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Usuário ou traficante?

Crítica criminologica à lei de drogas

Usuário ou traficante? Crítica criminologica à lei de drogas

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Analisa-se a lei de drogas no aspecto da definição de usuário ou de traficante de drogas à luz do pensamento criminológico crítico.

RESUMO: O trabalho aborda a evolução do pensamento criminológico trazendo a tona diversos pontos de vista para análise do crime e dos processos de criminalização. Diferentemente da dogmática jurídico-penal, cujo enfoque é unidirecional e baseado em premissas tomadas por verossímeis, a criminologia baseia-se em distintas metodologias, culminando por abordagens de natureza sociológica e focadas nos processos de criminalização que levam mesmo à critica e à desconstrução de pressupostos da dogmática jurídico-penal. Faz-se, ao final, uma análise da lei de drogas à luz do pensamento criminológico critico, verificando-se a abertura do diploma legal que permite a reprodução da seletividade penal.

Palavras Chaves: Criminalização; Dogmática Jurídico-Penal; Lei de Drogas; Seletividade Penal.


I.  A CRIMINOLOGIA, SEUS TRAÇOS E CONTRIBUIÇÕES PARA A COMPREENSÃO DO COMPLEXO FENÔMENO CRIMINAL

A criminologia se ocupa do estudo dos fenômenos ligados ao crime, ao criminoso, à vítima e ao controle social. A análise criminológica ao longo da evolução desta área do conhecimento se fundou em diferentes metodologias e produziu distintos resultados. Nesse viés, a nota da interdisciplinaridade é característica da criminologia, permeando saberes nas áreas da biologia, psicanálise e psicologia, estatística e sociologia, dentre outros.

A interdisciplinaridade da criminologia permite a análise dos fenômenos sob as diferentes óticas com a consciência da limitação cognitiva de cada uma delas e sem a pretensão de captação de um conteúdo de verdade total, mas com a percepção de sua complementariedade, possibilitando diversos enfoques de compreensão dos fenômenos em diferentes níveis, ângulos e profundidades. Nesse sentido a crítica de Salo de Carvalho quanto à pretensão universalista e moralizadora do direito:

A técnica Jurídico-penal, na esteira dos demais métodos modernos, enfrenta profunda crise e padece de legitimidade após a constatação de que inexiste “a” ciência. Desde a crítica à metafísica e aos seus valores (Bondade, Beleza, Justiça, Verdade), nota-se a partir de Nietzsche, tem-se a percepção de que o exercício oficial, lícito, do conhecimento não passa do incremento de projetos moralizadores sustentados pela vontade de sistema. (CARVALHO, 2015, p.115)

Segue ainda o autor:

A imprescindibilidade de abertura e do diálogo entre os saberes e a impossibilidade de os discursos disciplinares manterem sua pretensão de eficácia perante a crise contemporânea impõem novas metas e distintas atitudes aos investigadores. Ambas, porém, devem estar harmonizadas por ética transdisciplinar que reconheça a existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diferentes, e que negue qualquer tentativa de reduzir a realidade em um único nível regido por uma única lógica. (CARVALHO, 2015, p. 124)

Nessa esteira a criminologia passa a funcionar como um complexo cabedal de conhecimentos obtidos por diferentes processos e métodos para captação da realidade estudada, no caso os fenômenos relacionados ao crime e aos processos de criminalização, buscando evidenciar a lógica e o modus operandi de tais fenômenos. Busca-se superar a lógica da dogmática jurídico penal, indo além do método lógico cartesiano para explicar o crime, a pena, a prisão, a partir da análise empírica e sociológica dos fenômenos relacionados, o que poderá mesmo abalar e desconstruir certos pressupostos tidos como verdadeiros pelas ciências jurídico-penais. 


