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A criminalidade de massa como fator de origem e perpetuação das facções criminosas

A criminalidade de massa como fator de origem e perpetuação das facções criminosas

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O trabalho pretendeu refletir sobre justificativas teóricas para o agrupamento de pessoas a fim de coordenar práticas criminosas. Em análise prática do tema, passou-se ao contexto histórico do cárcere como meio justificante para origem das facções.

Resumo: Este trabalho científico fará uma análise criminológica acerca da criminalidade de massa, identificando as justificativas teóricas existentes para o agrupamento de agentes voltado à prática criminosa. Pretende-se transferir o estudo teórico para o campo prático de nossa sociedade, fazendo uma abordagem acerca da origem das facções criminosas em nosso sistema carcerário. Ademais, traremos justificantes teóricas e práticas não somente para criação das facções, mas também para elaboração de seu ordenamento informal, inclusive com aceitação e agrado estatal. Adentraremos ao estudo dos fatores exógenos da criminalidade, passando pelos costumeiramente citados pela doutrina e existentes no seio da população brasileira, mas com especial ênfase aos fatores desencadeantes perceptíveis em nosso sistema penitenciário, os quais surgem por notório descaso do Estado na tutela do presidiário, intentando-se demonstrar que contribuem diretamente para e reincidência e para ampliação e perpetuação das facções criminosas.

Palavras-chave: Criminologia. Fatores Exógenos da Criminalidade. Facções Criminosas. Lei da imitação.


1. INTRODUÇÃO

Atualmente, a sociedade brasileira se vê acometida por elevada onda de delinquência em todos seus setores. Impossível elencar todas as causas que influenciam neste comportamento desvirtuado, entretanto, inconteste a existência de vetores de natureza moral, ética, psicológica e sociológica existentes em nosso cotidiano.

A Criminologia moderna nos traz relevantes estudos acerca dos fatores sociais que levam o indivíduo à prática criminosa. No presente trabalho, além dos chamados fatores exógenos da criminalidade, pretendeu-se adentrar ao estudo das circunstâncias constantes da nossa realidade carcerária que fazem com que o a gente se mantenha no mundo criminoso.

De antemão, como premissa didática e explicativa, convém elucidar o passado da política carcerária em nosso país.

Ilustrando, remonta-se à década de 80, quando o governo paulista projetou a ideia de uma política carcerária de humanização. Referido projeto intentava um melhor tratamento ao presidiário, somado a criação de um ambiente razoável para cumprimento da pena e a observação das comodidades e benefícios legais.

Ocorre que, desde a publicação da política supracitada, a mesma foi acometida por críticas de cunho político e midiático, sempre sob a acusação de favorecimento à parcela criminosa da sociedade. Posicionamento justificado na histórica compreensão excludente, preconceituosa e de tratamento degradante para com os presidiários. Raciocínio que, vale dizer, persiste majoritariamente nos dias de hoje.

Com o afastamento da política de humanização, fora aplicada uma política de repressão, tornando o ambiente carcerário em local inóspito e tratando os presidiários de forma desumana, inclusive com corriqueiras práticas de tortura física e psicológica.

Dessa forma, observou-se que os fatores desencadeantes da criminalidade não estão presentes tão somente em nossa sociedade, mas também no próprio ambiente penitenciário, este que ao invés de deter medidas ressocializantes, transvestiu-se de um antro de fatores condicionantes de reincidência.

A precariedade das estruturas carcerárias, somada a inércia do Estado nas prestações de serviços básicos, fazem com que os prisioneiros cumpram pena sem qualquer dignidade. Ainda, acarretam em um sentimento de insegurança e descrédito por parte do presidiário, afastando-o das instituições formais de apoio.

A junção desses fatores no contexto prisional constituiu motivo essencial para maior solidariedade e aproximação dos aprisionados, concedendo-lhes motivação suficiente para criação de grupos reivindicatórios de melhorias. Aqui nascem as facções criminosas, as quais alcançaram pode político e financeiro perante o Estado e respeito e admiração pelos presidiários.

Como se pretendeu demonstrar, por variados motivos, as facções angariaram a simpatia da população carcerária, parecendo-lhes entidade mais confiável e preocupado com os agente que a integram do que o próprio Estado que possui o dever de proteção.

