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Da declaração incidental de constitucionalidade em acão civil pública

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10/11/2003 às 00:00
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1. INTRODUÇÃO

A idéia individualista dos direitos, vigorante no Estado Liberal, em que se visava proclamar a liberdade do homem em contraposição ao poder estatal, passou a perder forças diante das intensas transformações sociais, culturais, econômicas e tecnológicas que se sucederam a partir da segunda metade do século XIX e, especialmente, no decorrer do século XX.

Surgiram novas e diversas espécies de conflitos, decorrentes de sérias questões relacionadas ao interesse público, donde emergiu a consciência para direitos cujos titulares são incontáveis, muitas vezes até indeterminados, como ocorre nas tutelas referentes ao meio ambiente e à saúde pública.

Sob esta nova perspectiva, tornou-se necessária uma mudança na percepção do processo, originariamente dotado de cunho eminentemente individualista. Passou a ser imprescindível uma noção coletiva da tutela de direitos que são especiais, até então despercebidos: os interesses transindividuais ou metaindividuais, cujos titulares são classes, grupos, ou toda a coletividade.

No ordenamento jurídico brasileiro, muito embora já houvesse a disciplina da ação popular desde 1965, destinada a defender interesses de caráter geral, impunha-se a criação de um instrumento mais eficiente, que permitisse a um organismo agir em nome próprio na defesa de interesses alheios, o que até aquele momento era condicionado à autorização legal, conforme expressa disposição do art. 6.º do Código de Processo Civil, numa prova de que tradição jurídica ainda resiste a uma extensão da legitimidade processual.

Foi editada então, no ano de 1985, a Lei n.º 7347, intitulada de Lei da Ação Civil Pública, diploma de caráter instrumental, com o fito precípuo de oferecer proteção jurisdicional aos interesses de índole coletiva, com vários legitimados ativos, entre os quais o Ministério Público, a União, os Estados e os Municípios.

Aludido mecanismo legal trouxe à sistemática jurídica pátria grandes avanços, em decorrência de haver criado grande instrumento de tutela dos direitos metaindividuais, a já mencionada Ação Civil Pública, inovando ainda em vários aspectos processuais secundários, tais quais o efeito erga omens e a eficácia da coisa julgada.

É notório que após o advento de aludida lei, inúmeros conflitos e questionamentos emanaram quando do uso do novel instrumento processual, neste contexto incluído o debate referente ao pedido incidental de declaração de inconstitucionalidade.

Certos que a manutenção dos ditames constitucionais é premente, os titulares da Ação Civil Pública em várias oportunidades, balizados no controle difuso de constitucionalidade, utilizaram-se de tal fundamento para pautar seus pedidos, o que ocasionou aplausos e revoltas na seara jurídica.

A relevância do tema e os efeitos produzidos por uma e outra corrente é o objeto do trabalho que ora se apresenta, sendo intento cardeal, em síntese, delinear a função da Ação Civil Pública, bem como do Sistema de Controle de Constitucionalidade Difuso, revelando a compatibilidade entre ambos.


II. Da Constituição, importância, função e VALIDADE

Atribuir um conceito à Constituição não é tarefa fácil. E é exatamente por isso que o vocábulo mencionado pode ser definido de inúmeras maneiras, sob os mais diferenciados prismas.

Fala-se em Constituição em sentido amplo, material, formal, substancial, entre outros. É de se notar, todavia, que um e outro conceito não se excluem. Pelo contrário, somam-se e resultam na idéia contemporânea de Constituição trazida à baila por J.J. Canotilho segundo a qual cuida-se de "um conteúdo normativo específico"[1].

Para o jurista português, portanto, a Constituição de um Estado corresponde a um conjunto de regras jurídicas (normas e princípios) de fundo específico superior.

Desta definição, três caracteres imediatos são percebidos.

Primeiramente, é o fato de que uma vez reconhecido o sentido normativo do texto fundamental, clarividente é sua força vinculante, cogente e imperativa quanto aos órgãos públicos e aos componentes do Estado ao qual é dirigida.

