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O "venire contra factum proprium" na negativa de indenização de seguro de vida ante a morte do segurado em atraso permitido.

O abuso de direito e a exegese tópica do art. 763 do novo Código Civil

O "venire contra factum proprium" na negativa de indenização de seguro de vida ante a morte do segurado em atraso permitido. O abuso de direito e a exegese tópica do art. 763 do novo Código Civil

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Não são raros os casos em que o beneficiário de seguro de vida entra em juízo para exigir a indenização negada pela seguradora, tendo em vista a argüição de inexecução da avença.

"Semper in conjunctionibus non solum, quid liceat, considerandum est, sed et quid honestum sit" [1] MODESTINUS

SUMÁRIO: 1) O Direito Civil Constitucional e a Boa-Fé Na Lei 10.046 – prolegômenos - 2) A boa-fé objetiva e suas funções precípuas - 3) A derrogação de posições contraditórias (vedação do abuso de direito) e o venire contra factum proprium na doutrina e jurisprudência - 4) A aplicabilidade da tese do venire contra factum proprium em caso de negativa de indenização ao beneficiário de seguro de vida ante a morte do segurado em meio a atraso consentido - 5) A interpretação do preceito 763 do NCCB conforme à Constituição sem redução do texto excludente - 6) Conclusão – 7) Bibliografia.


1) O Direito Civil Constitucional e a Boa-Fé Na Lei 10.046 – Prolegômenos

A nova ordem de enfoque dos direitos civis pela malha constitucional [2] é reflexo evidente da evolução dos valores sociais e da necessidade de, em prol destes, obtemperar-se a faceta privatística das leis ordinárias sob o prisma da Lei Fundamental. Justamente na esteira principiológica dos preceitos 1º III, 3º I e 5º da Carta Magna de 1988, mormente na dignidade da pessoa humana [3], nos lindes do novo diploma Civil, ainda que ideologicamente a primazia do formalismo jurídico deu lugar à eticidade, o caráter individualista cedeu espaço à socialidade e o cientificismo supérfluo foi sobrestado pela operabilidade. [4]- [5]

Encimada no vetor da eticidade, o instituto da boa-fé ganhou novo fôlego na doutrina hodierna, como base de freio e contrapeso para aferir-se a extensão e latitude da legitimidade e oponibilidade dos direitos subjetivos. Ao contrário do Código de CLOVIS, superando a teoria subjetiva francesa [6], o novel diploma civil brasileiro adotou claramente a teoria objetiva da boa-fé criando um padrão de subsunção alheio a psique das partes envolvidas.

Neste norte, asseveram GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, que, "analisando o art. 187 do CC-02, conclui-se não ser imprescindível, pois, para o reconhecimento da teoria do abuso de direito, que o agente tenha a intenção de prejudicar terceiro, bastando, segundo a dicção legal, que exceda manifestamente os limites impostos pela finalidade econômica ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes" [7], dispondo MARIA HELENA DINIZ ser "a boa-fé objetiva (...) alusiva a um padrão comportamental a ser seguido, baseado na lealdade, impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes no cumprimento não só da obrigação principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de colaborar e de atuação diligente." [8]

Girando o tema no campo específico dos contratos, RUI STOCO, em percuciente observação, pontua que "o novo Código Civil, recentemente aprovado e promulgado pelo Presidente da República (Lei 10.046 de 10.01.2002), ao contrário daquele de 1916 (...) dispõe no art. 42 que "os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé". Numa primeira visada e através de exegese ainda perfunctória, Paulo KHOURI (2001, p. 4) lembra que o novo Código não está se referindo à chamada boa-fé subjetiva, mas à boa-fé objetiva, já consagrada como princípio também no Código de Defesa do Consumidor (...)" [9]

Como elucida VILLAÇA AZEVEDO, "nosso Código Civil de 1916, não possuía dispositivo expresso cuidando da boa-fé objetiva. Todavia, o novo Código Civil estabelece que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" (art. 422). Aí está resguardado o princípio da boa-fé objetiva, ou seja, a que implica o dever das partes, desde as tratativas iniciais, na formação, na execução e na extinção do contrato, bem como após esta, de agir com boa-fé, sem o intuito de prejudicar ou de obter vantagens indevidas" [10]

Pois bem, ante o advento da cláusula geral de boa-fé, reascenderam-se as discussões em torno de seus pressupostos, sub-princípios e limites, principalmente pela liberação de cognição discricionária por parte do Poder Judiciário no tocante à norma in apertus.

O grande mestre JUNQUEIRA DE AZEVEDO, em recente estudo apontou a título de orientação os quatro pressupostos para a implementação do princípio da boa-fé oriundos de trabalho jurisprudencial Alemão como modo de equacionar a sua amplitude. De lege ferenda, o primeiro, estaria coligado à correspondência com as expectativas criadas na outra parte. "toda vez que aleguem se comporta e cria na outra parte uma série de expectativas, confiança – daí a palavra fides -, temos o primeiro e importantíssimo pressuposto: a expectativa". O segundo que tenha havido investimento nesta expectativa, eis que "não basta para aquele que vê as suas expectativas frustradas apelar para um pedido de indenização ou outro pedido qualquer de uma providência. É preciso que esse que tinha expectativa tenha investido nela.". "o terceiro pressuposto é que seja uma expectativa fundada. O sujeito não pode ser um otimista inveterado""por fim, como quarto pressuposto, é preciso que a causa da expectativa tenha alguma ligação com a outra parte." [11]

Acredita-se do alinhavado que, pela potencialidade do preceito, deverá ser mensurada em cada caso a incidência proporcional dos requisitos suso esposados, sem obviamente a rigidez que a tarefa prática de apreciação das múltiplas realidades da fase de execução de um contrato não comporta.


