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Ativismo judicial à luz da teoria de Ronald Dworkin.

O caso do aborto e sua repercussão na jurisprudência brasileira

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A doutrina dworkiniana preconiza um novo modelo de teoria do direito capaz de habilitar o Judiciário a superar o inquietante passivismo mórbido instalado no Legislativo/Executivo e que abala irreparavelmente as estruturas sociais.

1. INTRODUÇÃO

O marco histórico de um novo momento da Metodologia do Direito foi, na Europa continental, a reconstitucionalização ocorrida após a 2ª Grande Guerra e ao longo de toda a segunda metade do século XX.

No caso brasileiro, igualmente, a redemocratização (cujo ponto máximo foi a promulgação da Constituição de 1988) provocou uma nova fase política, com destaque para os Poderes Legislativo e Executivo, cada qual na sua esfera de atuação, tal como definido no texto constitucional. Todavia, não passou muito tempo até que tais poderes revelassem uma grave crise de representatividade, identidade e legitimidade, sobretudo em função da expansão das atividades administrativas assumidas pelo Estado, bem como pela verdadeira avalanche de normas que se seguiu, numa tentativa de garantir o texto constitucional.1

O momento filosófico de tal debate constitucional é o pós-positivismo e sua caracterização perante as duas grandes correntes do positivismo e do jusnaturalismo. Conforme se buscará trabalhar nos tópicos seguintes, o momento atual é marcado pela superação de dois modelos puros por um conjunto mais abrangente de ideias agrupadas sob o nome de pós-positivismo. Tal movimento tem como expoentes, dentre outros nomes, John Rawls, Robert Alexy e Ronald Dworkin.2

O Poder Judiciário passa, neste contexto, por uma espécie de redefinição do seu papel constitucional, ao renunciar ao status de simples aplicador da lei para ser um agente de interpretação das normas constitucionais, objetivando sempre torná-las efetivas na promoção dos direitos fundamentais e das transformações sociais proclamadas pela democracia.

Atualmente, questiona-se se os magistrados devem ou não curvar-se passivamente aos comandos da norma jurídica em seus atos decisórios ou se, em busca de concretização do ideal de justiça, eles poderiam suprir as omissões do Legislativo e Executivo, especialmente no tocante à implementação das políticas públicas indispensáveis ao funcionamento do Estado Democrático.

Surge assim, o movimento denominado de ativismo judicial, o qual apregoa uma postura ativa por parte dos juízes na interpretação da Constituição, alargando o alcance das normas para além do disposto pelo legislador ordinário.

No presente trabalho, faremos uma breve reflexão deste movimento à luz do pensamento de Ronald Dworkin, analisando em especial o caso do aborto e sua repercussão no Brasil.


2. O MOVIMENTO DENOMINADO “ATIVISMO JUDICIAL”

Ao longo do Século XX superou- se o modelo em vigor até então na Europa segundo o qual a Constituição era apenas um documento político, com concretização de suas propostas condicionada à uma atuação do Poder Legislativo ou à discricionariedade do administrador, sem nenhuma relevância do Poder Judiciário neste processo. Com a reconstitucionalização que sobreveio à 2ª Guerra Mundial, a situação começou a ser alterada inicialmente na Alemanha3, posteriormente na Itália e, mais à frente, em Portugal.4

O termo “ativismo” cristalizou- se nos EUA através de importantes decisões da Suprema Corte Americana, como a decisão do aborto, tema a ser oportunamente estudado neste trabalho. O movimento se encontra associado a uma idéia de interação do Judiciário na efetivação do texto constitucional, com ingerência nas atividades típicas dos poderes Legislativo e Executivo.

Mister observar que o uso ponderado e mediano da equidade e da tópica não é ativismo judicial. Tal conceito se liga à ideia de determinação de comportamentos para os órgãos estatais acerca de políticas públicas e enquadramento na Constituição de situações nela não incluídas, sem pronunciamento do legislador ordinário. Muitas vezes, sob o pretexto de concretização da Constituição o juiz ativista chega a julgar expressamente contra o texto da lei.

O Judiciário que já foi apontado como um Poder menos legítimo, por não serem os seus membros eleitos pelo povo ( ao passo que o Legislativo e o Executivo eram considerados os verdadeiros pilares da democracia), passa a reverter tal situação, ocupando o lugar de guardião das garantias constitucionais, monitorando, sobretudo, o arbítrio dos demais poderes, a fim de evitar desmandos e excessos.5

O juiz ativista, neste contexto, tem sido consagrado como aquele que supre a omissão e debilidade dos demais Poderes através de uma filosofia concretizante, revelando uma visão progressista e reformadora.

