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Da (ir)razoável duração do processo penal: o tempo como pena

Da (ir)razoável duração do processo penal: o tempo como pena

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Ao não fixar um prazo certo para o fim do processo penal, o legislador deixou uma enorme lacuna, não determinando instrumentos a serem empregados em caso de o processo ser dilatado injustificadamente.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da duração razoável do processo penal. 2.1 Do princípio da celeridade. 2.2 Do princípio da razoabilidade. 3. A doutrina do não prazo. 4. Em busca de soluções frente à (de)mora jurisdicional. 5. Considerações finais.

RESUMO: A Constituição Federal brasileira estabelece, em seu art. 5.º, inc. LXXVIII, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. A essencial preocupação que estrutura esse dispositivo refere-se, no âmbito processual penal, à seguinte questão: quanto tempo pode ou deve durar o processo penal. O prazo razoável deve ser tratado como uma garantia constitucional às partes processuais, tanto no tocante à duração do processo, quanto da prisão cautelar. Hipóteses tangíveis de solução à doutrina do não prazo devem ser estudadas, sobretudo tendo-se em vista que o prazo de duração do processo deve ser breve, mas essa celeridade não pode, todavia, cercear a ampla defesa do acusado, também constitucionalmente assegurada.

Palavras-chave: processo penal - princípios constitucionais - prazo razoável - prisão preventiva – dignidade da pessoa humana.


1.INTRODUÇÃO

O princípio da razoabilidade da duração do processo penal destaca-se por consistir em inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, no que tange à celeridade processual. Acrescentou-se o inc. LXXVIII ao art. 5.º da Constituição Federal, garantindo-se “a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que asseguram a celeridade de sua tramitação”.

O problema da irrazoável duração do processo torna-se ainda mais grave na esfera do processo penal. Primeiramente por não haver outros meios de resolução a não ser o judicial, mesmo se o delito supostamente cometido for de menor potencial ofensivo, abrangido pela competência dos Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9.099/95), diferentemente do processo civil, no qual ainda se pode recorrer à arbitragem. E, em segundo lugar, porque frequentemente envolve o direito à liberdade do acusado, principalmente se for decretada sua prisão preventiva, a partir da qual seu direito à liberdade será cada vez mais violado à medida que o processo perdurar com dilações indevidas.

Insere-se neste contexto a ideia do devido processo justo, ou seja, à efetividade do processo não basta a simples garantia formal de todos os princípios integrantes ou complementares do devido processo legal, sendo necessário, principalmente, que se assegurem os meios materiais a fim de que as partes processuais, especialmente o acusado, possam, de modo efetivo, fazer valer suas garantias constitucionais.

No caso da garantia dos prazos razoáveis no processo penal, deveriam estes ser definidos de modo claro e peremptório em lei (com a previsão de prorrogações conforme eventuais e comprovadas necessidades), bem como deveriam ser incorporadas sanções no caso de inobservância dos mesmos, pois se sabe que, na atualidade, mesmo ultrapassando-se, frequentemente, o prazo máximo sugerido pelo Código de Processo Penal, segundo regras definidas pela Lei Federal nº 11.719/08, não há ainda o reconhecimento de consequências jurídicas à inobservância dos chamados prazos impróprios. Este quadro precisa ser radicalmente alterado, vez que, normas delimitadoras de prazo, sem a devida sanção em caso de descumprimento, consistem mais em indicativos e orientação que em normas ou comandos jurídicos propriamente ditos.

Desta feita, cumpre analisar adequadamente os reais contornos e problemas que envolvem o direito de ser julgado num prazo razoável e a um processo sem indevidas dilações. O sistema processual penal brasileiro, ao contrário de sistemas como o espanhol, o português e o alemão, apesar de já ter regulamentado o tema por meio de alguns instrumentos, institutos e leis, não logrou estabelecer total e legalmente quais os prazos máximos para a duração do processo penal e da prisão provisória imposta aos acusados, o que tem criado, ao longo do tempo, acesas controvérsias sobre qual seria o prazo aplicável.

Porém, o prazo razoável não pode ser estabelecido considerando-se apenas a necessidade de agilizar a imposição de uma pena ao acusado, porque isso resultaria no atropelo de seus direitos e garantias constitucionais. O tempo deve possibilitar a preparação da defesa e a produção adequada de prova, evitando a prolongada penúria que sempre resulta do processo em si, seus altos custos econômicos, psíquicos, morais, físicos e sociais.

A razoável duração do processo deve ser harmonizada, ainda, com outros princípios e valores constitucionalmente adotados no Direito brasileiro.

O Direito Processual Penal necessita de tempo para a efetivação de sua instrumentalidade, pela qual o prazo de duração do processo deveria ser mais breve, para que ele não fosse, per si, uma verdadeira sanção penal. Mas a celeridade não pode, todavia, cercear a ampla defesa do acusado, também constitucionalmente assegurada.

Geralmente, o problema da falta de concretização da garantia à razoável duração do processo é visto sob o prisma do acusado, como um desrespeito a sua dignidade humana, inclusive na seara processual penal, por ele demorar muito para saber de seu paradeiro (possível condenação com pena privativa de liberdade, se é que ele já não estava preso anterior e cautelarmente), bem como a preocupação no sentido contrário, de que o acusado, em havendo celeridade processual, não conseguiria realizar uma defesa adequada.

No entanto, a situação não se coloca apenas em relação ao polo passivo do processo. Deve-se prezar, também, pelo ofendido (tanto em ação penal privada, quanto em ação penal pública incondicionada ou condicionada, bem como em havendo litisconsórcio ativo entre querelante e Ministério Público), quem também sofre com a demora na prestação jurisdicional, inclusive psicologicamente.

A ideia que norteou o desenvolvimento do presente é a de que o processo penal já consiste, per si, num constrangimento, tanto ao réu, quanto ao ofendido. E o problema torna-se ainda maior quando esse constrangimento torna-se ilegal, por exemplo, extrapolando o limite razoável na duração do processo.