Ressalta-se, por oportuno, que a Constituição, como foi delineada pelos iluministas, não emanava força coercitiva, intrínseca às normas jurídicas. Tratava-se de verdadeira carta de intenções, negada e ignorada quando bem conviesse.

Acerca desta situação, JJ Canotilho proclama:

"É através desta ‘mais-valia’ ou desta ‘bondade material’ que se distinguem as constituições verdadeiramente normativas das constituições semânticas (constituições de fachada). Não é pelo facto de existir um documento designada constituição que temos uma constituição. Esta existe, sim, quando o documento contém regras jurídicas materialmente consideradas ‘boas’, ‘valiosas’ ou ‘intrinsecamente legítimas’"[2].

Infere-se daí que o direito constitucional é um "direito vivo, direito de ação e não apenas um direito nos livros", dotado de efetividade e aplicabilidade, não se podendo apenas apontar-lhe valor programático e declaratório.

Por outro lado, aferível é que o texto constitucional constitui norma hierarquicamente superior do ordenamento jurídico, motivo pelo qual deve ser irremediavelmente obedecida pelas que lhe são inferiores:

"A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e, assim por diante, até buscar a norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética nestes termos – é, portanto, fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora"[3]. (sublinhou-se)

Portanto, a superioridade da Constituição evidencia a necessidade de qualquer ato normativo inferior estar materialmente (refere-se ao conteúdo das normas) e formalmente (refere-se à origem das normas) adequada às disposições insertas no texto fundamental, sob pena de vício de inconstitucionalidade, conforme os ingleses há quase dois séculos apregoavam: "an act againist Constitution is void"[4](uma lei contra a Constituição é nula).

Tais considerações, como nos aponta o já citado JJ. Canotilho, pressupõem uma razão e uma lógica para o ideal de Constituição. A razão assenta-se na idéia de lei fundamental, através de um documento escrito, "realizar um projecto de conformação política"[5].

A lógica, ao seu turno, situa-se na concepção da pirâmide geométrica. A ordem jurídica estrutura-se em termos verticais, de forma escalonada, estando a constituição no vértice da pirâmide. Em virtude desta posição hierárquica ela atua como fonte de outras normas.

E, em terceiro plano, erradia a relevância dos preceitos de natureza constitucional, considerados como de valor supremo para o Estado e, por conseguinte, irrenunciáveis e inderrogáveis.

Desde que foi criada, a Constituição afigura-se essencial a qualquer Estado de Direito, enquanto reconhece, ordena e estipula a ordem política e jurídica de uma nação. Para que haja um Estado, deve haver um ordenamento jurídico que o embasa, por esta razão, Carl Schimit alinhavou que o Estado não tem Constituição, é a própria Constituição[6].

Além disso, o texto constitucional não se limita a estabelecer o Estado e limitar-lhe o poder, enuncia os direitos fundamentais, cuja imprescindibilidade parece inexistir controvérsia.

Na lição de Ingo Wolfgang Sarlet[7], os direitos fundamentais dividem-se em duas categorias, a saber: "direitos de defesa (que incluem os direitos de liberdade, igualdade, as garantias, bem como parte dos direitos sociais – no caso, as liberdades sociais- e políticos) e os direitos a prestações (integrados pelos direitos a prestações em sentido amplo, tais como os direitos à proteção e à participação na organização e procedimento, assim como pelos direitos a prestações em sentido estrito, representados pelos direitos sociais de natureza prestacional)."

1.1 A efetividade da Constituição:

Retratada a proeminência dos dispositivos constitucionais dentro do ordenamento jurídico, apresenta-se importante definir a necessidade de se conceder efetividade às suas normas.

Diga-se, a princípio, que a questão da vigência, validade e efetividade não se restringem à área constitucional, sendo problemática estendida a toda a ordem jurídica. Neste contexto, calha-se lição do mestre José Afonso da Silva ao citar Kelsen:

"A vigência da norma, para ele, pertence à ordem do dever-ser, e não à ordem do ser. Vigência significa a existência específica de uma norma; eficácia é o fato de que a norma é efetivamente aplicada e seguida; a circunstancia de que uma conduta humana conforme a norma se verifica na ordem dos fatos."[8]

Traduz-se, pois, a efetividade da norma na capacidade de atingir objetivos previamente fixados como metas. Diz a eficácia respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma como possibilidade de sua aplicação jurídica[9].

