Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/50761
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A racionalidade penal na Constituição Federal e o limite ao poder punitivo do Estado

A racionalidade penal na Constituição Federal e o limite ao poder punitivo do Estado

Publicado em . Elaborado em .

A racionalidade deve estar na base do sistema penal, para que este seja considerado lógico e justo, e respeite as liberdades individuais dos particulares em detrimento de qualquer arbitrariedade que possa advir dos poderes estatais.

Resumo: O presente estudo tem como objetivo precípuo a análise da racionalidade do Sistema Penal, fundamentada, sobretudo, na Carta Magna, e de que maneira ela influirá na elaboração, interpretação e aplicação das normas punitivas. Evita, nesse sentido, o arbítrio do Estado-juiz, por meio da instituição de limites à sua atuação.

Palavras-chave: Constituição Federal, Direito Penal, racionalidade, arbítrio.


1. Introdução

De início, em consonância com a finalidade principal deste trabalho, qual seja, o estudo da racionalidade penal contida na Constituição Federal e o seu reflexo no Sistema Penal, mediante o estabelecimento de regras e limites à pretensão punitiva do Estado, é importante fazer uma breve trajetória histórica do ramo do direito em comento, especialmente no que diz respeito à introdução da ideia de racionalidade no ordenamento jurídico, seja por meio da teorização jusnaturalista, seja por meio da normatização positivista, conforme ver-se-á adiante.

Nesse diapasão, a história das sociedades pode ser dividida de diversas maneiras, variando de acordo com o autor a que se leva em consideração. Freud, por exemplo, estabelece os períodos animista, religioso e científico, enquanto que Comte utiliza as fases teológica, metafísica e científica/positiva. Luhmann, por sua vez, divide a história da humanidade em sociedades arcaicas, sociedades avançadas e período moderno.

No que concerne ao direito penal, o momento inicial, primitivo, de sua trajetória histórica é o relativo ao período de ofensa à vontade dos deuses, que não é datável. Nessa fase, inexistia a relação de mando e obediência entre os indivíduos, não havendo relação de subordinação entre eles, pois deviam seguir apenas as ordens das autoridades divinas, chamadas de totem. Caracteriza-se pela inserção do homem no mundo dos mitos, apresentando grande relação com a natureza, explicando-se, assim, a crença de que tudo que acontecia era decorrente da vontade dos deuses. As proibições que os integrantes de cada clã deveria seguir são denominadas de tabu e a sua inobservância gerava duas espécies de punição: a expulsão do indivíduo da tribo e a faída, que consistia na vingança de sangue, ou seja, explicava-se pelas noções de represália (que garante a segurança) e de solidariedade (que garante a proteção), segundo Luhmman.

Superado esse primeiro período, tem-se a fase de ofensa à vontade do soberano, que diz respeito à transição do mundo mágico para as sociedades imperiais. Há uma aliança entre os deuses e os soberanos, com a transformação na identidade daqueles, que adquirem a forma humana. Caracteriza-se pelo nascimento e desenvolvimento das sociedades clássicas, especialmente Grécia e Roma, e o direito penal apresentava-se por meio de normas costumeiras, que quando infringidas, lesava-se a vontade tanto do soberano, quanto dos deuses, devido à proximidade entre ambas as figuras.

O terceiro momento trata-se da ofensa à vontade do legislador quando as normas não são seguidas. Surgem novas bases de justificação e fundamentos para o direito penal, tendo início basicamente no século XVI com o Renascimento, consolidando-se com as Revoluções Americana e Francesa. Apresentou forte influência de pensadores como Descartes, Locke, Rousseau e Hobbes, tendo por principal base a ideia de liberdade. Nessa fase, há o rompimento com o direito antecessor e principalmente com a noção de arbitrariedade, que era dominante antes do seu surgimento, visto que esse momento baseia-se na lei, que nasce na figura do legislador e se legitima por um Parlamento (isto é, indiretamente pelo povo). O respeito ao legislador, que estipula previamente as situações que devem ser observadas pelo particular, é elemento caracterizador do período, assim como a tripartição dos poderes do Estado, com o surgimento da figura do juiz, que possui autonomia e deve decidir o caso concreto de maneira imparcial. A inserção da racionalidade no direito, por meio da corrente jusnaturalista, remonta a essa fase.

Surgem, assim, duas escolas penais: a clássica e a positiva. Aquela teve como principais representantes Filangieni, Fewenbach e Bentham, remontando-se à primeira metade do século XIX. Defendiam que o crime não passava de um ente jurídico, um produto da razão, isto é, algo inventado, posto. Segundo eles, a pena apresentava caráter retributivo (de castigo), decorrendo a responsabilidade penal do livre arbítrio de cada indivíduo (ou seja, ele é livre para fazer suas escolhas). Refutavam, ainda, a ideia de determinismo.

A segunda escola foi adotada por pensadores como Lombroso, Garófalo e Ferri e surgiu basicamente na segunda metade do século XIX. Afirmam que o crime não é uma invenção da razão, mas que é um fato natural, social, biológico e pode ser captado, percebido na natureza. Baseiam-se, dessa maneira, numa visão naturalista. A responsabilidade penal, segundo essa corrente, decorre do simples fato de viver-se em sociedade, ou seja, existe uma responsabilidade social, por meio de forças inatas ou externas ao delinquente que o levam à prática do crime. Ou ainda, possuem a ideia de responsabilidade determinada (geograficamente, psicologicamente etc.) e a pena era vista como uma maneira de defesa social.

No Brasil, por sua vez, o código penal vigente data de 1940, mas passou por revitalização em 1984, que foi muito bem aceita e elogiada pelos estudiosos do direito, principalmente porque primou pela legalidade estrita das penas e dos crimes.

