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O Supremo Tribunal Federal e a proporcionalidade no julgamento da ADPF 54

O Supremo Tribunal Federal e a proporcionalidade no julgamento da ADPF 54

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Apenas no futuro, através de estatísticas confiáveis, será possível verificar se foi alcançada a finalidade da decisão judicial relativa à permissão de aborto de fetos anencéfalos.

Resumo: O princípio da proporcionalidade será respeitado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, somente se eles conseguirem atingir o fim almejado, obtendo o menor prejuízo possível para proteger os direitos fundamentais da gestante em conflito com os direitos fundamentais do feto anencéfalo. E no fim, somarem mais vantagens do que desvantagens através da utilização da técnica da ponderação.  

Palavras-Chave: Supremo Tribunal Federal. Proporcionalidade. Técnica da Ponderação.


1 INTRODUÇÃO

Quando ocorrem conflitos entre princípios constitucionais, existem situações em que é impossível a harmonização ou conciliação dos interesses em jogo, pois a proteção de um determinado direito ou princípio fundamental fatalmente acarretará a violação parcial ou total de outro bem jurídico protegido pela Constituição.

Dessa forma, surge a necessidade de utilização da técnica da ponderação ou sopesamento de valores constitucionais, atividade intelectual ou valoração jurídica, que necessita ser aplicada pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal no caso de aborto de Fetos Anencefálicos, ADPF 54/2004, pois diante dos valores colidentes da gestante e do feto anencefálico, eles devem escolher qual direito deve prevalecer e qual deve ceder, observando sempre se o ganho do benefício alcançado com a proteção de determinado direito ou princípio constitucional é superior ao sacrifício do outro.

Nessa perspectiva, o presente artigo científico, objetiva analisar a importância da proporcionalidade no julgamento da ADPF 54/2004, através dos seguintes princípios de interpretação da hermenêutica constitucional: princípio da concordância prática, princípio da proporcionalidade e influências do Tribunal Constitucional Federal Alemão ao Supremo Tribunal Federal brasileiro (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), princípio da proteção ao núcleo essencial e princípio da proibição de abuso dos direitos fundamentais. Examinando o julgado Roe vs. Wade da Suprema Corte dos Estados Unidos da América como possível parâmetro aos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento ADPF 54/2004 e avaliando o caso “Gabriela” sobre Aborto de Fetos Anencefálicos que originou a ADPF 54/2004, através da técnica da ponderação, solucionando a colisão entre os princípios fundamentais em conflito: vida, saúde, dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade e liberdade da gestante; versus a vida intrauterina do feto anencefálico.


2 PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

O fenômeno da colisão dos direitos fundamentais decorre da sua própria natureza, pois eles são enunciados por meio de princípios. Ao contrário das regras, que emitem comandos definitivos, na base do “tudo ou nada”, os princípios servem de proteção, respeito e promoção ao sistema constitucional. Princípios não são absolutos, são passíveis de restrições recíprocas, pois o seu grau de aplicabilidade dependerá das possibilidades fáticas e jurídicas que se oferecem concretamente ao intérprete constitucional (ALEXY apud MARMELSTEIN, 2011, p. 403).  

Os princípios possuem duas funções básicas: uma positiva, que serve para direcionar e fundamentar o conteúdo mínimo das demais normas do ordenamento jurídico; e outra negativa, pela qual expurgam do sistema as normas que com ele são incompatíveis, exceto na hipótese de colisões com outros princípios, que deverão ser balanceados e não apenas invalidados. Dessa forma, os princípios asseguram a unidade do ordenamento jurídico.

Nesse contexto, os princípios de interpretação da hermenêutica constitucional são instrumentos necessários à legitimação da argumentação e do discurso jurídico dos operadores do direito, exercendo importante papel na manutenção da unidade valorativa do ordenamento. Ao interpretar as normas positivadas no ordenamento jurídico, o intérprete busca solucionar conflitos de interesses ou valores apresentados.

No intuito de oferecer critérios mais objetivos na solução de casos concretos envolvendo direitos fundamentais, doutrina e jurisprudência desenvolveram alguns princípios de interpretação, que permitem que sejam encontradas soluções ao mesmo tempo justas e constitucionais adequadas. Segundo Marmelstein (2011, p. 400) os princípios de interpretação da hermenêutica constitucional são:

a) Supremacia da Constituição (as normas constitucionais possuem supremacia formal e material); b) unidade da Constituição (todas as normas constitucionais possuem igual hierarquia); c) presunção de constitucionalidade das leis (as leis presumem-se constitucionais); d) interpretação conforme a constituição (as leis devem ser interpretadas de acordo com os valores constitucionais); e) máxima efetividade (toda interpretação jurídica deverá tentar proporcionar a máxima efetividade); f) concordância prática (havendo colisão de valores constitucionais, deve-se tentar harmonizá-los, sacrificando-os o mínimo possível); g) proporcionalidade (as restrições aos direitos fundamentais devem ser adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito); h) proteção ao núcleo essencial (as restrições aos direitos fundamentais não podem afastar o núcleo essencial da norma); i) proibição de abuso de direitos fundamentais (os direitos fundamentais não podem servir para justificar a violação de outros direitos igualmente importantes).