Por fim, para elaboração do presente trabalho, valeu-se prioritariamente dos métodos dedutivo e hipotético-dedutivo.


2. A CRIMINALIDADE DE GRUPO E AS LEIS DA IMITAÇÃO

Inicialmente, antes mesmo de tecermos qualquer menção teórica ou prática acerca da origem das facções criminosas, de suma importância fazermos uma separação metodológica no intuito de delimitar a finalidade deste trabalho, objetivando facilitar a leitura e torná-lo mais didático.

Atualmente, muito têm-se utilizado as expressões “facção criminosa”, “organização criminosa” ou, até mesmo, “crime organizado” como sinônimos. Clarividente que, a depender do contexto do estudo, não há prejuízo de qualquer espécie no emprego neste sentido. Entretanto, tendo em vista o objetivo que traçamos para com este trabalho, uma ressalva deve ser feita quanto ao uso das referidas nomenclaturas.

Sem delongar a questão, a expressão organização criminosa tem sua conceituação prevista no artigo 1º, §1º, da Lei 12.850. Pela simples leitura de referido dispositivo se percebe que o legislador definiu organização criminosa precipuamente pela sua composição, organização e forma de atuação, elementos que restringem o raciocínio aqui pretendido.

Ainda, a expressão “crime organizado”, em nosso sentir, representa uma vertente enraizada quase que puramente na dogmática penal, vez que também traz uma concepção voltada basicamente à finalidade criminosa do agrupamento, assim não suprindo o campo de estudo deste trabalho.

Noutro giro, o desígnio do presente trabalho é o estudo e compreensão do grupo como fenômeno social. Isto é, analisaremos os fatores sociais e estatais que levaram ao nascimento da coligação em questão, motivo pelo qual optaremos por fazer referencia à “facção criminosa”, visto que o conjunto a ser observado difere em diversos tocantes da organização definida legalmente.

Pois bem. Posto isto, antes de adentrarmos à atual realidade brasileira no contexto das facções criminosas, cumpre destacar relevantes estudos criminológicos que justificam a criação de organizações no seio da sociedade.

Ressalva-se que não causa espanto a Criminologia, desde seus primórdios, levar em consideração a criminalidade de grupo, haja vista que na vida em sociedade é quase que inerente a junção de indivíduos para prática criminosa. Porém, cumpre relembrar que os primeiros criminologistas de destaque concediam maior atenção ao estudo individualizado do criminoso, inclusive dando mais ênfase a critérios anatômicos e genéticos do que a fatores sociais que influenciavam o comportamento do agente.

No viés da criminalidade de grupo, parece-nos que surge com a teorização inicial de maior relevância o estudo de Gabriel Tarde acerca das multidões criminosas.

O autor francês nos brinda com dois relevantes estudos acerca da delinquência de grupo levando em considerações fatores sociais de incidência, quais sejam as chamadas leis da imitação e a formação de multidões e corporações.

As leis da imitação de Tarde tem origem na diferenciação que o autor elabora acerca da conduta humana, a qual poderia ter natureza de invenção ou de imitação (Shimizu, 2011, p. 37). A corroborar: “Todos los actos importantes de la vida social eran ejecutados, según él, bajo el império del ejemplo; y el crimen no podia ser la excepción, por lo que encontraba sua causa em la imitación.” (Castro e Codino. 2013, p.113)1.

Discorre que as condutas humanas de invenção remontam aos seres primitivos, ou seja, são as condutas oriundas do início da humanização das sociedades. Uma vez inventadas, estas condutas passaram a ser imitadas.

Importante observar que quando Tarde alega que as condutas inventadas são posteriormente imitadas, não traçava a ideia de que referidos atos são idênticos. As práticas, ainda que imitadas, alteram-se com o tempo, conforme se depreende das leis da imitação que se verificarão a seguir.

No intuito de justificar o comportamento de imitação, Tarde delimitou três leis da imitação.2

A 1ª lei se dava com a proximidade psicológica entre os agentes. Diante da interação e proporção sentimental entre os indivíduos, além de outros fatores que os aproximam, há a prática semelhante de condutas. Notório que uma pessoa é influenciada pelo comportamento daquelas que a cercam e com ela mantém contato psicológico.