Essa tendência foi seguida e aperfeiçoada pela Constituição Federal de 1988, que incorporou diversos temas e princípios inerentes ao direito penal, o que ocasionou o que muitos denominam de Direito Penal Constitucional. Princípios como a presunção de inocência do acusado, o contraditório e a ampla defesa, a legalidade penal estrita, a proibição de retroatividade da lei penal, salvo se beneficie o réu, entre outros, que serão melhor estudados em tópico próprio adiante.


2. Jusnaturalismo, positivismo jurídico e a racionalidade

A dicotomia entre o direito natural e o direito positivo é antiga entre os estudiosos, tanto no meio jurídico, quanto no religioso, filosófico, entre outros, estando, no entanto, todos relacionados. Hoje, conquanto, o referido debate perdeu bastante a sua importância, sobretudo por conta de uma tendência unificadora da duas vertentes de pensamento.

O jusnaturalismo, malgrado se trate de uma linha de pensamento única, com ideias gerais e aspectos comuns, apresentou diferentes ramos internos, basicamente devido à diversidade dos momentos históricos em que estavam inseridos os seus estudiosos, podendo ser dividido de acordo com a conjuntura social de cada período.

A origem do pensamento, inobstante de maneira ainda bastante insipiente, deu-se com o surgimento do Direito, na Grécia. As ideias de Heráclito são, provavelmente, as que melhor explicam a linha de entendimento nesse momento, e versavam sobre a existência de um direito natural, eternamente válido, que deve ser observado e seguido em qualquer lugar, visto que é universal, e prescinde de legislação, convenção ou qualquer outra invenção humana.

Tempos depois, de maneira mais sistematizada, surge a vertente do direito natural ligado à ideia de vontade divina. Ou seja, o direito verdadeiro, único, que deveria ser seguido estritamente, seria aquele que advém da vontade de Deus, pois este dita as normas de conduta e de convivência em sociedade que devem ser observadas. Faz-se a distinção entre o direito natural absoluto e o relativo, sendo o primeiro o direito ideal que imperava antes do pecado original, enquanto que aquele seria o resultante do pecado original, que se adaptava à natureza humana. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino são importantes representates desses ideias do jusnaturalismo em sua fase religiosa.

Superada essa fase, inaugura-se um novo patamar de pensamento, com Grotius, tendo por base, diferentemente de seus antecessores, a razão humana.

Será no denominado jusnaturalismo abstrato, que tem por principal estudioso John Locke, que a explicação para tudo se dá por meio da razão humana, ou seja, no próprio homem. Assim, tudo que for objetivo será desconsiderado, pois a realidade social, a História e a razão humana se tornam uma divindade absoluta. Para ele, a lei natural se confunde com a lei da razão, porquanto é uma regra eterna para todos, sendo evidente e inteligível para todas as criaturas racionais. O homem seria capaz, então, de elaborar suas normas de conduta, mediante a instituição de direitos e deveres, que deveriam ser seguidos estritamente pela coletividade.

Portanto, as leis naturais estão sempre de acordo com a justiça, enquanto que nem sempre as civis estarão de acordo com ela, já que podem ser feitas por legisladores oposicionistas aos interesses sociais. Consideram que a lei natural que se impõe ao gênero humano é uma lei de obrigação, que só pode ser imputada a seres morais, dotados de razão. Assim, só o homem pode ser sujeito de direito; o imperativo da lei natural é, portanto, que a obrigação seja mantida pelos homens. Esta obrigação pode ser traduzida na observância do princípio de sociabilidade, todos os sistemas humanos de direito e as obrigações daí decorrentes devem estar assentes na ideia de que o homem é um ser social. A fonte do direito natural é a natureza humana, a ordem natural das coisas. A sua compreensão é alcançada pela conjugação da experiência e da razão; não emana de uma revelação. É uma ordem condicionada pela dimensão social do homem. O seu papel é o de preservar as condições sociais necessárias para que o homem se constitua, viabilize-se de acordo com suas potências construtivas. Esse direito não é normativo, mas apenas reúne princípios fundamentais sem qualquer compromisso ou vinculação com determinada ordem política.

O positivismo jurídico, por seu turno, refutava arduamente os ideais naturalistas, pois defendiam toda e qualquer codificação possível do direito, para trazer, nesse sentido, a segurança jurídica, que, de acordo com eles, não possuía com o jusnaturalismo. Ao contrário desta corrente, que admitia a existência das duas teorias, embora estabelecesse a superposição do direito natural, aquela negava completamente a existência de um direito baseado na lei natural.

Dessa maneira, o direito positivo surgiu da crítica profunda às ideias naturalistas, por meio de precursores como Nikolau Maquiavel, Francis Bacon e Thomas Hobbes, originando-se o historicismo de Savigny, que estabelecia a necessidade de uma análise profunda da história humana, para a partir daí se estabelecer um direito. Afirmava que o homem é mutável e difere de acordo com a raça, o clima, o período histórico, etc. Assim, negava a racionalidade própria do jusnaturalismo, defendendo uma não-razão, que seria o impulso, as paixões, os sentimentos do homem. Eles são pessimistas, na medida em que não acreditam na progressão do homem, bem como são saudosistas, pois elevavam a um patamar superior o passado.

Contudo, foi com a escola exegética, na França, e Bentham, na Inglaterra, que o direito positivo alcançou seus principais fundamentos e pressupostos, influenciado por codificações como a justiniana e a napoleônica. Defendiam um direito posto, direto, objetivo, codificado e fundamentavam pela autoridade do legislador, que deveria ter sua vontade seguida pelos destinatários da norma e pelo julgador, que por conta da separação dos poderes do Estado, seria autônomo e imparcial à relação conflituosa.