Portanto, o objetivo dos princípios de interpretação da hermenêutica constitucional consiste em ajudar o intérprete a encontrar respostas racionalmente fundamentadas, com base em parâmetros constitucionalmente aceitos, além de possibilitar maior transparência e objetividade na argumentação jurídica e no processo decisório, conferindo maior legitimidade à argumentação judicial.

2.1 Princípio da Concordância Prática

O princípio da concordância prática surge para solucionar a colisão entre valores constitucionais. Deve-se primeiro tentar harmonizá-los, sacrificando-os o mínimo possível. Seu objetivo é fazer com que nenhuma das posições jurídicas conflitantes seja favorecida ou afirmada em sua plenitude, na verdade, todas devem ser reciprocamente poupadas e compensadas. O papel do julgador é solucionar conflitos normativos através da integração harmoniosa dos valores contraditórios.

Dessa forma, considerar os direitos fundamentais como princípios significa aceitar que não há direitos com caráter absoluto, já que eles são passíveis de restrições recíprocas. A jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal[3] entende que não há no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto. Razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio da conveniência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição Federal de 1988 que traça limites aos seguintes direitos fundamentais, por exemplo:

a) reconhece o direito à vida, mas autoriza a adoção da pena de morte em caso de guerra declarada, artigos 5º, caput, XLVII, “a” e 84, XIX;

b) prevê o direito de liberdade, mas permite a prisão em caso de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, artigo 5º, caput, LXI;

c) garante o direito de propriedade, mas exige que ela exerça a sua função social, artigo 5º, XXII e XXIII;

d) garante o direito de liberdade de expressão, mas veda o anonimato e garante o direito de resposta, artigos 5º, IV e V;

e) garante a todos o direito de petição, mas proíbe a concessão de habeas corpus no caso de punição de militares, artigos 5º, XXXV e 142, § 2º;

 f) prevê restrições a vários direitos fundamentais durante o estado de defesa e o estado de sítio, artigos 136, I, “a” a “c” e 139, I a VII.    

Regra geral os direitos fundamentais devem ser harmonizados, excepcionalmente poderão ser restringidos. Primeiramente, o intérprete constitucional deve buscar concretizar ao máximo a norma constitucional, sem sacrificar outros direitos fundamentais igualmente protegidos, de modo a preservá-los pelo menos em alguma medida na solução adotada. Apenas em um segundo momento, se não for possível conciliar os interesses em conflito será possível utilizar a técnica da ponderação.

2.2 Princípio da Proporcionalidade e Influências do Tribunal Constitucional Federal alemão ao Supremo Tribunal Federal brasileiro

Nos séculos XVIII e XIX, a dimensão material do princípio da proporcionalidade está presente na ideia britânica de reasonableness e no conceito alemão de verhältnismässigkeit. O alcance do princípio era mais revelação de sintomas de patologias administrativas como arbitrariedade e exorbitância de atos discricionários da administração, do que um princípio material de controle das atividades dos poderes públicos. No pós-guerra, as potencialidades expansivas do instituto são cada vez mais sentidas pelos cidadãos e juristas comprometidos na radicação de um direito materialmente justo. A doutrina alemã ergue o princípio da proibição de excesso a princípio constitucional e começa a controlar os atos do poder público sob o ponto de vista do princípio da proporcionalidade. (CANOTILHO, 2003, p. 268).

O Tribunal Constitucional alemão entende o princípio da proporcionalidade como um direito público fundamental, emanado do próprio Estado Democrático de Direito alemão. A proporcionalidade é expressão da pretensão jurídica geral de liberdade do cidadão frente ao Estado, seu direito só pode ser limitado pelo poder público quando isso for imprescindível para a proteção do interesse público primário.

No Brasil, o princípio da proporcionalidade como limite da atividade jurisdicional está implícito na Constituição Federal de 1988, com o objetivo de fazer com que nenhuma restrição aos direitos ou princípios constitucionais fundamentais seja desproporcional. Parte da doutrina entende que ele deriva do Estado Democrático de Direito, outra parte o fundamenta do próprio conteúdo dos direitos fundamentais, outra parte acredita que ele deriva do princípio da legalidade, e outra parte dos doutrinadores acredita derivar do devido processo legal (para eles proporcionalidade e razoabilidade são conceitos fungíveis). (BRAGA, 2008, p. 104).