2)A Boa-Fé Objetiva e Suas Funções Precípuas

Sem aprofundarmo-nos na problemática da boa-fé estritamente considerada, o que este breve estudo não permite, numa sintética análise, podem ser detectadas as seguintes funções precípuas que se espraiam de sua utilização:

2.1.)Interpretativa de negócios jurídicos: interpretação objetiva de qual comportamento seria correto sem avaliar a vontade das partes.

2.2.)Determinativa de equilíbrio: função de sentença determinativa por parte do Estado-Juiz como meio de prestar equilíbrio (balance) nos sinalagmas.

2.3.)Supletiva: dotar a relação obrigacional de deveres anexos que não se confundem com a própria obrigação. Os deveres da boa-fé, de informação, colaboração, sigilo nascem e sobrevivem antes e depois do vínculo obrigacional, tratando-se de deveres anexos à relação obrigacional que prescindem da vontade das partes. Ex. dever de intimidade entre patrão e empregado. Tais deveres sobrevivem à morte da relação negocial.

2.4.)Derrogatória de posições contraditórias – Tal função, que implica na limitação de direitos subjetivos, será melhor desenvolvida à seguir por relacionar-se com o cerne da proposta de discussão.


3)A derrogação de posições contraditórias (vedação do abuso de direito) e o venire contra factum proprium na doutrina e jurisprudência

Vetor que mais nos interessa no desenvolvimento do articulado, a derrogação de posições contraditórias por via dos recursos interpretativos emanados da boa-fé objetiva afigura-se como uma das mais importantes formas de correção ao eventual abuso de direito.

O grande mestre ORLANDO GOMES aponta que "a concepção do abuso de direito é uma construção doutrinária destinada a tornar mais flexível a aplicação das normas jurídicas inspiradas numa filosofia que deixou de corresponder às aspirações sociais da atualidade. Neste sentido, é um conceito amortecedor. Em verdade, sua função precípua é amortecer os choques freqüentes entre a lei e a realidade. Trata-se, no fundo, de uma técnica de reanimação de uma ordem jurídica que se está esgotando. Em última análise, o conceito nega a tese que pretende reanimar, mas, ainda assim, assegura a estabilidade do sistema em que se introduz" concluindo: "o abuso de direito é uma fórmula elástica que permite conter toda ação que se reputa inconveniente à nova ideologia das relações humanas, ao novo sentido que se vem emprestando ao comportamento social." [12]

Corroborando o supra e ultrapassando a fase da alegação de logomaquia objetada por PLANIOL (que acreditava ser antinômica a idéia de conceber um abuso no exercício de um direito lídimo) a doutrina e jurisprudência mais modernas paulatinamente assentaram a antijuridicidade objetiva daquele que em exercício de um direito próprio excede-lhe em detrimento alheio [13], o que veio a moldar, como dantes pontuado, a faceta objetiva da conduta de boa-fé calcada em padrão jurídico finalístico.

Sob tal flanco, em termos latos, conforme apregoa SPOTA, citado por CUNHA LUNA, "o direito subjetivo concebe-se como função social e não como faculdade ou poder do indivíduo, razão porque "el acto abusivo es e lacto anti-funcional". Trata-se de um "autêntico stardard jurídico": se o indivíduo desvia o poder jurídico do seu próprio e característico fim social ou econômico, incide na prática de abuso de direito" [14]

No novel codex afastou-se a culpa como pressuposto da admissibilidade do abuso de direito, centrando-se a aferição de tal realidade na subsunção objetiva do evento à um padrão prévio de conduta leal, honesta, estreme de perscrutar-se acerca da vontade interna do agente. Daí o enunciado relativo ao tema, aprovado na Jornada de Direito Civil do CEJ da CJF (11 a 15.09.2002), ter sedimentado que, "a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico" [15]

Daí, em especificação, racionalize-se que o direito subjetivo não é infenso ao controle jurídico, mas sim limitado ao exercício hábil e útil dentro dos padrões da bona fidei. Sob tal aspecto desdobram-se os principais dísticos romanos que bordejam a sua extensão no que toca à função derrogatória de posições inadequáveis: a) TU QUOQUE – o impedimento de fazer ou exigir de outrem o que não se faz ou se exige de si próprio, e.g. como ocorre na exceção do contrato não cumprido; b) INCIVILITER AGIRE – impedimento do agir de maneira incivilizada, evitando atitudes indevidas em incompatíveis com a razoabilidade. e.g. exigir de contraente de obrigação personalíssima que execute prestação em data de falecimento de ente querido; c) VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM (NULLI CONCEDITUR) – reporta à vedação de vir contra fato próprio que incute expectativa de efeitos à outrem de boa-fé. e.g. aceitar pagamento efetuado em dia diverso do contrato e depois insurgir-se quanto ao atraso; d) SUPRESSIO diz respeito a perda da possibilidade de implementação de um direito pela falta de exercício nos lindes da boa-fé e e) SURRECTIO – registra o tempo de conduta que leva à nascimento de um direito em proteção à boa-fé que dele eclode. tempo + forma de agir [16].