A teoria de Hans Kelsen primou pela pureza do direito, ou seja, este deveria ser autônomo em relação a todas as outras ciências (sociologia, filosofia, criminologia, etc.), bem como se deveria eliminar quaisquer influências da moral e da emoção no ordenamento jurídico. Refutava, ainda, a ideia de justiça ligada ao direito, pois este deve ser visto tal como é, e não como deveria ser. O justo, em seu pensamento, é o posto, a norma positivada.

Essa atitude contrapõe o positivismo jurídico ao jusnaturalismo, que sustenta que deve fazer parte do estudo do direito real também a sua valoração com base no direito ideal, pelo que na definição do direito se deve introduzir uma qualificação, que discrimine o direito tal qual é segundo um critério estabelecido do ponto de vista do direito tal qual deve ser.

Para se entender essa distinção entre o positivismo e o jusnaturalismo deve-se analisar a questão da validade do direito e do valor do direito, entendida a primeira como fazendo parte do ordenamento jurídico real e existindo dentro de uma sociedade, enquanto a segunda indica a qualidade de tal norma, onde se verifica que a mesma está conforme ao direito ideal.

A tendência atual, no entanto, a que temos assistido, é menos radical, tendo inclusive a dicotomia acima exposta perdido muito do seu sentido, tendo em vista que há um processo de unificação, ou, pelo menos, aproximação, entre as teorias.

Isso tem ocorrido por via da normatização de princípios e ideias inerentes ao pensamento do direito natural. São princípios muitas vezes bastante abstratos, de ordem transcendental, que estão intimamente ligados à moral e estado de espírito do indivíduo, fugindo daquela visão primária do direito positivo de que o direito devia ser estritamente direto e objetivo. A essa corrente mais flexível tem se dado o nome de pós-positivismo.

Exemplo claro em nossa Carta Magna é o princípio da dignidade da pessoa humana, que transcende qualquer valor objetivamente auferido, e pode ser aplicado de diversas maneiras (seja na elaboração, interpretação ou aplicação das normas jurídicas) e em casos múltiplos.

A racionalidade penal, em nossa Constituição, tem seguido essa tendência, mediante a sistematização de princípios de ordem pública, que visam a organizar e a tornar o Sistema Penal mais lógico e, basicamente, menos interveniente no convívio social e mais protetor do acusado contra arbitrariedades do poder público.

Ademais, sobre as várias teorias e autores que se debruçaram sobre a racionalidade penal ao longo do tempo, em busca de um sistema penal lógico e que seja hábil a resolver questões jurídico-penais complexas, o alemão Bernd Schünemann[1] assevera que:

“Los trabajos concretos sobre cuestiones jurídico-penales dogmáticas y sistemáticas que se han compilado em esta obra coinciden en el punto de partida: buscar la solución de las cuestiones materiales y sistemáticas em un principio de razonamiento orientado a fines y valores, esto es – formulado de otro modo -, pretender evitar precipitadas construcciones conceptualistas, con la consiguiente atrofia de los aspectos normativos. Por tanto, se entiendem como pruebas a título de ensayo de un razonamiento jurídico-penal orientado a fines. Su dedicatión, por completo polémica, al esquema de ROXIN en Política criminal y sistema del Derecho penal, que ha de entenderse como el desencadenante inicial, así como a la radical reconducción de la culpabilidad a la prevención practicada por JACKOBS, debe dejar claro que la base científica vinculante del razionamiento no consiste em concretas hipótesis materiales que pudieran plasmarse em doctrinas ortodoxas. Más bien el elemento aglutinante viene dado por el planteamiento explícitamente normativo y por el rechazo de las construcciones y deduciones puramente conceptualistas, que no estén fundadas normativamente o lo estén em medida insuficiente.”


3. Direito Penal Mínimo

A ideia de direito penal mínimo está intimamente ligada à Teoria do Garantismo, elaborada por Luigi Ferrajoli, em sua obra Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, que descorre brilhantemente sobre como a mínima intervenção estatal possível, que está na base da sua teoria, traz racionalidade ao sistema penal.

O direito penal mínimo, então, é o modelo ideal a ser adotado pelos Estados Democráticos de Direito, visto que possibilita maiores limites e condicionamentos ao poder punitivo estatal, tornando a sua intervenção subsidiária e excepcional.

Ele possui um elevado grau de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo.

Tem por base, ainda, o ideal de racionalidade e certeza. A primeira, no que diz respeito à previsibilidade na atuação do jus puniendi estatal e por meio da utilização de argumentos cognitivos, ensejando-se, dessa maneira, a certeza ao cidadão de que não será surpreendido, pois sabe exatamente o que não se deve fazer.

Para discorremos sobre a ideia de certeza, ainda, mister se faz contrapor o direito penal mínimo ao direito penal máximo. Neste, o sistema está voltado para o ideal preponderante de que nenhum criminoso pode ficar impune, ainda que inocentes sejam condenados – in dubio contra rerum -, ou seja, traz uma certeza pública acerca das ofensas ocasionadas pelo delito: do cometimento de um crime; é certa uma condenação, ainda que não do verdadeiro criminoso.

O direito penal mínimo, por seu turno, prefere que um culpado fique impune a um inocente condenado – máxima do in dubio pro reo, que está presente quase na totalidade dos Estados Democráticos, por se tratar de sua ideia inerente – e prima pela máxima tutela das liberdades individuais.

O garantismo penal / direito penal mínimo, persegue, então, uma certeza racional – mas relativa, na medida dos limites intrínsecos ao conceito de verdade processual.