2. DA DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO PENAL

Com o advento da Lei Federal nº 11.719/08, a somatória dos prazos dos atos processuais e pré-processuais, do inquérito policial até a sentença, revela que o procedimento comum ordinário, cujo rito é o mais amplo, deverá estar concluído entre 85 e 120 dias, no caso de réu preso, ou até em 145 dias, estando ele solto.

A soma do prazo de todos os atos da persecução penal, desde o início do inquérito policial, ou da segregação do acusado, até a prolação da sentença no procedimento ordinário, pela reforma processual penal de 2008, pode assim ser vislumbrada: 10 dias para a conclusão do inquérito policial (art. 10, CPP), 5 dias para a oferta da denúncia (art. 46), 10 dias para a defesa preliminar (art. 396) e 60 dias para o término da audiência de instrução e julgamento, resultando a soma dessa etapas em 85 dias.

Em caso de interrupção da audiência, considerando a complexidade do caso, devem ser somados mais 30 dias ao prazo de 85 dias, chegando ao total de 115 dias. Se, ainda, porventura, a audiência for cindida por necessidade de diligências complementares, serão aumentados mais 5 dias, perfazendo um total de 120 dias.

Nos termos da referida regulamentação, então, espera-se que em 95 ou 115 dias o processo tenha sido encerrado, estando o réu preso, levando-se em conta que tudo transcorra como o desejado, ao menos perante a lei. Sabe-se, contudo, que as partes podem tornar - e normalmente tornam - imprescindíveis determinados atos processuais, o que pode estender em demasia o prazo até o final julgamento do feito.

Todavia, e como demonstrado, com a reforma operada pela Lei Federal nº 11.719/08, não se resolveu o problema da necessidade de delimitar o prazo para a duração máxima do processo penal, bem como da prisão provisória, fazendo com que se continue empregando, ou não, o princípio da razoabilidade como forma de suprir a lacuna da lei.

Propõe-se, pois, refazer uma releitura do novo direito fundamental, definindo seu conteúdo a partir das regras infraconstitucionais, de posições jurisprudenciais e das súmulas do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema. Nota-se que os critérios legais, mesmo após as reformas realizadas pelas Leis Federais nº 11.689/08 e nº 11.719, ainda não são totalmente compatíveis e adequados, necessitando ser alterados ou até mesmo abandonados.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) nada estabeleceu quanto à duração do processo. O primeiro documento a enfrentar tal questão foi a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)[1], conhecida como Convenção de Roma (1950). O art. 6º, § 1º, da CEDH estabelece uma regra geral aplicável a processos de qualquer natureza:

“Toda pessoa tem o direito a que sua causa seja ouvida com justiça, publicamente, e dentro de um prazo razoável por um Tribunal independente e imparcial estabelecido pela Lei, que decidirá sobre os litígios sobre seus direitos e obrigações de caráter civil ou sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela”.

Ainda no mesmo documento, tem-se disposto no art. 5º, § 3º, que é disposição específica ao processo penal, in verbis:

“Toda pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1º, c, do presente artigo, deve ser trazida prontamente perante um juiz ou um outro magistrado autorizado pela lei a exercer a função judiciária, e tem o direito de ser julgado em um prazo razoável ou de ser posto em liberdade durante a instrução. O desencarceramento pode ser subordinado a uma garantia que assegure o comparecimento da pessoa à audiência.”

Posteriormente, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) também estabeleceu a necessidade de um julgamento em prazo razoável, havendo, todavia, uma distinção semântica no tocante à expressão “sem dilações indevidas” e prevê tão somente o direito a julgamento no prazo razoável para o processo penal. Genericamente, seu art. 14, nº 3, c, estabelece que: “Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade a, pelo menos às seguintes garantias: ... a ser julgada sem dilações indevidas”, e o art. 9º, nº 1, dispõe que:

“Qualquer pessoa, presa ou encarcerada em virtude de infração penal, deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. (...)”

Por fim, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), adotada na esfera da Organização dos Estados Americanos em 1969, também traz dispositivos relativos ao tema, tendo ela entrado em vigor no Brasil em 1992, pelo Decreto-Legislativo nº 27/1992, que aprovou o texto da referida Convenção, não havendo dúvidas de que a CADH integra o sistema jurídico brasileiro.

Desde a Constituição Federal de 1988, alterou-se o relacionamento dos tratados sobre direitos humanos com o direito interno, estabelecendo o art. 5º, § 2º, da Carta Política que: “Os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime de dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, a partir do qual se defende que esses tratados equiparam-se às normas constitucionais, por terem o mesmo status hierárquico.

Estabelece o art. 8.1, entre as garantias judiciais, que:

“Toda pessoa tem direito a ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determine seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.

Por sua vez, prevê o art. 7.5 que:

“Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”           

Percebe-se que a CADH repete substancialmente a fórmula adotada pela CEDH, mas tanto uma como a outra há o direito ao julgamento em prazo razoável, em processos de qualquer natureza.

No texto da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CADH), dispõe o art. 2º sobre o dever de os Estados adotarem disposições de direito interno:

“Art. 2º - Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no art. 1º ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades”.[2]

Todavia, é de se concluir que, mesmo antes do advento da Emenda Constitucional 45/2004, o direito ao processo em um prazo razoável já tinha natureza materialmente constitucional, por força do § 2º, do art. 5º, da Carta Política, que já “constitucionalizava” o direito previsto no art. 8.1 da CADH, podendo ser dito o mesmo quando ao acusado preso cautelarmente ser desencarcerado se o processo superasse a duração razoável (CADH, art. 7.5).

Após a Emenda Constitucional nº 45/2004, com a inserção do inc. LXXVIII[3] ao art. 5º, tendo seguido a mesma diretriz protetora da CADH, alterou-se o panorama. A inclusão expressa de um princípio de tamanha envergadura no sistema revela a finalidade de necessária modificação de perspectiva do processo.