Cumpre, todavia, esclarecer que a interpretação jurídica tradicional não está superada, uma vez que é a responsável pela solução da maioria das questões jurídicas. Ocorre que os métodos tradicionais de interpretação jurídica não são capazes de fornecer uma resposta adequada para a solução de um conjunto de problemas ligados à realização da vontade constitucional. Então, os operadores jurídicos e os teóricos do Direito, ao perceberem tal carência, deflagraram o processo de elaboração doutrinária de novos conceitos e categorias, utilizando, para tanto,”um arsenal teórico diversificado, em um verdadeiro sincretismo metodológico”6.

O ativismo judicial na visão de Ronald Dworkin no contexto pós-positivista assume o caráter de um compromisso dos Tribunais com os direitos morais do indivíduo contra o Estado, desenvolvendo os princípios da legalidade e igualdade, assumindo para si a competência institucional e a sensibilidade necessárias para resolver as demandas judiciais atuais.7


3. ATIVISMO JUDICIAL À LUZ DA TEORIA DE RONALD DWORKIN

3.1.Princípio da Integridade como modelo de interpretação construtiva do direito

Preocupado com a definição positivista do Direito, que o reduz a um modelo de regras e que autoriza o juiz a utilizar o poder discricionário ao se deparar com casos complexos (hard cases), Dworkin propõe uma teoria da interpretação que auxilia os operadores do Direito a encontrar uma resposta correta mesmo em tais casos.

Em busca de respostas para a solução de cada caso concreto, durante a atividade hermenêutica, o intérprete pode vir a optar por diversas teorias. Entre elas, está o Perfeccionismo de Dworkin. Consoante esta teoria, a Constituição é vinculante e deve- se buscar aprimorá-la por meio da interpretação das normas abstratas e de suas cláusulas vagas, intentando captar seus ideais da melhor forma possível.8

Desta forma, não há como separar a interpretação das normas mais relevantes de uma visão moral. Dworkin reconhece uma conexão entre conceitual entre lei e moral, aduzindo que a interpretação legal deve aspirar por uma justificação moral para a obediência da lei. Segundo este filósofo, um regime incapaz de gerar um dever de obedecer à lei não é um sistema jurídico, mas tão somente um sistema de coerção organizada.9

Neste sentido, surge a possibilidade dos cidadãos alcançarem um provimento jurisdicional favorável ainda que inexista dispositivo jurídico correlato. Isso porque Dworkin trabalha com a distinção entre “argumentos de princípio” e “ argumentos de política”, sustentando que os fundamentos do Estado Democrático são compatíveis com os primeiros.10

Argumentos de política, portanto, são aqueles que protegem a coletividade, enquanto que os argumentos de princípio protegem os direitos de um determinado indivíduo, ou de um grupo, ainda que a comunidade como um todo seja negativamente afetada.

Através da análise do caso julgado pela Suprema Corte Americana “ Riggs v. Palmer”, em 1889, Dworkin faz uma demonstração pontual da distinção entre princípios e regras, bem como da prevalência do princípios perante as regras e, sobretudo, na inexistência delas.11 Diante da omissão do direito sucessório do Estado de Nova Iorque, o Poder Judiciário resolveu a questão através da aplicação do princípio que preconiza que “ninguém pode se aproveitar de sua própria torpeza”.12

No tocante à relação entre princípios e regras, Dworkin faz uma análise do caso que ficou conhecido como “Henningsen contra Bloomfield Motors Inc”. Em 1969, o Tribunal precisou decidir em que limites o fabricante de veículos defeituosos responde perante o consumidor e terceiros por eventuais danos que possam ser provocados por tais automóveis. Mesmo diante da lacuna da lei, o Tribunal considerou que o fabricante tem “uma obrigação especial no que diz respeito à fabricação, promoção e venda de seus carros”13. Isso leva à necessidade de uma análise mais cuidadosa pelos Tribunais no tocante à equidade nos contratos de compra e venda. No conflito entre liberdade de contratar e a tutela dos interesses do consumidor, necessário se torna analisar o grau de peso e relevância de cada princípio, sendo, para tanto, todos considerados.

