Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/45321
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Ativismo judicial à luz da teoria de Ronald Dworkin.

O caso do aborto e sua repercussão na jurisprudência brasileira

Ativismo judicial à luz da teoria de Ronald Dworkin. O caso do aborto e sua repercussão na jurisprudência brasileira

Publicado em . Elaborado em .

A doutrina dworkiniana preconiza um novo modelo de teoria do direito capaz de habilitar o Judiciário a superar o inquietante passivismo mórbido instalado no Legislativo/Executivo e que abala irreparavelmente as estruturas sociais.

1. INTRODUÇÃO

O marco histórico de um novo momento da Metodologia do Direito foi, na Europa continental, a reconstitucionalização ocorrida após a 2ª Grande Guerra e ao longo de toda a segunda metade do século XX.

No caso brasileiro, igualmente, a redemocratização (cujo ponto máximo foi a promulgação da Constituição de 1988) provocou uma nova fase política, com destaque para os Poderes Legislativo e Executivo, cada qual na sua esfera de atuação, tal como definido no texto constitucional. Todavia, não passou muito tempo até que tais poderes revelassem uma grave crise de representatividade, identidade e legitimidade, sobretudo em função da expansão das atividades administrativas assumidas pelo Estado, bem como pela verdadeira avalanche de normas que se seguiu, numa tentativa de garantir o texto constitucional.1

O momento filosófico de tal debate constitucional é o pós-positivismo e sua caracterização perante as duas grandes correntes do positivismo e do jusnaturalismo. Conforme se buscará trabalhar nos tópicos seguintes, o momento atual é marcado pela superação de dois modelos puros por um conjunto mais abrangente de ideias agrupadas sob o nome de pós-positivismo. Tal movimento tem como expoentes, dentre outros nomes, John Rawls, Robert Alexy e Ronald Dworkin.2

O Poder Judiciário passa, neste contexto, por uma espécie de redefinição do seu papel constitucional, ao renunciar ao status de simples aplicador da lei para ser um agente de interpretação das normas constitucionais, objetivando sempre torná-las efetivas na promoção dos direitos fundamentais e das transformações sociais proclamadas pela democracia.

Atualmente, questiona-se se os magistrados devem ou não curvar-se passivamente aos comandos da norma jurídica em seus atos decisórios ou se, em busca de concretização do ideal de justiça, eles poderiam suprir as omissões do Legislativo e Executivo, especialmente no tocante à implementação das políticas públicas indispensáveis ao funcionamento do Estado Democrático.

Surge assim, o movimento denominado de ativismo judicial, o qual apregoa uma postura ativa por parte dos juízes na interpretação da Constituição, alargando o alcance das normas para além do disposto pelo legislador ordinário.

No presente trabalho, faremos uma breve reflexão deste movimento à luz do pensamento de Ronald Dworkin, analisando em especial o caso do aborto e sua repercussão no Brasil.


2. O MOVIMENTO DENOMINADO “ATIVISMO JUDICIAL”

Ao longo do Século XX superou- se o modelo em vigor até então na Europa segundo o qual a Constituição era apenas um documento político, com concretização de suas propostas condicionada à uma atuação do Poder Legislativo ou à discricionariedade do administrador, sem nenhuma relevância do Poder Judiciário neste processo. Com a reconstitucionalização que sobreveio à 2ª Guerra Mundial, a situação começou a ser alterada inicialmente na Alemanha3, posteriormente na Itália e, mais à frente, em Portugal.4

O termo “ativismo” cristalizou- se nos EUA através de importantes decisões da Suprema Corte Americana, como a decisão do aborto, tema a ser oportunamente estudado neste trabalho. O movimento se encontra associado a uma idéia de interação do Judiciário na efetivação do texto constitucional, com ingerência nas atividades típicas dos poderes Legislativo e Executivo.

Mister observar que o uso ponderado e mediano da equidade e da tópica não é ativismo judicial. Tal conceito se liga à ideia de determinação de comportamentos para os órgãos estatais acerca de políticas públicas e enquadramento na Constituição de situações nela não incluídas, sem pronunciamento do legislador ordinário. Muitas vezes, sob o pretexto de concretização da Constituição o juiz ativista chega a julgar expressamente contra o texto da lei.