Veja-se que se é certo que toda norma é dotada de eficácia, mais acerto ainda é dizer que a Constituição, enquanto ente normativo, exige efetividade de seus dispositivos.

Relembre-se, por oportuno, que a carta constitucional não é tratado de intenções, sendo dotada de força normativa, conforme aponta Canotilho e Vital Moreira:

"Nos livros de estudo encontram-se fórmulas como estas: normatividade da constituição, força normativa da Constituição. Através destas expressões pretende-se significar – é esse o sentido atribuído pela doutrina dominante – que a constituição é uma lei vinculativa dotada de efectividade e aplicabilidade. A força normativa da constituição visa expremir, muito simplesmente, que a constituição sendo uma lei como lei deve ser aplicada. Afasta-se a tese generalizadamente aceite nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX que atribuía à constituição um ‘valor declaratório’, uma natureza de simples direcção política, um caráter programático despido da força jurídica actual caracterizadora das verdadeiras leis."[10]

Acerca do tema, Konrad Hesse afirma que "resulta de fundamental importância para a preservação e a consolidação da força normativa da Constituição a interpretação constitucional, a qual se encontra necessariamente submetida ao mandato de otimização do texto constitucional"[11].

Observando a prática jurídica, é correto asseverar que persiste um temor inexplicável de aplicação das regras constitucionais, dando-se especial atenção às normas infraconstitucionais, relegando-se o direito constitucional a um plano secundário.

Anote-se que referida situação constitui verdadeiro absurdo dentro de uma teoria do direito pautada na superioridade incontestável da Constituição em face das demais normas.

Neste contexto, o professor Lênio Luiz Streck, com propriedade, convida o jurista para a "tarefa do des-velamento", cujo sentido é tornar visível (eficaz) o texto constitucional. Afirma ele:

"O encobrimento/velamento é, assim, o esquecimento (ocultamento) do ser da Constituição. Esse esquecimento/ encobrimento é um não-pensar-na-verdade-do-ser constitucionalizante/ fundante (de um novo modelo de Direito, contendo o dever-ser do político-econômico-social originário do processo constituinte). (...) Por isso, o des-velar do novo (Estado Democrático de Direito, sua principiologia e a conseqüente força normativa e substancial do texto constitucional) pressupõe a desconstrução/ destruição da tradição jurídica inautêntica que é mergulhada na crise de paradigmas. Ao des-construir, a hermenêutica constrói, possibilitando manifestar-se de algo (o ente Constituição em seu estado des-coberto). O acontecimento da Constituição será a re-velação dessa existência do jurídico (constitucional), que esta aí, ainda por des-cobrir. O acontecer será, assim, a des-ocultação do que estava aí velado".[12]

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Apresenta-se, pois, de extrema relevância reconhecer o valor normativo do texto constitucional, e, sendo assim, respeitar todos os efeitos jurídicos que este fato induz, não sendo possível negar vigor aos dispositivos fundamentais.


III. Do Controle de Constitucionalidade

A Constituição surgiu em meio a Revolução Iluminista do século XVIII como documento político que ordenava toda a vida estatal, impondo limites ao Estado e ao seu dirigente. De modo que sua meta era regular por completo a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias[13].

Referido documento, dada a essencialidade dos temas que albergava e ainda o faz, haveria de sobrepor-se a todas as demais legislações e situar-se no pico de uma pirâmide hierárquica, onde abaixo dela se encontrariam as leis ordinárias, leis complementares e decretos. Toda essa legislação haveria de estar em acordo com a norma maior, que é justamente a Constituição.

Com o tempo, a Constituição ampliou seu conteúdo, estabelecendo em seu texto disposições referentes aos direitos fundamentais do homem e sociais. A partir desse momento, a carta constitucional deixou de ser encarada como simples declaração de direitos e passou a ser reconhecida como fonte normativa essencial da sistemática jurídica, motivo pelo qual seria imprescindível delinear forma de proteção específica de suas regras. Esse sistema de defesa constitucional, denominado de controle de constitucionalidade, é meio de prevenir os eventuais atos e omissões contrários aos seus ditames, uma vez que se presume que, estando a Constituição num plano hierárquico superior às outras leis, não será tolerável tal desobediência.