A doutrina tradicional brasileira liderada por Virgílio Afonso da Silva, ao analisar decisões da Corte Constitucional alemã que influenciaram na construção do princípio da proporcionalidade utilizado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro, aponta três dimensões do princípio da proporcionalidade: a) adequação; b) a necessidade ou vedação de excesso e de insuficiência; c) proporcionalidade em sentido estrito. Esses elementos devem ser analisados sucessivamente. Somente será possível limitar um direito fundamental se estiverem presentes na medida limitadora todos esses aspectos. (DA SILVA apud MARMELSTEIN, 2011, p. 410).

A necessidade e a adequação são verificadas diante das possibilidades fáticas, ao passo que a proporcionalidade em sentido estrito é verificada com base nas possibilidades jurídicas. Mencionados requisitos devem ser atendidos concomitantemente, somente através da trifásica aplicação, pode ser concretizado determinado direito fundamental, caso seja insatisfeito qualquer um deles, a medida judicial será desproporcional, somente se passa à análise do requisito seguinte, se o anterior tiver sido atendido.

Ressalte-se que o princípio da proporcionalidade em sentido amplo significa limitação de poder, ao passo que em sentido estrito identifica-se com a ponderação, como técnica de decisão que determina que se coloquem em equação os ônus e as vantagens que defluem da tutela total ou parcial de cada um dos bens jurídicos em conflito.

A doutrina majoritária moderna brasileira criou critérios mentais que devem ser feitos para se analisar a validade de determinada medida limitadora de direito fundamental: a) o meio escolhido é adequado para atingir a sua finalidade? (adequação); b) o meio escolhido é o mais suave e ao mesmo tempo suficiente para proteger a norma constitucional? (necessidade); c) numa relação de “peso e importância”, a medida trará mais benefícios do que prejuízos? (proporcionalidade em sentido estrito). (MARMELSTEIN, 2011, p. 410).

Ao passo que a doutrina minoritária tradicional entende que para se analisar a validade de determinada medida limitadora de direitos fundamentais não é necessário analisar os critérios supracitados do princípio da proporcionalidae; acompanho o entendimento doutrinário majoritário, pois o princípio da proporcionalidade serve para verificar a validade material de atos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como, limitar o exercício dos direitos fundamentais, servindo de proteção ao indivíduo dos abusos do poder público, especialmente quando o Estado intervém desnecessariamente no interesse da coletividade.           

2.2.1 Dimensão da Adequação

Para aferir a adequação é necessário saber se o meio escolhido foi adequado e pertinente para atingir o resultado desejado, devendo haver relação entre a medida adotada e finalidade da norma. Caso não seja possível demonstrar que o meio escolhido não é apto a obter o resultado pretendido, o Judiciário poderá declarar a nulidade desse ato manifestamente ilegal, com base no princípio da proporcionalidade.

Vale ressaltar que a adequação exige também que uma medida restritiva de direitos fundamentais para ser válida, precisa ser compatível com uma finalidade constitucionalmente legítima. Entretanto, se o objetivo visado pela medida buscar uma finalidade incompatível com a Constituição, será inconstitucional. (MARMELSTEIN, 2011, p. 413).  

O primeiro passo dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 54 é observar a adequação em relação ao meio escolhido atendendo a finalidade pública da norma constitucional. É indispensável proteger o bem jurídico mais importante que está em jogo (autonomia da vontade da gestante versus vida do feto anencefálico), do contrário não será possível alcançar o correto fim almejado para implementar determinado direito fundamental.

2.2.2 Dimensão da Necessidade (Vedação de Excesso e Vedação de Insuficiência)

O princípio da proporcionalidade compreende também a ideia de vedação de excesso, ou seja, a medida deve ser necessária, o meio escolhido pelo intérprete deve ser o mais suave e ao mesmo tempo suficiente para proteger a norma constitucional entre as opções existentes. Do contrário, o Poder Judiciário anulará a medida judicial prejudicial. (MARMELSTEIN, 2011, p. 414).

Outro ponto digno de nota é que a proporcionalidade abrange também a ideia de vedação de proteção insuficiente. O Estado deve agir eficazmente para proteger os direitos fundamentais, impedindo e reprimindo violações. Excepcionalmente, quando estritamente comprovado que a proteção ao direito fundamental foi insuficiente, é cabível controle jurisdicional, a fim de corrigir a situação ilegal ou inconstitucional. São exemplos de necessidade de proteção suficiente, os mandados constitucionais de criminalização de condutas, previstos no artigo 5º, XLI a XLIV da Carta Magna de 1988:

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.  