O Judiciário que já foi apontado como um Poder menos legítimo, por não serem os seus membros eleitos pelo povo ( ao passo que o Legislativo e o Executivo eram considerados os verdadeiros pilares da democracia), passa a reverter tal situação, ocupando o lugar de guardião das garantias constitucionais, monitorando, sobretudo, o arbítrio dos demais poderes, a fim de evitar desmandos e excessos.5

O juiz ativista, neste contexto, tem sido consagrado como aquele que supre a omissão e debilidade dos demais Poderes através de uma filosofia concretizante, revelando uma visão progressista e reformadora.

Cumpre, todavia, esclarecer que a interpretação jurídica tradicional não está superada, uma vez que é a responsável pela solução da maioria das questões jurídicas. Ocorre que os métodos tradicionais de interpretação jurídica não são capazes de fornecer uma resposta adequada para a solução de um conjunto de problemas ligados à realização da vontade constitucional. Então, os operadores jurídicos e os teóricos do Direito, ao perceberem tal carência, deflagraram o processo de elaboração doutrinária de novos conceitos e categorias, utilizando, para tanto,”um arsenal teórico diversificado, em um verdadeiro sincretismo metodológico”6.

O ativismo judicial na visão de Ronald Dworkin no contexto pós-positivista assume o caráter de um compromisso dos Tribunais com os direitos morais do indivíduo contra o Estado, desenvolvendo os princípios da legalidade e igualdade, assumindo para si a competência institucional e a sensibilidade necessárias para resolver as demandas judiciais atuais.7


3. ATIVISMO JUDICIAL À LUZ DA TEORIA DE RONALD DWORKIN

3.1.Princípio da Integridade como modelo de interpretação construtiva do direito

Preocupado com a definição positivista do Direito, que o reduz a um modelo de regras e que autoriza o juiz a utilizar o poder discricionário ao se deparar com casos complexos (hard cases), Dworkin propõe uma teoria da interpretação que auxilia os operadores do Direito a encontrar uma resposta correta mesmo em tais casos.

Em busca de respostas para a solução de cada caso concreto, durante a atividade hermenêutica, o intérprete pode vir a optar por diversas teorias. Entre elas, está o Perfeccionismo de Dworkin. Consoante esta teoria, a Constituição é vinculante e deve- se buscar aprimorá-la por meio da interpretação das normas abstratas e de suas cláusulas vagas, intentando captar seus ideais da melhor forma possível.8

Desta forma, não há como separar a interpretação das normas mais relevantes de uma visão moral. Dworkin reconhece uma conexão entre conceitual entre lei e moral, aduzindo que a interpretação legal deve aspirar por uma justificação moral para a obediência da lei. Segundo este filósofo, um regime incapaz de gerar um dever de obedecer à lei não é um sistema jurídico, mas tão somente um sistema de coerção organizada.9

Neste sentido, surge a possibilidade dos cidadãos alcançarem um provimento jurisdicional favorável ainda que inexista dispositivo jurídico correlato. Isso porque Dworkin trabalha com a distinção entre “argumentos de princípio” e “ argumentos de política”, sustentando que os fundamentos do Estado Democrático são compatíveis com os primeiros.10

Argumentos de política, portanto, são aqueles que protegem a coletividade, enquanto que os argumentos de princípio protegem os direitos de um determinado indivíduo, ou de um grupo, ainda que a comunidade como um todo seja negativamente afetada.

Através da análise do caso julgado pela Suprema Corte Americana “ Riggs v. Palmer”, em 1889, Dworkin faz uma demonstração pontual da distinção entre princípios e regras, bem como da prevalência do princípios perante as regras e, sobretudo, na inexistência delas.11 Diante da omissão do direito sucessório do Estado de Nova Iorque, o Poder Judiciário resolveu a questão através da aplicação do princípio que preconiza que “ninguém pode se aproveitar de sua própria torpeza”.12

No tocante à relação entre princípios e regras, Dworkin faz uma análise do caso que ficou conhecido como “Henningsen contra Bloomfield Motors Inc”. Em 1969, o Tribunal precisou decidir em que limites o fabricante de veículos defeituosos responde perante o consumidor e terceiros por eventuais danos que possam ser provocados por tais automóveis. Mesmo diante da lacuna da lei, o Tribunal considerou que o fabricante tem “uma obrigação especial no que diz respeito à fabricação, promoção e venda de seus carros”13. Isso leva à necessidade de uma análise mais cuidadosa pelos Tribunais no tocante à equidade nos contratos de compra e venda. No conflito entre liberdade de contratar e a tutela dos interesses do consumidor, necessário se torna analisar o grau de peso e relevância de cada princípio, sendo, para tanto, todos considerados.

