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Crítica criminologica à lei de drogas

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Analisa-se a lei de drogas no aspecto da definição de usuário ou de traficante de drogas à luz do pensamento criminológico crítico.

RESUMO: O trabalho aborda a evolução do pensamento criminológico trazendo a tona diversos pontos de vista para análise do crime e dos processos de criminalização. Diferentemente da dogmática jurídico-penal, cujo enfoque é unidirecional e baseado em premissas tomadas por verossímeis, a criminologia baseia-se em distintas metodologias, culminando por abordagens de natureza sociológica e focadas nos processos de criminalização que levam mesmo à critica e à desconstrução de pressupostos da dogmática jurídico-penal. Faz-se, ao final, uma análise da lei de drogas à luz do pensamento criminológico critico, verificando-se a abertura do diploma legal que permite a reprodução da seletividade penal.

Palavras Chaves: Criminalização; Dogmática Jurídico-Penal; Lei de Drogas; Seletividade Penal.


I.  A CRIMINOLOGIA, SEUS TRAÇOS E CONTRIBUIÇÕES PARA A COMPREENSÃO DO COMPLEXO FENÔMENO CRIMINAL

A criminologia se ocupa do estudo dos fenômenos ligados ao crime, ao criminoso, à vítima e ao controle social. A análise criminológica ao longo da evolução desta área do conhecimento se fundou em diferentes metodologias e produziu distintos resultados. Nesse viés, a nota da interdisciplinaridade é característica da criminologia, permeando saberes nas áreas da biologia, psicanálise e psicologia, estatística e sociologia, dentre outros.

A interdisciplinaridade da criminologia permite a análise dos fenômenos sob as diferentes óticas com a consciência da limitação cognitiva de cada uma delas e sem a pretensão de captação de um conteúdo de verdade total, mas com a percepção de sua complementariedade, possibilitando diversos enfoques de compreensão dos fenômenos em diferentes níveis, ângulos e profundidades. Nesse sentido a crítica de Salo de Carvalho quanto à pretensão universalista e moralizadora do direito:

A técnica Jurídico-penal, na esteira dos demais métodos modernos, enfrenta profunda crise e padece de legitimidade após a constatação de que inexiste “a” ciência. Desde a crítica à metafísica e aos seus valores (Bondade, Beleza, Justiça, Verdade), nota-se a partir de Nietzsche, tem-se a percepção de que o exercício oficial, lícito, do conhecimento não passa do incremento de projetos moralizadores sustentados pela vontade de sistema. (CARVALHO, 2015, p.115)

Segue ainda o autor:

A imprescindibilidade de abertura e do diálogo entre os saberes e a impossibilidade de os discursos disciplinares manterem sua pretensão de eficácia perante a crise contemporânea impõem novas metas e distintas atitudes aos investigadores. Ambas, porém, devem estar harmonizadas por ética transdisciplinar que reconheça a existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diferentes, e que negue qualquer tentativa de reduzir a realidade em um único nível regido por uma única lógica. (CARVALHO, 2015, p. 124)

Nessa esteira a criminologia passa a funcionar como um complexo cabedal de conhecimentos obtidos por diferentes processos e métodos para captação da realidade estudada, no caso os fenômenos relacionados ao crime e aos processos de criminalização, buscando evidenciar a lógica e o modus operandi de tais fenômenos. Busca-se superar a lógica da dogmática jurídico penal, indo além do método lógico cartesiano para explicar o crime, a pena, a prisão, a partir da análise empírica e sociológica dos fenômenos relacionados, o que poderá mesmo abalar e desconstruir certos pressupostos tidos como verdadeiros pelas ciências jurídico-penais. 


II.  BREVE SÍNTESE EVOLUTIVA DO PENSAMENTO CRIMINOLÓLICO

A escola clássica baseava-se em princípios iluministas da racionalidade, a partir do método lógico indutivo, enxergando o crime como um ente jurídico abstrato, consistente em um comportamento humano escolhido por um ser dotado de racionalidade, consciente e autodeterminado que, deliberadamente, decide agir de forma desviante, violando a norma socialmente válida e aceita por todo o grupo social e, portanto, sendo passível e merecedor de uma sanção penal proporcional à gravidade do fato praticado e de seu dano social, na medida da culpabilidade de seu autor. Tal sanção teria o papel de reforçar o comando da norma violada e assegurar a observância dos valores sociais aceitos. Tal modelo criminológico, datado do século XVIII, é coincidente com os princípios racionalistas e iluministas da Revolução Francesa, bem como inspirado nas teorias contratualistas do Estado.  Funda-se na filosofia utilitarista. Destaca-se a obra “Dei delitti e dele pene” de autoria de Cesare Becaria em 1764, bem como os trabalhos desenvolvidos pela Escola Italiana, notadamente nas obras de Francesco Carrara e Romagnosi. 