No entanto, a realização prática do aludido princípio depende de medidas legislativas somadas a uma nova postura a ser adotada pelos operadores do Direito, bem como por toda coletividade. A propósito, alerta Uadi Lamêgo Bulos que “O problema está em saber o que significa razoável duração do processo, bem como quais os meios para assegurar a rapidez de seu trâmite. Oxalá o legislador logre o êxito de esclarecer tal ponto” [4].

2.1 Do princípio da celeridade

Primeira ponderação a ser feita é a de que celeridade não é sinônimo de razoabilidade do prazo. Celeridade, per si, nem sempre é benéfico, devendo coadunar-se com as garantias decorrentes do devido processo legal. No Estado Democrático de Direito, porém, a celeridade processual não pode ser buscada em detrimento de outras garantias constitucionais, notadamente o contraditório e a ampla defesa, devendo haver uma cautela especial com o mito da rapidez acima de tudo e o submito do hiperdimensionamento da malignidade da lentidão.[5]

Ou seja, o princípio da celeridade deve ser adotado paralelamente à garantia ao prazo, pela qual o prazo deve ser adequado para permitir que as partes possam utilizá-lo eficazmente na produção do ato processual por ele regulado.

2.2 Do princípio da razoabilidade

O princípio da razoabilidade, bem como o da proporcionalidade, tem sido, mais recentemente no Brasil, objeto de considerável número de obras, como também de artigos publicados em revistas jurídicas, o que gera uma compreensível impressão de que já não haveria, a esta altura, muito a acrescentar a esse respeito, salvo na abordagem concreta de casos em que coubesse a sua aplicação.

Entretanto, trata-se na verdade de princípio de largo espectro, restando sempre a possibilidade de desvelarem-se novas dimensões e de aprofundar-se a análise de determinadas facetas do tema.

A razoabilidade é mais fácil de ser entendida, ou sentida, que definida. É o princípio que, cada vez mais, se mostra fundamental ao Estado de Direito contemporâneo, no âmbito de todos os poderes estatais (o Legislativo, no tocante à constitucionalidade das leis; o Executivo, no tocante à discricionariedade dos atos administrativos; e, inclusive, o Judiciário, que tem, frequentemente, pautado suas decisões no princípio da razoabilidade).

O princípio em tela também tem a função de desenvolver a hermenêutica constitucional, transcendendo, pois, os limites do positivismo jurídico. A ideia é tornar claro que a razoabilidade permeia todo o Direito, com ele confundindo-se.

O direito de ser julgado em um prazo razoável funda-se na conjunção das garantias fundamentais quanto à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, CF/88), ao direito de tutela efetiva (art. 5º, inc. XXXV, CF/88) ao devido processo legal (art. 5º, inc. LIV), à ampla defesa e contraditório (art. 5º, inc. LV) e na expressa vedação constitucional à tortura, ao tratamento desumano ou degradante (art. 5º, inc. III). A própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, incorporado ao Direito brasileiro por um decreto de 1992[6], também consagra no seu art. 7º, cláusula 5, que toda pessoa “tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável”, caso contrário deve “ser posta em liberdade”, fazendo referência ao prazo razoável também em seu art. 8º, cláusula 1.[7]

No direito estrangeiro, o tema não é novo: a Magna Carta (1215), em sua cláusula 40, já prometia não negar nem retardar a justiça[8], percebendo-se da leitura desse dispositivo que a postergação na obtenção da justiça frustra inteiramente sua plena realização, equiparando-se à recusa de seu exercício e, à época da Magna Carta (1215) os atrasos processuais eram frequentemente empregados como estratégia dos litigantes, daí a importância do compromisso assumido pelo soberano[9]. Ainda na Magna Carta, dá-se uma segunda menção ao direito à célere intervenção da justiça em sua cláusula 61, da qual consta que as violações às garantias outorgadas no documento devem ser sanadas imediatamente ou em prazo máximo de 40 dias, por parte dos barões[10], sendo que o não cumprimento do prazo acarretaria a responsabilidade dos nobres, que poderiam ter suas propriedades atacadas, por exemplo.

E mesmo antes da Magna Carta, já tinha havido a primeira evidência do reconhecimento do direito ao speedy trial na Inglaterra, em 1166, no Assize of Clarendon, de cujo art. 4 constava, sucintamente, que “quando um criminoso tiver sido preso, se a justiça não vier tempestivamente no país onde eles tiverem sido detidos, os xerifes podem comunicar aos juízes mais próximos, para que informem aonde os presos deveriam ser levados diante deles”.[11]

Na Declaração da Virgínia, de 1789, texto norte-americano de grande valor simbólico e que representou grande desenvolvimento dos direitos humanos, pela primeira vez previu-se, na seção 8ª, que todo cidadão acusado em processo criminal tem o direito a um julgamento célere, nos seguintes termos: “...that in all capital or criminal prosecutions a man hath a right (...) to a speedy trial by na impartial jury of twelve men of his visinage”.[12]

Portanto, afirma-se que o sistema anglo-saxão de há muito vem reconhecendo e declarando a existência de um direito à celeridade processual, a princípio em casos restritos, porém logo depois com uma dimensão mais ampla, registrando-se que na Inglaterra e nos Estados Unidos estão as raízes deste direito fundamental.

Atualmente, Constituições da Espanha (art. 24, cláusula 2) e da Itália (art. 111) garantem um julgamento sem dilações e em prazo razoável; a 5ª Emenda Constitucional dos Estados Unidos assegura um julgamento célere.[13]


3.A DOUTRINA DO NÃO PRAZO

No processo penal, o problema da duração irrazoável é bastante grave, vez que acaba por violar diversas outras garantias constitucionais e direitos do acusado, ainda mais por prejudicar seu jus libertatis em havendo prisão preventiva, tornando-se mais que evidente a urgente necessidade de estabelecerem-se limites normativos (nulla coactio sine lege).