Com maior vagar na análise do venire contra factum proprium, conveniente o excerto das lições de AGUIAR JÚNIOR, ao dissipar que, "A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada." [17]

Pela teoria do venire, aquele que adere a uma determinada forma de proceder, não pode opor-se às conseqüências dela espargidas, justamente pelas expectativas legítimas que emergem para a outra parte que, de boa-fé, supõe-lhe presentes os efeitos [18]. Prestigia-se a conduta escorreita, debela-se a incongruente volta sobre os próprios passos.

Nestes termos, como já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça, para se ter um comportamento por relevante, há de ser lembrada a importância da doutrina sobre os atos próprios. Assim, "o direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, 11/742). Havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior." (Resp n. 95539-SP Relator Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR), onde restou consignado pelo então relator, Min. RUY ROSADO que, o sistema jurídico nacional, "deve ser interpretado e aplicado de tal forma que através dele possa ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento da eficácia e validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser a parte surpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os princípios éticos, inspiradores do sistema.". De outra feita consignou-se que o terceiro de boa-fé não pode ser prejudicado por erro próprio da administração, sob a "aplicação dos princípios de que nemo potest venire contra factum proprium e de que nemo creditur turpitudinem suam allegans" (Resp. n. 47.015(94.011462-1) – SP Relator Ministro ADHEMAR MACIEL). A Corte de Estrito Direito Ordinário já pronunciou-se, portanto no sentido de que ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa, ou seja, voltar sobre os próprios passos, para infringir a estabilidade da boa-fé objetiva, restringindo-se com isso o uso abusivo de um direito teoricamente legitimado.

A Honrada Corte do Estado de Mato Grosso do Sul também já vem endossando a tese, acordando que uma legítima expectativa não pode ser irrespondida pela Administração Pública, sob pena de ofensa à proibição do venire contra factum proprium (TJMS – 3ª. T. Cível. Apelação Cível – Ordinário – n. 2002.001703-6/0000-00 – Campo Grande. Relator Exmo. Des. HAMILTON CARLI. Unânime), dirimindo de outra feita que, a mudança de negociações pautadas por expectativa escudada na boa-fé objetiva importa em venire contra factum proprium devendo ser arrostada pela proteção da confiança da outra parte. (TJMS – 1ª. T. Cível. Apelação Cível – Ordinário – n. 2001.006261-8/0000-00 – Campo Grande. Relator Exmo Sr. Des. JORGE EUSTÁCIO DA SILVA FRIAS. Unânime)


4)A aplicabilidade da tese do venire contra factum proprium em caso de negativa de indenização ao beneficiário de seguro de vida ante a morte do segurado em meio a atraso consentido

Desfechadas as bases iniciais, interessa-nos esboçar a incidência do venire contra factum proprium como meio de derrogação nas posições contraditórias exsurgidas nos contratos de seguro de vida, onde o segurado venha a falecer em meio suposta mora contratual que se reporta em verdade à admissão de atrasos sem a devida resolução do avençado por parte da seguradora. Aqueles que conhecem a prática forense bem sabem que não são raros os casos onde dá-se a hipótese, que implica na movimentação do beneficiário em juízo para exigir a indenização negada pela parte contratante, tendo em vista a maciça resistência das seguradoras em fazê-lo sob a argüição de inexecução da avença.

Consignando-se que aqui se visa a interpretação da boa-fé ante ao contrato de seguro dentro do NCCB, não sendo objeto destes breves apontamentos o paralelo com o CDC ou o estudo específico da estática do contrato de seguro [19], mas sim de sua dinâmica frente ao Diploma Civil e a Constituição, passamos ao confronto entre as disposições da vetusta Lei de espécie e as da atual pertinentes à matéria.

O Código de CLOVIS disciplinava o assunto da seguinte forma verbis:

"Art. 1.451. Se o segurado vier a falir, ou for declarado interdito, estando em atraso nos prêmios, ou se atrasar após a interdição, ou a falência, ficará o segurador isento da responsabilidade pelos riscos, se a massa, ou o representante do interdito não pagar antes do sinistro os prêmios atrasados."

A nova lei civil giza verbis:

"Art. 763. Não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação"

Em cotejo a pensar-se sob a ótica literal (a primeira e nunca última das vias interpretativas como já o dizia o saudoso GERALDO ATALIBA), o novo CCB teria fulminado o contrato de seguro de causa resolutiva ipso iure ante o atraso. Para alguns, poderia soar que estando o contraente em mora, o advento do sinistro não redundaria no pagamento da indenização, eis que a situação prescindiria de intervenção judicial para o desate.

À evidência, tal linha de raciocínio pouco (ou nada) atenta para o arcabouço jurídico que circunda os direitos em discussão. Foi-se de há muito o tempo em que o contrato era cotejado na simples bipolaridade entre débito e crédito, na esteira do entendimento privatístico estrito que um dia prevaleceu entre nós.