II.  BREVE SÍNTESE EVOLUTIVA DO PENSAMENTO CRIMINOLÓLICO

A escola clássica baseava-se em princípios iluministas da racionalidade, a partir do método lógico indutivo, enxergando o crime como um ente jurídico abstrato, consistente em um comportamento humano escolhido por um ser dotado de racionalidade, consciente e autodeterminado que, deliberadamente, decide agir de forma desviante, violando a norma socialmente válida e aceita por todo o grupo social e, portanto, sendo passível e merecedor de uma sanção penal proporcional à gravidade do fato praticado e de seu dano social, na medida da culpabilidade de seu autor. Tal sanção teria o papel de reforçar o comando da norma violada e assegurar a observância dos valores sociais aceitos. Tal modelo criminológico, datado do século XVIII, é coincidente com os princípios racionalistas e iluministas da Revolução Francesa, bem como inspirado nas teorias contratualistas do Estado.  Funda-se na filosofia utilitarista. Destaca-se a obra “Dei delitti e dele pene” de autoria de Cesare Becaria em 1764, bem como os trabalhos desenvolvidos pela Escola Italiana, notadamente nas obras de Francesco Carrara e Romagnosi. 

Tal escola representou evolução para a época na medida em que impôs limites às penas, humanizando-as, pondo fim aos suplícios do antigo regime, dotando o sistema de racionalidade lógica. Todavia limitou-se a ver o crime como ente puramente abstrato, afastando-se da realidade social que o contextualiza e de sua compreensão pelo viés empírico. As premissas da Escola Clássica continuam a constituir a base conceitual da atual dogmática jurídico-penal que define o crime como comportamento desviante, consciente, voluntário e autodeterminado, contrário aos valores comuns básicos ao convívio social, e a pena como necessária à reafirmação dos valores sociais (mínimo ético), como necessária à prevenção de novos crimes por intimidação coletiva (prevenção geral), bem como à ressocialização do apenado por considerar desvantajosa a prática delitiva diante do risco de imposição de uma nova pena (prevenção especial).

Num segundo momento, passa-se pela escola positivista, cujo método empírico produziu um determinismo criminológico, seja de natureza biológica com Cesare Lombroso, para o qual o criminoso era um ser biologicamente malformado (atávico), seja com um determinismo social com Enrri Ferri, para o qual o meio social era determinante na formação do caráter e escolhas do indivíduo, levando tanto em uma hipótese, como em outra, na formação de um prognóstico de criminalidade, ou seja, numa análise voltada para o futuro, que apresentava justificativas teóricas para penas indeterminadas como medidas de segurança e mecanismos de segregação dos indivíduos considerados criminosos por natureza, passando a pena ter a função de defesa da sociedade e correção e regeneração destes indivíduos, o que se verifica ainda na moderna dogmática jurídico penal nas medidas de segurança com a finalidade de tratamento e com prazo indeterminado.

Em síntese apertada, pode-se concluir que, apesar das diferenças de métodos, ambas as escolas (clássica e positivista) têm como resultado a ideologia de defesa social estruturada nos seguintes princípios: A) princípio de legitimidade: O Estado representa a vontade da sociedade e está legitimado para reprimir a criminalidade por meio de seus órgãos de persecução. B) Princípio do bem e do mal: O desvio criminal é o mal e a sociedade constituída o bem. C) Princípio da finalidade ou prevenção: Além da função retributiva, a pena possui função de prevenir o crime pela ameaça de sua imposição (prevenção geral) e exerce a função ressocializadora sobre o delinquente. D) Princípio da Igualdade: A lei penal é igual para todos e a reação penal se aplica de modo igual aos autores dos crimes. E) Princípio do interesse social e do delito natural: Os interesses protegidos pelo direito penal são comuns a todos os cidadãos. (BARATTA, 2011, p.42)

Do ponto de vista sociológico e psicanalítico, vários estudiosos e autores desenvolveram estudos e teorias que passaram a abalar os pressupostos ideológicos da defesa social, uma vez que desafiavam alguns de seus postulados.