Ainda, Tarde fixa uma diferenciação entre contatos rápidos e desimportantes, que seriam as “modas”, e os mais lentos e relevantes, aos quais se refere como os “costumes”, (Shimizu. 2011, p. 38).

Ressalva-se que proximidade psicológica é diversa de proximidade física. Significa dizer que haverá imitação entre aqueles que possuem um contato afetivo, moral, entre outros fatores intrínsecos, e não pelo simples fatos de conviverem em um espaço físico próximo.

A 2ª lei, por sua vez, nos traz uma noção de imitação em verticalidade. Tarde afirma que nas relações sociais com estrutura verticalizada, os indivíduos que se encontram em posição inferior procuram imitar o comportamento de seu superior, seja por obrigação imposta em decorrência da hierarquia ou por simples admiração e desejo de galgar posição idêntica.

Por derradeiro, a 3ª lei dispõe acerca da inserção de comportamentos recentes no lugar de comportamentos antigos. Isto é, esta lei trata da substituição das modas e costumes antigos pelos recentes, estando a sociedade em constante mudança e evolução.

Conforme mencionado anteriormente, a ideia de imitação não pode ser interpretada no sentido de que os comportamentos serão idênticos independente do transcurso do tempo. As cadeias de imitação são, ainda que lentamente, reiteradamente alteradas, haja vista que comportamentos recentes se alocam em substituição a comportamentos passados.

Deste modo, percebe-se que Tarde traçou relevante raciocínio de compreensão acerca do comportamento social dos indivíduos de acordo com a análise do grupo em qual ele está inserido.

Ora, em atenção às três leis acima destacadas, observa-se que todas são ligadas à relações em determinados grupos que circundam o indivíduo, seja na imitação de comportamento de amigos ou familiares (1ª lei - proximidade psicológica), imitação decorrente de contato profissional ou econômico (2ª lei – relação de verticalidade) ou no tocante à evolução das “modas e costumes” presentes na vida em sociedade (3ª lei – lei da inserção).

Destarte, fazendo um paralelo com o presente trabalho, indica-se que este raciocínio pode ser transmitido para esfera criminal. Notório que a imitação de comportamento pode ser dar em decorrência de uma atividade criminosa, principalmente quando se realiza análise da influência sofrida por um agente que está envolto psicologicamente por indivíduos que possuem reiterado comportamento delitivo (1ª lei).

Com relação ao segundo estudo inicialmente mencionado, qual seja o da psicologia das multidões, interessante teoria é discutida por Tarde.

Segundo o criminologista francês, levando-se em consideração uma ideia de organização, multidão seria um grupo intermediário alocado entre o simples agrupamento de indivíduos e a corporação.

O mero agrupamento se daria pela reunião de indivíduos, entretanto sem qualquer liame subjetivo que os interligue, ou seja, sem uma relação de interdependência finalística.

Noutro giro, a multidão seria um agrupamento, ainda que temporário, cujos indivíduos detivessem uma proximidade psicológica, resultante de um sentimento e uma finalidade em comum. Tarde definiu que a proximidade psicológica característica da conversão do agrupamento em multidão se daria por conta de um fator desencadeante de relevância.

Poderia se citar como exemplo um prédio comercial que é acometido por um incêndio. Clientes e funcionários estão no local como mero agrupamento de pessoas. A partir do estopim incendiário (fator desencadeante), todos se aproximam psicologicamente em decorrência do medo da ocorrência de uma fatalidade e passam a deter o mesmo objetivo, in casu, sair ileso do local. Portanto, o que era uma simples aglomeração passa a ser uma multidão, nos termos do estudo ressaltado.

O fator desencadeante que leva à origem da multidão é de suma importância para seu futuro. Diz-se isto pelo fato de que, sendo o fator de cunho passageiro, a multidão provavelmente irá se dispersar assim que ele se esvaia. Noutro viés, diante de um fator relevante a ponto de tomar contornos de duradouro, a moda da multidão pode ser adotada como costume (conforme definição contida nas leis da imitação), sendo que o grupo acaba por atingir o terceiro estágio, qual seja a corporação.