Atualmente desponta a visão macro-dimensional dos negócios jurídicos. Não há falar-se em deveres e obrigações estanques entre os contratantes, mas sim em deveres e obrigações vários, anexos [20] que, nada obstante inconfundíveis, se vêem interpenetrados à conduta exigida anterior, concomitante e posteriormente a relação material base [21]. Tudo isso se espraia da noção meta-cognitiva de preeminência da boa-fé objetiva, incidente ainda que nenhuma norma positiva disciplinando-a houvesse. [22]

É por demais intuitivo: às partes cabe curar pela conduta obrigacional escorreita nos lindes da confiança, do razoável, do permitido e do aceitável. Por ilação, o plano ôntico, o aspecto real da execução do contrato gera obrigações paralelas justamente na esteira dinâmica do comando desta bona fidei.

Neste prisma, se um dos partícipes de avença aquiesce para com determinada situação - que infirma as linhas pré-dispostas originalmente - à bem do contraente mais fraco, libera-se em contrapartida o direito deste último exigir a manutenção do novo estado de coisas. Tal se explica pela ótica da já exposta teoria do venire.

É o que claramente se aplica ao caso, em interpretação tópica [23] do art. 763 em relação ao art. 765 que, em adendo à cláusula geral de boa-fé ratifica-lhe ainda mais, consignando que verbis:

"Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes"

Com efeito, se a seguradora anui durante todo o iter da vida contratual com eventuais atrasos do contratante, sem qualquer manifestação formal pelo desate (requisito prévio evidentemente exigível no caso), não há que propalar-se resolução pro hominem diante da morte do oblato em meio à tal estado de coisas. Configuraria extremo arrepio à boa-fé e flagrante abuso de direito admitir a contraditória e irrazoável tese de conduta da grande maioria das seguradoras consistente em perdoar a "mora" (rectius "prorrogação consentida") quando lhe beneficia e negar tal benesse quando, na ocorrência do sinistro, não lhe é mais proveitoso.

A partir do momento em que a seguradora permite o atraso e deixa de notificar expressamente a parte em univocidade de comportamento, fez nascer uma nova hipótese de complacência contratual o que legitima a expectativa do segurado quanto ao respondimento pela quantia segurada (real consciência da conduta esperada). Por tal tirocínio, o contrato vige e, com a sedimentação do evento causal, é de rigor o pagamento da indenização prometida pela apólice nos termos anexos oriundos da própria vontade dos sujeitos parciais. Caberá ao réu unicamente o direito de cobrar por via própria os atrasados do valor relativo ao seguro.

Frise-se por tudo que, ainda que se tente forçar a mora debitoris, há que se ter em mente, sob o escólio forte de WHASHINGTON, que esta apresenta "um lado objetivo e um lado subjetivo. O lado objetivo decorre da não realização do pagamento no tempo, lugar e forma convencionados; o lado subjetivo descansa na culpa do devedor. Esta é elemento essencial ou conceitual da mora solvendi. Inexistindo fato ou omissão imputável ao devedor, não incide este em mora" [24]. Ocorrendo o venire, insofismavelmente não poderá ser interpretado o atraso permitido como mora.

Sendo assim a interpretação literal e isolada do art. 763 é de ser evitada, porquanto há de ser apreendida est modus in rebus, como, aliás, já vinha acertadamente fazendo a jurisprudência no campo do Código Civil já revogado. [25]


5)A interpretação do preceito 763 do NCCB conforme à Constituição sem redução do texto excludente

É consabido que ao Poder Judiciário cabe a função primordial de controle de constitucionalidade das leis ordinárias, sendo certo que à míngua do Supremo Tribunal Federal ser o detentor da via concentrada de tal mister, à cada Juiz compete incidentalmente e inter partes aferir a compatibilidade dos preceitos infraconstitucionais para com a Carta Magna.

Justamente nos poderes conferidos ao Magistrado pelo NCCB, nascidos das fontes axiomáticas da Constituição Federal (dentre eles o de regular os efeitos da boa-fé objetiva), exige-se mais do que nunca a postura proativa de controle efetivo da constitucionalidade das normas civis.

Como bem discorre LUIZ FLÁVIO GOMES:

"...

É na postura positivista-constitucional, destarte, que o juiz moderno deve buscar inspiração para o exercício da sua nobre função. Desde logo impõe-se o abandono dos dogmas ultrapassados (bondade da lei, neutralidade do legislador, etc.). Urge, de outro lado, aceitar que a função judicial não é de pura subsunção, senão reflexiva. A possibilidade de revisão judicial da constitucionalidade das leis, da qual os juízes ingleses não abriram mão nem sequer no tempo do absolutismo, deve integrar o dia-a-dia do magistrado brasileiro, principalmente porque entre nós vigora inclusive o sistema do controle constitucional difuso. Somos herdeiros, nesse ponto, dos primórdios do constitucionalismo norte-americano e, exatamente por isso, não podemos nos esquecer da doutrina de JOHN MARSHALL, tido como um dos maiores Justice e pai do judicial review ou controle judicial de constitucionalidade das leis, que foi institucionalizado pela primeira vez no famoso caso Marbury v. Madison, em 1803. O juiz não está desvinculado da lei. Seu ponto de partida (e muitas vezes também o de chegada) é a lei. Mas quando não existe compatibilidade vertical entre ela e a CF, é evidente que a prioridade é desta última, que ocupa posição de destaque na pirâmide jurídica. Não se trata de se compactuar com algum tipo de "ativismo judicial" (República dos Juízes) ou alternativismo extremado, senão de render homenagens à doutrina dos direitos e garantias fundamentais de todos (acusados, condenados, vítimas, sociedade etc.). Vigência da lei não é a mesma coisa que validade. O Direito só é definitivamente obrigatório quando passa pelo crivo do controle judicial. Pode ser tolerável a assepsia "política" do juiz, mas é absolutamente censurável sua neutralidade "ética", seu desapego aos valores supremos postos nos textos constitucionais e internacionais, que tem na dignidade humana o seu eixo central. O juiz não é legislador, todos sabemos, mas tampouco justifica-se, dentro do Estado Constitucional de Direito, sua ancilática posição de ser seu mero porta-voz..." [26]