Os princípios, diferem, assim, das regras que, ou são imprescindíveis, ou plenamente dispensáveis.14

Um dos elementos centrais da teoria sobre ativismo judicial de Dworkin é o Princípio da Integridade, conceituado como uma construção una e coerente do direito, com fidelidade aos princípios fundamentais, tais como igualdade, dignidade da pessoa humana e liberdade. Tal filosofia busca comprovar que a integridade, enquanto virtude política, forma um estilo de comunidade jurídica comprometida com a moral do direito e, naturalmente, com seu poder coercitivo.

O princípio da integridade tem aplicação no Poder Judiciário, à medida que leva os juízes a extrair os direitos e deveres do ordenamento jurídico tendo por pressuposto que foram criados por um único autor – a comunidade personificada – sempre como expressão máxima de justiça e equidade.15

Ademais, o princípio da integridade também tem aplicação no Poder Legislativo, pois ao legislador também é dada a tarefa de preservação da justiça, equidade e devido processo legal, sempre primando pela coerência moral do direito, tendo em vista o caráter eminentemente interpretativo das proposições jurídicas.

O princípio da integridade seria, nesta medida, um componente indispensável do Estado Democrático de Direito e um dos que mais se evidenciam na prática jurídica, uma vez que possui ligação estreita com o conceito de justiça. Isso porque, enquanto virtude política, a justiça corresponderia à correta distribuição dos recursos materiais e sociais entre as pessoas, guardando afinidade com as deliberações finais tomadas pelas instâncias políticas que representam a comunidade.16

Conforme já mencionado, a integridade também guarda estreita relação com a equidade, à medida que esta se ocupa de dos procedimentos políticos adotados pela sociedade em suas escolhas, geralmente pautadas na igualdade, a qual confere a cada cidadão a mesma oportunidade de participação. Este aspecto é bastante relevante, já que, em uma comunidade complexa, é razoável encontrarmos diferentes compreensões do que seja realmente justo em matérias de maior comoção a exemplo do aborto, que será abordado adiante no presente trabalho.

Já no tocante ao devido processo legal, os princípios dworkinianos se relacionam à correição dos procedimentos de julgamento.

É de salutar importância a observação que Dworkin faz no tocante às divergências de concepção entre os grupos sociais. Mesmo quando um grupo não anui com a concepção do outro, nada impede que possa admitir que a conduta adversa também expressa valores morais, reconhecendo nela decência e justiça. Considera pressuposto de civilização o respeito e tolerância pela diversidade, o que acaba por ser refletido nos casos submetidos a julgamento uma vez que, quando ocorrem divergências entre os múltiplos conceitos de justiça, necessária se torna a garantia de tratamento justo e igualitário pelo Direito Democrático .

Ainda que não seja uma resposta a todos os casos concretos, o princípio da integridade constitui uma valiosa recomendação aos julgadores para que compreendam o direito na sua totalidade aos julgar as demandas que lhe são postas e interpretem com a devida relevância os preceitos e normas daquela comunidade.

Ressalte- se que qualquer julgamento, no entanto, requer a devida fundamentação fulcrada em teorias e princípios que impedem decisões arbitrárias e abusivas, eivadas de preferências estritamente pessoais.17

Dworkin percebe a construção da prática jurídica como a elaboração de um romance em cadeia, através do qual o intérprete busca conferir um sentido ao texto e não tentar decifrar a intenção de quem o escreveu. Sua visão do direito como integridade considera as afirmações jurídicas tanto voltadas para o passado quanto para o futuro, e estão em processo ininterrupto de desenvolvimento.