Além do caráter duradouro, a corporação se diferencia da multidão por ser detentora de maior organização entre os indivíduos que a integram em busca de um mesmo objetivo.

Ressalta-se que a partir da formação da multidão e, posteriormente, com a consolidação da corporação, o estudo em tela define que será de grande relevância a identificação de um líder, ou condutor, para o agrupamento. Sem aprofundar a questão, a figura de liderança, neste contexto, é constituída no agente que se destaca perante os demais indivíduos do grupo, geralmente por tomar atitudes em benefício do conjunto fronte ao perigo do fator desencadeante.

Delimitadas as premissas teóricas, passa-se a seguir para tentativa de subsunção prática com nosso atual contexto criminal.


3. JUSTIFICATIVA CRIMINOLÓGICA PARA ORIGEM DAS FACÇÕES CRIMINOSAS

Neste ano, o Ministério da Justiça, através do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), pautado nos dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgou que o Brasil possuía uma população carcerária de 622.202 (seiscentos e vinte e dois mil duzentos e dois) presos.3 Soma-se a este dado a informação de que em nosso país impera um déficit de vagas no sistema penitenciário que ultrapassa os 240.000 (duzentas e quarenta mil) lugares.4

Em análise aos números supracitados, sem adentrar ao mérito das políticas criminais que levam a esta magnitude, clarividente a percepção do modo sufocante de convívio entre os presos de nosso país.

A reunião em penitenciárias deste montante de indivíduos, acrescentado da superlotação notória, torna os estabelecimentos prisionais em local de inerente aproximação psicológica entre os agentes (1ª Lei da imitação).

Atenta-se que a proximidade entre os presidiários não é apenas física. A maioria deles detém uma relação de dependência para alcance de uma convivência tolerável, bem como acabam por delinear relações de amizades e afeto, posto que convivem diariamente e, por vezes, durante anos.

No mais, a proximidade se dá em decorrência de diversos costumes e dificuldades semelhantes que os afligem, sendo as principais delas as condições e tratamento degradante e preconceituoso no interior de um estabelecimento prisional.

Nota-se, portanto, que neste estágio não se vislumbra um mero agrupamento geográfico de agentes. Tendo em vista o comportamento análogo e a mesma finalidade (melhorar as condições no cumprimento da pena ou da medida cautelar) surge a multidão, nomenclatura embasada nas definições teóricas de Gabriel Tarde.

Entretanto, sabe-se comumente que as condições precárias dos estabelecimentos prisionais não são atuais, pelo contrário, existem e persistem durante décadas. Superlotação, sujeira, ausência de camas, colchões, cobertores, atendimento médico, odontológico e psicológico precário, dentre outras circunstâncias que tornam a estrutura prisional deficiente, incidem sobre o sistema carcerário brasileiro há anos.

Destarte, por uma visão geral, consegue-se denotar que a prejudicialidade da estrutura prisional pode ser considerada como o fator desencadeante para formação da multidão carcerária, organizada e com os mesmos objetivos. Ainda, conforme raciocínio anteriormente exposto, a perpetuação das condições degradantes em âmbito penitenciário torna o fator desencadeante duradouro, sendo que a simples reclamação e objetivo inicial da multidão se consolida como costume, motivo pelo qual se alcança a corporação, terceiro estágio de agrupamento ungido pelo estudioso francês.

A visão anteriormente exposta evidentemente concerne à uma análise ampla e superficial da conjuntura carcerária. Posto isto, sob o intento de melhor exemplificar e demonstrar a viabilidade do estudo criminológico para com nossa realidade, passa-se a identificar a relação entre a teoria esboçada e a formação de uma das maiores facções criminosas da atualidade, qual seja o “Primeiro Comando da Capital” (PCC). Organização, esta, que se originou e se consolidou nas penitenciárias paulistas, mas que atualmente possui ramificações em diversos estados da federação.

Conforme outrora alegado, a precária estrutura carcerária, adicionada ao tratamento degradante sofrido pelos reclusos, seriam indicadores suficientes para caracterização do fator desencadeante necessário à formação da facção em questão (corporação, segundo Tarde).