Calha à fiveleta apontar ensinamento do mestre Clemerson Merlin Cléve que assim assevera: "o valor normativo da constituição deve ser potencializado, especialmente a normatividade dos capítulos condensadores dos interesses das classes não-hegemônicas. Mas, para isso, é necessário entender que a Constituição é, entre outras coisas, também norma, e não mera declaração de princípios e propósitos. E se é norma, dela decorrem, inexoravelmente, conseqüências jurídicas que são sérias e que devem ser tomadas a sério. E, mais que tudo, sendo norma suprema, o sentido de seu discurso deve contaminar todo o direito infraconstitucional, que não pode nem deve ser interpretado (concretizado/aplicado) senão à luz da Constituição. A filtragem constitucional consiste em interessante mecanismo propiciador de atribuição do novo, atualizado e comprometido sentido ao direito civil, direito penal, ao direito processual, etc"[14]. (sublinhou-se).

Controlar a constitucionalidade, pois, significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais.

Quanto aos pressupostos, é de se alinhavar que havendo desobediência dos procedimentos formais para reformar normas constitucionais, surgem atos contrários à Constituição, ou seja, frente a uma inconstitucionalidade, que tanto pode ser material - quando diz respeito ao conteúdo do ato normativo - quanto uma inconstitucionalidade formal - fazendo referência à maneira de procedimento, ou às formalidades a serem observadas. Inconstitucionalidade seria, portanto, uma desconformidade de normas inferiores - atos legislativos ou administrativos - com a norma superior. Seria uma contrariedade vertical, porque é sabido que, de acordo com a supremacia constitucional, todas as normas inferiores têm de estar em plena conformidade com os vetores da Constituição, que está situada no ápice da imaginária pirâmide hierárquica do ordenamento jurídico.

Não há que se falar apenas em atos normativos inconstitucionais, referindo-se tão-somente à legislação ordinária, haja vista que já é aceito na doutrina e no texto constitucional de outras legislações pátrias que o constituinte também é passível de praticar atos inconstitucionais. Daí falar-se em normas constitucionais originárias inconstitucionais. Existe a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias em caso de revisão ou emenda. Não obstante, afirma-se ainda que o próprio constituinte originário pode ser autor de uma norma constitucional inconstitucional a partir do momento em que ela não esteja observando os pressupostos fundamentais de justiça, que não é o fim apenas do Direito Constitucional, mas de toda a ciência jurídica. Nesse sentido, vai mais além o Preâmbulo da Constituição de 1988, nos seguintes termos: "(...) assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)"

O sistema de controle de constitucionalidade em muitos casos varia de país para país. No nosso caso, muito se absorveu do sistema norte americano. Dessa forma, pode-se inferir três sistemas de controle de constitucionalidade:

- Controle Político - o juízo de conformidade das normas imediatamente inferiores à Constituição, neste caso, fica ao encargo de um órgão político, como o próprio Poder Legislativo;

- Controle Jurisdicional - judicial review: há um órgão de cúpula do Poder Judiciário, legitimado pela própria Constituição para proceder ao controle constitucional de leis e atos normativos;

- Controle Misto - como o próprio nome indica, há uma conjunção das duas outras espécies de controle. Ocorre quando há certos tipos de leis sujeitas ao controle por órgãos jurisdicionais, e outras por órgãos políticos.

Á vista do tempo, pode-se dizer que há um controle preventivo, que ocorre numa fase anterior à publicação da lei, ou melhor dizendo, antes mesmo da produção final do ato legislativo. Neste caso, ainda se está diante da formação do ato, do estudo e da discussão do projeto de lei, constantes das seguintes fases: introdução, exame do projeto nas comissões permanentes, discussão, decisão e revisão.