Ademais, Dworkin aponta a “interpretação construtiva” como uma técnica para suprir as lacunas decorrentes das divergências jurídicas e teóricas que gravitam o mundo do direito. Esta atitude interpretativa tem como pressuposto o fato de que a prática jurídica não é apenas real, mas também traz consigo um objeto específico, um propósito, visando reafirmar princípios morais que devem ser respeitados. Ademais, as condutas que a prática social impõe também se sujeitam às pretensões, limitações e pretensões dessa mesma prática.

A conjugação do princípio da integridade com a prática da interpretação construtiva busca minimizar as inquietações que surgem diante do problema daquele juiz que, embora intelectualmente qualificado, não passa de um mero burocrata da verdade formal, despreparado para enfrentar as situações para as quais o bacharelado não o preparam, tampouco lhe foi exigido no concurso de ingresso na magistratura.18

3.2. A Leitura Moral da Constituição e o Juiz de Hércules

Conforme visto até o presente momento, Dworkin estabelece um vínculo entre Direito e Moral e admite estarem as pessoas ligadas por princípios comuns e não somente por normas impostas por consenso político.19 Por outro lado, em que pesem viverem numa sociedade com diferentes interesses e convicções pessoais, os cidadãos, no liberalismo dworkiniano, aspiram por um tratamento de igual respeito e consideração para todos, o qual deve ser garantido na instância constitucional.20

Para efetivação desta “leitura moral” necessário se faz os cidadãos abandonem a visão meramente utilitarista típica do juspositivismo e se tornem defensores também dos interesses dos demais indivíduos da comunidade, num verdadeiro “ Compromisso Moral Coletivo”, sem que isso afete sua autonomia individual.21

A “leitura moral da Constituição” deve ser compreendida, portanto, como o um processo de interpretação e aplicação das cláusulas constitucionais definidoras dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, levando em consideração os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade.

Cumpre esclarecer que a tese de Dworkin refuta a hipótese do magistrado decidir aplicando a discricionariedade nos casos difíceis a ele submetido. Tal questão constitui, inclusive, o ponto nuclear de seu debate com o pensador positivista H.L.A. Hart.22

Dworkin tenta garantir um ativismo judicial alicerçado em argumentos racionais e controláveis, posicionando- se contra quaisquer abusos por parte dos juízes. Em sua leitura, o Poder Judiciário, ao aplicar o direito, deve observar que a moralidade política constitui o ponto central da Constituição. A discricionariedade, desta forma, enfraqueceria sobretudo três princípios intransponíveis da democracia liberal: autonomia pública, segurança jurídica e separação de poderes.

Surge, neste contexto, a figura do Juiz Hércules, do qual se espera a concretização do conceito ideal de Justiça. Este juiz esculpido pelo filósofo deve dominar todos os princípios vigentes e torná-los integrados ao direito por meio de elementos argumentativos. Compete também a Hércules, no processo interpretativo, o dever de desprezar os precedentes que forem incoerentes e impróprios para compor a solução do caso concreto em pauta. Tem em seu horizonte o firme propósito de alcançar a melhor decisão, alicerçando- se sempre nos princípios, destacando- se, entre estes, a moralidade e a integridade.23

Consoante se denota, Hércules é a figura ideal de magistrado, com poder moral e intelectual tão intenso que se equipara às forças físicas sobrenaturais dos respectivos deuses gregos. É um tutor dos direitos das minorias, garantindo seus interesses contra possíveis injustiças impostas pelas maiorias.

Neste ponto da teoria de Dworkin é que surge uma das principais críticas feitas ao seu método por Habermas. O fato de Hércules estudar o direito na solidão de seu gabinete acaba por negar ao mesmo um interlocutor qualificado e a possibilidade de aprimorar seus argumentos, contrariando a própria teoria do discurso.24

Apesar da crítica feita por Habermas, deve-se considerar o fato de que Hércules possui um padrão de qualidade, e tem como objetivo buscar a melhor resposta jurídica para o problema apresentado, sempre se esmerando na construção do direito como integridade.