Ao não fixar um prazo certo, o legislador deixou uma enorme lacuna, não determinando instrumentos a serem empregados em caso de o prazo processual ser dilatado injustificadamente. Segundo a crítica de Paulo Hoffman:

“É lamentável constatar que, sem antes tomar medidas de ordem prática e sem que nada na ineficiente estrutura e nas condições do Poder Judiciário fosse alterado, a EC 45 simplesmente acresceu o parágrafo LXXVIII ao artigo 5º da Constituição Federal, para garantir o direito constitucional da razoável duração do processo no sistema brasileiro. Infelizmente, o simples acréscimo da Constituição Federal não modificará em nada a duração do processo. Trata-se, por ora, somente de mais uma garantia constitucional vazia.” [14]

O simples acréscimo de tal inciso no texto constitucional não tornou eficaz o princípio da celeridade do processo por não ter fixado prazo certo ao término do mesmo, havendo a necessidade de retificações de cunho legal.

Um exemplo de limite normativo interno encontra-se no Código de Processo Penal do Paraguai (Ley n. 1.286/1998). Ele, em sintonia com a CADH, estabelece que o prazo máximo de duração do processo penal será de 4 anos (arts. 136 e ss.), após o qual o juiz o declarará extinto, ex officio ou a requerimento do interessado, adotando este Código uma solução processual extintiva. Todavia, não permanece a vítima desamparada, vez que o art. 137 estabelece: “Quando se declarar extinto o processo pela morosidade judicial, a vítima deverá ser indenizada pelos funcionários responsáveis e pelo Estado. Presumir-se-á a negligência dos funcionários atuantes, salvo prova em contrário”.

Prevê também o art. 136 do Código paraguaio que: “Todos os incidentes, exceções, apelações e recursos pleiteados pelas partes suspendem automaticamente o prazo, que volta a correr assim que resolvido o que foi pleiteado. Esse prazo somente poderá estender-se por 12 meses quando houver uma sentença condenatória, a fim de permitir a tramitação recursal. A fuga ou rebeldia do imputado interromperá o prazo de duração do procedimento. Quando comparecer ou for capturado se reiniciará o prazo.” Além disso, fixa em seu art. 139 limite à fase pré-processual que, se superado, impede o exercício da ação penal.

Sem a definição dos prazos, a primeira garantia que cai por terra é a da jurisdicionalidade (nulla poena, nulla culpa sine iudicio), porque o processo se torna uma sanção penal anterior à sentença, através da estigmatização, da prolongada angústia, das prisões cautelares e da restrição de bens do acusado.

Além disso, fulmina-se a credibilidade acerca da defesa do acusado e juntamente a ela a presunção de inocência, ficando o direito de defesa e o próprio contraditório também afetados, na medida em que a excessiva prolongação do processo ocasiona graves dificuldades ao eficaz exercício da resistência processual, implicando também em sobrecusto financeiro ao acusado.

O que se tem hoje é a denominada doutrina dos três critérios, a saber: a) complexidade do caso; b) a atividade processual do interessado (imputado) e; c) a conduta das autoridades judiciárias, critérios estes sistematicamente invocados tanto pelo TEDH como pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Mas deve-se ressaltar, contudo, que a mera e isolada inobservância de algum prazo por si só não conduz, automaticamente, à violação do direito fundamental em análise, como ensina o Tribunal Constitucional da Espanha.[15]

Além dos três critérios apontados, é imprescindível analisar a questão do prazo à luz dos princípios da proporcionalidade ou razoabilidade, chamado este de “princípio dos princípios”. O conceito de razoabilidade é abstrato e aberto a ser analisado em face do caso concreto, sendo empregado como elemento integrador.

Por exemplo, é evidente que o acúmulo de serviço não pode ser admitido como escusa de responsabilidade perante a duração razoável do processo, vez que incumbe ao Estado organizar-se para satisfazer a demanda de tutela, não podendo beneficiar-se se sua própria torpeza. Se a demora ocorrer por atos de natureza manifestamente procrastinatória por parte do imputado, não há que se falar em dilação indevida, senão em atraso gerado e imputável à parte. Por outro lado, nos moldes da razoabilidade, se a demora for ocasionada por atividade da defesa, a dilação não se caracteriza como indevida, vez que a Constituição Federal brasileira assegura a ampla defesa ao acusado e todos os meios a ela inerentes.

No tocante à doutrina dos três critérios, têm-se a natureza do delito, a pena cominada e a complexidade do caso. Quanto à complexidade estrutural, fala-se em processos com grande número de partes ou corréus[16], ou a presença de uma fase instrutória autônoma no iter processual.[17] O art. 80 do CPP brasileiro permite a separação no caso de excessivo número de acusados, com o fito de não lhes prorrogar a prisão provisória. O STF já considerou haver excesso de prazo na prisão, violando o direito ao processo no prazo razoável, num caso em que o processo permaneceu paralisado, por aproximadamente 09 meses, aguardando o retorno de carta precatória expedida visando o interrogatório do corréu, sem que tenha sido determinado o desmembramento do feito.[18]

Quanto ao comportamento processual do imputado, dispõe o art. 8.2, “c”, da CADH, sobre as garantias judiciais, que:

“2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa”.[19]

O comportamento processual do imputado, principalmente no processo penal, tem sido destacado tanto na jurisprudência quanto na doutrina para medir a duração razoável do processo. Primeiramente, a conduta do acusado é definida pelo mero exercício de direitos que a lei atribui a ele, como o direito ao silêncio, e consequentemente o direito de não produzir prova contra si mesmo, não podendo ser considerado como uma forma de retardar o processo, não se exigindo também a ativa cooperação do acusado para com a autoridade judiciária, não podendo ser punido por sua inércia.