Assim, os mandados constitucionais de criminalização impõem ao legislador o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. A Constituição ao conferir ao legislador o dever de respeito à proporcionalidade e margem discricionária para avaliação, valoração e conformação quanto às medidas eficazes e suficientes para a proteção do bem jurídico penal, torna possível a fiscalização judicial para aferir a constitucionalidade da atividade legislativa. O Supremo Tribunal Federal[4] possui a responsabilidade de examinar se o legislador constituinte ordinário considerou suficientemente as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, bem como, se ele utilizou a margem de ação de forma adequada para a proteção suficiente dos bens jurídicos fundamentais em conflito.

2.2.3 Dimensão da Proporcionalidade em Sentido Estrito

Robert Alexy[5] desenvolveu a técnica da ponderação. Para ele, o julgador deve buscar uma decisão “racional” diante conflitos entre princípios constitucionais que asseguram direitos e garantias fundamentais, tendo como parâmetro a análise do princípio da proporcionalidade, que se subdivide em adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. O magistrado deve fazer a opção pelo princípio que contenha o mandamento que proporcione a satisfação de um dever ideal, já que princípios são comandos de otimização, e pressupõe que algo seja realizado na maior medida possível. (BAPTISTA, 2012, p. 02).

Mencionado jurista alemão, entende que em havendo colisão de direitos fundamentais é necessário observar a “lei da ponderação” que consagra que quanto mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro princípio que está em conflito (proporcionalidade em sentido estrito). Para mensurar tal situação é necessária a incidência de uma forte carga argumentativa.

A técnica da ponderação tem sido utilizada no ordenamento jurídico brasileiro como referencial teórico para os vários casos jurídicos (“hard cases”) em que o pano de fundo é a discussão e apreciação de causas que envolvam conflitos de princípios. Entretanto, o Brasil não vem adotando fielmente os critérios da proporcionalidade propostos por Robert Alexy, e uma das críticas travada nesse artigo é o descaso do julgador brasileiro em não preocupar-se com a proporcionalidade em sentido estrito ou técnica da ponderação, portanto, observa-se que essa teoria nem sempre é observada e contextualizada no ordenamento jurídico pátrio.

A construção teórica de Robert Alexy possui grande relevância para a afirmação e consolidação de uma cultura jurídica pautada na valoração de elementos negligenciados pelo positivismo jurídico como a moral, os valores e os princípios constitucionais. Todavia, o julgador ao implementar a tarefa da ponderação entre princípios constitucionais conflitantes pode estar exercendo um legítimo ato de violência se sua atuação não se pautar nos valores emanados pela Constituição, sem nenhuma carga argumentativa.

Além disso, o caso que ensejou a construção da proporcionalidade em sentido estrito consiste na premissa de que os seguintes métodos hermenêuticos tradicionais de solução de antinomia: cronológico em que a norma posterior revoga a anterior; hierárquico em que as normas de hierarquia superior prevalecem sobre a inferior; e especialidade onde a norma específica deve predominar sobre a mais geral; não são suficientes para solucionar colisões de normas constitucionais, pois elas estão em igual patamar no ordenamento jurídico. (BRAGA, 2008, p. 35).

Quando ocorre um “choque” entre direitos fundamentais, o primeiro passo do julgador é tentar conciliar ou harmonizar os interesses em jogo, através do princípio da concordância prática. O segundo passo apenas será realizado se não for possível conciliação de interesses, tornando-se necessário utilizar a técnica da ponderação. Não existe direito fundamental absoluto, mesmo em conflito, eles devem conviver harmonicamente, e excepcionalmente, poderão ser limitados.

Portanto, a dimensão da proporcionalidade em sentido estrito significa a utilização da técnica da ponderação, ou seja, análise das vantagens e desvantagens que a medida trará. A técnica da ponderação implica o máximo benefício com o mínimo de sacrifício. É um juízo crítico pelo qual interprete, diante das circunstâncias jurídicas envolvidas no caso, avalia o equilíbrio global entre os custos e os benefícios das medidas e restrições impostas, estabelecendo uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto. A procedência de um direito, em relação a outro, apenas se justifica pelo seu maior benefício.

2.3 Princípio da Proteção ao Núcleo Essencial.

O princípio da proteção ao núcleo essencial é uma construção doutrinária e jurisprudencial brasileira, sua função dentro do ordenamento jurídico é fazer com que nenhuma lei restrinja um direito fundamental de modo que afete o seu conteúdo mínimo ou essencial. Mencionado princípio está diretamente ligado à dimensão da necessidade do princípio da proporcionalidade, eles possuem objetivos em comum: obtenção do menor prejuízo possível para proteger os direitos fundamentais em conflito.