Tal escola representou evolução para a época na medida em que impôs limites às penas, humanizando-as, pondo fim aos suplícios do antigo regime, dotando o sistema de racionalidade lógica. Todavia limitou-se a ver o crime como ente puramente abstrato, afastando-se da realidade social que o contextualiza e de sua compreensão pelo viés empírico. As premissas da Escola Clássica continuam a constituir a base conceitual da atual dogmática jurídico-penal que define o crime como comportamento desviante, consciente, voluntário e autodeterminado, contrário aos valores comuns básicos ao convívio social, e a pena como necessária à reafirmação dos valores sociais (mínimo ético), como necessária à prevenção de novos crimes por intimidação coletiva (prevenção geral), bem como à ressocialização do apenado por considerar desvantajosa a prática delitiva diante do risco de imposição de uma nova pena (prevenção especial).

Num segundo momento, passa-se pela escola positivista, cujo método empírico produziu um determinismo criminológico, seja de natureza biológica com Cesare Lombroso, para o qual o criminoso era um ser biologicamente malformado (atávico), seja com um determinismo social com Enrri Ferri, para o qual o meio social era determinante na formação do caráter e escolhas do indivíduo, levando tanto em uma hipótese, como em outra, na formação de um prognóstico de criminalidade, ou seja, numa análise voltada para o futuro, que apresentava justificativas teóricas para penas indeterminadas como medidas de segurança e mecanismos de segregação dos indivíduos considerados criminosos por natureza, passando a pena ter a função de defesa da sociedade e correção e regeneração destes indivíduos, o que se verifica ainda na moderna dogmática jurídico penal nas medidas de segurança com a finalidade de tratamento e com prazo indeterminado.

Em síntese apertada, pode-se concluir que, apesar das diferenças de métodos, ambas as escolas (clássica e positivista) têm como resultado a ideologia de defesa social estruturada nos seguintes princípios: A) princípio de legitimidade: O Estado representa a vontade da sociedade e está legitimado para reprimir a criminalidade por meio de seus órgãos de persecução. B) Princípio do bem e do mal: O desvio criminal é o mal e a sociedade constituída o bem. C) Princípio da finalidade ou prevenção: Além da função retributiva, a pena possui função de prevenir o crime pela ameaça de sua imposição (prevenção geral) e exerce a função ressocializadora sobre o delinquente. D) Princípio da Igualdade: A lei penal é igual para todos e a reação penal se aplica de modo igual aos autores dos crimes. E) Princípio do interesse social e do delito natural: Os interesses protegidos pelo direito penal são comuns a todos os cidadãos. (BARATTA, 2011, p.42)

Do ponto de vista sociológico e psicanalítico, vários estudiosos e autores desenvolveram estudos e teorias que passaram a abalar os pressupostos ideológicos da defesa social, uma vez que desafiavam alguns de seus postulados.

En passant, as Teorias Psicanalíticas da Criminalidade, notadamente a Teoria Freudiana do delito por sentimento de culpa e as teorias psicanalíticas da sociedade punitiva, relativizam o conceito de autodeterminação e culpabilidade, típicas da concepção clássica que considera o ser humano abstratamente livre para autodeterminar-se e escolher suas condutas. Já para as teorias supra citadas, o consciente, representado pelo ego, recebe os impulsos do inconsciente (id), estes, por sua vez, são refreados pela censura das normas e valores ditados pelo superego. Sendo assim, o ego está sempre em conflito, administrando desejos reprimidos, oriundos do id, pelas normas e valores do superego. Nesse sentido, indivíduos com tendências antissociais mais afloradas, ou seja, sujeitos a maior incidência de estímulos antissociais do id, tendentes a comportamentos desviantes, estão em conflito acentuado pela censura desempenhada pelo superego e veriam na aplicação da pena um alívio para seus impulsos não refreados, motivando-os à prática do crime para obterem a sanção como alívio, reforçando as normas superego e aliviando o ego (Teoria Freudiana por sentimento de culpa).  A sociedade, por sua vez, teria o id atraído pelo comportamento desviante e sedutor do infrator, tendo a necessidade de ver o infrator punido pelos órgãos do Estado para reforçar o juízo de censura do superego, tranquilizando e aliviando o ego e reforçando as normas do superego, servindo, assim, a punição do criminoso como um “bode expiatório”. (BARATTA, 2011. p. 51/52).