Todavia, nada impede que em determinados casos, ao invés de afastar-se por completo o preceito virtualmente eivado de inconstitucionalidade, prestigie-se a sua interpretação conforme à Lex Legum sem redução de texto concessiva, como meio de guardar-lhe sentidos exatos, sem afetar propriamente a disposição legislativa.

Acerca da interpretação conforme à constituição, pontifica UADI BULOS [27]:

"Categoria conhecida da Suprema Corte norte-americana, e sobremodo utilizada pelo Tribunal Constitucional alemão, a interpretação conforme à Constituição possui o traço da flexibilidade (...) Através da exclusão das opções interpretativas consideradas contrárias ao articulado constitucional são preenchidas lacunas, corrigindo os vazios normativos inerentes à linguagem prescritiva do legislador. Permite, assim, a construção dos textos legais, perante hipóteses concretas levadas ao tribunal, através da analogia, bem como da redução, derivação e compatibilização de pontos de vista normativos, inseridos na própria Lex Legum (...) Em "matéria de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, admite-se para resguardar dos sentidos que eles podem ter por via de interpretação, o que for constitucionalmente legítimo – é a denominada interpretação conforme a Constituição" (STF, Pleno Adin 1.344-1/ES, medida liminar, rel.Min.Moreira Alves, DJ 1, de 19-4-1996, p.12212)."

Em especificidade, aponta o mesmo autor as bases da interpretação conforme sem redução de texto:

"Modalidade de decisão do Bundesverfassungsgericht, a interpretação conforme à consituição sem redução do texto possui a natureza decisória, não consistindo, meramente numa modalidade interpretativa. É plenamente aceita e utilizada pelo Supremo Tribunal Federal (...) Ao revestir-se numa modalidade especial de ato decisório, encarregado de declarar a nulidade sem a redução do texto, ela poderá conceder ou excluir da norma impugnada um determinado sentido, que o torne compatível com a constituição. Neste ínterim, a interpretação conforme sem redução do texto desdobra-se em dupla vertente: 1ª) a que confere ao preceito impugnado raciocínio interpretativo preservador da sua constitucionalidade; 2ª) a que exclui possíveis interpretações inconstitucionais do preceito impugnado (...)"

Coadunando à interpretação conforme sem redução do texto excludente, pondera o Constitucionalista supra:

"É aquela que exclui da norma impugnada uma interpretação que lhe poderia ensejar inconstitucionalidade"

Dessarte, como forma de salvaguardar a aplicabilidade constitucional do preceito 763 do NCCB já esmiuçado, ousamos crer na possibilidade de intervenção judicial incidental para firmar-se a interpretação conforme a constituição sem redução do texto excludente, entendendo-se assim que não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação, afastando-se do conceito de mora a posição contraditória do segurador que, admitindo pagamentos atrasados, vem a ratificar a exigibilidade da quantia devida para a hipótese do advento do sinistro estipulado.

Evidentemente que tal processo cognitivo partirá, como alhures disposto, do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana estampado ainda no pórtico da Carta Política, ex vi de seu art. 1º III, bem como do objetivo de construção de uma sociedade justa e solidária, objetivos fundamentais da República também preconizados na lei das leis em seu art. 3º. I.


6) Conclusão

1.O princípio da eticidade como desdobramento do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, dá sustentação ao instituto da boa-fé objetiva prestigiado pelo novo CCB.

2.Dentre as funções precípuas da boa-fé objetiva desponta a derrogatória de posições contraditórias como meio de combate ao abuso de direito, ora positivado no novel Diploma Civil.

3.A sub-teoria da vedação do venire contra factum proprium derivada da teoria dos atos próprios é importante vetor interpretativo de combate ao abuso de direito em contratos.

4.Nos contratos de seguro onde ocorra atraso consentido, não há falar-se em resolução ipso iure, pois, se a seguradora anui com tal procedimento, não pode apregoar o inadimplemento, sob pena de voltar sobre seus próprios passos (proibição do venire contra factum proprium). A indenização assim, deverá ser adimplida, restando a seguradora somente cobrar o atrasado pelas vias ordinárias.

5.Em juízo, o art. 763 do NCCB pode ser plasmado conforme a Constituição sem redução de texto excludente para que se racionalize que, não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação, afastando-se do conceito de mora a posição contraditória do segurador que, admitindo pagamentos atrasados, vem a ratificar a exigibilidade da quantia devida para a hipótese do advento do sinistro estipulado.