O Ministro Gilmar Mendes[6] do Supremo Tribunal Federal entende que o princípio da proteção ao núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais. Para ele, mencionado princípio está implícito na Constituição e decorre do modelo de Estado Democrático de Direito brasileiro. (MARMELSTEIN, 2011, p. 438).

A Lei Fundamental, excepcionalmente, atinge totalmente o núcleo essencial do direito fundamental à vida, quando, por exemplo, prevê pena de morte em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 5º, XLVII, “a” e 84, XIX. Outro exemplo é a restrição total ao direito fundamental à vida do feto, que autoriza a gestante realizar aborto em caso de risco para sua própria vida (aborto necessário ou terapêutico) e gravidez resultante de estupro (aborto sentimental), nos termos do artigo 128, I e II do Código Penal.

Por todo o exposto, percebe-se que a proteção ao núcleo essencial é um instrumento argumentativo contra leis que restringem direitos fundamentais, nenhuma lei em abstrato pode restringir um direito fundamental de modo que lhe descaracterize. Entretanto, excepcionalmente, o Poder Judiciário ao sopesar valores em conflito poderá restringir completamente um direito fundamental, consequentemente, atingindo seu núcleo essencial, desde que sejam respeitados os critérios do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Desse modo, se uma lei que restringe determinado direito fundamental é proporcional, é válida, mesmo que atinja o núcleo essencial.

2.4 Princípio da proibição de abuso dos direitos fundamentais.

A missão do Estado brasileiro é proteger os direitos fundamentais impedindo a violação deles. Nesse contexto, é essencial que a lei possa punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, conforme estabelece o artigo 5º, XLI, da República Federativa da Brasil.

Marmelstein (2011, p. 459) defende que o princípio da proibição de abuso de direitos fundamentais estabelece que: “nenhum direito fundamental deve ser interpretado no sentido de autorizar a prática de atividades que visem à destruição de outros direitos ou liberdades”. Percebe-se que o exercício de direitos fundamentais não pode ser abusivo de forma a justificar práticas ilícitas cometidas em detrimento de outros direitos fundamentais ou de valores constitucionais relevantes.  

Vale ressaltar que a própria Constituição Federal de 1988 possibilita a limitação ou a restrição de direitos fundamentais quando há abuso no seu exercício. Por exemplo, o domicílio é inviolável, mas pode ser invadido em caso de flagrante delito ou desastre (art. 5º, XI, da CF/88); é inviolável o sigilo das comunicações, mas é possível a interceptação telefônica para fins de investigação criminal (5º, XII, da CF/88); regra geral ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens, mas desde que observado o devido processo legal poderá haver restrições (art. 5º, LIV, da CF/88).

A jurisprudência pátria defende que a Carta Magna é composta por um substrato ético capaz de limitar a ordem jurídica das liberdades constitucionais, protegendo, de um lado, a integridade do interesse social e, do outro, assegurando a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros[7].

Os direitos fundamentais não podem ser utilizados para fins arbitrários ou ilegais. A finalidade deles é promover o bem-estar, a dignidade da pessoa humana e a justiça. Do contrário, os valores constitucionais estarão ameaçados e contaminados por vícios de inconstitucionalidades.


3 O JULGADO ROE VERSUS WADE DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA COMO PARÂMETRO A ADPF 54/2004

O caso paradigmático Roe versus Wade, julgado pela Suprema Corte dos EUA, em 1973, foi uma tentativa de harmonizar o direito fundamental da autonomia da vontade da gestante versus o direito fundamental da vida do feto anencéfalo. 

Nesse julgado ficou decidido que a mulher teria o direito constitucional de controlar seu próprio corpo, de modo que a opção sobre realizar ou não procedimento terapêutico para retirar o feto anencefálico deveria ser, em princípio, uma escolha íntima e pessoal da mulher. Foi reconhecido também que o poder público também tem legítimo interesse em proteger a vida em potencial do feto.

Desse modo, na tentativa de conciliar os interesses conflitantes, decidiu-se que a liberdade de escolha da mulher somente seria plena no estágio inicial da gravidez (equivalente aos três primeiros meses após a concepção), pois, quando o feto fosse capaz de sobreviver fora do útero, a proibição do aborto seria legítima, exceto em algumas situações onde o parto pudesse colocar em risco a vida da mãe. (MARMELSTEIN, 2011, p. 427).

Assim, a Suprema Corte ao julgar pela inconstitucionalidade da lei do Estado do Texas que criminalizava o aborto, fazendo prevalecer o direito à autonomia de vontade da gestante sobre o direito à vida do feto serve como suposto parâmetro aos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 54, como veremos a seguir.      