Tais teorias orientam-se numa dimensão puramente psicanalítica, relativizando a noção de liberdade de ação humana, posto que o inconsciente exerce grande influência nas ações e no comportamento, o que põe em questionamento o conceito de culpabilidade, já que esta reflete a censura sobre um sujeito absolutamente livre e auto- determinado. Todavia, permanecem ainda inseridas no âmbito microssociológico, considerando a sociedade o produto do consenso (teorias do consenso), não reconhecendo o conflito como elemento essencial da sociedade (teorias do conflito), não superando ainda o enfoque etiológico do comportamento criminoso, desconsiderando o contexto histórico e as relações socioeconômicas em que se inserem os comportamentos.

Outrossim, novo enfoque recebeu a criminologia sob a influência da teoria estrutural funcionalista de Emile Durkheim para o qual o desvio é um fenômeno normal em toda estrutura social desde que não ultrapassados certos limites. Sob tais inspirações funcionalistas, Robert Merton, desenvolve a “teoria da anomia”, desenvolvendo a ideia de que indivíduos de uma mesma sociedade, localizados em diferentes estratos sociais e, portanto, com diferentes oportunidades de acesso aos fins ou objetivos culturais (família, conforto, dinheiro, poder, sucesso, fama, etc.) podem adotar diferentes posturas: 1) aceitação aos meios de que dispõe (estudo, trabalho, empreendedorismo) e dos fins e valores culturais (dinheiro, poder, conforto, fama), o que denomina “adesão”, estando situados aqui a grande maioria da população; 2) De aceitação aos fins e valores culturais (sucesso, dinheiro, poder, etc.) mas não dos meios disponíveis (trabalho, estudo, etc.), o que classifica como “inovação”, estando aqui os comportamentos desviantes e criminosos, especialmente os de natureza patrimonial;  3) de não aceitação aos valores culturais predominantes, o que classifica como ritualismo, estando aqui os “hippies” e alternativos; 4) a negação dos meios e fins culturais, denominado “apatia”, estando os bêbados, moradores de rua, etc.; por fim, ainda, 5) na proposição de novos valores sociais e meios institucionais, denominado “rebelião”, estando aqui os revolucionários, enfoques baseados na influência dos estratos sociais sobre os indivíduos e na expectativa que estes desenvolvem no meio em que vivem.

Sobre outro enfoque da criminalidade, Edwin Sutherland no desenvolvimento de sua teoria das subculturas criminais afirma que, como processo natural de socialização, indivíduos desenvolvem mecanismos de assimilação e aprendizagem relacionados aos comportamentos com os quais tem contato, num processo de interação e assimilação. Considerando a diversidade de valores e comportamentos entre os diversos grupos sociais, ex: skatistas, surfistas, grafiteiros, empresários, músicos, traficantes, os indivíduos a eles pertencentes assimilam os comportamentos do seu grupo e reproduzem os seus valores. Sendo assim, havendo uma pluralidade de grupos e valores na sociedade e não uma unidade, com preceitua a ideologia clássica de defesa social, a noção de culpabilidade é posta em cheque, uma vez que, em muitos desvios classificados como crime, o indivíduo se comporta conforme os valores apreendidos de seu grupo e não contrariamente a eles (noção de culpabilidade como o agir em desconformidade com a norma).

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III.        A MUDANÇA DE ENFOQUE NA CRIMINOLOGIA COM O LABELING APPROUCH

Todavia, ainda que tenha havido olhares diferentes para o crime e a criminalidade a partir das teorias acima citadas, a mudança de enfoque na criminologia se deu com o desenvolvimento da teoria da reação social ou “labeling approuch” (BARATTA, 2011, p. 112). A partir desta ótica, o crime e o criminoso deixam de serem vistos como objetos autônomos e de existência pré-constituídas, etiológicos, e passam a ser observados como o resultado de um processo de juízos valorativos estabelecidos pelas instâncias de controle social que detém o poder de definir a criminalidade, seja no plano abstrato legislativo, ao elaborar as leis penais, seja no plano concreto, ao definir quais pessoas serão objeto de juízos de valor negativo e rotuladas como desviantes e criminosas.