Já o critério do comportamento das autoridades no processo e dos serventuários da Justiça deve ser analisado porque muitos dos atrasos na condução processual ocorrem, mormente, em razão da forma como foi conduzida a instrução por eles.       Esse problema do “tempo morto” no processo judicial brasileiro, no que diz respeito à condução do processo, pode ter sua origem quer na deficiente direção da autoridade judiciária, quer na carência de meios ou de organização apta dos Tribunais dos estados. Neste caso, a responsabilidade é transferida do Poder Judiciário ao Executivo.[20]

Sugere-se como solução paliativa, a superar dificuldade momentâneas, que a ordem de escolha dos processos a ser julgados primeiramente tenha por critério norteador o grau de urgência e/ou a relevância do interesse debatido, ao invés do critério da ordem cronológica de suas distribuições. Todavia, em se tratando de crise estrutural, como a brasileira, não podendo a administração da Justiça adotar outras providências eficientes, responderá o Estado pelo retardamento processual.

Entre nós, grande parte do tempo morto poderia ser suprimida mediante uma maior racionalização da burocracia em demasia dos cartórios e secretarias de foros e tribunais, com o intuito de acelerar o tempo do processo sob o prisma de quem o sofre, diminuindo assim a pena-processo. Ressalta-se, contudo, que não se deve buscar uma agilização utilitarista, pela mera supressão de atos e atropelo de garantias processuais.

Até mesmo a esfera material carece de reformas. Dever-se-ia repensar nos limites e nos próprios fins do Direito Penal, manifestamente maximizado e inflado, e em muitas das vezes ultrapassado e até anacrônico com o dinamismo social na atualidade. Isso porque existe uma nítida relação entre o crescimento da demanda processual penal, decorrente da panpenalização, conhecida como “direito penal máximo”, e o tempo pelo qual eles acabam perdurando.


4.EM BUSCA DE SOLUÇÕES FRENTE À (DE)MORA JURISDICIONAL

A pergunta que se faz aqui é: “Qual a consequência da violação da obrigação estatal de proporcionar uma justiça tempestiva?”

Como espécies de possíveis soluções, têm-se as compensatórias (no âmbito civil e penal), as processuais e as sancionatórias. Quanto às compensatórias, na esfera civil, a solução seria a indenização dos danos materiais e/ou morais sofridos, mesmo em não tendo havido prisão preventiva. Porém, principalmente no Brasil, não se preocupa tanto com atos judiciários no tocante a omissões e erros judiciários ou atos que importem no retardamento da prestação jurisdicional. Embora a própria Constituição Federal preveja que “O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”, em seu art. 5º, inc. LXXV, infelizmente nosso ordenamento ainda não previu expressamente o ressarcimento de tais danos.

Sintetizando, são dois os problemas entre nós: a dificuldade que os tribunais têm em reconhecer e assumir o anormal funcionamento da justiça, no caso pela demora irrazoável do processo, e a elevada timidez dos valores fixados, frequentemente bastante aquém do mínimo que seria devido.

Quanto às soluções compensatórias de natureza penal, tenta-se eliminar o plus sancionador ocasionado pela demora processual. Não se trata apenas da detração em havendo prisão cautelar[21], como também em estando o réu em liberdade, constituindo-se em circunstância atenuante inominada, nos termos do art. 66[22] do Código Penal brasileiro, como uma relevante circunstância posterior ao crime.[23]

Desta forma, assumido o caráter punitivo do tempo, deveria o juiz compensar a demora ao reduzir a pena aplicada, vez que parcela da punição já foi efetivada pelo tempo, além da eventual detração em caso de prisão cautelar.

A 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul adotou uma solução compensatória de natureza penal completamente inovadora. No julgamento da apelação n. 70019476498, relatada pelo Des. Nereu José Giacomolli, j. 14.06.2007, o réu foi absolvido, para tentar compensar a duração irrazoável do processo. O acórdão, in verbis:

“ROUBO. TRANSCURSO DE MAIS DE SEIS ANOS ENTRE O FATO E A SENTENÇA. PROCESSO SIMPLES EM COMPLEXIDADE. ABSOLVIÇÃO. 1. O tempo transcorrido, no caso em tela, sepulta qualquer razoabilidade na duração do processo e influi na solução final. Fato e denúncia ocorridos há quase sete anos. O processo, entre o recebimento da denúncia e a sentença demorou mais de cinco anos. Somente a intimação do Ministério Público da sentença condenatória tardou quase de cinco meses. Aplicação do artigo 5º, LXXVIII. Processo sem complexidade a justificar a demora estatal. 2. Vítima e réu conhecidos; réu que pede perdão à vítima, já na fase policial; réu, vítima e testemunha que não mais lembram dos fatos”(grifos próprios).

Tratava-se de roubo qualificado pelo concurso de agentes em que foram subtraídos R$ 60,00 (sessenta reais), tendo o fato ocorrido em julho de 2000 e transcorrido 7 anos até o julgamento da apelação. O acórdão, além de invocar o inc. LXXVIII da CF, faz também expressa referência à Convenção Americana de Direitos Humanos, à Convenção Europeia de Direitos Humanos e ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, sendo que o art. 386, inc. VI, do CPP também poderia ter empregado, pelo qual o juiz absolverá o réu desde que reconheça circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência.

Já no tocante às soluções processuais, tem-se como a melhor resolução do problema em tela a extinção do feito, embora ela encontre sérias resistências. Alguns países determinam o arquivamento, vedando-se nova acusação pelo mesmo fato, ou a declaração de nulidade dos atos praticados após o limite da legítima duração processual. Porém, via de regra, há grande resistência em entender que a instrumentalidade processual visa coibir uma pena sem o devido processo legal, não havendo essa exigência quando não se aplicará pena nenhuma.

Assim, conforme Aury Lopes Junior[24], o Estado pode prescindir do instrumento se ele não for aplicar pena, absolvendo desde logo o imputado, apontando-se outras soluções processuais como a suspensão da execução, ou dispensabilidade da pena, o indulto[25] e a comutação[26].

Outra forma, mais atenuada, de dar uma solução processual seria o juiz, assim que fosse alcançado o prazo máximo de duração do processo, eventualmente previsto em lei, julgar o processo no estado em que ele se encontrasse, porém sem prejuízos para a defesa.