4 ESTUDO Do CASO GABRIELA SOBRE ABORTO DE FETOS ANENCEFÁLICOS E A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO NO JULGAMENTO DA ADPF 54/2004

O famoso caso Gabriela Oliveiro Cordeiro, traz o relato de uma jovem com 18 (dezoito) anos residente em Teresópolis, Rio de Janeiro, que obteve do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro permissão para realizar aborto, após os médicos certificarem através de laudo que o feto não tinha cérebro, portanto, não sobreviveria fora do útero. Entretanto, um padre católico ingressou, posteriormente, em 24/11/2003, perante o Superior Tribunal de Justiça com um habeas corpus[8] em favor do feto anencefálico, sendo cassada a decisão do TJ/RJ, proibindo esse procedimento cirúrgico, sob o argumento de que não havia previsão expressa no Código Penal para prática do aborto em tais casos.  

Posteriormente, em 26/02/2004, um grupo de defesa do direito de escolha das mulheres ingressou perante o Supremo Tribunal Federal com outro habeas corpus[9] em favor da gestante, alegando que a decisão do STJ feria a dignidade da mulher grávida e sua autonomia da vontade. Infelizmente, o julgamento do mencionado habeas corpus restou prejudicado, pois Gabriela desistira do aborto, e em 28/02/2004 deu à luz a uma criança que chamou de “Maria Vida” e que faleceu sete minutos depois do parto por causa de uma parada cardíaca.

Logo em seguida, a Confederação Nacional dos Profissionais de Saúde, representada pelo constitucionalista Luís Roberto Barroso, em 17/06/2004, ingressou com Arguição de Descumprimento de Preceito fundamental (ADPF 54/2004), com o objetivo de obter um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal.           

Dessa forma, na petição inicial da mencionada ADPF foi sustentado que impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza que não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de sua dignidade humana. Sendo pedido a interpretação conforme a Constituição dos artigos do Código Penal brasileiro referentes ao aborto, declarando inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação dos dispositivos que impedem a antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter ou não a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. (MARMELSTEIN, 2011, p.523).

Os principais caminhos percorridos pela ADPF 54, antes do julgamento da ação foram: I – a propositura da ação, que trouxe a margem esse debate tão latente de princípios; II - a atitude ativista do Ministro Marco Aurélio ao conceder uma liminar possibilitando que mulheres gestantes de fetos com anencefalia poderiam se submeter à antecipação terapêutica de parto, a partir de laudo médico atestando a anomalia que atingiu o feto, bem como, suspendendo até o fim do julgamento, processos penais que envolvem profissionais da saúde que em virtude da anencefalia realizaram a antecipação terapêutica de parto, a liminar vigorou por 4 (quatro) meses[10]; III - manifestação do Procurador-Geral da República; IV - o julgamento de suspensão da liminar; V - os pedidos de ingresso como amicus curiae das entidades religiosas e científicas, técnicas, mães etc; VI - designação para data da audiência pública; VII - vários despachos de requerimento de oitivas, de reconsideração, de juntada de documentos, dentre outros; VIII - manifestação do Advogado Geral da União e do Procurador Geral da República; IX - processo concluso ao relator para julgamento do plenário do STF (GOMES, 2011a, p. 07).

Para Gomes (2011a, p. 03) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 54/2004 é uma arguição incidental de natureza autônoma que preencheu os três pressupostos de cabimento para propositura da ação:

I - a ameaça ou violação a preceito fundamental (art. 1º da Lei 9.882/99 - Lei do Processo e Julgamento da ADPF); II - um ato do poder público capaz de provocar a lesão; III - a inexistência de qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade (princípio da subsidiariedade, artigo 4º, § 1º da Lei 9.882/99), ou seja, é a ADPF 54 o procedimento legal capaz de levar ao judiciário esta questão de ordem e que a manifestação do STF, interpretando os dispositivos penais |conforme a Constituição| é o meio de suprir a lacuna temporal existente na legislação penal dada ao aborto e |explicitar que ela não se aplica aos casos de antecipação terapêutica do parto na hipótese de fetos portadores de anencefalia, devidamente certificada por médico habilitado|.

Nessa perspectiva, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, os Ministros do Supremo Tribunal Federal precisam observar a proporcionalidade em sentido estrito fazendo os seguintes questionamentos: o benefício alcançado com a adoção da medida judicial preservou direitos fundamentais mais importantes do que os direitos sacrificados? A medida judicial trouxe mais vantagens do que desvantagens? É proporcional que a gestante de feto anencefálico, ao consentir para retirá-lo, inclusive com o laudo médico competente, possa exigir esse tipo de procedimento cirúrgico ao poder público?

