteção dos direitos fundamentais.

Entre a ação direta de inconstitucionalidade e a ação civil pública utilizada para o controle de direitos coletivos e difusos é de se reconhecer que há enormes semelhanças que as tornam um processo objetivo, como ressalta o douto professor e constitucionalista já referido: "a ação civil pública aproxima-se muito de um típico processo sem partes ou de um processo objetivo, no qual a parte autora atua na defesa de situações subjetivas, agindo, fundamentalmente, com o escopo de garantir a tutela do interesse público"[18]. Entretanto, entre a ação civil pública e a ação direta de inconstitucionalidade, também existem profundas diferenças que não podem deixar de ser indicadas.

Como ressalva o professor Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery[19] "O objeto da ACP é a defesa de um dos direitos tutelados pela CF, pelo CDC e pela LACP. A ACP pode ter como fundamento a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. O objeto da ADIn é a declaração, em abstrato, da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com a conseqüente retirada da lei declarada inconstitucional do mundo jurídico por intermédio da eficácia erga omnes da coisa julgada. Assim, o pedido na ACP é a proteção do bem da vida tutelado pela CF, CDC ou LACP, que pode ter como causa de pedir a inconstitucionalidade de lei, enquanto o pedido na ADIn será a própria declaração da inconstitucionalidade da lei".

Na ação civil pública, o objeto principal, conforme já ressaltado, é o interesse público, enquanto que, na ação direta de inconstitucionalidade, o objeto principal e único é a declaração de inconstitucionalidade com força de coisa julgada material e com eficácia erga omnes.

Na ação civil pública, a inconstitucionalidade é invocada como fundamento, como causa de pedir, constituindo questão prejudicial ao julgamento do mérito. A constitucionalidade, nesta hipótese, é questão prévia (decidida antes do mérito da ação principal) que influi (prejudica) na decisão sobre o pedido referente à tutela do interesse público. É decidida incidenter tantum, como premissa necessária à conclusão da parte dispositiva da sentença.

Uma vez que a coisa julgada material recai apenas sobre o pedido, e não sobre os motivos, sobre a fundamentação da sentença, nada obsta que a questão constitucional volte a ser discutida em outras ações com pedidos e/ou partes diversos. Nesse sentido, é cristalina a legislação processual civil em seu art. 469, verbis:

"Art. 469. Não fazem coisa julgada:

(...)

III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo"

A ação direta de inconstitucionalidade é o instrumento do controle concentrado da constitucionalidade, enquanto a ação civil pública, tal qual todas as ações individuais ou coletivas, mesmo sendo um instrumento de processo objetivo para a defesa do interesse público, é instrumento de controle difuso de constitucionalidade, inexistindo qualquer restrição, especialmente constitucional, para promover o controle de validade normativa.

Observe-se, ainda, que, na ação civil pública, a eficácia erga omnes da coisa julgada material não alcança a questão prejudicial da inconstitucionalidade, é de âmbito nacional, regional ou local, conforme a extensão e a indivisibilidade do dano ou ameaça de dano. Na ação direta, a declaração de inconstitucionalidade faz coisa julgada material erga omnes no âmbito de vigência espacial da lei ou ato normativo impugnado (nacional ou estadual).

Não bastasse isso, as ações civis públicas estão sujeitas a toda cadeia recursal prevista nas leis processuais, onde se inclui o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, enquanto que as ações diretas são julgadas em grau único de jurisdição. Portanto, a decisão proferida na ação civil pública no que se refere ao controle de constitucionalidade, como qualquer ação, se submete, sempre, ao crivo do Egrégio Supremo Tribunal, guardião final da Constituição da República.

Por fim, aponte-se que a ação civil pública atua no plano dos fatos, através, notadamente, das tutelas condenatória, executiva e mandamental, que lhe assegurem eficácia material. A ação direta de inconstitucionalidade, ao seu turno, tem natureza meramente declaratória, limitando-se a suspender a eficácia da lei ou ato normativo em tese.

Não se confundem de modo algum, pois, a ação direta de inconstitucionalidade e a ação civil pública, não ocorrendo em absoluto usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, há de se ter claro que a atribuição da ação civil pública é a proteção de direitos fundamentais, de modo que impedir a análise de matéria constitucional em seu bojo significa limitar o seu uso.

A ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24/7/85, recebeu "status constitucional" no artigo 129 da Lei Magna de 1988, ao determinar que, entre as funções institucionais do Ministério Público, se insere a de "promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção de patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos".

Trata-se, a ação civil pública, de um writ constitucional de efetivação de direitos fundamentais, devendo, nesse sentido, ser aplicado o "princípio da máxima efetividade" na sua interpretação. Conforme assinala J. J. Gomes Canotilho[20]: "Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. (...) é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)."

Deve-se, assim, buscar interpretação constitucional que reconheça a ação civil pública como espécie de direito-garantia, cujo fito principal é a proteção dos direitos fundamentais. Considerar que na ação civil pública não pode ser tratado o tema controle de constitucionalidade, como questão prejudicial, equivale a minimizar ou mesmo destruir a eficácia desse mecanismo de proteção de direitos fundamentais.

Talvez seja sentido que a Corte Máxima felizmente tenha começado a mudar seu entendimento:

EMENTA: - Recurso extraordinário.

Ação Civil Pública. Ministério Público. Legitimidade. 2. Acórdão que deu como inadequada a ação civil pública para declarar a inconstitucionalidade de ato normativo municipal. 3. Entendimento desta Corte no sentido de que "nas ações coletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato normativo federal ou local." 4. Reconhecida a legitimidade do Ministério Público, em qualquer instância, de acordo com a respectiva jurisdição, a propor ação civil pública(CF, arts. 127 e 129, III). 5. Recurso extraordinário conhecido e provido para que se prossiga na ação civil pública movida pelo Ministério Público. RE 227159 / GO – GOIÁS RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA Publicação: DJ DATA-17-05-02 PP-00073 Julgamento: 12/03/2002 - Segunda Turma. (grifo nosso).