En passant, as Teorias Psicanalíticas da Criminalidade, notadamente a Teoria Freudiana do delito por sentimento de culpa e as teorias psicanalíticas da sociedade punitiva, relativizam o conceito de autodeterminação e culpabilidade, típicas da concepção clássica que considera o ser humano abstratamente livre para autodeterminar-se e escolher suas condutas. Já para as teorias supra citadas, o consciente, representado pelo ego, recebe os impulsos do inconsciente (id), estes, por sua vez, são refreados pela censura das normas e valores ditados pelo superego. Sendo assim, o ego está sempre em conflito, administrando desejos reprimidos, oriundos do id, pelas normas e valores do superego. Nesse sentido, indivíduos com tendências antissociais mais afloradas, ou seja, sujeitos a maior incidência de estímulos antissociais do id, tendentes a comportamentos desviantes, estão em conflito acentuado pela censura desempenhada pelo superego e veriam na aplicação da pena um alívio para seus impulsos não refreados, motivando-os à prática do crime para obterem a sanção como alívio, reforçando as normas superego e aliviando o ego (Teoria Freudiana por sentimento de culpa).  A sociedade, por sua vez, teria o id atraído pelo comportamento desviante e sedutor do infrator, tendo a necessidade de ver o infrator punido pelos órgãos do Estado para reforçar o juízo de censura do superego, tranquilizando e aliviando o ego e reforçando as normas do superego, servindo, assim, a punição do criminoso como um “bode expiatório”. (BARATTA, 2011. p. 51/52).

Tais teorias orientam-se numa dimensão puramente psicanalítica, relativizando a noção de liberdade de ação humana, posto que o inconsciente exerce grande influência nas ações e no comportamento, o que põe em questionamento o conceito de culpabilidade, já que esta reflete a censura sobre um sujeito absolutamente livre e auto- determinado. Todavia, permanecem ainda inseridas no âmbito microssociológico, considerando a sociedade o produto do consenso (teorias do consenso), não reconhecendo o conflito como elemento essencial da sociedade (teorias do conflito), não superando ainda o enfoque etiológico do comportamento criminoso, desconsiderando o contexto histórico e as relações socioeconômicas em que se inserem os comportamentos.

Outrossim, novo enfoque recebeu a criminologia sob a influência da teoria estrutural funcionalista de Emile Durkheim para o qual o desvio é um fenômeno normal em toda estrutura social desde que não ultrapassados certos limites. Sob tais inspirações funcionalistas, Robert Merton, desenvolve a “teoria da anomia”, desenvolvendo a ideia de que indivíduos de uma mesma sociedade, localizados em diferentes estratos sociais e, portanto, com diferentes oportunidades de acesso aos fins ou objetivos culturais (família, conforto, dinheiro, poder, sucesso, fama, etc.) podem adotar diferentes posturas: 1) aceitação aos meios de que dispõe (estudo, trabalho, empreendedorismo) e dos fins e valores culturais (dinheiro, poder, conforto, fama), o que denomina “adesão”, estando situados aqui a grande maioria da população; 2) De aceitação aos fins e valores culturais (sucesso, dinheiro, poder, etc.) mas não dos meios disponíveis (trabalho, estudo, etc.), o que classifica como “inovação”, estando aqui os comportamentos desviantes e criminosos, especialmente os de natureza patrimonial;  3) de não aceitação aos valores culturais predominantes, o que classifica como ritualismo, estando aqui os “hippies” e alternativos; 4) a negação dos meios e fins culturais, denominado “apatia”, estando os bêbados, moradores de rua, etc.; por fim, ainda, 5) na proposição de novos valores sociais e meios institucionais, denominado “rebelião”, estando aqui os revolucionários, enfoques baseados na influência dos estratos sociais sobre os indivíduos e na expectativa que estes desenvolvem no meio em que vivem.

Sobre outro enfoque da criminalidade, Edwin Sutherland no desenvolvimento de sua teoria das subculturas criminais afirma que, como processo natural de socialização, indivíduos desenvolvem mecanismos de assimilação e aprendizagem relacionados aos comportamentos com os quais tem contato, num processo de interação e assimilação. Considerando a diversidade de valores e comportamentos entre os diversos grupos sociais, ex: skatistas, surfistas, grafiteiros, empresários, músicos, traficantes, os indivíduos a eles pertencentes assimilam os comportamentos do seu grupo e reproduzem os seus valores. Sendo assim, havendo uma pluralidade de grupos e valores na sociedade e não uma unidade, com preceitua a ideologia clássica de defesa social, a noção de culpabilidade é posta em cheque, uma vez que, em muitos desvios classificados como crime, o indivíduo se comporta conforme os valores apreendidos de seu grupo e não contrariamente a eles (noção de culpabilidade como o agir em desconformidade com a norma).