Tal teoria se funda na distinção entre juízos descritivos e juízos valorativos. Enquanto a lei penal define condutas no plano abstrato, no planto concreto são os juízos de valores que criarão a qualidade de criminoso ao imputado (meta-regras), sendo que tais juízos não atingirão certos indivíduos, mesmo que cometam desvios, tais como em grande parte dos crimes de colarinho branco, crimes praticados pela elite política e econômica, mas atuarão sobre outros que serão alvos preferenciais (dependendo da condição social e função econômica) de um processo negativo de rotulação. Trata-se de uma concepção interacionista da realidade social, ou seja, a realidade social, assim como a criminalidade, não são fenômenos autônomos, pré-constituídos, mas o produto da realidade construída a partir desses processos de interação e julgamentos. (BARATTA, 2011, p. 108)

O autor Howard Becker, em seu livro datado de 1963, intitulado, os estranhos (Outsiders), citado por Gabriel Ignacio Anitua afirma que:

O desviado é uma pessoa a quem o etiquetamento foi aplicado com êxito; o comportamento desviado é um comportamento etiquetado com tal. (ANITUA, p.592)

Fica evidenciada que tal rotulação de indivíduos como criminosos é realizada por determinados indivíduos detentores do poder de, num primeiro instante, criar a lei penal, no segundo, de aplicar a lei penal, estabelecendo quais pessoas devem ser perseguidas, gerando, como consequência, a rotulação destes indivíduos como desviantes e criminosos, aos quais se agregará esse status social que contribuirá a partir de então para que estes indivíduos continuem a praticar crimes ou, mais precisamente, para que continuem sendo alvos dos processos de rotulação. (BARATTA, 2011, p.110). É mister ater para o fato de que entre o grupo detentor do poder de rotulação e o grupo alvo principal dos processos de rotulação existe diferenças de estratificação e antagonismos sociais (BARATTA, 2011, p. 110)

Importante é a constatação do efeito que a rotulação gera na identidade e personalidade do indivíduo. Segundo o teórico Lemert em seu livro Ação Social e mudança legal dentro dos tribunais de menores, citado por Anitua:

Os efeitos psicológicos da aplicação da etiqueta de delinquente por parte das instâncias que reagem frente ao fato primário significarão a aceitação dessa condição pelo próprio etiquetado. As atitudes posteriores, adequadas ao que se espera dele, serão mecanismos de defesa, de ataque ou de adaptação com referência a essa reação social (ANITUA, p. 591)

Diante do exposto, verifica-se uma mudança paradigmática com o labeling approuch, passando-se a criminologia a preocupar-se com os processos de criminalização presididos pelas agências de controle formal do estado que recaem sobre determinados indivíduos, preferencialmente, e não sobre outros, gerando sobre os primeiros o efeito negativo e a tendência ao desenvolvimento a carreiras criminais a partir da fixação do rótulo de desviante ou criminoso.

As chamadas teorias liberais da criminologia contemporânea desenvolvidas no texto opõem-se à criminologia clássica e positivista que constituem a base ideológica da escola de defesa social, esta, por sua vez, constitui-se no discurso oficial das agências de controle social e embasa a dogmática jurídico-penal. Nessa esteira, cada uma das teorias liberais da criminologia contemporânea contribui para a desconstituição de certos paradigmas da escola de defesa social, especialmente no postulado da igualdade da lei penal em sua elaboração e aplicação, do interesse social ou do delito natural, no sentido de que os interesses tutelados e a intensidade da tutela são sempre gerais e comuns a todos os extratos sociais. (BARATTA, 2011, p. 148)

Com tais teorias e, entre essas, destaca-se a teoria do labeling, a ciência jurídico penal distancia-se da criminologia, deixando esta de ser uma ciência auxiliar que serve àquela, tal como fazia a criminologia positivista. Agora, ao revés, a criminologia através da análise sociológica e multidimensional do fenômeno criminal e dos processos de criminalização passa a questionar dogmas tidos por verdadeiros pela ciência jurídica penal, não se podendo mais falar em um modelo integrado de criminologia e ciência penal.

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Sobre o autor
Tiago Felipe Bernardes Dorneles

Delegado de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Mestrando em Segurança Pública pela Universidade Vila Velha. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DORNELES, Tiago Felipe Bernardes Dorneles. Usuário ou traficante?: Crítica criminologica à lei de drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4747, 30 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50171. Acesso em: 28 abr. 2024.

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