IV. A CRIMINOLOGIA CRÍTICA, UM ENFOQUE FUNCIONAL DO SISTEMA PUNITIVO NA SOCIEDADE CONFLITUAL
Até aqui as teorias liberais contemporâneas da criminologia situaram-se numa dimensão microssociológica, subtraindo da análise as estruturas sociais, econômicas e políticas da sociedade e sua inter-relação com o fenômeno criminal, fenômenos que não vão passar desapercebidos pela criminologia crítica ou nova criminologia.
A criminologia crítica, ao realizar uma crítica interna das correntes, vai além, vale-se das proposições e conclusões do labeling approuch que vê a criminalidade e o desvio não como realidades ontológicas próprias e pré-constituídas, mas como produto de processos de interação em que grupos com poder de definição da criminalidade definem os comportamentos e os sujeitos que serão rotulados como desviantes através de processos de criminalização por eles controlados, todavia, indo além, introduzem a análise funcional do desvio com as estruturas sociais, com as relações de produção e distribuição, numa perspectiva macrossociológica. (BARATTA, 2011, p. 160)
A contribuição do marxismo para a criminologia encontrou expressão em autores como Bonger, Pashukanis e Rusche. (ANITUA, 2008, p.612).
Para o marxismo, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), a estrutura do sistema produtivo determina a estrutura geral da sociedade, esta, por sua vez, estaria polarizada entre a classe detentora dos meios de produção (burguesia) e a classe detentora apenas de sua capacidade de trabalho (proletariado). Os referidos autores criticariam o direito burguês por sua natureza falsamente igualitária. (ANITUA, 2008, p. 614)
Marx nas obras, “Crítica ao Programa de Gotha” e “A Questão Judaica”, evidencia a contradição entre igualdade formal, na esfera da distribuição, e desigualdade substancial, na da produção material. Tal mito igualitário no capitalismo afeta diretamente o campo do contrato e a formação política e, por consequência, o direito penal como parte integrante desta.
Para o holandês Willem Bonger, em sua tese de doutorado “A criminalidade e as condições econômicas”, publicada em 1905 (ANITUA, 2008 p. 616), o capitalismo levaria os homens a delinquir, seja pelas carências econômicas da maioria da população, seja pela ruptura dos sentimentos humanitários de solidariedade gerados pelo espírito competitivo, propondo o socialismo como cura.
Para o russo Evgeni Paschukanis (1891-1938), a ideia de sociedade em seu conjunto só existe na imaginação dos juristas. Para o autor, a sociedade é composta por classes com interesses contraditórios (teorias do conflito), tendo o direito o papel de conferir legalidade a essas relações econômicas desiguais, dando-lhes legitimidade através de sua aplicação pelas burocracias estatais. (ANITUA, 2008, p. 619). Para Pashuquanis, a privação de liberdade no tempo é a forma na qual o capitalismo personifica o conceito contratual de recompensa equivalente. Nesse sentido, o tempo de prisão “recompensaria” a conduta delitiva, ideia contratual onde o único bem de que dispõe o trabalhador, força de trabalho medida no tempo, é a forma de pagamento pelo desvio praticado. (ANITUA, 2008, p. 618)
O autor George Rusche (1900-1950) desenvolveu sua teoria sobre a influência das necessidades do modo de produção sobre a aplicação de castigos, percussores da escola de Frankfurt. Essas teorias foram depois complementadas por Otto Kirchheimer (1905-1965) em sua obra “Punição e Estrutura Social”, onde desenvolve a ideia de que a pena não teria a função declarada pelo direito penal, não sendo a consequência da prática do crime, tampouco serviria aos fins de prevenção e repressão. A pena não existiria em abstrato e sim o sistema punitivo concreto e práticas determinadas para o tratamento dos criminosos. Para o autor, o número da população carcerária depende do aumento ou diminuição da mão de obra disponível no mercado de trabalho e das necessidades que o capital tiver dela. (ANITUA, 2008, p. 620).
Nesse viés, tais autores associam o crime e a punição a uma função no contexto da sociedade de classes (teorias do conflito), tendo o sistema punitivo um papel a ser desempenhado para a conservação e reprodução da estrutura social desigual de classes.
V. BREVE CRÍTICA SOBRE A LEI DE DROGAS: OS VETORES DE DISTINÇÃO ENTRE O USO E O TRAFICO DE DROGAS
O tráfico de drogas foi objeto de mandado de criminalização pela Constituição Federal que o equiparou aos crimes hediondos, o que lhes confere um tratamento mais severo, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; (Grifo Nosso)
A Lei 11.343/06 preceitua em sua ementa: Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.
A lei, nesse sentido, estabelece dois objetivos diametralmente opostos: de um lado busca prevenir o uso de drogas e reintegrar socialmente os usuários e dependentes, de outro reprime o tráfico prescrevendo crimes com elevada pena de reclusão.
O tratamento para o indivíduo considerado usuário de drogas vem disciplinado pelo Art. 28 da Lei 11.343/06, já para o sujeito praticante de uma conduta rotulada como tráfico de drogas encontra definição legal no Art. 33 da mesma lei, in verbis:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
(...)
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
Na perspectiva da lei, o usuário de drogas não está sujeito à pena de prisão, mas a medidas de advertência, prestação de serviços comunitários e medida educativa, já para o tráfico de drogas a lei reserva a pena de cinco a quinze anos de reclusão, bem como pesada pena de multa, não podendo o preso ser beneficiado com a concessão de fiança como espécie de liberdade provisória, o que não impossibilita outras formas de liberdade provisória segundo a jurisprudência majoritária (STF, HC 104339), e está sujeito a um regime de execução de pena mais severo.