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NOTAS

01. "Sempre, nas vinculações, não só o que é lícito deve ser ponderado, senão também o que é honesto". Trad. de R. LIMONGI FRANÇA in brocardos, nota 197.

02. De acordo com LUIZ EDSON FACHIN, "a inversão do locus de preocupações deve ocorrer, também, no Direito Civil. Trata-se de conseqüência necessária diante da supremacia da Constituição no ordenamento jurídico. Por essa razão, todo o Standard normativo infraconstitucional deve se amoldar ao modelo axiológico constitucional" p. 17. in Apreciação crítica do Código Civil de 2002 na perspectiva constitucional do direito civil contemporâneo.

03. Como bem explana o arguto UADI BULOS, "quando o texto constitucional proclama a dignidade da pessoa humana, está corroborando um imperativo de justiça social. É o valor constitucional supremo, no sentido de que abarca três dimensões, como ensina Antonio Enrique Pérez Luño: 1ª.) fundamentadora – núcleo basilar e informativo de todo o sistema jurídico-positivo; 2ª.)orientadora – estabelece metas ou finalidades predeterminadas, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico, constitucional; e 3ª.) crítica – em relação às condutas. Os "valores constitucionais compõem, portanto, o contexto axiológico fundamentador ou básico para a interpretação de todo o ordenamento jurídico; o postulado-guia para orientar a hermenêutica teleológica e evolutiva da constituição; e o critério para medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade" (Antonio Enrique Pérez Luño. Derechos humanos, Estado de derecho y constituición, 4. ed., Madrid, Tecnos, 1988, p. 288-9) (...)" concluindo ser a dignidade da pessoa humana o "carro-chefe dos direitos fundamentais na Constituição de 1988. Esse princípio conferiu ao Texto uma tônica especial, porque impregnou-lhe com a intensidade de sua força. Nesse passo, condicionou a atividade do intérprete." In Constituição Federal anotada p. 49/51.

04. Cf. "Visão geral do novo Código Civil".

05. Pontue-se, todavia, que FACHIN, citando TEPEDINO admoesta que, "a racionalidade que permeia todo o Código Civil de 2002 está ligada à proteção à apropiração e da circulação de bens, abstraindo-se os seres humanos concretos que estarão envolvidos nas relações jurídicas ali previstas. De acordo com GUSTAVO TEPEDINO, ao mencionar a nova racionalidade imposta pela Constituição ao Direito Civil: "Fala-se, por isso mesmo, de uma despatrimonialização do direito privado, de modo a bem demarcar a diferença entre o atual sistema em relação àquele de 1916, patrimonialista e individualista" e arremata, referindo-se ao Projeto de codificação na ótica de TEPEDINO: "Os quatro personagens do Código Civil – o marido, o proprietário, o contratante e o testador – que exauriam as atenções (sociais) do codificador, renascem, redivivos, com o projeto, agora em companhia de mais um quinto personagem: o empresário" (Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 438)" op.cit. p. 19.

06. Segundo LIMONGI FRANÇA, "os autores franceses, têm o hábito (que aliás não se limita a esta matéria) de dizer que a teoria do abuso de direito é uma criação de sua jurisprudência, especialmente do século XIX (v. Josserand, De l’Esprit des Droits et de leur Relativité; Mazeud, pág. 74). A matéria, porém, é antiqüíssima e de certo modo já se encontra implícita no adágio summum jus, summa injuria (Cícero), bem assim na condenação, por parte de Gaio (do período clássico), não só do martírio dos escravos, como ainda dos excessos dos pródigos, de maneira a justificar sua interdição. Dois textos que se completam mostram bem a noção que os romanos possuíam da matéria: de um lado – naeminen laedit qui suo jure utitur; e, de outro, completando-o – male enim nostro jure uti non debemos (cf. Brocardos Jurídicos, 155, § 1º, Texto de Paulo, pág. 114; L. Campion, La Théorie de l’Abus des Droits, Paris, 1925). Nos albores da moderna ciência jurídica, na obra clássica de Domat (Lês Lois Civiles dans leur Ordre Naturet, Paris, 1756) encontramos a afirmação de que o titular pode ser responsabilizado se modifica a sua propriedade com o fim de prejudicar terceiro. No século XIX, a matéria se consolida através não só da jurisprudência, como ainda dos textos de Códigos modernos, onde é prevista explícita ou implicitamente." in Abuso p. 45/46

07. In Novo Curso, p. 467,

08. In Código civil anotado, nota ao art. 422.

09. In Abuso, p. 40

10. In O novo Código (...) p. 12.

11. In O Princípio da Boa-fé nos Contratos.

12 In Introdução, p. 124.

13. Quanto à natureza jurídica do abuso de direito, LIMONGI FRANÇA sintetiza: "Natureza Jurídica do abuso de direito. a) Teoria subjetivista. Conforme esta orientação, constitui elemento essencial do abuso de direito a intenção de prejudicar. É o que se lê, in litteris, no Código austríaco, art. 1.295, 2ª. Parte: "Aquele que causa um dano intencional de modo contrário aos bons costumes é por ele responsável; mas se o faz no exercício de um direito somente é responsável se o exercício desse direito teve por finalidade evidente de prejudicar a outrem" (trad. de M. Doucet, pág. 206; cf. Código alemão, art. 226). b) Teoria objetivista. De acordo com os objetivistas, basta como elemento caracterizador do abuso de direito o exercício irregular do mesmo, em desacordo com o seu destino ou a inexistência de interesse legítimo (cf. Jorge Americano, O Abuso de Direito no Exercício da Demanda). Como exemplo, é de se citar o texto do art. 2º.do Código suíço: "Cada qual é obrigado a exercer os seus direitos e a executar suas obrigações segundo as regras da boa fé. O abuso manifesto de um direito não é protegido pela lei"op.cit. p. 46