III.        A MUDANÇA DE ENFOQUE NA CRIMINOLOGIA COM O LABELING APPROUCH

Todavia, ainda que tenha havido olhares diferentes para o crime e a criminalidade a partir das teorias acima citadas, a mudança de enfoque na criminologia se deu com o desenvolvimento da teoria da reação social ou “labeling approuch” (BARATTA, 2011, p. 112). A partir desta ótica, o crime e o criminoso deixam de serem vistos como objetos autônomos e de existência pré-constituídas, etiológicos, e passam a ser observados como o resultado de um processo de juízos valorativos estabelecidos pelas instâncias de controle social que detém o poder de definir a criminalidade, seja no plano abstrato legislativo, ao elaborar as leis penais, seja no plano concreto, ao definir quais pessoas serão objeto de juízos de valor negativo e rotuladas como desviantes e criminosas.

Tal teoria se funda na distinção entre juízos descritivos e juízos valorativos. Enquanto a lei penal define condutas no plano abstrato, no planto concreto são os juízos de valores que criarão a qualidade de criminoso ao imputado (meta-regras), sendo que tais juízos não atingirão certos indivíduos, mesmo que cometam desvios, tais como em grande parte dos crimes de colarinho branco, crimes praticados pela elite política e econômica, mas atuarão sobre outros que serão alvos preferenciais (dependendo da condição social e função econômica) de um processo negativo de rotulação. Trata-se de uma concepção interacionista da realidade social, ou seja, a realidade social, assim como a criminalidade, não são fenômenos autônomos, pré-constituídos, mas o produto da realidade construída a partir desses processos de interação e julgamentos. (BARATTA, 2011, p. 108)

O autor Howard Becker, em seu livro datado de 1963, intitulado, os estranhos (Outsiders), citado por Gabriel Ignacio Anitua afirma que:

O desviado é uma pessoa a quem o etiquetamento foi aplicado com êxito; o comportamento desviado é um comportamento etiquetado com tal. (ANITUA, p.592)

Fica evidenciada que tal rotulação de indivíduos como criminosos é realizada por determinados indivíduos detentores do poder de, num primeiro instante, criar a lei penal, no segundo, de aplicar a lei penal, estabelecendo quais pessoas devem ser perseguidas, gerando, como consequência, a rotulação destes indivíduos como desviantes e criminosos, aos quais se agregará esse status social que contribuirá a partir de então para que estes indivíduos continuem a praticar crimes ou, mais precisamente, para que continuem sendo alvos dos processos de rotulação. (BARATTA, 2011, p.110). É mister ater para o fato de que entre o grupo detentor do poder de rotulação e o grupo alvo principal dos processos de rotulação existe diferenças de estratificação e antagonismos sociais (BARATTA, 2011, p. 110)

Importante é a constatação do efeito que a rotulação gera na identidade e personalidade do indivíduo. Segundo o teórico Lemert em seu livro Ação Social e mudança legal dentro dos tribunais de menores, citado por Anitua:

Os efeitos psicológicos da aplicação da etiqueta de delinquente por parte das instâncias que reagem frente ao fato primário significarão a aceitação dessa condição pelo próprio etiquetado. As atitudes posteriores, adequadas ao que se espera dele, serão mecanismos de defesa, de ataque ou de adaptação com referência a essa reação social (ANITUA, p. 591)

Diante do exposto, verifica-se uma mudança paradigmática com o labeling approuch, passando-se a criminologia a preocupar-se com os processos de criminalização presididos pelas agências de controle formal do estado que recaem sobre determinados indivíduos, preferencialmente, e não sobre outros, gerando sobre os primeiros o efeito negativo e a tendência ao desenvolvimento a carreiras criminais a partir da fixação do rótulo de desviante ou criminoso.