Sobre o tema, Ferrajoli[2] salienta que:

“A certeza perseguida pelo direito penal está em que nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune. Os dois tipos de certeza e os custos ligados às incertezas correlativas refletem interesses e opiniões políticas contrapostas: por um lado, a máxima tutela da certeza pública acerca das ofensas ocasionadas pelas penas arbitrárias. Podemos dissipar, assim, o equívoco de uma 'certeza' ou 'verdade' mística que seria perseguida pelo garantismo cognitivista. A certeza, ainda que não absoluta, a que aspira um sistema penal do tipo garantista não é no sentido de que resultem exatamente comprovados e punidos todos os fatos previstos pela lei como delitos, mas que sejam punidos somente aqueles nos quais se tenha comprovado a culpabilidade por sua comissão. Em todo o caso, ambas as 'certezas' são subjetivas e relativas, afetando 'verdades' igualmente opinativas e prováveis. Sua diferença está apenas nos critérios opostos de sua obtenção.”

Como mais uma forma de mínima intervenção punitiva do Estado, Ferrajoli traçou alguns pressupostos para que a pena pudesse se fazer presente, quais sejam: delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa, dando especial atenção a esses dois últimos requisitos.

Decorre, ainda, desse conceito, o princípio da insignificância, que embora não esteja positivado em nenhum código no direito brasileiro, tem aplicação pacífica pelos juízes e Tribunais, com especial atuação da doutrina, que foi a principal responsável pela inserção desse princípio de forma ampla no direito pátrio.

De acordo com o referido princípio, o direito penal deve se ater aos delitos com lesividade à sociedade, desprezando os crimes de mínimo potencial ofensivo, que decorre pela necessidade de atuação mínima do poder estatal.

Ao se aplicar tal princípio, a materialidade do crime deixa de existir, eliminando-se o próprio tipo penal (levando em consideração a Teoria do Crime tripartite).

Vejamos jurisprudência[3] minuciosamente explicativa acerca do assunto, do Supremo Tribunal Federal:

"Princípio da insignificância. Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado de política criminal. Consequente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material. Delito de furto simples, em sua modalidade tentada. Res furtiva no valor (ínfimo) de R$ 20,00 (equivalente a 5,26% do salário mínimo atualmente em vigor). Doutrina. Considerações em torno da jurisprudência do STF. Pedido deferido. O princípio da insignificância qualifica-se como fator de descaracterização material da tipicidade penal. O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente; (b) a nenhuma periculosidade social da ação; (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O postulado da insignificância e a função do direito penal: de minimis, non curat praetor. O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social." (.)


4. Direito Penal Constitucional

Conforme já disposto ao longo deste estudo, a razão está na base do Sistema Penal, isto é, ela orienta toda a normatização, interpretação e aplicação das normas penais, evitando, assim, a arbitrariedade do Estado (seja este em sua função de legislador ou de julgador) ao traçar pressupostos básicos para a intervenção estatal resultante da pretensão punitiva deste (como visto no item anterior), ou, ainda, para nortear os procedimentos e direitos do acusado, a fim de que lhe seja assegurada toda a possibilidade de defesa e não haja erro por parte do Estado-juiz. Portanto, é ela que organiza, de maneira lógica, conforme expôs Cesare Beccaria em sua magnífica obra Dos Delitos e Das Penas (1764), o direito punitivo.

A seguir, ver-se-á os principais princípios do direito penal contidos expressamente na Carta Magna, ou que possuam seu fundamento no referido Diploma.

4.1 - Princípio da legalidade penal

O mandamento de otimização em tela está previsto no texto constitucional em seu artigo 5º, inc. XXXIX, in verbis: 

“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”

Trata-se do princípio base do direito penal e dá origem, direta ou indiretamente, a vários outros.

O direito penal possui uma função duplamente protetora. Por um lado, objetiva proteger o indivíduo dele próprio, ou seja, é como se o delinquente necessitasse de uma intervenção externa, a estatal, in casu, para que fosse punido e não reincidir, visto que atuou contra a sua vontade.

De outro lado, deve-se proteger a sociedade contra a transgressão do criminoso, tendo em vista que se já delinquiu uma vez, se nenhuma intervenção for feita, é possível que volte a cometer crimes, colocando toda a comunidade em perigo. Essa é a função precípua do sistema punitivo, já que a pena, na sua acepção contemporânea, possui um caráter majoritariamente de defesa social.

A legalidade penal se trata da lógica legitimadora do direito penal ao afirmar que a conduta proibida deve ser anteriormente tipificada como crime, bem como a sua penalidade em caso de transgressão. Dessa maneira, atos prévios ao surgimento da lei não serão considerados crimes.

O referido princípio está presente em todos os ramos jurídicos, em alguns, mais e em outros, menos. No entanto, no âmbito punitivo, ele é peculiar, visto que deve ser levado em consideração de maneira estrita. Isso quer dizer que a lei, a que se refere o dispositivo constitucional acima exposto, deve ser entendida em seu sentido formal, e não material. A lei em sentido formal necessita de todas os procedimentos e fases previstos na Constituição, devendo ser editada pelo Poder Legislativo e observadas as formalidades, que variam de acordo com a espécie normativa (leis ordinárias, complementares, emendas constitucionais, etc.). A lei em sentido material, por seu turno, leva em consideração apenas o conteúdo, sendo flexível quanto às formalidades, englobando atos normativos, decretos, regimentos internos, entre outros. Esta é, portanto, excluída do conceito de legalidade penal estrita. Da mesma maneira, não podem ser considerados os usos, os costumes e as jurisprudências para tipificação penal.

Para melhor fixação, consideremos dois casos práticos:

1 – Marcos era árbitro de futebol. Em 2009 foi acusado por prática de manipulação de resultado, cujo propósito era beneficiar alguns apostadores.

2 – Cláudia e Paulo, casados, fazem filmagens em suas intimidades e na sequência dirigem-se a uma lan house e encomendam um CD. Depois descobrem que uma cópia do CD que encomendaram circulava pela internet, mostrando as intimidades do casal.