14. In Abuso. p. 92

15. In http://www.cjf.gov.br/

16. Utilizamos basicamente a classificação de MENEZES CORDEIRO, LOTUFO e AGUIAR JÚNIOR. Em sistematização diversa, mas que demanda atenção por seu pragmatismo, CÉSAR FIUZA, classifica a função derrogatória de posições contraditórias, como função de controle ponderando que "o abuso de direito se verifica em três esferas, basicamente: 1ª.) Exercício desleal de direitos. – pedir o que se deve restituir. – Desvio de direito (o locador/sócio pleiteia a retomada do imóvel locado à sociedade, com o fito de desfazê-la). – Exercício desequilibrado de direitos (despedir mulher grávida ou empregado às vésperas da estabilidade, expor o consumidor ao ridículo etc.) – Exercício contrário à confiança legítima (banco executa hipoteca do promitente-comprador, quando o devedor é a empresa construtora. O banco deveria informar os promitentes-compradores dos riscos, sendo que o mais correto, seria considerar os valores já pagos pela construtora e pedir aos compradores que pagassem a ele). 2ª.) Comportamento contraditório (não se exige má-fé para que se caracterize). – venire contra factum proprium (nulli conceditur) (locador aceita o pagamento do aluguel atrasado por vários meses consecutivos e depois resolve despejar o locatário por mora). – Protraimento desleal do exercício de direito (locador nunca cobrou do inquilino o IPTU, apesar de ter o direito. Um belo ano, resolve cobrar. É necessário, para que se caracterize o protraimento desleal, que haja indícios objetivos de que o direito não seria exercido). 3ª.) Constituição desleal de direito. – Não fazer aos outros o que não se quer que se faça a si mesmo (impedir ou forçar a realização de condição; menor que oculta a própria idade; criação de aparência, como o devedor que oculta do fiador exceções extintivas, para depois lhas opor)" (in Curso completo, nota 31, p. 314/315).

17. In "A extinção". p. 240 et.seq.

18. Pelo escólio de RENAN LOTUFO, "o princípio do venire contra factum proprium tem fundamento na confiança despertada na outra parte que crê na veracidade da primeira manifestação, confiança que não pode ser desfeita por um comportamento contraditório. Pode-se dizer que a inadmissibilidade do venire contra factum proprium evidencia a boa-fé presente na confiança, que já de ser preservada. Daí o dizer de Franz Wieacker (El principio general de la buena fé, p. 62): "...el princípio Del venire es uma aplicación del principio de la ‘confianza em el tráfico jurídico’ y no um específica prohibición de la mala fe y de la mentira" in Código Civil Comentado. P. 501/502.

19. Em breve remissão ao campo estático do contrato de seguro em foco, tenha-se de SILVIO RODRIGUES que,"o seguro de vida tradicional, também chamado seguro de vida propriamente dito, é aquele em que, mediante um prêmio anual, se obriga o segurador ao pagamento de certa soma, por morte do segurado, a pessoa ou pessoas por este indicadas no contrato. Trata-se de negócio de previdência, em que o segurado desejando assegurar a sobrevivência e o bem-estar de sua família ou de outras pessoas que lhe são caras, estipula que por ocasião de sua morte o segurador fornecerá, a seus beneficiários, uma soma em dinheiro desde logo fixado no contrato, pagando ele, segurado, a partir de então, um prêmio periódico anual ou mensal. Tal prêmio, pago pelo segurado, pode ser devido durante toda a vida deste, ou por prazo indeterminado." in Direito Civil vol. 3 p. 356/357.). Como pragmaticamente apreende GONÇALVES, trata-se de contrato "bilateral, oneroso, consensual, aleatório e de adesão" e, "sendo de adesão o contrato, a interpretação deve ser feita em benefício da parte aderente, ou seja, do segurado, nos casos de dúvida" (in Direito das obrigações – parte especial, p. 142/143)

20. Como aponta MARIA HELENA DINIZ, "Em virtude do princípio da boa-fé (...) a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa" op. cit., nota ao art. 422.