Efetivamente, dá-se a aplicação deste controle quando o projeto de lei passa pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça, ou ainda quando o próprio Presidente da República veta o projeto (art. 66, § 1º, CF). Portanto, percebe-se que o controle preventivo é exercido tanto pelo Poder Legislativo, através das Comissões Permanentes, quanto pelo Poder Executivo, através do Presidente da República, no momento do veto.

Há ainda o controle repressivo, quando atua no momento em que o ato já está concluído, ou seja, após a publicação da lei. Também faz parte do controle repressivo o veto de competência do Congresso Nacional, no caso do art. 49, V, CF - quando os atos do Poder Executivo exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.

Para a efetivação do controle de constitucionalidades, são utilizados dois critérios, a saber:

- Controle Difuso - quando compreender uma pluralidade de órgãos legitimados para exercer a fiscalização, assim, todos os órgãos do Poder Judiciário podem atuar nesse sentido. Não há um órgão específico para tal finalidade, podendo tanto o juiz singular quanto o tribunal proceder ao controle sobre a norma que não está em conformidade com os ditames constitucionais;

- Controle Concentrado - há um órgão de cúpula, que no caso do Brasil é o Supremo Tribunal Federal, legitimado constitucionalmente para a guarda da Constituição.

Sabendo-se que não há uma ação sem demanda, haja vista que este é um pressuposto de existência do processo, e que só haverá demanda se houver um autor, é que, levando à risca o princípio do nemo iudex sine actore (não há juízo sem autor), o sistema de Controle Jurisdicional utiliza do Direito Constitucional Comparado dois modos para o exercício do controle de constitucionalidade: o controle por via de exceção e por via de ação.

2.1 Controle por via de exceção, incidental ou concreto

O Controle por via de exceção é próprio do controle difuso. Por ele, cabe ao próprio interessado, quando apresenta sua defesa num caso concreto, suscitar a inconstitucionalidade. Todavia, entende-se que também é legitimado para argüir a inconstitucionalidade todos os partícipes num processo, incluindo o Ministério Público, nos casos em que atua como custos legis. Responsável pelo julgamento é o próprio juiz que está presidindo o caso. A declaração não é o objeto principal do litígio, mas como o próprio nome está dizendo, é uma questão incidente surgida num caso concreto.

Na via de exceção a declaração da inconstitucionalidade constitui uma questão prejudicial, que deve ser sanada, pois dela depende a solução da causa principal do litígio. Não é ainda declaração de inconstitucionalidade de lei em tese, mas tão-somente declaração de inconstitucionalidade num caso concreto. Há que se dizer também que a decisão proferida pelo juiz, na via de exceção, gera efeito apenas entre as partes, não fazendo, desse modo, coisa julgada perante terceiros. Para tanto, seria necessário que a questão chegasse até o Supremo Tribunal Federal através de recurso extraordinário, nos termos do art. 102, inciso III e alíneas, da Constituição Federal. No momento em que isso ocorre, o controle deixa de ser o difuso, para se tornar um controle concentrado derivado da apreciação do caso concreto. A decisão que declara a inconstitucionalidade no caso concreto é apenas declaratória, não impedindo que outros órgãos do judiciário apliquem a respectiva lei, pelo menos até que o Senado Federal, por resolução, suspenda a sua executoriedade (art. 52, X, CF). O efeito da decisão no caso concreto é ex tunc, ou seja, fulmina a relação jurídica firmada entre as partes desde o início: retroage.

Nestes termos, a lei continua eficaz e aplicável em todo o território nacional, pois como já dito, necessária se faz a manifestação do Senado Federal, para suspender a sua executoriedade, mas essa manifestação tem efeito apenas ex nunc, ou seja, não retroage e gera seus efeitos daquele momento em diante. Importante é saber que até a atuação do Senado Federal a lei continua eficaz e aplicável, pois o que se sobrepõe é a presunção de validade das leis, daí dizer que a manifestação daquela Casa Legislativa não anula a lei, apenas lhe retira a eficácia.