V. Conclusão

A idéia de Constituição reflete o conceito de estatuto jurídico mínimo de uma nação, onde estão prescritos os direitos ditos fundamentais e essenciais. Á vista da proeminência dos seus dispositivos, nada mais lógico do que o texto constitucional figurar no ápice do ordenamento jurídico, enquanto sistema escalonado, gozando, por conseguinte de superioridade material e formal.

A par de suas características particulares, a Constituição não se furta às qualidades próprias das regras em geral, possuindo poder normativo e, sendo, por conseguinte, exigível e inderrogável.

Em função disso, delineou-se método de controle de constitucionalidade que permite verificar a validade (compatibilidade) das normas infraconstitucionais em face dos dispositivos fundamentais como forma de conceder maior efetividade aos seus preceitos.

O sistema difuso, um dos modos de controle constitucional, reconhece aos magistrados o direito-dever de aferir a constitucionalidade das normas nos casos concretos, inexistindo neste sentido qualquer restrição, seja de natureza fundamental ou não.

Neste sentido, a Ação Civil Pública apresenta-se totalmente adequada para requerer no seu bojo a declaração incidental de inconstitucionalidade, não sendo legítimo negar-lhe tal possibilidade apenas pelo efeito erga omnes que produz, conforme determina o art. 16 da Lei n.º 7.347/85.

Não fosse apenas o fato de que a declaração incidental, não faz coisa julgada e, portanto, não encontraria sinônimo no controle concentrado de constitucionalidade, o princípio da máxima efetividade dos dispositivos da Constituição nos encaminha para a possibilidade de controle difuso nos casos de ações coletivas.

Enquanto texto normativo fundamental, a Constituição exige aplicação, já que possui conteúdo necessário e antecedente. É por tal razão que o multicitado professor Lênio Luiz Streck[21] nos convida para "romper com essa tradição inautêntica, no interior do qual os textos jurídicos constitucionais são hierarquizados e tornados ineficazes", tornando-se necessário compreender o sentido de Constituição. E segue, concluindo "Esse novo modelo constitucional superou o esquema da igualdade formal rumo à igualdade material, o que significa assumir uma posição de defesa e suporte da Constituição como fundamento do ordenamento jurídico e expressão de uma ordem de convivência assentada em conteúdos materiais de vida e em um projeto de superação da realidade alcançável coma integração das novas necessidades e a resolução dos conflitos alinhados com os princípios de critérios de compensação constitucionais". (sublinhou-se)

Por outro lado, resgatando os salutares objetivos da Ação Civil Pública na defesa dos interesses coletivos e difusos, não se pode admitir que os mesmos vejam-se diminuídos em sua proteção pelo simples fato de que à vista do efeito erga omnes estar-se-ia usurpando a competência exclusiva da Corte Suprema.

Deve-se, portanto, ressaltar a busca de uma interpretação que não prejudique a utilização da ação civil pública na defesa dos direitos transindividuais, e tão-pouco relegue a efetividade dos dispositivos da Constituição da República, razão pela qual a ação civil pública, como toda ação ordinária, deve poder tratar do controle de constitucionalidade difuso.

Afigura-se esse o entendimento mais pertinente aos fundamentos do sistema jurídico democrático do qual fazemos parte, conforme assinala Miguel Angel Pérez: "uma Constituição democrática é, antes de tudo, normativa, de onde se extraí duas conclusões: que a Constituição possui mandatos jurídicos obrigatórios, e que estes mandatos jurídicos não somente são obrigatórios senão que, muito mais do que isso, possuem uma especial força de obrigar, uma vez que a Constituição é a forma suprema de todo o ordenamento jurídico"[22].


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NOTAS

01. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.a Ed., JJ. Gomes Canotilho, pg.. 1004.

02. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.a Ed., JJ. Gomes Canotilho, pg.. 1006

03. Hans Kelsen apud Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, pg. 47.

04. Eduardo Garcia de Enterria, La Constituciona Como Norma Juridica, pg. 108.

05. Ob. Cit., pg. 1026

06. apud Eduardo Garcia de Enterria, La Constituciona Como Norma Juridica, pg. 101.

07. Ingo Wolgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2001, 2.a. ed, pg. 235.

08. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, Ed. Malheiros, 3.ª ed., pg. 65.

09. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, Ed. Malheiros, 3.ª ed., pg.66.

10. ob. Cit., pg. 1025

11. Streck, Lênio Luiz. A crise da Efetividade da Constituição e a Necessidade de uma nova crítica do direito (NCD), Edições Fundação Escola Superior do Ministério Público, 2003, pg. 84.

12. Ob. Cit., pg. 97

13. José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª ed., Malheiros, pág. 42, 1997, São Paulo.

14. Streck, Lênio Luiz. Tribunal do Júri, Símbolos e Rituais. Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, pg. 29.

15. RE 91.740-RS

16. Ap. cível 191130194 TARS

17. Direitos fundamentais e Controle de Constitucionalidade: estudos de direito constitucional, IBDC e Celso Bastos Editor, 1999, p. 356.

18. (Idem, p. 354).

19. Código de Processo Civil Comentado, 2ª ed. rev. e ampl., SP, RT, p. 1403, nota 7 ),

20. ob. cit, pg. 227.

21. ob. Cit., pg. 112

22. ob. Cit, pg. 113.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUINTO, Joseane Ribeiro Viana. Da declaração incidental de constitucionalidade em acão civil pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 127, 10 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4481. Acesso em: 26 abr. 2024.