Ao tratar de normas constitucionais, Hércules não pode ser visto nem como um passivista, tampouco como um ativista. Acredita, assim como em outros casos, que “sob o regime do direito como integridade, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação, não uma emenda”25. O julgamento de Hércules exigirá a verificação de compatibilidade das normas com os mandamentos constitucionais, sobretudo no tocante à preservação das minorias, sempre buscando a concretização do ideal de justiça.26


4. ATIVISMO JUDICIAL E DEMOCRACIA – O CASO DO ABORTO DO FETO ANENCÉFALO

Intensos são os desafios enfrentados pela democracia diante das múltiplas transformações sofridas pela sociedade, sempre exigindo do Estado posturas efetivamente justas e coerentes com as proposições constitucionais.

O caso do aborto há décadas tem desafiado o Poder Judiciário dos estados com discussões que gravitam em torno de pelo menos duas bandeiras: a primeira, defendida pelos grupos pro-life, os quais defendem a proteção da vida do feto, uma vez que esse ente, ainda que disforme, seria um ser humano em potencial, com todas as suas prerrogativas legais, sociais e espirituais, merecedor de respeito e dignidade. Já a segunda corrente refere- se ao discurso pro-choice e centra- se na defesa do livre arbítrio feminino frente à autonomia sexual e ao direito de procriação, não comportando intervenção do Estado por se tratar de matéria relativa à privacidade da mulher.

Evidentemente, trata- se de um tema bastante delicado para a manutenção do sentido de justiça, pois são envolvidos argumentos não apenas jurídicos, mas também filosóficos, religiosos, econômicos, científicos, culturais e de toda ordem, desafiando a interpretação de um direito que deverá permanecer atento e sensível às particularidades e demandas de ambos os segmentos.

Quanto ao direito brasileiro são admitidos os abortos de caráter terapêutico necessário para salvar a vida da mãe, e sentimental, ético ou humanístico se a gravidez resulta de estupro. Todavia, constituem crime todas as demais modalidades (arts. 124 ao 126 do diploma penal pátrio). Tormentosa questão se refere ao aborto de fetos anencefálicos – compreendidos como os que não possuem encéfalo nem medula espinhal.

Do ponto de vista de Dworkin, não se trata exatamente de se definir se o feto seria pessoa na acepção jurídica do termo e teria direitos em razão disso - prevalece a sacralidade da vida27, razão pela qual esta deve ser mantida a salvo de posturas violentas ou inconsequentes, ainda que o conceito de sacralidade permita interpretações diferentes.

De fato, a santidade da vida é uma noção controversa, por exemplo, quando um feto for deformado, como no caso da anencefalia, será o aborto, ou o nascimento, que servirá melhor ao valor intrínseco da vida? Quando o nascimento da criança arruinar os planos de vida da mãe, pode-se levantar a mesma questão.

Uma verdadeira percepção da dignidade deve apelar para a liberdade e não para a coerção penal, a fim de impor um ponto de vista de alguma maioria sobre os demais indivíduos em questões tão cruciais como a vida e a morte.28 A questão, portanto, não é quem tem direitos, ou como interesses diferentes devem ser balanceados e protegidos. A democracia tem o dever de assegurar que as pessoas tenham o direito de viver suas vidas em acordo com suas próprias convicções sobre questões religiosas essenciais.29

Neste contexto, em 1991 foi deferido pioneiramente um aborto anencefálico no Brasil30, sendo que, hodiernamente, mais de duas mil autorizações nesse sentido foram concedidas pelo Poder Judiciário. A “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental” (ADPF Nº. 54), em trâmite no Supremo Tribunal Federal também trata da matéria, estando em debate se os casos previstos no Código Penal Brasileiro relativamente ao aborto violam preceitos fundamentais da Constituição da República, como a dignidade da pessoa humana, princípio da legalidade, da liberdade e autonomia da vontade, e o direito à saúde.

Como resposta a esse procedimento, mesmo tendo sido em sentido contrário o parecer do Procurador Geral da República, em 1º de julho de 2004 foi reconhecido liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal31 o direito ao aborto terapêutico em casos de fetos anencefálicos, Atualmente, aguarda-se decisão definitiva concernente ao mérito dessa demanda de interesse nacional.

