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O ideário brasileiro do serviçalismo aos empregados domésticos:EUA versus Brasil

O ideário brasileiro do serviçalismo aos empregados domésticos:EUA versus Brasil

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A Convenção 189 — Convenção sobre Trabalho Doméstico da OIT —, para os brasileiros, não todos, mas para a maioria, é mais uma "lei de papel", como a Lei Maria da Penha, por exemplo.

Em outro artigo escrevi sobre "Senzalas e serviçalismo: o fim da empregada doméstica secular". Dizer que a mentalidade brasileira em relação aos empregados domésticos não é de serviçalismo é criar uma ilusão de que o Brasil jamais teve escravos, guerras civis etc.

Há sempre uma verdade incontestável sobre o Brasil, mas que muitos, principalmente os darwinistas sociais, pois os tempos mudaram e os direitos humanos estão se consolidando, ainda teimam em dizer que não existe: o Brasil é uma máquina de moer pessoas. Nas redes sociais, principalmente, é fácil encontrar acontecimentos dignos dos tempos da escravidão negra "Made in Brasil". Que o digam os artistas afrodescendentes, os quais são chancelados dos mais absurdos termos racistas e preconceituosos.

Pois bem, o darwinismo social [câncer social] ainda está muito presente em nosso país, quer dizer, no âmago brasileiro. Numa matéria da BBC Brasil, as empregadas domésticas brasileiras que vivem nos EUA — atentem o que vai ser escrito — estão se recusando a trabalhar para os patrões brasileiros. Como assim? Sim, caro leitor, os trabalhadores domésticos brasileiros que moram nos EUA estão se recusando a trabalhar para os patrões brasileiros que também moram nos EUA. Motivo? A imagem fala por si:

Imagem: LATUFF CARTOONS

"Elas (patroas) pegam no pé, acham que a gente tem que trabalhar como as empregadas delas no Brasil."

A escravidão brasileira terminou, na Lei de Papel, em 1888, com a Lei Áurea. Todavia, como muitas outras leis, a arraigada concepção teórica de darwinismo social continua presente, muitíssimo presente.

A Convenção 189 — Convenção sobre Trabalho Doméstico da OIT —, para os brasileiros, não todos, mas para a maioria, é mais uma "lei de papel", como a Lei Maria da Penha, o ECA, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL (1968) — deixei em fontes maiúsculas para demonstrar que, mesmo com a Convenção, o Brasil jamais terminou com o darwinismo social. Abaixo, transcrevo parte do meu artigo "Senzalas e serviçalismo: o fim da empregada doméstica secular":

Escravos havia em quantidade. O conjunto de servos de um sobrado tipicamente patriarcal compunha-se, no Brasil dos meados do século XIX, de cozinheiros, copeiros, amas de leite, carregadores d´água, moleques de recado, mucamas. Estas dormiam nos quartos de suas amas, ajudando-as nas pequenas coisas da toalete, como catar piolhos, por exemplo. Às vezes, havia escravos em exagero. [...] (FREYRE, 1977, p. 67-68).

Longa conversa com a velha Rundle (née Maxwell) sobre o Brasil do meado do século XI. A velhinha deve ter nascido por volta de 1840. Terá agora seus oitenta e tal anos. Está lúcida. É um encanto de velhinha. Inteligente e fidalga.

Mostra-me fotografia antiga do palacete dos Maxwell no Rio: vasto palacete. Belo arvoredo. Aspecto de grandeza. Fala-me com saudade do Rio do tempo de Pedro II ainda moço. Ela frequentava os melhores salões da corte brasileira, filha que era de Maxwell, o então rei do café. Quem lê os livros e jornais da época encontra referências numerosas ao nome desse famoso escocês abrasileirado. Era na verdade um nababo: imensamente rico. Escocês encantado pela natureza do Brasil e pelas maneiras, pelos costumes e me diz a velha Rundle que muito particularmente pelos doces e bolos brasileiros. E ao contrário dos escoceses típicos, um perdulário. Sua era uma das melhores carruagens do Rio no meado do século XIX. Seus pajens e escravos primavam pelos belos trajos. Suas mucamas, também. A velha Rundle cresceu como uma autêntica sinhazinha: ninada, mimada, servida por mucamas, negrinhas, negras velhas que lhe faziam todas as vontades. “Como não ter saudades de um Brasil onde fui tão feliz?”, pergunta-me ela servindo-me vinho do Porto. “E por que não voltou ao Brasil?”, pergunto-lhe eu. Mas não insisti na pergunta: a velhinha chorava. Chorava seu Paraíso Perdido, e esse Paraíso Perdido foi o Rio de 1850 – com todos os seus horrores; mas a que entretanto não faltavam grandes encantos. São assim as épocas: todas têm seus encantos e não apenas horrores de epidemias, imundície, crueldade. (FREYRE, 2012, p. 129).


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