21. Apud KARL LARENZ. Derecho de Obligaciones. tomo I. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958.

22. Bem observa VENOSA ao dispor: "acentuemos que, ainda quando não estavam vigentes esses dispositivos, a atual busca pela aplicação do sentido social às relações jurídicas implica fazer com que o juiz esteja atento permanentemente a esse princípio de boa-fé, que, em síntese, atende ao ideal de justiça e ao direito natural e faz parte dos princípios gerais do Direito. Em outros termos: no caso concreto, o juiz deve repelir a intenção dos declarantes de vontade, em qualquer negócio jurídico, que se desvie da boa-fé objetiva, qual seja, a conduta normal e correta para as circunstâncias, seguindo o critério do razoável. Trata-se de um processo teleológico de interpretação. Como afirma Judith Martins Costa (2000: 517), ainda que ausentes esses princípios do direito positivo, ainda que não vigorante o novo estatuto, a boa-fé objetiva recebe tratamento adequado de nossa jurisprudência, por decidida influência da doutrina." In Direito Civil p. 421/422

23. O uso da tópica implica em adoção de linhas não estritamente lógicas para obtemperar-se a coexistência de pontos de vista divergentes mediante o escopo precípuo do logos de um discurso razoável (verenunfitges reden). Como ensina TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. (in Introdução ao estudo do direito. p. 323.), "é um modo de pensar, problemático, que nos permite abordar problemas, deles partir e neles culminar. Assim, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados com caráter problemático visto que jamais perdem sua qualidade de tentativa." Em profundidade à "teoria tópica" (pensamento problemático) de THEODOR VIEHWEG, tem-se que "...este sistema é extraído da retórica. Mantém-se estruturalmente conectado com a retórica (e se restringe a um sistema argumentativo. Está integralmente orientado para problemas. Para resolvê-los, tanto no campo da investigação como no da dogmática, oferece uma combinação de pontos de vista (topoi), os quais são discutidos. O agrupamento dos topoi correspondentes aos problemas pode ser entendido como um sistema clássico no campo do Direito no sentido de que os outros sistemas podem ser desenvolvidos a partir dele. O sistema tópico está em permanente modificação. Suas respectivas formulações indicam, meramente, progressivas etapas da argumentação lidando com problemas particulares. O sistema pode ser razoavelmente chamado de um sistema aberto, já que a discussão, isto é, seu enfoque de um problema particular, está aberto a novos pontos de vista. Em relação ao seu conteúdo, este renuncia à noção de um argumento final ou decisivo, porém recomenda um método de argumentação que proceda não dedutivamente mas dialogicamente. Sua ultima ratio é o discurso razoável ("Verenunftiges Reden")" (Texto traduzido por CAROLINA DE CAMPOS MELO, bolsista do PET-JUR, do original inglês Law, Reason and Justice: Essays in Legal Philosophy. Organizado por Graham Hughes. Nova Iorque: New York University Press e Londres: University of London Press, 1969) – Com vagar na adoção de linhas de pensamento não estritamente lógicas - Theodor Viehweg. in Tópica e Jurisprudência; Brasília, Ministério da Justiça/Universidade de Brasília, 1979.

24. In Curso, p. 261/262.

25. Dentre muitos outros julgados, tenha-se: I.O mero atraso no pagamento de prestação do prêmio do seguro não importa em desfazimento automático do contrato, para o que se exige ou a prévia constituição em mora do contratante pela seguradora, mediante interpelação, ou o ajuizamento de ação judicial competente. II. Matéria pacificada no âmbito da C. 2ª Seção do STJ (REsp n. 316.552/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 09.10.2002) III. Recurso especial conhecido e provido. (RECURSO ESPECIAL Nº 286.472 - ES (2000/0115808-2) SEGURO. CLÁUSULA DE CANCELAMENTO AUTOMÁTICO DO CONTRATO EM CASO DE ATRASO NO PAGAMENTO DO PRÊMIO. INSUBSISTÊNCIA EM FACE DO CÓDIGO CIVIL E DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. - Não subsiste a cláusula de cancelamento automático da apólice, seja porque a resolução da avença é de ser requerida previamente em Juízo, seja porque reputada nula em face do Código de Defesa do Consumidor (art. 51, incisos IV e XI). Recurso conhecido, em parte, e provido. Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas: Decide a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer em parte do recurso e, nessa parte, dar-lhe provimento, na forma do relatório e notas taquigráficas precedentes que integram o presente julgado. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Ruy Rosado de Aguiar e Aldir Passarinho Júnior. STJ - RECURSO ESPECIAL ( RESP ) - Nº 323186 - SP - RIP: 200100539444 - REL. BARROS MONTEIRO - TURMA: QUARTA TURMA - J. 06/09/2001 - DJ. 04/02/2002. Em última ratio, também já decidiu a Corte Estadual de Mato Grosso do Sul que, "Não pode a companhia seguradora considerar automaticamente cancelado o contrato de seguro por falta de pagamento do prêmio, ainda que prevista a hipótese pelas partes contratantes. A resolução do contrato deve ser requerida em juízo, para possibilitar a avaliação da importância do inadimplemento."(TJMS–3ª.T.Cível. Apelação Cível - Ordinário - N. 2001.005285-0/0000-00 - Campo Grande. Relator - Exmo. Sr. Des. CLAUDIONOR MIGUEL ABSS DUARTE.)

26. In Interceptação Telefônica "De Ofício": Inconstitucionalidade - RJ 242 - DEZ/97.

27. Op.cit. nota 08 ao art. 5º, LXXVII, § 1º.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PISSURNO, Marco Antônio Ribas. O "venire contra factum proprium" na negativa de indenização de seguro de vida ante a morte do segurado em atraso permitido. O abuso de direito e a exegese tópica do art. 763 do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 252, 16 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4859. Acesso em: 26 abr. 2024.