Vislumbrando alternativas para compor tamanha equação com imprescindível segurança e justiça, a doutrina dworkiniana propõe a aplicação de processos de interpretação construtiva fulcrados na integridade, na moral e na democracia. No caso do aborto, ora suscitada, o Supremo Tribunal Federal não se quedou inerte diante da lacuna legal no tocante às hipóteses de aborto, considerou todos os princípios relevantes e proferiu uma decisão no sentido de garantir o direito de uma minoria – no caso, das gestantes cujos fetos não têm chance de vida viável fora do útero, agindo, portanto, como um verdadeiro “Juiz de Hércules”, num movimento ativista efetivamente concretizador dos ideais de equidade e justiça previstos na Constituição Federal brasileira.


5. CONCLUSÃO

Este trabalho buscou fazer uma breve análise acerca do movimento denominado ativismo judicial à luz da doutrina de Ronald Dworkin, tendo como pano de fundo a realidade jurídica brasileira e por ilustração a questão do aborto.

Procurou-se demonstrar como a doutrina dworkiniana preconiza um novo modelo de teoria do direito capaz de habilitar o Judiciário a superar o inquietante passivismo mórbido instalado no Legislativo e no Executivo e que abala irreparavelmente as tênues estruturas sociais.

Com efeito, conclui-se que o ativismo é um inegável vetor da democracia e de consolidação dos direitos fundamentais gestados, nesta hipótese, pelos próprios julgadores, atentos ao “Princípio da Integridade” e à “Leitura Moral da Constituição”.

Para tanto, os magistrados, numa permanente interpretação construtiva da lei ou de qualquer outro padrão de norma, devem criar o Direito a ser aplicado em um certo caso concreto, notadamente quando se tratar dos casos complexos que não são previstos por uma determinada regra específica da esteira jurídica nacional.

Desta feita, imprescindível se torna que o julgador rompa com a teoria positivista do direito e passe a utilizar, em sua interpretação, os valores e princípios explícitos e implícitos na Constituição, e em todo o sistema normativo pátrio.

Uma vez motivadas as decisões, sobretudo nos mencionados princípios ou em outros padrões jurídicos que escapem ao casulo da lei, não há que se falar de usurpação dos poderes do Legislativo pelo Judiciário.


REFERÊNCIAS

  • BARROSO, L.R. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. In: Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

  • BECKER, A. A. Teoria geral do direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972.

  • CAPPELLETTI, M. Juízes irresponsáveis? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989.

  • CAPPELLETTI, M. Juízes legisladores. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999.

  • DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

  • DWORKIN, R. Domínio da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

  • DWORKIN, R. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

  • DWORKIN, R. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

  • DWORKIN, R. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

  • HABERMAS, J. Direito e democracia: entre a facticidade e falidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1.

  • OLIVEIRA, A. A. S. de; MONTENEGRO, S.; GARRAFA, V. Supremo Tribunal Deferal do Brasil e o aborto anencefálico. Bioética. Disponível em : http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/94/100

  • STRECK, L. L. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas; da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

  • STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.

  • VITORIO, T. B. S. C. O ativismo judicial como instrumento de concreção dos direitos fundamentais no estado democrático de direito: uma leitura à luz do pensamento de Ronald Dworkin, Belo Horizonte, 2011, tese de doutorado.

  • ZAFFARONI, E. R. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.

  • http://www.valor.com.br/arquivo/791745/stf-tem-ativismo-sem-paralelo-diz-jurista.


    Notas

1 “O legislador sofre de gigantismo no Estado Contemporâneo. É chamado a interferir em tudo, usando a lei como instrumento para solução de problemas. Os diplomas legais se multiplicam, em profusão. Como tudo o que é feito para atender a pressão dos acontecimentos e em grande quantidade, o resultado, sob o aspecto qualitativo, nem sempre é o melhor. O acúmulo e a labilidade das normas corrói a certeza do ordenamento, que lembra um autêntico “manicômio jurídico” (BECKER, 1972, p.3-10).

2 BARROSO, 2009, p.52-54.

3 Importante é a obra de Konrad Hesse.” La fuerza normativa de la Constituición”. In: Escritos de derecho constitucional, 1983.

4 Neste particular, consideramos relevante a leitura de J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira. Fundamentos da Constituição, 1991.

5 “Certamente que o Judiciário presta o serviço de resolver conflito entre as pessoas, mas também presta outro serviço, que consiste em controlar que, nestas realizações normativas entre Estado e pessoas, o primeiro respeite as regras constitucionais, particularmente quanto aos limites impostos pelo respeito à dignidade da pessoa humana” ( ZAFFARONI, 1995, p.37).