Na esfera das soluções sancionatórias, haveria influências no direito administrativo, civil e penal, neste último caso se a conduta configurar crime. Trata-se de punir o servidor ou a autoridade (juiz, promotor, e outros) que sejam os responsáveis pela dilação indevida. A Emenda Constitucional 45/2004, além de ter inserido o inc. LXXVIII no art. 5º da CF, no tocante à garantia do processo em prazo razoável, previu possível sanção administrativa ao juiz que der causa à demora, sendo a atual redação do art. 93, II, alínea e, da CF, in verbis:

“e) não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão;”

Observa-se, porém, que há dificuldade para fazer valer essa norma, à medida que os tribunais demonstram altas doses de compreensão com a demora ocasionada pelos juízes.

No mesmo sentido, o art. 801 do Código de Processo Penal brasileiro estabelece que: “Findos os respectivos prazos legais, os juízes e os órgãos do Ministério Público, responsáveis pelo retardamento, perderão tantos dias de vencimentos quantos forem os excedidos”, sendo aplicável também pelo excesso de prazo isolado a cada ato processual, não demandando a superação global. Até em casos de o habeas corpus ser considerado prejudicado, pela revogação da prisão ou pela absolvição do acusado, seria possível cogitar tal responsabilização.[27]

Contudo, tal previsão nunca foi aplicada, especialmente hoje, em razão da vedação da irredutibilidade salarial constitucionalmente assegurada a essas autoridades, constante do art. 95, III, e 128, §5º, I, c, da CF.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se pela necessidade de instituir-se um marco normativo à duração máxima do processo penal e eventuais prorrogações conforme comprovada necessidade, também à prisão provisória, a partir das especificidades de cada país e peculiaridades de cada caso concreto, a partir do que se deveria abandonar a doutrina do não prazo, deixando-se de lado os axiomas abertos, ainda que se admita certo grau de flexibilidade.

Além disso, não se mostra salutar considerar o inc. LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal brasileira como uma norma programática, vez que a efetivação desse direito somente se ratificará por meio da fiel aceitação da necessidade da concretização dessa garantia, o que ensejará implementação de reformas processuais - e culturais, especificamente na seara jurídica - que tornem o sistema processual mais ágil e menos burocrático.

Quando a duração de um processo supera o limite do razoável, o Estado se apossa ilegalmente do tempo do indivíduo, dolorosa e irreversivelmente, ocorrendo esse apossamento ilegal ainda que não exista uma prisão provisória, visto que o processo em si mesmo já configura uma sanção.[28]

Observa-se, também, que caracteriza constrangimento ilegal o excesso de prazo decorrente de inércia ou desídia do Poder Judiciário, embora seja notória a realidade enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, marcada pela excessiva carga de processos, o que impede a plena realização da garantia constitucional do julgamento célere.

Prazos mais rígidos deveriam ser criados, ainda, para a conclusão dos inquéritos policiais. Dispõe o art. 10 do Código de Processo Penal que o prazo à conclusão do inquérito é de 10 dias se o indiciado encontrar-se preso, não cabendo prorrogação. Por outro lado, estando o indiciado em liberdade, o prazo inicial é de 30 dias, cabendo prorrogação. E, nesse caso, os pedidos de dilação desses prazos deveriam ser restritivamente limitados pela lei, não podendo ser deferidos repetidamente pelo Poder Judiciário, sob pena de se incentivar a desídia e a inoperância da autoridade policial.

Também o réu que responde ao processo em liberdade tem o direito ao cumprimento dos prazos processuais, sendo o mandado de segurança, o habeas corpus ou a reclamação os instrumentos postos a sua disposição.[29] A impetração de habeas corpus, instrumento para assegurar a restauração ou prevenção do direito de ir e vir constrangido por ilegalidade ou por abuso de poder, é cabível inclusive nos casos de manifesto excesso na duração processual e da prisão preventiva.

Nesse diapasão, dada sua atualidade, tem-se um precedente do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), nos seguintes termos: “o remédio heroico, embora tenha destinação precípua de garantir a liberdade física do cidadão, como prescreve a Constituição Federal em seu art. 5º, inc. LXVIII, possui abrangência mais ampla, atuando, inclusive, no combate às violações e arbitrariedades de autoridades públicas, viabilizando a defesa do cidadão em face de atos que possam, ainda que de forma reflexa, restringir sua liberdade ou ferir direitos constitucionalmente garantidos.”[30]

Dever-se-ia, ainda, responsabilizar, mormente administrativa e criminalmente, todos aqueles que atuam nos inquéritos e processos penais. Sobretudo, o próprio juiz precisa ter um compromisso com o fim do processo, lutando para que os atos processuais se realizem dentro dos prazos determinados, podendo determinadas situações de flagrante ilegalidade gerar a responsabilidade do Estado.

Como exemplo a ser seguido, menciona-se o Código de Processo Penal do Paraguai, segundo o qual o processo penal deverá durar no máximo 4 anos, sob pena de sua extinção, o que se harmoniza com as diretrizes da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Ressalta-se que o processo penal já encerra em si mesmo uma sanção penal (“la pena de banquillo”[31]), além de haver relação inversamente proporcional entre a estigmatização[32] e a presunção de inocência quanto ao acusado, à medida que o tempo implementa aquela e mitiga esta.[33]

A expressão utilizada por Aury Lopes Júnior, “(de)mora jurisdicional”, revela-se bastante adequada, à medida que ocorre “uma injustificada procrastinação do dever de adimplemento da obrigação de prestação jurisdicional”.[34] O direito a um processo sem dilações indevidas é, na concepção deste doutrinador, um “jovem direito fundamental”, ainda pendente de definições e de reconhecimento por parte de Tribunais brasileiros.[35]

O próprio princípio constitucional da eficiência, previsto expressamente no art. 37, caput, da CF, já teria de assegurar o dever estatal de entregar a prestação jurisdicional adequadamente, vez que os princípios desse dispositivo abrangem a Administração Pública como um todo, e não apenas o Poder Executivo. Os agentes públicos que lidam com a persecução penal precisam enquadrar-se nos novos moldes da celeridade processual, sob pena de configurar-se a responsabilidade objetiva do Estado, o qual deveria fomentar a proibição dos excessos ou abusos no cumprimento desse dever.