As chamadas teorias liberais da criminologia contemporânea desenvolvidas no texto opõem-se à criminologia clássica e positivista que constituem a base ideológica da escola de defesa social, esta, por sua vez, constitui-se no discurso oficial das agências de controle social e embasa a dogmática jurídico-penal. Nessa esteira, cada uma das teorias liberais da criminologia contemporânea contribui para a desconstituição de certos paradigmas da escola de defesa social, especialmente no postulado da igualdade da lei penal em sua elaboração e aplicação, do interesse social ou do delito natural, no sentido de que os interesses tutelados e a intensidade da tutela são sempre gerais e comuns a todos os extratos sociais. (BARATTA, 2011, p. 148)

Com tais teorias e, entre essas, destaca-se a teoria do labeling, a ciência jurídico penal distancia-se da criminologia, deixando esta de ser uma ciência auxiliar que serve àquela, tal como fazia a criminologia positivista. Agora, ao revés, a criminologia através da análise sociológica e multidimensional do fenômeno criminal e dos processos de criminalização passa a questionar dogmas tidos por verdadeiros pela ciência jurídica penal, não se podendo mais falar em um modelo integrado de criminologia e ciência penal.


IV.       A CRIMINOLOGIA CRÍTICA, UM ENFOQUE FUNCIONAL DO SISTEMA PUNITIVO NA SOCIEDADE CONFLITUAL

Até aqui as teorias liberais contemporâneas da criminologia situaram-se numa dimensão microssociológica, subtraindo da análise as estruturas sociais, econômicas e políticas da sociedade e sua inter-relação com o fenômeno criminal, fenômenos que não vão passar desapercebidos pela criminologia crítica ou nova criminologia.

A criminologia crítica, ao realizar uma crítica interna das correntes, vai além, vale-se das proposições e conclusões do labeling approuch que vê a criminalidade e o desvio não como realidades ontológicas próprias e pré-constituídas, mas como produto de processos de interação em que grupos com poder de definição da criminalidade definem os comportamentos e os sujeitos que serão rotulados como desviantes através de processos de criminalização por eles controlados, todavia, indo além, introduzem a análise funcional do desvio com as estruturas sociais, com as relações de produção e distribuição, numa perspectiva macrossociológica. (BARATTA, 2011, p. 160)

A contribuição do marxismo para a criminologia encontrou expressão em autores como Bonger, Pashukanis e Rusche. (ANITUA, 2008, p.612).

Para o marxismo, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), a estrutura do sistema produtivo determina a estrutura geral da sociedade, esta, por sua vez, estaria polarizada entre a classe detentora dos meios de produção (burguesia) e a classe detentora apenas de sua capacidade de trabalho (proletariado). Os referidos autores criticariam o direito burguês por sua natureza falsamente igualitária. (ANITUA, 2008, p. 614)

Marx nas obras, “Crítica ao Programa de Gotha” e “A Questão Judaica”, evidencia a contradição entre igualdade formal, na esfera da distribuição, e desigualdade substancial, na da produção material. Tal mito igualitário no capitalismo afeta diretamente o campo do contrato e a formação política e, por consequência, o direito penal como parte integrante desta.

Para o holandês Willem Bonger, em sua tese de doutorado “A criminalidade e as condições econômicas”, publicada em 1905 (ANITUA, 2008 p. 616), o capitalismo levaria os homens a delinquir, seja pelas carências econômicas da maioria da população, seja pela ruptura dos sentimentos humanitários de solidariedade gerados pelo espírito competitivo, propondo o socialismo como cura.

Para o russo Evgeni Paschukanis (1891-1938), a ideia de sociedade em seu conjunto só existe na imaginação dos juristas. Para o autor, a sociedade é composta por classes com interesses contraditórios (teorias do conflito), tendo o direito o papel de conferir legalidade a essas relações econômicas desiguais, dando-lhes legitimidade através de sua aplicação pelas burocracias estatais. (ANITUA, 2008, p. 619). Para Pashuquanis, a privação de liberdade no tempo é a forma na qual o capitalismo personifica o conceito contratual de recompensa equivalente. Nesse sentido, o tempo de prisão “recompensaria” a conduta delitiva, ideia contratual onde o único bem de que dispõe o trabalhador, força de trabalho medida no tempo, é a forma de pagamento pelo desvio praticado. (ANITUA, 2008, p. 618)