6 BARROSO, 2010, p.58

7 “Nosso sistema constitucional baseia- se em uma teoria moral específica, a saber, a de que os homens têm direitos morais contra o Estado. As cláusulas difíceis da Bill of Rights, como as cláusulas do processo legal justo e da igual proteção, devem ser entendida como um apelo a conceitos morais, e não como uma formulação de concepções específicas. Portanto, um tribunal que assume o ônus de aplicar plenamente tais cláusulas como lei deve ser um tribunal ativista, no sentido de que ele deve estar preparado para para formular questões de moralidade política e dar-lhes uma resposta” (DWORKIN, 2010, p. 231).

8 “O programa do ativismo judicial sustenta que os tribunais devem aceitar a orientação das chamadas cláusulas constitucionais vagas no sentido que descrevi, a despeito das razões concorrentes do tipo que mencionei. Devem desenvolver princípios de legalidade, igualdade e assim por diante, revê-los de tempos em tempos à luz do que parece ser a visão moral recente da Suprema Corte, e julgar os atos do Congresso, dos Estados e do Presidente de acordo com isso” (DWORKIN, 2010, p. 215-216).

9 Criticando o positivismo de Austin, assim se posiciona Dworkin: “ Fazemos distinção importante entre o direito e até mesmo as ordens de caráter geral de um gângster. Sentimos que os rigores da lei – e suas sanções – são diferentes na medida em que são obrigatórios de uma maneira que as ordens de um fora-da-lei não são. A análise de Austin não oferece espaço para que para que se faça tal distinção, porque define uma obrigação como uma sujeição à ameaça da força e, desse modo, fundamenta a autoridade do direito inteiramente na capacidade e na vontade do soberano de causar danos aos que desobedecem” (DWORKIN, 2010, p.30).

10 “Nossa prática política reconhece dois tipos diferentes de argumentos que buscam justificar uma visão política. Os argumentos de política tentam demonstrar que a comunidade estaria melhor, como um todo, se um programa particular fosse seguido. São, nesse sentido especial, argumentos baseados no objetivo. Os argumentos de princípio afirmam, pelo contrário, que programas particulares devem ser levados a cabo ou abandonados por causa de seu impacto sobre pessoas específicas, mesmo que a comunidade como um todo fique frequentemente pior. Os argumentos de princípio são baseados em direitos” (DWORKIN, 2001, p.IX).

11 Em síntese, “Riggs v. Palmer” se refere a um julgamento consumado em 1889, em Nova Iorque. Deliberou ali o Tribunal acerca do homicídio praticado por Elmer E. Palmer contra seu avô Francis Palmer, para que este não alterasse o seu testamento, permanecendo o assassino como beneficiário principal. Ao final, Elmer teve sua herança negada, além de sofrer a correspondente condenação na esfera penal.

12 “A ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude, beneficiar- se com seus próprios ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua própria iniquidade ou adquirir bem em decorrência de seu próprio crime” (DWORKIN, 2010, p. 37).

13 DWORKIN, 2010, p. 38.

14 A diferença entre os princípios e regras jurídicas é de natureza logica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distingue- se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis á maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão” (DWORKIN, 2010, p. 39).

15 DWORKIN, 2003, p. 271.

16 Comentando o princípio da integridade, afirma Lênio Streck: “ Quando mais de uma solução se apresentar a partir dessa ‘conduta interpretativa’, o juiz deverá optar pela interpretação que, do ponto de vista da moral política, melhor reflita a estrutura das instituições e decisões da comunidade, ou seja, a que melhor represente o direito histórico e o direito vigente, sendo que esta seria, assim, a resposta correta para o caso concreto” (STRECK, 2008, p. 335).

17 “Diferentes juízes vão estabelecer esse limiar de maneira diversa. Mas quem quer que aceite o direito como integridade deve admitir que a verdadeira história política de sua comunidade irá às vezes restringir suas convicções políticas em seu juízo interpretativo.” (DWORKIN, 2003, p. 305).