Para responder a essas perguntas, os Ministros do Supremo Tribunal Federal necessitam realizar um exercício de ponderação, levando em conta todos os interesses em jogo a fim de encontrar uma solução constitucionalmente adequada, com base em argumentação coerente, consistente e convincente. A ponderação é uma técnica de decisão judicial que auxilia o julgador a colocar os argumentos jurídicos favoráveis e desfavoráveis resultantes da tutela total ou parcial de cada um dos bens jurídicos em conflito. Um julgamento que se utiliza da técnica da ponderação confere maior transparência às decisões judiciais. (PEREIRA apud MARMELSTEIN, 2011, p. 419).

Recentemente, em 12/04/2012, o plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria e nos termos do voto do Relator (Ministro Marco Aurélio), julgou[11] procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos termos dos artigos 124, 126, 128, I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentaram condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo próprio Ministro Celso de Mello. Os votos divergentes do julgado foram dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cesar Peluso (Presidente do STF), que a julgaram improcedente. Por fim, o Ministro Dias Toffoli, declarou seu impedimento para atuar no processo, em virtude da sua atuação nos autos como Advogado-Geral da União.

No presente julgado sobre aborto de fetos anencéfalos é essencial a utilização do princípio da proporcionalidade. A adequação exige que a medida restritiva do direito fundamental à vida do feto anencefálico, para que seja válido ou idôneo, atenda necessariamente a uma finalidade constitucional legítima. A necessidade pauta-se na melhor escolha possível entre as opções existentes para concretizar o direito à vida, evitando uma proteção insuficiente. E a proporcionalidade em sentido estrito significa o uso da técnica da ponderação pelo julgador.

De acordo com supracitado julgado, percebe-se que o direito à vida do feto anencefálico não é uma garantia constitucional absoluta. A respeitável decisão pela inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos termos dos artigos 124, 126, 128, I e II, do Código Penal, contempla substancialmente os princípios de interpretação da hermenêutica constitucional da supremacia da Constituição, interpretação conforme a Constituição, máxima efetividade, proteção ao núcleo essencial e proibição de abuso de direitos fundamentais. Além disso, houve também acréscimo de condições de diagnósticos suficientes para se provar a anencefalia[12] para ser possível a realização de procedimento terapêutico.   

Antes de analisar o caso em concreto da ADPF 54, é essencial que o julgador detecte expresso consentimento da gestante para realizar procedimento terapêutico e laudo médico competente provando a condição de anencefalia, para que aí sim, seja possível discutir a possibilidade de restrição da vida do feto anencefálico. Nessa situação, como Ministro do Supremo Tribunal Federal, privilegiaria os valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade, liberdade reprodutiva e saúde da gestante (artigos 1º, III, 5º, caput e 196 da CF/88) em detrimento da vida do feto anencéfalo (5º, caput, CF/88), com base na interpretação conforme a Constituição, na máxima efetividade da interpretação jurídica constitucional, na concordância prática da harmonização dos direitos fundamentais em conflito e especialmente na correta aplicação da proporcionalidade e técnica da ponderação.

Entretanto, em prestígio do valor constitucional da autonomia da vontade da gestante, caso não haja consentimento da gestante para realizar parto terapêutico, a mesma não estará obrigada a fazer. Nesse caso, não existe conflito de valores, logo, o melhor seria permitir que a escolha recaísse sobre a mulher gestante e não no Estado, que não pode se pautar por dogmas religiosos. Não permitir que a gestante de feto anencéfalo possa escolher ou não fazer procedimento de parto terapêutico, significa violar um dos mais básicos atributos da dignidade humana, que é a autonomia da vontade.        


    5 CONCLUSÃO

Os princípios de interpretação da hermenêutica constitucional são instrumentos eficientes para solucionar conflito entre direitos fundamentais, entretanto, eles não fornecem respostas perfeitas, sempre haverá margem para subjetividades, o importante é que em cada caso concreto, o magistrado fundamente suas decisões judiciais não nos seus valores pessoais, mas nos valores constitucionais emanados pela Constituição.

A proporcionalidade é um verdadeiro limite da atividade jurisdicional, ou seja, integra-se na lógica de proteção dos direitos fundamentais. Por isso, o juiz, ao concretizar um direito fundamental, deve obedecer aos critérios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A função da proporcionalidade é manter o equilíbrio de todo o sistema constitucional, harmonizando normas jurídicas.

A Constituição é fundamento de validade de toda a ordem jurídica vigente, por isso deve ser composta por normas abertas e abstratas que devem conformar as normas infraconstitucionais do ordenamento jurídico. É impossível que o legislador constituinte ordinário regule detalhadamente a totalidade de condutas realizáveis na Constituição, esta possui como característica o pluralismo, o que gera normas ideológicas contrapostas que participaram do seu processo de formação.