2.2. Controle por via de ação, principal ou abstrato

Diferentemente da via de exceção, no controle abstrato, o fim primeiro da ação é a própria declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade, conforme o caso. Não há um caso concreto de onde surge uma questão incidente, porque o único objeto da ação já é a inconstitucionalidade da lei em tese. Não interessa, portanto, que haja previamente uma lide entre particulares. A ação surge por si mesma para expurgar do ordenamento jurídico a norma que se encontra em desacordo com a Constituição. A declaração de inconstitucionalidade já é, por assim dizer, o pedido da ação.

O art. 103 arrola as partes legitimadas a propor a ação declaratória de inconstitucionalidade: "I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa; V- o Governador de Estado; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; e VIII - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional".

Quanto ao efeito da sentença que profere a inconstitucionalidade, manifesta-se uma corrente doutrinária no sentido de que esta faz coisa julgada material, gerando, portanto, efeito erga omnes. Sustenta essa corrente que, por ser o pedido da ação a própria inconstitucionalidade de lei em tese, não é necessária a manifestação do Senado Federal, para retirar-lhe a eficácia, assim como o é na via de exceção. De acordo com o art. 52, X, da CF, cabe ao Senado a suspensão da execução de lei declarada inconstitucional por decisão "definitiva" do Supremo Tribunal Federal. O vocábulo "definitiva" compreende que tenha havido uma série de decisões acerca de uma questão e que, por via de recurso, tenha o caso chegado até o Supremo ao qual compete resolver as discussões acerca do respectivo litígio e assim fará através de uma decisão definitiva, no sentido de pôr uma palavra final à causa. Essa decisão, portanto, é originária de uma questão surgida incidentalmente num caso concreto, que chega à apreciação da Corte Superior através de um recurso extraordinário. Não há que se falar, portanto, em decisão definitiva referente às ações originárias do Pretório Excelso, pois o feito se originou na própria casa e não compreendeu decisões outras de instância anteriores antes de chegar ao órgão máximo do Judiciário.

Como a própria Constituição Federal não é explícita acerca dessa discussão, defende-se a corrente que afirma ter as decisões do Supremo efeito erga omnes, sem a necessidade de manifestação do Senado Federal. Nossa manifestação é no sentido de que, sendo o Supremo Tribunal Federal legitimado constitucionalmente como o guardião da Constituição, não haveria qualquer necessidade de manifestação de outro órgão para que as suas decisões tenham efeito vinculante contra todos. Seria até mesmo uma falta de lógica se pensar assim, porquanto as decisões dos feitos originários no próprio Supremo, referentes à inconstitucionalidade de lei em tese, têm força vinculante própria. O Supremo Tribunal Federal é o órgão máximo do ordenamento jurídico da nação e por isso suas decisões de mérito, principalmente quando relativas a feitos originários na própria casa, têm de valer por si mesmas.

Sujeitar essas decisões à manifestação daquela casa legislativa é inclusive atentar contra a separação dos poderes, haja vista que competente para dirimir questões puramente de direito é o Poder Judiciário. De certo que os poderes (ou funções do Poder Público) têm um estrito relacionamento entre si, o que justifica muitas vezes a atuação de um na esfera do outro para limitar a atividade daquele que estiver ultrapassando a sua competência, desde que esta limitação não prejudique a independência e harmonia de cada um deles (art. 2º, CF). Portanto, há entre os poderes um sistema de pesos e contrapesos: checks and balances.

Dentro do controle abstrato, existe a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, consistente de intervenção federal em algum Estado, ou Estado em Município, caso haja descumprimento das exigências do art. 34, III, alíneas "a" a "e", da CF. Só pode ser proposta pelo Procurador-Geral da República ou pelo Procurador de Justiça do Estado, conforme o caso.

Cuida-se de inovação trazida pela Constituição Federal de 1988, no seu art. 103, § 2º, é a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão, de influência da Constituição Portuguesa. Essa é uma medida que visa a dar plena eficácia aos princípios e às normas constitucionais, porque age diante do ato omissivo da autoridade responsável para dar efetividade aos preceitos da Constituição. Importante é observar que o constituinte não descreveu expressamente a competência para julgar as ações de inconstitucionalidade por omissão, entretanto, há que se entender ser o Supremo Tribunal Federal por ser o legítimo protetor da Constituição.