Todavia, importante analisar dois relevantes episódios que remontam à época e que são considerados justificantes para criação da facção, sem, é claro, deixar de admitir a presença de outros fatores que contribuíram para tanto.

Conforme se extrai da obre de Bruno Shimizu (2011, p. 131):

O PCC foi gestado no interior do Centro de Readaptação Penitenciária Anexo à Casa de Custódia de Taubaté, em São Paulo. Tal estabelecimento penal ficou conhecido como “Piranhão”, sendo sabidamente um local onde os presos eram constantemente seviciados e submetidos a condições degradantes de cumprimento de pena. Diz-se que o PCC teria sido fundado em 31 de agosto de 1993, durante um jogo de futebol dos internos.

O primeiro vetor de importância a ser destacado é exatamente o estabelecimento prisional mencionado na citação acima.

O “Piranhão”, segundo Teixeira apud Shimizu (2011, p. 131) “[...] é um dos mais cruéis e obscuros presídios do sistema paulista, cuja instituição foi justificada pela suposta carência de um local para abrigar os presos ‘altamente perigosos’.”.

Conforme se percebe, o estabelecimento em tela seria o mais cruel exemplar das condições degradantes e violadoras do sistema carcerário paulista, haja vista que o local era movido com uma rigidez exorbitante, cujo instrumento de ordem mais utilizado, segundo relatos, era a tortura.

Acerca das denúncias de torturas físicas e psicológicas praticadas no local, Josmar Jozino elucida (2005, p. 24-25):

Segundo as mulheres dos presos, no Piranhão, diretores e agentes penitenciários batiam nos presos sem preocupação de esconder a fama de torturadores. Jogavam água fria em presos doentes e com febre. A comida também era péssima. A fim de aguentarem a refeição, os detentos sempre pediam limão e farinha para as visitas. Não era raro surgir um inseto em meio à comida, e não necessariamente morto.

[...]

Ainda segundo declarações das mulheres dos presos, os agentes penitenciários possuíam várias estratégias para irritar os detentos. Uma delas era acender a luz à noite, de hora em hora, para não deixar os sentenciados dormirem. Outra era não dar a descarga do banheiro dos presos. O equipamento ficava do lado de fora das celas e só funcionários podiam acessá-lo.

Finalizando, a fim de comprovar a relevância que o ambiente do referido estabelecimento prisional deteve para criação da facção em comento, bem como caracterizá-lo como fator desencadeante, cabe relutar que este é expressamente citado no “Estatuto do PCC”, inclusive com a denominação de “Campo de Concentração”. 5 Isto é, dentre os diversos estabelecimentos prisionais existentes à época, clarividente que este se torna um ícone de representação para o grupo que iria imergir.

Entretanto, outro evento de gigantesca magnitude atuou como fator desencadeante para formação do PCC, o qual também se encontra previsto expressamente no estatuto da facção.6 Trata-se do evento conhecido como “Massacre do Carandiru”, amplamente exposto na mídia e objeto de diversos livros, inclusive contando com uma obra cinematográfica a seu respeito.

O “Massacre do Carandiru” ocorreu no dia 2 de outubro de 1992, durante uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, estabelecimento integrante do Complexo do Carandiru. Sem prolongar o relato sobre o episódio, informações veiculadas remontam que no intuito de encerrar a desordem promovida pelos presos, a Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo adentrou ao estabelecimento e acabou por, sem hesitação ou observação pormenorizada da situação, matar 111 (cento e onze) detentos.

Nos termos da pesquisa de Josmar Jozino (2005, p. 31) “em 31 de agosto de 1993 nasceu o ‘Primeiro Comando da Capital’, também denominado pelos presos de ‘Partido do Crime’.”. Isto é, pouco menos de um ano após o ocorrido no Complexo do Carandiru, é criada a facção criminosa em comento.

Por óbvio, o tema aqui resumidamente exposto, seja em sua conotação teórica ou prática, poderia ter sido exaustivamente explicado e desenvolvido. Entretanto, neste início o que se pretende demonstrar é que há incontroverso fundamento teórico que elucida a criação das facções criminosas.