Tanto no primeiro, quanto no segundo casos as condutas, respectivamente, do árbitro e do proprietário do estabelecimento não são puníveis. As condutas não se encaixam em nenhuma prescrição do Código Penal de forma determinada, específica. Ou seja, mesmo que se assemelhem com algumas tipificações, não são penalmente puníveis, mas somente no âmbito de outras esferas penais (verbi gratia, o recebimento de indenização por danos morais no segundo caso).

A legalidade penal traz efeitos tanto em relação ao legislador, quanto em relação ao juiz. No que concerne àquele, tem-se os brocardos nullum crimen sine lege praevia (proibição de retroatividade) e nullum crimen sine lege certa (proibição de leis penais indeterminadas). Dessa maneira, observa-se a regra da irretroatividade da lei penal, tendo como exceções aqueles casos em que a lei nova beneficia o réu, devendo-lhe ser aplicada. O segundo brocardo, por sua vez, proíbe o legislador de criar leis penais abertas, amplas, ambíguas, em que seus significados não estejam claramente manifestados. Essa proibição era ausente no Código Penal Nazista, por exemplo, que afirmava que um fato que “viole um são sentimento do povo alemão” será crime. No Brasil, podemos citar a Lei de Segurança Nacional, à época da ditadura militar, que também inobservava a proibição.

A irretroatividade da lex gravior e consequente retroatividade da lex mitior, estão também previstas na Lei Maior, em seu inc. XL do art. 5º. Vejamos:

“A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;”

Quanto à atuação do juiz, citam-se as máximas nullum crimen sine lege scripta (proibição de aplicação dos usos e costumes) e nullum crimen sine lege stricto (proibição de analogia). Dessa maneira, para fundamentar sua decisão, o juiz não pode fazer uso do direito consuetudinário, somente podendo fundamentar-se ou agravar uma pena de acordo com uma lei. A analogia, outrossim, é também proibida no âmbito penal, pois traz insegurança jurídica, excetuando-se a analogia in bonam partens, que traz benefício ao réu.

Cabe registrar esclarecedora decisão[4] do E. Superior Tribunal de Justiça sobre a questão em tela, in litteris:

“HABEAS CORPUS. PENAL. JURISDICÃO MILITAR. PRESCRIÇÃO RETROATIVA ENTRE A DATA DO FATO E O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. LAPSO TEMPORAL TRANSCORRIDO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. Não se afigura correto o entendimento segundo o qual o Código Penal Militar restringe a prescrição à fase processual, porquanto inexiste em seu contexto norma específica. O princípio da legalidade penal exorta o intérprete a considerar que tudo aquilo que não é proibido é permitido, que tecnicamente é conhecido pelo brocardo nullum crimen nulla poena sine lege, e que qualquer ato restringente à não-realização do direito de punir deve, de igual modo, ter a prévia disposição legal, e não o contrário. Por outro lado, mesmo que houvesse a indicação negativa expressa, estaria ela revogada pelo texto constitucional, uma vez que a garantia da prescrição para a persecução penal, antes ou depois da ação, é indistinta e impessoal, porquanto todo ser humano, independentemente da raça, da cor, da profissão etc., tem-na em seu patrimônio pessoal, salvo os casos excepcionais. Pelo contexto dos autos, ultrapassado o biênio prescricional entre a consumação do fato e o recebimento da denúncia, há de ser reconhecida a extinção punitiva. Ordem concedida para extinguir a pretensão punitiva pela prescrição.”

4.2   - Princípio da personalidade da pena ou da responsabilidade pessoal

Tal princípio está previsto no art. 5º, XLV da CF. Também denominado princípio da intranscendência ou da pessoalidade, preconiza que somente o condenado, e mais ninguém, poderá responder pelo fato praticado, pois a pena não pode passar da pessoa do condenado.

“XLV. Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;”

Este princípio justifica a extinção da punibilidade pela morte do agente, à medida que proíbe o castigo penal pelo fato de outrem (pelo fato alheio), já que o ser humano só pode responder penalmente pelos fatos próprios. Ou seja: ninguém pode ser responsabilizado criminalmente por fatos de terceiros, que não cometeu ou contribuiu.

Resta óbvia a extinção quando estamos tratando da pena privativa de liberdade, mas o princípio da responsabilidade pessoal faz com que, mesmo tendo o falecido deixado amplo patrimônio, a pena de multa não possa atingi-lo, pois estaria passando da pessoa do condenado para atingir seus herdeiros. Sendo assim, sempre estará extinta a punibilidade, independente da pena aplicada, quando ocorrer a morte do agente. Não acontece o mesmo, porém, em casos de responsabilidade civil ou tributária, por exemplo. Nesses casos, o patrimônio do condenado pode ser afetado, até o limite de sua herança.

Deste princípio decorre, portanto, a não existência no Direito Penal de responsabilidade coletiva, societária ou familiar.

Já decidiu[5] o Superior Tribunal de Justiça:

“RESP - PENAL - ESTUPRO - PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA - O Direito penal moderno é Direito Penal da culpa. não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade pelo fato de outrem. À sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se a conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe. O Direito Penal da culpa é inconciliável com presunções de fato. Que se recrudesça a sanção quando a vítima é menor, ou deficiente mental, tudo bem. Corolário do imperativo da Justiça. não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido. O princípio da legalidade fornece a forma e o princípio da personalidade(sentido atual da doutrina) a substância da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva.”

4.3 – Princípio da individualização da pena

Previsto constitucionalmente no art. 5º, inc. XLVI:

“A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;”

Além da exposição acerca da individualização da pena, o dispositivo também traz os tipos de penas que poderão ser aplicadas, tratando-se, in casu, de rol taxativo.

Essa norma condiciona a imposição das sanções aos infratores à natureza e às circunstâncias dos delitos e à luz das características pessoais do infrator, que devem ser personalizadas e particularizadas de acordo com o caso concreto. Assim, as penas devem ser justas e proporcionais, vedado qualquer tipo de padronização acerca de caráteres, características físicas dos delinquentes, etc.