Os princípios, diferem, assim, das regras que, ou são imprescindíveis, ou plenamente dispensáveis.14

Um dos elementos centrais da teoria sobre ativismo judicial de Dworkin é o Princípio da Integridade, conceituado como uma construção una e coerente do direito, com fidelidade aos princípios fundamentais, tais como igualdade, dignidade da pessoa humana e liberdade. Tal filosofia busca comprovar que a integridade, enquanto virtude política, forma um estilo de comunidade jurídica comprometida com a moral do direito e, naturalmente, com seu poder coercitivo.

O princípio da integridade tem aplicação no Poder Judiciário, à medida que leva os juízes a extrair os direitos e deveres do ordenamento jurídico tendo por pressuposto que foram criados por um único autor – a comunidade personificada – sempre como expressão máxima de justiça e equidade.15

Ademais, o princípio da integridade também tem aplicação no Poder Legislativo, pois ao legislador também é dada a tarefa de preservação da justiça, equidade e devido processo legal, sempre primando pela coerência moral do direito, tendo em vista o caráter eminentemente interpretativo das proposições jurídicas.

O princípio da integridade seria, nesta medida, um componente indispensável do Estado Democrático de Direito e um dos que mais se evidenciam na prática jurídica, uma vez que possui ligação estreita com o conceito de justiça. Isso porque, enquanto virtude política, a justiça corresponderia à correta distribuição dos recursos materiais e sociais entre as pessoas, guardando afinidade com as deliberações finais tomadas pelas instâncias políticas que representam a comunidade.16

Conforme já mencionado, a integridade também guarda estreita relação com a equidade, à medida que esta se ocupa de dos procedimentos políticos adotados pela sociedade em suas escolhas, geralmente pautadas na igualdade, a qual confere a cada cidadão a mesma oportunidade de participação. Este aspecto é bastante relevante, já que, em uma comunidade complexa, é razoável encontrarmos diferentes compreensões do que seja realmente justo em matérias de maior comoção a exemplo do aborto, que será abordado adiante no presente trabalho.

Já no tocante ao devido processo legal, os princípios dworkinianos se relacionam à correição dos procedimentos de julgamento.

É de salutar importância a observação que Dworkin faz no tocante às divergências de concepção entre os grupos sociais. Mesmo quando um grupo não anui com a concepção do outro, nada impede que possa admitir que a conduta adversa também expressa valores morais, reconhecendo nela decência e justiça. Considera pressuposto de civilização o respeito e tolerância pela diversidade, o que acaba por ser refletido nos casos submetidos a julgamento uma vez que, quando ocorrem divergências entre os múltiplos conceitos de justiça, necessária se torna a garantia de tratamento justo e igualitário pelo Direito Democrático .

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Ainda que não seja uma resposta a todos os casos concretos, o princípio da integridade constitui uma valiosa recomendação aos julgadores para que compreendam o direito na sua totalidade aos julgar as demandas que lhe são postas e interpretem com a devida relevância os preceitos e normas daquela comunidade.

Ressalte- se que qualquer julgamento, no entanto, requer a devida fundamentação fulcrada em teorias e princípios que impedem decisões arbitrárias e abusivas, eivadas de preferências estritamente pessoais.17

Dworkin percebe a construção da prática jurídica como a elaboração de um romance em cadeia, através do qual o intérprete busca conferir um sentido ao texto e não tentar decifrar a intenção de quem o escreveu. Sua visão do direito como integridade considera as afirmações jurídicas tanto voltadas para o passado quanto para o futuro, e estão em processo ininterrupto de desenvolvimento.

Ademais, Dworkin aponta a “interpretação construtiva” como uma técnica para suprir as lacunas decorrentes das divergências jurídicas e teóricas que gravitam o mundo do direito. Esta atitude interpretativa tem como pressuposto o fato de que a prática jurídica não é apenas real, mas também traz consigo um objeto específico, um propósito, visando reafirmar princípios morais que devem ser respeitados. Ademais, as condutas que a prática social impõe também se sujeitam às pretensões, limitações e pretensões dessa mesma prática.