No caso do PCC, em especial, clarividente que os presos já se encontravam em proximidade psicológica há anos, consistindo em uma multidão, precariamente organizada, mas com a mesma finalidade.

A ocorrência dos dois eventos discorridos anteriormente, vale dizer, por parte do próprio Estado, o qual são exemplares de como os fatores desencadeantes eram duradouros perante à população carcerária, foi o estopim para transformação da multidão em corporação.

A multidão que antes pretendia lutar por melhores condições carcerárias, concluiu que precisava se unir para se fazer ouvir perante o Estado, pois somente sendo organizados e estruturados surgiriam como entidade efetivamente forte na defesa de seus interesses.

Sendo assim, ainda que em decorrência de singela análise, conclui-se que o sistema carcerário contribuiu diretamente para formação da facção criminosa destacada, bem como para com sua expansão, paralelo que certamente poderia ser realizado com outros grupos.

Por fim, admite-se que diversos outros fatores poderiam ser considerados e elencados para análise da ocorrência deste fenômeno. Entretanto, inegável o encaixe e visualização da teoria de Tarde em nossa realidade carcerária.


4. ORDENAMENTO INFORMAL DAS FACÇÕES CRIMINOSAS

Por certo, toda vida em comunidade exige um regramento, ainda que mínimo. A fonte primordial de regulamentação de comportamento é nosso ordenamento jurídico, ao qual podemos desprender a denominação de “ordenamento formal”, visto que formalizado em lei (referindo-se a esta em sentido amplo).

Todavia, certeiro que em nossa sociedade é imprescindível a elaboração de outros conjuntos de regras, os quais não recebem a característica de “formal” por não serem oriundos de criação por ente estatal.

A imprescindibilidade anteriormente levantada surge com a necessidade de criação de regras para determinados grupos que convivem em delimitado local, sendo os preceitos criados de acordo com as conjunturas que circundam o caso concreto.

Neste sentido, podemos citar como exemplo as regras de convivência entre alunos de uma escola, normas em ambiente de trabalho de certa empresa, limitações impostas pelos pais para com seus filhos na casa da família, entre diversos outros fatores. Todos estes exemplos são travestidos de informalidade, inclusive podendo ser oriundos de preceitos meramente morais do grupo que o aceita.

Posto isto, passa-se a traçar o raciocínio de acordo com nosso tema.

Desde os primórdios, têm-se a retirada e consequente agrupamento afastado como uma das matrizes principais da exclusão de indivíduos tidos como indesejáveis para a sociedade. Em Bauman apud Kazmierczak (2010, p. 46) podemos visualizar este pensamento:

O confinamento espacial, o encarceramento sob vários graus de severidade e rigor, tem sido em todas as épocas o método primordial de lidar com setores inassimiláveis da população, difíceis de controlar. Os escravos eram confinados às senzalas. Também eram isolados os leprosos, os loucos e os de etnia e religião diversas das predominantes.

Apesar das atuais políticas de desencarceramento, a política criminal não foge a esta regra, sendo que o montante da população carcerária inicialmente citado corrobora com essa afirmação. Logo, temos que os criminosos, como sujeitos indesejáveis para a sociedade, sofrem a aplicação do referido confinamento espacial, ou seja, a reclusão em determinado local de agentes que preenchem características semelhantes, no caso, reclusão oriunda de sentença condenatória ou medida cautelar.

Delimitado o grupo e o local, teoricamente caberia ao Estado a criação de regras de convivência e comportamento, inclusive com instrumentos de fiscalização e coerção para cumprimento. Ocorre que a realidade é diversa. Tamanha a magnitude da população carcerária que ao Estado resulta impossível o controle absoluto dos agentes e do sistema prisional como um todo.

Neste tocante, podemos crer que, além da atuação estatal, necessário se faz a participação e aceitação da própria população carcerária, inclusive suscitando que várias das facções angariaram tamanho poder que as permite discordar e não cumprir as ordenações do Estado.