O autor George Rusche (1900-1950) desenvolveu sua teoria sobre a influência das necessidades do modo de produção sobre a aplicação de castigos, percussores da escola de Frankfurt. Essas teorias foram depois complementadas por Otto Kirchheimer (1905-1965) em sua obra “Punição e Estrutura Social”, onde desenvolve a ideia de que a pena não teria a função declarada pelo direito penal, não sendo a consequência da prática do crime, tampouco serviria aos fins de prevenção e repressão. A pena não existiria em abstrato e sim o sistema punitivo concreto e práticas determinadas para o tratamento dos criminosos. Para o autor, o número da população carcerária depende do aumento ou diminuição da mão de obra disponível no mercado de trabalho e das necessidades que o capital tiver dela. (ANITUA, 2008, p. 620).

Nesse viés, tais autores associam o crime e a punição a uma função no contexto da sociedade de classes (teorias do conflito), tendo o sistema punitivo um papel a ser desempenhado para a conservação e reprodução da estrutura social desigual de classes.


V.        BREVE CRÍTICA SOBRE A LEI DE DROGAS: OS VETORES DE DISTINÇÃO ENTRE O USO E O TRAFICO DE DROGAS

O tráfico de drogas foi objeto de mandado de criminalização pela Constituição Federal que o equiparou aos crimes hediondos, o que lhes confere um tratamento mais severo, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)          

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; (Grifo Nosso)

A Lei 11.343/06 preceitua em sua ementa: Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.

A lei, nesse sentido, estabelece dois objetivos diametralmente opostos: de um lado busca prevenir o uso de drogas e reintegrar socialmente os usuários e dependentes, de outro reprime o tráfico prescrevendo crimes com elevada pena de reclusão.

O tratamento para o indivíduo considerado usuário de drogas vem disciplinado pelo Art. 28 da Lei 11.343/06, já para o sujeito praticante de uma conduta rotulada como tráfico de drogas encontra definição legal no Art. 33 da mesma lei, in verbis:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

(...)

Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Na perspectiva da lei, o usuário de drogas não está sujeito à pena de prisão, mas a medidas de advertência, prestação de serviços comunitários e medida educativa, já para o tráfico de drogas a lei reserva a pena de cinco a quinze anos de reclusão, bem como pesada pena de multa, não podendo o preso ser beneficiado com a concessão de fiança como espécie de liberdade provisória, o que não impossibilita outras formas de liberdade provisória segundo a jurisprudência majoritária (STF, HC 104339), e está sujeito a um regime de execução de pena mais severo.

Feitas tais distinções de tratamento legislativo, é necessário verificar agora do ponto de vista crítico o que diferencia condutas consideradas como integrantes da prática do crime de tráfico de drogas (Art. 33 da Lei 11.343/06) daquelas praticadas pelo usuário (Art. 28 da Lei 11.343/06), tal distinção não se funda num critério legal estritamente objetivo, mas em vetores legais para ser levados em conta pelos intérpretes e aplicadores da lei. Assim dispõe o §2º do Art. 28 da Lei 11.343/06, in verbis:

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Na perspectiva da atual lei, cabe ao aplicador da lei penal (Autoridade Policial, Ministério Público, Juiz) realizar um juízo de valor acerca da conduta relacionada a drogas, ponderando circunstâncias como a quantidade e natureza da droga, o local do fato, as condições em que se desenvolveu à ação, as circunstâncias sociais e pessoais, assim como a conduta e antecedentes do agente.

Em determinadas situações em que indivíduos são capturados pela polícia na posse de grandes quantidades de entorpecentes, quilos de drogas que excedem qualquer padrão de consumo por mais intenso que seja, parece não restar dúvidas acerca da destinação das drogas para o comércio, tipificando a conduta como tráfico de drogas. 

Todavia, na grande maioria dos casos, as prisões por tráfico ocorrem em comunidades periféricas, a quantidade de drogas apreendidas não permite, por si só, a formulação de um juízo de valor seguro acerca da destinação das drogas, se para consumo próprio, se destinado ao tráfico. Nesses casos em que a práxis demonstram ser a grande maioria, entra em cena os juízos de valor realizados pelas agências de controle oficial.