Tal princípio é de suma importância na elaboração, aplicação e execução das penas para que se alcance o fito da utilização da racionalidade penal. Devido a isso é que se afirma que ele vincula os três poderes estatais, quais sejam, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo.

Com relação ao primeiro, o legislador, ao tipificar uma infração, fixa os limites mínimos e máximos do preceito secundário do tipo, bem como os regimes de cumprimento e benefícios possíveis de ser concedidos ao infrator. Nesse momento, o parlamento deve agir com razoabilidade e proporcionalidade, evitando cominar penas severas para condutas pouco ofensivas ou mesmo penas insignificantes para infrações graves. Assim, embora significativa, a liberdade do legislador para cominar as penas não é absoluta, pois ele deve se guiar por critérios objetivos como a natureza da infração, o bem jurídico tutelado e a necessidade social de repressão do fato.

Quanto ao Poder Judiciário, este vai analisar o caso concreto, estabelecendo a pena in concreto que deverá ser aplicada ao condenado, bem como verificar se este faz jus a algum benefício positivado pelo legislador. Deve, portanto, deter-se minuciosamente às circunstâncias do fato delituoso, bem como às características pessoais do réu.

Na última etapa, concernente à execução da pena e feita pelo Poder Executivo, momento em que a aplicação da pena na fase anterior concretizar-se-á em estabelecimento prisional, observando a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado, bem como seu comportamento carcerário.

Cite-se jurisprudência[6] da Corte Maior deste país, que declarou inconstitucionalidade incidental de parte de um dispositivo da Lei 11.343/2006 por afrontar diretamente o princípio ora exposto:

“EMENTA: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ART. 44 DA LEI 11.343/2006: IMPOSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM PENA RESTRITIVA DE DIREITOS. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART. 5º DA CF/88). ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. O processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executivo. Logo, a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinqüente a sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo. Implicando essa ponderação em concreto a opção jurídico-positiva pela prevalência do razoável sobre o racional; ditada pelo permanente esforço do julgador para conciliar segurança jurídica e justiça material. 2. No momento sentencial da dosimetria da pena, o juiz sentenciante se movimenta com ineliminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação ou de restrição da liberdade do condenado e uma outra que já não tenha por objeto esse bem jurídico maior da liberdade física do sentenciado. Pelo que é vedado subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com certa discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória. 3. As penas restritivas de direitos são, em essência, uma alternativa aos efeitos certamente traumáticos, estigmatizantes e onerosos do cárcere. Não é à toa que todas elas são comumente chamadas de penas alternativas, pois essa é mesmo a sua natureza: constituir-se num substitutivo ao encarceramento e suas seqüelas. E o fato é que a pena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a função retributivo-ressocializadora ou restritivo-preventiva da sanção penal. As demais penas também são vocacionadas para esse geminado papel da retribuição-prevenção-ressocialização, e ninguém melhor do que o juiz natural da causa para saber, no caso concreto, qual o tipo alternativo de reprimenda é suficiente para castigar e, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado, prevenindo comportamentos do gênero. 4. No plano dos tratados e convenções internacionais, aprovados e promulgados pelo Estado brasileiro, é conferido tratamento diferenciado ao tráfico ilícito de entorpecentes que se caracterize pelo seu menor potencial ofensivo. Tratamento diferenciado, esse, para possibilitar alternativas ao encarceramento. É o caso da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, incorporada ao direito interno pelo Decreto 154, de 26 de junho de 1991. Norma supralegal de hierarquia intermediária, portanto, que autoriza cada Estado soberano a adotar norma comum interna que viabilize a aplicação da pena substitutiva (a restritiva de direitos) no aludido crime de tráfico ilícito de entorpecentes. 5. Ordem parcialmente concedida tão-somente para remover o óbice da parte final do art. 44 da Lei 11.343/2006, assim como da expressão análoga “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante do § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos; determinando-se ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação em causa, na concreta situação do paciente.”

4.4 – Princípio da humanização das penas e direitos assegurados aos presos

Possui previsão esparsa na Constituição Federal, podendo-se citar os seguintes incisos do artigo 5º:

“III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;”

“XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;”

“XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;”

“XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;”

A preocupação com a humanização das penas, assegurando aos presos dignidade e respeito, por meio de direitos assegurados a eles, teve importância extremada a partir da inigualável obra Dos Delitos e Das Penas, do italiano Cesare Beccaria, que criticou veementemente o sistema punitivo da época, que deixava os presos em situação degradante e não lhes assegurava os mínimos direitos inerentes ao cidadão comum.

A partir daí, houve um movimento tendente a humanizar os presos, tendo papel destacável as convenções internacionais (Declaração dos Direitos do Homem – 1948 – e Pacto de San José da Costa Rica – 1969), visto que o principal objetivo do Direito Penal deve ser o de ressocializar o preso, e não o de piorar a sua situação, à medida que, da maneira que era tratado, ele iria voltar a delinquir continuamente.

O referido princípio tem relação estreita com o princípio-maior da dignidade da pessoa humana, contido no inc. III, do art. 1º, da CF.

Dessa maneira, o Direito Penal deve tratar com benignidade vislumbrando sempre a coletividade social. Seria inaceitável tratar de forma desumana o indivíduo mesmo quando tenha sido condenado por transgredir o ordenamento penal.

Não se admitem penas cruéis como as penas de caráter perpétuo, de morte (salvo em caso de guerra declarada), de trabalhos forçados, de banimento ou toda e qualquer pena de castigos corporais. Qualquer pena que possa atingir a condição físico-psicológica do ser humano é inconstitucional.