Feitas tais distinções de tratamento legislativo, é necessário verificar agora do ponto de vista crítico o que diferencia condutas consideradas como integrantes da prática do crime de tráfico de drogas (Art. 33 da Lei 11.343/06) daquelas praticadas pelo usuário (Art. 28 da Lei 11.343/06), tal distinção não se funda num critério legal estritamente objetivo, mas em vetores legais para ser levados em conta pelos intérpretes e aplicadores da lei. Assim dispõe o §2º do Art. 28 da Lei 11.343/06, in verbis:
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
Na perspectiva da atual lei, cabe ao aplicador da lei penal (Autoridade Policial, Ministério Público, Juiz) realizar um juízo de valor acerca da conduta relacionada a drogas, ponderando circunstâncias como a quantidade e natureza da droga, o local do fato, as condições em que se desenvolveu à ação, as circunstâncias sociais e pessoais, assim como a conduta e antecedentes do agente.
Em determinadas situações em que indivíduos são capturados pela polícia na posse de grandes quantidades de entorpecentes, quilos de drogas que excedem qualquer padrão de consumo por mais intenso que seja, parece não restar dúvidas acerca da destinação das drogas para o comércio, tipificando a conduta como tráfico de drogas.
Todavia, na grande maioria dos casos, as prisões por tráfico ocorrem em comunidades periféricas, a quantidade de drogas apreendidas não permite, por si só, a formulação de um juízo de valor seguro acerca da destinação das drogas, se para consumo próprio, se destinado ao tráfico. Nesses casos em que a práxis demonstram ser a grande maioria, entra em cena os juízos de valor realizados pelas agências de controle oficial.
Verifica-se que tais juízos são subsidiados pelos parâmetros legais:
Local e circunstâncias em que se desenvolveu a ação:
Esse parâmetro pode servir como reforço de criminalização de sujeitos situados em comunidades mais periféricas onde a venda de drogas se concentra. Todavia, o fato de tais regiões concentrarem o maior número de casos de tráfico, não pode servir como fator de estigma para indivíduos que residem nesses locais. Nas comunidades carentes e periférica a maior parte da população não se dedica a atividades ilícitas mas residem ali pela precária condição econômica e social, sendo as atividades ilícitas exploradas por uma minoria nestes locais. Todavia, o estigma por residir em tais locais se estende a todos os seus ocupantes, aumentando as chances de criminalização dos indivíduos neles situados.
As circunstâncias sociais e pessoais.
Aqui, mais uma vez, verifica-se o recurso a expressões genéricas como fator de fundamentação de um processo de valoração e rotulação de indivíduos. O fato de se estar estudando ou trabalhando poderiam refletir uma boa conduta social, já o de estar desempregado ou subocupado uma circunstância social desfavorável. Nessa esteira, o fato de o indivíduo ser útil ao sistema produtivo econômico influencia no seu processo de criminalização.
A conduta e os antecedentes do agente.
Aqui a rotulação se manifesta da forma mais acentuada. Indivíduos que já possuem passagens pela polícia, ainda que não sejam reincidentes, e especialmente os reincidentes, sofrem um processo de estigma acentuado. A mesma quantidade de drogas e nas mesmas circunstâncias nas mãos de um indivíduo sem passagens criminais e residente em um local privilegiado quando nas mãos de um reincidente pode fazer toda a diferença entre ser um usuário ou um traficante a partir deste elemento de fundamentação.
VI.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A criminologia lança novos olhares sob o complexo fenômeno criminal. Verifica-se um atraso nas ciências jurídicas, especialmente na dogmática jurídico-penal em relação às ciências sociais. Tal fato pode ser explicado pela função desempenhada pelo direito positivo na manutenção e reprodução das estruturas sócio-econômicas, perspectiva lançada pela criminologia crítica.
Quanto ao delito de tráfico de drogas, verifica-se de modo clarividente a utilização de expressões legais que reforçam os processos de rotulação de uma massa de sujeitos vulneráveis por parte daqueles que detém o poder de definição de criminalidade no plano concreto, enfoque lançado pela teoria do labeling approuch e desenvolvido pela criminologia crítica.
Tais enfoques ajudam na compreensão e análise dos fenômenos criminais, permitindo-se a adoção de posturas mais críticas e racionais pelos operadores jurídicos, desenvolvendo posturas mais democráticas e contribuindo para a erradicação de atitudes preconceituosas.
VII. REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. – Rio de Janeiro: revan; ICC, 2012. (Pensamento Criminológico; 19) 1ª reimpressão, março de 2014.
ANITUA, Gabriel Ignacio. História dos Pensamentos Criminológicos. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Carioca de Criminologia: Revan, 2008. Coleção pensamentos criminológicos.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal/Alessandro Baratta; Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 6° edição.
BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
CARVALHO, Salo de. Anti-manual de Criminologia. Ed. Lumes Juris. 2015.
DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminalidade. – Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2014. Pensamento Criminológico; 9.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
LOIC, Wacquant. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Tradução de Sergio Lamrão. – Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, revista e ampliada, agosto de 2007. 2ª reimpressão, abril de 2015.
LOMBROSO, Cesare, 1885-1909. O homem delinquente. Tradução Sebastião José Roque. – São Paulo: Ícone, 2016. – Coleção fundamentos do direito.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, 1927 – O inimigo no Direito Penal/ E, Raúl Zaffaroni. Tradução de Sérgio Lamarão – Rio de Janeiro: Revan, 2007, 2ª edição junho de 2007, 3ª edição dezembro de 2011. 224p. – (Pensamento Criminológico; 14)