A conjugação do princípio da integridade com a prática da interpretação construtiva busca minimizar as inquietações que surgem diante do problema daquele juiz que, embora intelectualmente qualificado, não passa de um mero burocrata da verdade formal, despreparado para enfrentar as situações para as quais o bacharelado não o preparam, tampouco lhe foi exigido no concurso de ingresso na magistratura.18

3.2. A Leitura Moral da Constituição e o Juiz de Hércules

Conforme visto até o presente momento, Dworkin estabelece um vínculo entre Direito e Moral e admite estarem as pessoas ligadas por princípios comuns e não somente por normas impostas por consenso político.19 Por outro lado, em que pesem viverem numa sociedade com diferentes interesses e convicções pessoais, os cidadãos, no liberalismo dworkiniano, aspiram por um tratamento de igual respeito e consideração para todos, o qual deve ser garantido na instância constitucional.20

Para efetivação desta “leitura moral” necessário se faz os cidadãos abandonem a visão meramente utilitarista típica do juspositivismo e se tornem defensores também dos interesses dos demais indivíduos da comunidade, num verdadeiro “ Compromisso Moral Coletivo”, sem que isso afete sua autonomia individual.21

A “leitura moral da Constituição” deve ser compreendida, portanto, como o um processo de interpretação e aplicação das cláusulas constitucionais definidoras dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, levando em consideração os conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade.

Cumpre esclarecer que a tese de Dworkin refuta a hipótese do magistrado decidir aplicando a discricionariedade nos casos difíceis a ele submetido. Tal questão constitui, inclusive, o ponto nuclear de seu debate com o pensador positivista H.L.A. Hart.22

Dworkin tenta garantir um ativismo judicial alicerçado em argumentos racionais e controláveis, posicionando- se contra quaisquer abusos por parte dos juízes. Em sua leitura, o Poder Judiciário, ao aplicar o direito, deve observar que a moralidade política constitui o ponto central da Constituição. A discricionariedade, desta forma, enfraqueceria sobretudo três princípios intransponíveis da democracia liberal: autonomia pública, segurança jurídica e separação de poderes.

Surge, neste contexto, a figura do Juiz Hércules, do qual se espera a concretização do conceito ideal de Justiça. Este juiz esculpido pelo filósofo deve dominar todos os princípios vigentes e torná-los integrados ao direito por meio de elementos argumentativos. Compete também a Hércules, no processo interpretativo, o dever de desprezar os precedentes que forem incoerentes e impróprios para compor a solução do caso concreto em pauta. Tem em seu horizonte o firme propósito de alcançar a melhor decisão, alicerçando- se sempre nos princípios, destacando- se, entre estes, a moralidade e a integridade.23

Consoante se denota, Hércules é a figura ideal de magistrado, com poder moral e intelectual tão intenso que se equipara às forças físicas sobrenaturais dos respectivos deuses gregos. É um tutor dos direitos das minorias, garantindo seus interesses contra possíveis injustiças impostas pelas maiorias.

Neste ponto da teoria de Dworkin é que surge uma das principais críticas feitas ao seu método por Habermas. O fato de Hércules estudar o direito na solidão de seu gabinete acaba por negar ao mesmo um interlocutor qualificado e a possibilidade de aprimorar seus argumentos, contrariando a própria teoria do discurso.24

Apesar da crítica feita por Habermas, deve-se considerar o fato de que Hércules possui um padrão de qualidade, e tem como objetivo buscar a melhor resposta jurídica para o problema apresentado, sempre se esmerando na construção do direito como integridade.

Ao tratar de normas constitucionais, Hércules não pode ser visto nem como um passivista, tampouco como um ativista. Acredita, assim como em outros casos, que “sob o regime do direito como integridade, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação, não uma emenda”25. O julgamento de Hércules exigirá a verificação de compatibilidade das normas com os mandamentos constitucionais, sobretudo no tocante à preservação das minorias, sempre buscando a concretização do ideal de justiça.26

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Sobre o autor
Fernanda Soares Ferreira Coelho

Bacharel em 2004 pela Universidade de São Paulo, Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito, Mestra em Ciência Jurídico-políticas pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Procuradora Federal desde 2006.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Fernanda Soares Ferreira. Ativismo judicial à luz da teoria de Ronald Dworkin.: O caso do aborto e sua repercussão na jurisprudência brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4554, 20 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45321. Acesso em: 28 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho de pós-graduação apresentado à disciplina Metodologia do Direito do curso de Ciências Jurídicas ao Abrigo do Protocolo entre a FDUP e o IPCP da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

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