Verifica-se que tais juízos são subsidiados pelos parâmetros legais:

Local e circunstâncias em que se desenvolveu a ação:

Esse parâmetro pode servir como reforço de criminalização de sujeitos situados em comunidades mais periféricas onde a venda de drogas se concentra. Todavia, o fato de tais regiões concentrarem o maior número de casos de tráfico, não pode servir como fator de estigma para indivíduos que residem nesses locais. Nas comunidades carentes e periférica a maior parte da população não se dedica a atividades ilícitas mas residem ali pela precária condição econômica e social, sendo as atividades ilícitas exploradas por uma minoria nestes locais. Todavia, o estigma por residir em tais locais se estende a todos os seus ocupantes, aumentando as chances de criminalização dos indivíduos neles situados.

As circunstâncias sociais e pessoais.

Aqui, mais uma vez, verifica-se o recurso a expressões genéricas como fator de fundamentação de um processo de valoração e rotulação de indivíduos. O fato de se estar estudando ou trabalhando poderiam refletir uma boa conduta social, já o de estar desempregado ou subocupado uma circunstância social desfavorável. Nessa esteira, o fato de o indivíduo ser útil ao sistema produtivo econômico influencia no seu processo de criminalização.

A conduta e os antecedentes do agente.

Aqui a rotulação se manifesta da forma mais acentuada. Indivíduos que já possuem passagens pela polícia, ainda que não sejam reincidentes, e especialmente os reincidentes, sofrem um processo de estigma acentuado. A mesma quantidade de drogas e nas mesmas circunstâncias nas mãos de um indivíduo sem passagens criminais e residente em um local privilegiado quando nas mãos de um reincidente pode fazer toda a diferença entre ser um usuário ou um traficante a partir deste elemento de fundamentação. 


VI.CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criminologia lança novos olhares sob o complexo fenômeno criminal. Verifica-se um atraso nas ciências jurídicas, especialmente na dogmática jurídico-penal em relação às ciências sociais. Tal fato pode ser explicado pela função desempenhada pelo direito positivo na manutenção e reprodução das estruturas sócio-econômicas, perspectiva lançada pela criminologia crítica.

Quanto ao delito de tráfico de drogas, verifica-se de modo clarividente a utilização de expressões legais que reforçam os processos de rotulação de uma massa de sujeitos vulneráveis por parte daqueles que detém o poder de definição de criminalidade no plano concreto, enfoque lançado pela teoria do labeling approuch e desenvolvido pela criminologia crítica.

 Tais enfoques ajudam na compreensão e análise dos fenômenos criminais, permitindo-se a adoção de posturas mais críticas e racionais pelos operadores jurídicos, desenvolvendo posturas mais democráticas e contribuindo para a erradicação de atitudes preconceituosas.


VII.      REFERÊNCIAS

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ANITUA, Gabriel Ignacio. História dos Pensamentos Criminológicos. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Carioca de Criminologia: Revan, 2008. Coleção pensamentos criminológicos. 

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal/Alessandro Baratta; Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 6° edição.

BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CARVALHO, Salo de. Anti-manual de Criminologia. Ed. Lumes Juris. 2015.

DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminalidade. – Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2014. Pensamento Criminológico; 9.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

LOIC, Wacquant. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Tradução de Sergio Lamrão. – Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, revista e ampliada, agosto de 2007. 2ª reimpressão, abril de 2015.

LOMBROSO, Cesare, 1885-1909. O homem delinquente. Tradução Sebastião José Roque. – São Paulo: Ícone, 2016. – Coleção fundamentos do direito.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, 1927 – O inimigo no Direito Penal/ E, Raúl Zaffaroni. Tradução de Sérgio Lamarão – Rio de Janeiro: Revan, 2007, 2ª edição junho de 2007, 3ª edição dezembro de 2011. 224p. – (Pensamento Criminológico; 14)


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DORNELES, Tiago Felipe Bernardes Dorneles. Usuário ou traficante? Crítica criminologica à lei de drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4747, 30 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50171. Acesso em: 1 maio 2024.