Em acordo com o art. 103, § 2º, da CF, declarada a inconstitucionalidade por omissão será dada ciência ao órgão administrativo responsável para, no prazo de trinta dias,providenciar a norma legal para tornar efetiva a norma constitucional. Neste caso, não há maiores problemas, pois decisão do Supremo Tribunal Federal sempre terá força de lei perante órgãos administrativos, não tendo estes por que desrespeitar aquela decisão, sob pena de sujeitar o agente público responsável pela prática do ato às sanções legais.

A maior problemática refere-se às hipóteses em que a norma omissa for de competência do Poder Legislativo, pois nesta hipótese não há prazo para o legislador tomar as medidas necessárias, além do que, não há como obrigar o Poder Legislativo a legislar. Entende parte da doutrina que a decisão declaratória de inconstitucionalidade por omissão deveria ter força de lei, caso o legislador, dentro de um determinado prazo, não agisse nesse sentido.

Outra grande novidade da Constituição de 1988 é a Ação Declaratória de Constitucionalidade, prevista no art. 102, § 4º. Competente para julgar e processar originariamente a ação declaratória consoante o art. 102, I, "a", da CF, é o Supremo Tribunal Federal. O mesmo dispositivo traz as hipóteses em que caberá a medida, a saber, lei e ato normativo federal. Propositadamente, não quis o constituinte destinar a ação declaratória às leis e atos normativos estaduais. O art. 103, § 4º arrola as partes legítimas para propor a referida ação, que são o Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República.

A finalidade da ação declaratória de constitucionalidade é pôr fim a uma série de decisões referentes a questões constitucionais em processos concretos. Dessa maneira, havendo decisões controvertidas em casos concretos, proferidas em diferentes unidades da federação, por exemplo, a referida ação teria a finalidade de estancar esses debates, através de uma decisão definitiva. A decisão proferida pelo Supremo, quer confirme a inconstitucionalidade, quer declare constitucional a lei ou o ato normativo federal, tem efeito erga omnes, assim dispõe o art. 102, § 2º, subjugando, por conseguinte, todos os órgãos do Poder Judiciário, bem como o Poder Executivo. Além de vincular àquela decisão todos os órgãos do Judiciário, o próprio Supremo também estará vinculado a ela, haja vista tratar-se de coisa julgada material, impedindo até mesmo a inaplicabilidade de uma eventual ação rescisória.

Sendo a Constituição a base de todo o ordenamento jurídico do Estado, além de ser o controle da constitucionalidade uma atividade extremamente relevante e sensível, o julgamento de questões dessa índole não poderia estar sujeito a um único magistrado, por isso, dispõe a Constituição no art. 97, que "Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público." Procedendo dessa maneira, haverá uma maior segurança dos julgados dessa natureza e, por conseguinte, ter-se-á a certeza de que os preceitos constitucionais estarão mais bem guardados.

Já foi dito que o legítimo guardião da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, entretanto, se este órgão atuasse por si só, sua atividade de proteção estaria com certeza fadada a uma imperfeição. De toda sorte é que se faz necessária a atividade de todos os entes federados para que em conjunto possam tirar do ordenamento jurídico aquelas normas que não estão em conformidade com a Carta Magna. Daí é que o constituinte, no art. 23, I, da CF, delegou competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para juntos zelarem pela guarda da Constituição.

O constituinte de 1988 alargou a legitimidade ativa para propor a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, CF), fato que não ocorria nas constituições anteriores. Agora não mais apenas órgãos públicos têm legitimidade para defender a ordem jurídica. Todavia, dentro do rol do art. 103, em meio aos inúmeros agentes, que nele foram arrolados, o constituinte achou por bem não incluir o cidadão, o que se apresentou como erro perante os fundamentos e alcance da Constituição.

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Sobre a autora
Joseane Ribeiro Viana Quinto

advogada em Mato Grosso, professora de Direito da UNIC e da UFMT, especialista em Direito Público pela UNIC/FUNESMPMT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUINTO, Joseane Ribeiro Viana. Da declaração incidental de constitucionalidade em acão civil pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 127, 10 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4481. Acesso em: 26 abr. 2024.

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