Em decisão[7] paradigmática, o Superior Tribunal de Justiça julgou:

“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO PENAL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS EM MATÉRIA CRIMINAL. PRAZO. DOIS DIAS. ARTS. 619 DO CPP E 263 DO RISTJ. MATÉRIAS NÃO APRECIADAS PELO TRIBUNAL A QUO. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE POR ESTA CORTE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PÉSSIMAS CONDIÇÕES E SUPERLOTAÇÃO DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL. TRANSFERÊNCIA DE PRESOS. NECESSIDADE. PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA HUMANIZAÇÃO DA PENA.

1. O prazo para a oposição de embargos declaratórios, no âmbito penal, é de dois dias, consoante determina os arts. 619 do Código de Processo Penal e 263 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.

2. As questões levantadas pelo ora Recorrente, nos embargos declaratórios opostos, ao argumento de não terem sido apreciadas por ocasião do julgamento do mandamus, não podem, nesse momento, serem analisadas por esta Corte, sob pena de indevida supressão de instância.

3. Não se vislumbra, no caso específico, a existência de direito líquido e certo do ora Recorrente. Embora não tivesse plena competência sobre todos os detentos da 76ª Delegacia de Polícia de Niterói/RJ, nada mais fez o Juízo da 3ª Vara Criminal de Niterói/RJ, do que dar prevalência - com a determinação de transferência dos presos em face do superpovoamento e do estado lastimável do referido estabelecimento prisional - aos ditames da Carta Magna, consubstanciados nos princípios da dignidade da pessoa humana e da humanização da pena, bem como nos direitos dos presos expressamente assegurados em seu art. 5º, inciso XLIX ("é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral").

4. De qualquer forma, o pedido de sustação da referida decisão resta esvaído, uma vez que, ao que se denota dos autos, acrescido do lapso temporal decorrido, a transferência dos presos certamente já foi efetivada, não havendo, portanto, razão - quanto aos condenados em definitivo - para regressarem à carceragem da referida Delegacia de Polícia, por ser destinada apenas, a teor do art. 102 da Lei de Execuções Penais, "ao recolhimento de presos provisórios."

5. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido.”

4.5 – Princípio da presunção de inocência

Está previsto no art. 5º, inciso LVII, da CF. Veja-se:

 “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”

De modo geral, é possível afirmar que a presunção de inocência, enquanto princípio constitucional geral, é mais um elemento de promoção do necessário equilíbrio entre a liberdade do cidadão (jus libertatis) e a prerrogativa estatal de punir eventuais infratores (jus puniendi), cujo objetivo maior é garantir a manutenção de um Estado de Direito. Por isto a presunção de inocência, enquanto princípio constitucional, não apenas desautoriza a formação prévia de qualquer juízo afirmativo quanto à culpabilidade, como também, e a nosso ver com maior ênfase ainda, veicula a ideia de que todos são inocentes até que se prove que são culpados. Este, aliás, o conteúdo semântico do próprio vocábulo “presunção”, ou seja, suposição que se tem por verdadeira até prova em contrário.

A prova em contrário, como afirmado acima, ensejará a sentença penal condenatória transitada em julgado. Isso ocorre porque se deve considerar a delinquência como uma excepcionalidade, de modo a presumir que o acusado não cometeu o fato criminoso que lhe é imputado.

O referido princípio está em coadunância com a máxima do in dubio pro reo, porquanto esta afirma que em caso que haja quaisquer dúvidas, seja na interpretação, na cognição de fatos ou na aplicação de dispositivos penais, o jurista deve se utilizar da solução que beneficie o réu, sob pena de infração aos princípios da ordem penal.

Destaque-se o seguinte julgado[8] do STJ, a respeito da harmonia que deve reger a observância do princípio em comento com dispositivos penais e processuais penais que, de alguma forma, relativizem-no quando as circunstâncias assim exigirem, pois nenhum princípio é absoluto:

“HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PERICULOSIDADE. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA. ART. 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL INVERSÃO NA ORDEM DE INQUIRIÇÃO. 1. A presunção de inocência, ou de não culpabilidade, é princípio cardeal do processo penal em um Estado Democrático de Direito. Teve longo desenvolvimento histórico, sendo considerada uma conquista da humanidade. Não impede, porém, em absoluto, a imposição de restrições ao direito do acusado antes do final processo, exigindo apenas que essas sejam necessárias e que não sejam prodigalizadas. Não constitui um véu inibidor da apreensão da realidade pelo juiz, ou mais especificamente do conhecimento dos fatos do processo e da valoração das provas, ainda que em cognição sumária e provisória. O mundo não pode ser colocado entre parênteses. O entendimento de que o fato criminoso em si não pode ser valorado para decretação ou manutenção da prisão cautelar não é consentâneo com o próprio instituto da prisão preventiva, já que a imposição desta tem por pressuposto a presençade prova da materialidade do crime e de indícios de autoria. 2. Se as circunstâncias concretas da prática do crime, homicídio praticado com requintes de crueldade, revelam a periculosidade do agente, justificada está a decretação ou a manutenção da prisão cautelar para resguardar a ordem pública, desde que igualmente presentes boas provas da materialidade e da autoria. 3. Do fato de o juiz ter perguntado primeiro e não ao final, em descumprimento ao art. 212 do Código de Processo Penal, não decorre por si só, à falta deprejuízo, a teor do art. 563 do Código de Processo Penal, a decretação de nulidade, segundo precedentes desta Suprema Corte, ausente inclusive protesto da parte na oportunidade. 4. Habeas Corpus denegado.”

Cumpre salientar, por último, que os princípios explicitados neste tópico não esgotam a matéria do Direito Penal Constitucional. Somente se buscou dar atenção especial aos princípios basilares dessa área jurídica, tendo igual importância os demais princípios que, malgrado não estejam explicitamente dispostos na Carta Magna ou sejam de tal maneira gerais que servem para todos os demais ramos do direito, também possuem papel primordial na racionalidade do Direito Penal. Entre eles, estão: a necessidade de motivação das decisões judiciais; devido processo legal; contraditório e ampla defesa; busca da verdade real; lesividade dos delitos; entre outros.