No processo penal, diferentemente do civil, raramente uma causa será idêntica à outra, não havendo a possibilidade de julgamento em massa por automatismo, sendo cada caso um caso diferente, salvo se a questão for meramente de direito, devendo o juiz tentar abreviar o tempo entre o crime e a sentença como resposta estatal ao delito cometido. Conforme Beccaria,

“Quanto mais rápida for a pena e mais próxima do crime cometido, tanto mais será ela justa e tanto mais útil. Digo mais justa, porque poupa ao réu os tormentos crueis e inúteis da incerteza, que crescem com o vigor da imaginação e com o sentimento da própria fraqueza; mais justa, porque a privação da liberdade, sendo uma pena, só ela poderá preceder a sentença quando a necessidade o exigir. (...) O próprio processo deve ser concluído no mais breve espaço de tempo possível. Que contraste mais cruel existe do que a inércia de um juiz diante das angústias de um réu? (...)”[36]

Um aspecto bastante relevante do problema da (de)mora jurisdicional é que, quando se demora muito para julgar um caso, se está julgando um indivíduo completamente distinto daquele que praticou o delito, pela complexa rede familiar e social em que ele está inserido, razão pela qual a pena não cumpre com suas funções de prevenção específica e retribuição, e muito menos da ilusória reinserção social.

O prazo de duração do processo penal deveria ser o mais célere possível, não obstando, contudo, a gravidade da imputação o direito a esse prazo razoável, sempre ante as circunstâncias do caso concreto nos moldes da proporcionalidade. Porém, a celeridade não pode ser tal que impeça as chances de defesa efetiva do réu, culminando no cerceamento de sua ampla defesa, o que é inaceitável. Nessa linha de pensamento, ressalta Beccaria:

“(...) conhecidas as provas e calculada a certeza do crime, necessário é conceder ao réu tempo e meios convenientes para justificar-se, mas tempo bastante breve, que não prejudique a rapidez da pena, (...), é um dos principais freios dos delitos”.[37]

O processo penal precisa ser agilizado, principalmente da perspectiva de quem o sofre, para abreviar o tempo de duração da pena-processo, não se tratando de aceleração utilitarista, através do atropelo de garantias processuais e supressão de atos ou de uma jurisdição de baixa qualidade[38], mas sim de acelerá-lo por meio da diminuição da demora judicial com caráter punitivo, diminuindo o tempo burocrático através de tecnologia e otimização de atos cartorários e também dos judiciais, além de uma reorganização do sistema recursal, dos diversos procedimentos do CPP, vez que a Lei n. 11.719/08 não trouxe a esperada melhoria, embora tenha buscado ensejar a oralidade e a concentração dos atos em audiência, e leis esparsas.

A duração dos processos deve ser, pois, objeto de regulamentação normativa clara e bem definida. É evidente que há inconvenientes se os prazos previstos em lei puderem ser prorrogados sucessivamente sem nenhuma garantia ao cidadão, como o ocorrido com a lei dos crimes hediondos, que elevou o prazo da prisão temporária de 5 dias, prorrogáveis por mais 5, para 30 dias prorrogáveis por mais 30, o que é criticável, porque o inquérito policial teria de ser concluído, em estando o indiciado preso, em 10 dias, o que não se coadunaria com a prorrogação do prazo de duração da prisão temporária.

Contudo, ainda sim é melhor haver algum prazo legalmente fixado, mesmo que passível de sucessivas prorrogações, do que não haver prazo nenhum. Ainda, não basta a mera fixação dos prazos: se faz imprescindível que seja imposta uma sanção pela demora processual que, no caso das prisões cautelares, deve ser a imediata soltura do réu preso, de forma automática, a exemplo do que já ocorre na prisão temporária. Isso sem falar na necessidade de mudança de tratamento para com os denominados prazos impróprios.

O Poder Judiciário brasileiro carece de investimento em peso. O Estado possui o múnus público do serviço judiciário, mas não consegue cumpri-lo nos moldes adequados, faltando informatização[39], sanções em caso de o processo perdurar por prazo manifestamente irrazoável, também às autoridades que conduzem os feitos, além de não haver meios alternativos de solução de conflitos criminais como se possibilita na esfera do processo civil, principalmente pela arbitragem, que se for cada vez mais empregada, fará indiretamente com que a duração média dos processos judicias cíveis durem menos, por aliviar a carga de trabalho da justiça ordinária.

Há muito ainda a evoluir nessa seara, faltando dar concretude e efetividade a esse direito fundamental, tanto na profundidade vertical, quanto na linearidade horizontal, sem cinismo ou hipocrisia.

Fala-se na necessidade de mudanças na legislação processual para acabar-se com a morosidade da justiça. O que se sabe, todavia, é que temos muitas, e boas, leis. Porém, sofremos de problemas estruturais e de mentalidade, precisando o Poder Público ser dotado de meios materiais e logísticos para que possa melhorar sua infraestrutura e, concomitantemente, melhor capacitar os juízes e servidores públicos em geral, para que possam oferecer prestação jurisdicional e processual administrativa adequada aos que dela necessitam. A palavra de ordem é, portanto, mudança de paradigma.

Se o Estado não presta atenção à qualidade da prestação jurisdicional, como um dever que lhe é inerente (pois não deixa de ser um serviço público essencial), talvez se preocupe com a eventual repercussão que a ineficiência da máquina judiciária causará nas contas públicas, ainda mais numa época em que parece que a única meta estatal é manter o superávit fiscal.


REFERÊNCIAS

ARRUDA, Samuel Miranda. O Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 3. ed. Traduzido por Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2011.

BULOS, Uadi Lamêgo. Constituição Federal Anotada. Saraiva, 2007.