O interprete constitucional deve considerar a Constituição como um corpo normativo único, suas normas são interdependentes. No conflito aparente entre princípios constitucionais: autonomia da vontade da gestante e vida do feto anencefálico; deve prevalecer o direito fundamental de maior peso ou importância. Como a harmonização desses valores não é possível, o julgador deve utilizar a técnica da ponderação.   

Direitos fundamentais não são valores absolutos e inflexíveis, na verdade, podem sofrer restrições, desde que o julgador utilize corretamente a proporcionalidade como técnica de ponderação, caso contrário, haverá margem para interpretações extremistas. Qualquer restrição a direitos fundamentais deve ser vista com desconfiança, é necessária uma forte argumentação e fundamentação jurídica para afastar determinada garantia constitucional. A dignidade da pessoa humana é o principal critério substantivo na direção da ponderação de interesses constitucionais. Ao se deparar com uma colisão entre princípios constitucionais, o operador do direito tem o dever de observar o princípio da proporcionalidade, adotando a solução mais consentânea com os valores humanitários na ordem jurídica vigente, não sendo razoável permitir que um direito fundamental seja desvirtuado da sua real finalidade.

É sabido que ainda não é possível afirmar com certeza se a decisão procedente da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54 pelo Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos termos dos artigos 124, 126, 128, I e II, todos do Código Penal, bem como, se o consentimento da gestante e apresentação de laudo médico competente, serão suficientes ou não para proteger os direitos fundamentais aparentemente em conflito: dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade, liberdade reprodutiva e saúde da gestante (artigos 1º, III, 5º, caput e 196 da CF/88) em detrimento da vida do feto anencéfalo (5º, caput, CF/88).

Apenas no futuro, através de estatísticas confiáveis, será possível verificar se a finalidade da decisão judicial foi alcançada. Caso haja ineficácia da medida, o Supremo Tribunal Federal poderá, certamente, reconhecer a sua inconstitucionalidade, por violação dos princípios de interpretação da hermenêutica constitucional, especialmente, concordância prática, proporcionalidade, proteção ao núcleo essencial e proibição de abuso de direitos fundamentais.

Em síntese, o Estado Democrático de Direito brasileiro é laico, leigo e não confessional. O direito à vida está diretamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, razão pela qual é difícil admitir restrição total ao direito à vida do feto anencefálico, mas, excepcionalmente, através do consentimento da gestante e laudo médico competente, bem como, através da correta utilização da técnica de ponderação, o direito à vida do anencéfalo poderá ceder, pois não existem direitos fundamentais absolutos.


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Nota

[3] STF, MS 23.452-RJ, rel. Min. Celso de Mello.

[4] STF, ADIN 3112/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/05/2007.

[5] Professor da Universidade de Kiel, Alemanha. Um dos mais influentes filósofos do Direito alemão contemporâneo. Graduou-se em Direito e Filosofia pela Universidade de Göttingen, tendo recebido o título de PhD em 1976, com a dissertação Uma Teoria da Argumentação Jurídica, e a habilitação em 1984, com a Teoria dos Direitos Fundamentais - dois clássicos da Filosofia e Teoria do Direito.

[6] STF, Trecho do Voto do Min. Gilmar Mendes, no HC 82.959-SP.

[7] STF, MS 23.452-RJ, Rel. Min. Celso de Mello, j. 16/09/1999.

[8] STJ, HC 32159-RJ, rel. Min. Laurita Vaz, 5º Turma, j. 17/02/2004.

[9] STF, HC 84025, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 04/03/2004.

[10] No plenário do STF, a medida liminar foi cassada, por maioria de votos os Ministros entenderam que a relevante matéria não poderia ser decidida através de medida liminar. Ficaram vencidos os Ministros Marco Aurélio (relator), Carlos Brito, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, que referendavam integralmente a liminar. 

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acompanhamento processual da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2226954>. Acesso em: 20 de abril de 2012.

[12] Entendo que no caso dos fetos anencéfalos não existe aborto, bem como, inexiste bem jurídico penal a ser preservado, há apenas um conflito aparente entre normas constitucionais, pois um feto sem cérebro não têm a mínima potencialidade de vida. A morte é o fim esperado para o feto sem desenvolvimento da massa encefálica.


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Informações sobre o texto

Artigo científico apresentado como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional, sob a orientação da Profª. Msc. Adriana Castelo Branco de Siqueira.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Eduardo Bello Leal Lopes da. O Supremo Tribunal Federal e a proporcionalidade no julgamento da ADPF 54. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6351, 20 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55699. Acesso em: 18 abr. 2024.