5.   Conclusão

Do quanto exposto, infere-se que a racionalidade deve estar na base do sistema penal, para que este seja considerado lógico e justo - como assim exige o Estado Democrático de Direito - e respeite as liberdades individuais dos particulares em detrimento de qualquer arbitrariedade que possa advir dos poderes estatais.

Assim, a razão penal deve permear todas as esferas estatais, isto é, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo. Ao primeiro, exige-se a logicidade e razoabilidade no momento da elaboração das leis, seja ao criminalizar fatos típicos, seja estabelecendo – in abstrato - suas penas. O legislador deve, portanto, estabelecer critérios para a cominação das penas, tendo que ser proporcional ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal respectivo.

O princípio da proporcionalidade – que decorre implicitamente do princípio do devido processo legal, contido no art. 5º, inc. LIV, da CF – é, porém, em alguns momentos, lesado pelo legislador no Diploma Penal, que prevê penas desproporcionais ao bem jurídico tutelado. É o que se comprova, por exemplo, pela análise dos artigos 273 e 121, ambos do Código Penal:

“Art 121. Matar alguem:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.”

“Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.”

Ora, a pena mínima cominada pelo crime de falsificação de medicamentos é quase o dobro da prevista para o crime de homicídio simples, cujo bem jurídico tutelado é a vida.

Em relação ao Judiciário, a proporcionalidade (e também a razoabilidade) deve preponderar no momento da aplicação das penas, visto que a pena deve ser justa e suficiente para o réu, não podendo ultrapassar o que as circunstâncias do fato, a lesividade do delito e as características da vítima exijam. É nesse sentido que dispõe o art. 59, do Código Penal, in verbis:

“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.”

Dessa forma, o juiz está adstrito a esses requisitos, que se impõem com o fito de afastar qualquer tentativa de arbitrariedade por parte do julgador, uma vez que ele deve-se pautar em fundamentos que possam ser objetivamente – no todo ou em parte, ainda que digam respeito a características subjetivas do agente e da vítima – auferidos.

No que diz respeito aos tipos de penas aplicáveis, conforme incisos expostos supra, deve-se ter em mente que a pena privativa de liberdade deve ser de caráter excepcional e subsidiário, tendo em vista que se trata de pena mais gravosa e que pode trazer consequências ainda maiores ao indivíduo que a cumpre e à sociedade. No entanto, não é essa, infelizmente, a tendência que acompanhamos no Judiciário brasileiro, que supervaloriza, muitas vezes, a pena privativa de liberdade em detrimento das penas alternativas, ainda que o caso concreto autorize-as.

Essa realidade é explicada, em parte, pela própria cultura da nossa sociedade, que possui a ideia de que para que seja punido, o criminoso deve necessariamente passar por um presídio, pois, caso contrário, haverá a sensação de impunibilidade.

Quanto ao Executivo, por sua vez, tem-se, talvez, o maior problema do Sistema Penal pátrio, concernente à falta de estrutura dos presídios, com a consequente superlotação das unidades destinadas ao cumprimento de pena em regime fechado.

Nesse diapasão, o princípio da humanização e os direitos assegurados aos presos contidos explicitamente na Carta Magna (art. 5º, incs. III, XLVI, XLVII e XLIX), conforme exposto no item 4.4 acima, são pouco respeitados, visto que os criminosos vivem em situação degradante, em presídios superlotados, não havendo, ainda, estabelecimentos prisionais destinados ao cumprimento de pena em regime semiaberto.

Do outro lado, falta a devida fiscalização aos que cumprem a pena em regime aberto, sendo, na maioria das vezes, desrespeitados os deveres impostos a eles pelos juízes, de maneira que facilita até mesmo o cometimento de novos delitos.

Portanto, inobstante a racionalidade penal contida na Constituição Federal de 1988 seja preponderante, o que torna o diploma digno de aplausos por ser altamente avançado – do ponto de vista técnico –, sendo inclusive conhecido como Constituição Cidadã, muitas vezes esses preceitos restringem-se ao papel, isto é, na prática são pouco respeitados.

Assim, o principal objetivo do ordenamento jurídico penal, qual seja, o de ressocializar o preso, para que este não volte a delinquir e se insira novamente na sociedade, torna-se difícil de ser alcançado, uma vez que as circunstâncias encontradas por ele nas unidades prisionais o tornam ainda mais sem esperanças na realidade social, o que facilita a sua futura reincidência.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1a edição italiana, Norberto Bobbio. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

SCHÜNEMANN, Bernd. El sistema moderno del Derecho penal: cuestiones fundamentales. Tradução e notas de Jesús-María Silva Sánchez. Editora Tecnos, 1991.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2002.


Notas

[1] El sistema moderno del Derecho penal: cuestiones fundamentales,

[2] Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, 2002, Editora Revista dos Tribunais LTDA.

[3] , Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-10-2007, Segunda Turma, DJ de 31-10-2007

[4] HC 27779 / RS, STJ, MIN. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, RELATOR, Julgado em 19/02/2004

[5] REsp 154137 / PB, STJ, MIN. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, Julgado em 06/10/1998

[6] HC 97256 / RS, STF, MIN. AYRES BRITTO, Julgado em 01/09/2010.

[7] RMS 19385 / RJ, STJ, MIN. LAURITA VAZ, RELATORA, Julgado em 26/04/2005

[8] HC 107318 / SP, STF, MIN. MARCO AURÉLIO, RELATOR, Julgado em 05/06/2012



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Matheus. A racionalidade penal na Constituição Federal e o limite ao poder punitivo do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4767, 20 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50761. Acesso em: 26 abr. 2024.