18 No intuito de minimizar tal problema, recentemente o Conselho Nacional de Justiça – órgão de controle do Poder Judiciário no Brasil – editou a Resolução 75/2009, a qual regulamentou os concursos de ingresso nas carreiras da magistratura e incluiu matérias como Sociologia do Direito, Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito e da Política e Psicologia Judiciária como obrigatórias.

19 “Os membros de uma determinada sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos mais gerais, do sistema de princípios que estas decisões endossam. Assim, cada membro aceita que os outros têm direitos, e que ele tem deveres que decorrem desse sistema, ainda que estes nunca tenham sido formalmente identificados ou declarados.” (DWORKIN, 2003, p. 254,255).

20 “Devemos levar em conta ao julgar, quanto os cidadãos individualmente perdem de poder político sempre que uma questão sobre direitos individuais é tirada do Legislativo e entregue aos tribunais. Alguns perdem mais do que outros apenas porque têm mais a perder. Devemos também lembrar que alguns indivíduos ganham em poder político com essa transferência de atribuição institucional. Pois os indivíduos têm poderes na concepção de Estado de Direito centrada nos direitos, que não têm na concepção centrada na legislação. Eles têm o direito de exigir, como indivíduos, um julgamento específico acerca de seus direitos. Se seus direitos forem reconhecidos por um tribunal, esses direitos serão exercidos, a despeito de nenhum Parlamento ter tido tempo ou vontade de impô-los.“ (DWORKIN, 2001, p. 31).

21 Trata- se de uma filosofia que traduz o ideal de uma comunidade democrática incorporado por Dworkin, quando preconiza que “uma sociedade na qual a maioria despreza as necessidades e pretensões de alguma minoria, é legítima e injusta” (DWORKIN, 2006, p.25).

22 Sobre este assunto, recomendamos a leitura do item 5 do capítulo I da obra Levando os Direitos a Sério (DWORKIN, 2010, p 50 - 63).

23 “Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura desta prática, a coerência de princípio que a integridade requer” (DWORKIN, 2003, p.274).

24 HABERMAS, 1997, p. 276-277.

25 DWORKIN, 2003 - cit. 22, p. 442.

26 DWORKIN, 2003, p. 442-450.

27 “O verdadeiro argumento é muito diferente: divergimos tão profundamente porque todos levamos muito a sério um valor que nos une como seres humanos – a santidade ou inviolabilidade de cada etapa de toda e qualquer vida humana” (DWORKIN, 2009, p. 341).

28 “A liberdade é exigência fundamental e absoluta do amor- próprio: ninguém concede importância intrínseca e objetiva à própria vida a menos que insista em conduzi-la sem intermediação alguma e não ser conduzido por outros, por mais os ame ou respeite”( DWORKIN, 2009, p.342).

29 “Insistimos na liberdade porque prezamos a dignidade e colocamos em seu centro o direito à consciência, de modo que um governo que nega esse direito é totalitário, por mais livres que nos deixe para fazer escolhas menos importantes” (DWORKIN, 2009, p. 342-343).

30OLIVEIRA, A. A. S. de; MONTENEGRO, S.; GARRAFA, V. Supremo Tribunal Federal do Brasil e o aborto anencefálico.

31 Sobre um possível excesso por parte do Supremo Tribunal Federal no Brasil, assinala CANOTILHO, em matéria publicada no site do jornal Valor Econômico: "O STF faz coisas que nenhum tribunal constitucional faz" e complementa que "Mas a minha posição é a de que não são os juízes que fazem a revolução. Nunca o fizeram. Só que eles podem pressionar os outros poderes políticos dessa forma. E eu creio que é essa a posição do STF." (disponível em http://www.valor.com.br/arquivo/791745/stf-tem-ativismo-sem-paralelo-diz-jurista).


Autor

  • Fernanda Soares Ferreira Coelho

    Bacharel em 2004 pela Universidade de São Paulo, Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito, Mestra em Ciência Jurídico-políticas pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Procuradora Federal desde 2006.

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Trabalho de pós-graduação apresentado à disciplina Metodologia do Direito do curso de Ciências Jurídicas ao Abrigo do Protocolo entre a FDUP e o IPCP da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Fernanda Soares Ferreira. Ativismo judicial à luz da teoria de Ronald Dworkin. O caso do aborto e sua repercussão na jurisprudência brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4554, 20 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45321. Acesso em: 26 abr. 2024.