CADH. Disponível em:

<http://www.operacoesespeciais.com.br/userfiles/02_CADH.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2016.

CASTANHO DE CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti. O processo penal em face da Constituição. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

HOFFMAN, Paulo. Razoável Duração do Processo. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

LOPES JUNIOR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 10. ed. São Paulo: RT, 2010.

VIRGINIA. Virginia Declaration Of Rights. Disponível em:

<http://www.constitution.org/bcp/virg_dor.htm>. Acesso em: 15 out. 2016.

TJPR. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br/consulta-2-grau>. Acesso em: 01 nov. 2016.


Notas

[1] A denominação correta é “Convenção do Conselho da Europa para salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, mas tradicionalmente é chamada de Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

[2] CADH. Disponível em:

<http://www.operacoesespeciais.com.br/userfiles/02_CADH.pdf>. Acesso em: 16 out. 2016.

[3] “Art. 5º, inc. LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

[4] BULOS, Uadi Lamêgo. Constituição Federal Anotada. Saraiva, 2007. p. 397.

[5] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 10. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 323.

[6] O Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969) através do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992.

[7] “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, (...) na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, (...).”

[8] “O direito de qualquer pessoa a obter justiça não será por nós (pelo rei) vendido, recusado ou postergado” (40. To no one will we sell, to no one deny or delay right or justice)

[9] ARRUDA, Samuel Miranda. O Direito Fundamental à Razoável Duração do Processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006. p. 32.

[10] Magna Carta. Disponível em:

<http://www.bl.uk/treasures/magnacarta/translation/mc_trans.html>. Acesso em: 15 out. 2016.

[11] ARRUDA, Samuel Miranda, Op. cit., p. 29.

[12] Virginia Declaration of Rights. Disponível em:

<http://www.constitution.org/bcp/virg_dor.htm>. Acesso em: 15 out. 2016.

[13] CASTANHO DE CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, Op. cit., p. 225.

[14] HOFFMAN, Paulo. Razoável Duração do Processo. São Paulo: Quartier Latin, 2006. pp. 97-98.

[15] “El art. 24.2 no há constitucionalizado el derecho a los plazos; ha constitucionalizado, como um derecho fundamental com todo lo que ello significa, el derecho de toda persona a que su causa sea resuelta dentro de um tempo razonable”. PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”, In: La Reforma de la Justicia Penal,  p. 392. Disponível em: <http://books.google.com/>. Acesso em: 01 nov. 2016.

[16] A Corte Europeia tem sugerido, em caso de elevado número de acusados, a separação do processo em tantos outros quanto for o número de réus.

[17] LOPES JUNIOR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique, Op. cit., p. 67.

[18] STF, HC n. 84.931/CE, 1ª Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 25.11.2005, v.u. DJ 16.12.2005.

[19] CADH. Disponível em: <http://www.operacoesespeciais.com.br/userfiles/02_CADH.pdf>. Acesso em: 04. nov. 2016.

[20] No caso Moreira de Azevedo, em sentença datada de 23.10.1990, o TEDH decidiu que o Estado é responsável pelo conjunto de sua estrutura judiciária e não somente pelo juiz que atua no processo.

[21] Art. 42 do Código Penal: “Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e os de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos nos artigos anteriores”.

[22] “Art. 66. A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”.

[23] LOPES JUNIOR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique, Op. cit., p. 122.

[24] LOPES JUNIOR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique, Op. cit, p. 126.

[25] Indulto é um modo de extinção de punibilidade previsto no art. 107, II, do CP, consistindo em ato de clemência do Poder Público, concedido individual ou coletivamente, deste último modo quando se refere a um grupo de sentenciados que estejam numa mesma relação jurídica.

[26] Consistindo na substituição de uma pena restritiva de liberdade por uma pena alternativa restritiva de direitos, como a prestação de serviços à comunidade ou doação de alimentos para instituições de caridade.

[27] O RITJSP prevê em seu art. 512 que, embora o habeas corpus seja considerado prejudicado, poderá “a turma julgadora declarar a ilegalidade do ato e tomar as providências cabíveis para a punição do responsável”.

[28] LOPES JÚNIOR, Aury, Op. cit., p. 94.

[29] CASTANHO DE CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti, Op. cit., pp. 226-227.

[30] TJPR - HC 592.736-0 - 2ªC. Crim. - Rel. Des. José Maurício Pinto de Almeida – Unânime - DJ 4.12.09. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br/consulta-2-grau>. Acesso em: 01 nov. 2016.

[31] A expressão “pena de banquillo” é consagrada no sistema espanhol para designar a pena processual que encerra o “sentar-se no banco dos réus”. Trata-se de uma pena autônoma, que cobra um alto preço por si mesma, independentemente de futura pena privativa de liberdade.

[32] O termo estigmatizar é oriundo do latim stigma, que realiza alusão à marca feita com ferro candente, o sinal da infâmia. Assim, o processo penal assume a atividade de etiquetamento, retirando a identidade de uma pessoa, para outorgar-lhe outra, degradante e estigmatizada.

[33] LOPES JÚNIOR, Aury, Op. cit., p. 97.

[34] Id., p. 98

[35] Id., p. 116.

[36] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 3ª ed. Traduzido por Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2011. p. 77.

[37] BECCARIA, Cesare, Op. cit., p.109.

[38] Nesse sentido, as metas do Conselho Nacional de Justiça objetivando a celeridade processual podem ter um efeito perverso, que é o de piorar a qualidade das sentenças e devidas motivações, não devendo a quantidade de sentenças predominar em detrimento da qualidade das mesmas.

[39] Tendo sido inclusive a meta n. 9 do CNJ para o ano de 2011 na Justiça Federal: “Implantar processo eletrônico judicial e administrativo em 70% das unidades de primeiro e segundo grau até dezembro de 2011”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMA, Zillá Oliva. Da (ir)razoável duração do processo penal: o tempo como pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5072, 21 maio 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54111. Acesso em: 26 abr. 2024.