Partindo do pressuposto que o Estado, por si só, não conseguiria controlar totalmente o sistema carcerário e sua população, abre-se a possibilidade dos próprios reclusos criarem o seu ordenamento, tido como informal. Tendo em vista que as facções controlam a maior parte da população, clarividente que restará à estas o poder e direito de criação e aplicação das suas regras.

Neste sentido elucida Shimizu (2011, p. 90):

Nessa esteira, uma vez que a instituição penal é estruturalmente incapaz de dominar completamente a massa de internos, a administração é induzida a abrir-se às lideranças informais dos presídios, negociando e fazendo concessões, a fim de manter um nível satisfatório de controle sobre a população sob sua responsabilidade.

A parte final da citação supra atinge importante crença ainda existente em nosso meio, qual seja o de que o Estado se opõe totalmente as lideranças informais advindas do seio das facções.

Em um primeiro momento, poderíamos concluir que é absolutamente infrutífero para o Estado o reconhecimento de lideranças criminosas e a aceitação das regras estipuladas por uma facção. Contudo, em que pese a criminalidade disseminada nos presídios brasileiros, é de interesse da própria população carcerária a manutenção da ordem no estabelecimento prisional. Isto é, as facções e os reclusos priorizam a convivência, dentro do possível, pacífica.

Cita-se como exemplo desta intenção das facções o próprio estatuto do “Primeiro Comando da Capital” que sem eu item 8 assim dispõe: “Os integrantes do Partido tem de dar bom exemplo, a serem seguidos. E, por isso o Partido não admite que haja: assalto, estupro e extorsão dentro do Sistema.”.

Notório, portanto, que neste ponto as intenções do Estado e da facção são convergentes, sendo que se torna altamente benéfico ao ente estatal a adição do ordenamento informal ao sistema carcerário, visto que este, por vezes, é mais eficaz para manutenção da ordem.

Outra justificativa que se propõe para criação do ordenamento das facções é que a informalidade a qual se sujeita permite a definição de direitos, deveres e anseios ilícitos, reiteradamente presentes no sistema carcerário. Significa dizer que o presidiário pode ser detentor de uma finalidade ilícita aos olhos do ordenamento formal, porém, justa e possível sob o viés do regramento informal.

Ora, pensemos no exemplo de um detento que vendeu entorpecente a outro, mas não recebeu o pagamento avençado. Por óbvio, o primeiro não tem possibilidade de reclamar a cobrança do pagamento à direção do estabelecimento. Noutro giro, certamente encontrará amparo no ordenamento informal, obtendo permissão para realizar a cobrança por intermédio da força física, se necessário.

Ademais, o sentimento de abandono que o recluso justificadamente sofre em relação ao Estado acaba por seduzi-lo a recorrer ao ordenamento informal, ainda que seu anseio seja lícito, por acreditar que aquele é eficaz quando em comparação ao formal, que se mostra lento e infrutífero.

Corroborando com este raciocínio, assim relata Shimizu (2011, p. 103-104):

A criação de regras informais tem como fatores desencadeantes, por um lado a impossibilidade estrutural de acesso às instâncias oficiais de regulação social e de efetivação de direitos que são apenas enunciados textualmente e, por outro, a necessidade premente de estabelecimento de regras que façam frente à situação de violência extrema, na qual se banalizam a dor e a morte.

Importante concluir que o ordenamento informal aplicado pelas facções acaba por indicar um vetor de atração do agente a integrar ou, ao menos, respeitar a facção criminosa, posto que há uma coação física em caso de descumprimento do mesmo, bem como reluz como a única alternativa eficaz para atingir seus objetivos.

Quanto a este segundo fator – alternativa viável para atingir seus anseios – de grande valia se faz relutar as consequências para o indivíduo que do ordenamento informal se vale.

O agente que utiliza do regramento da facção para atingir seu objetivo, seja ele lícito ou ilícito, acaba por contrair uma dívida, ainda que meramente moral, em relação ao grupo. No futuro, de alguma forma esta dívida certeiramente deverá ser paga.

A partir do momento em que o agente tem para si esta dívida, inverossímil não imaginar que ele se manterá nos quadros de integrantes da organização. Ora, sabendo que poderá ser apenado, inclusive com castigo mortal, evidente que o agente continuará integrando o grupo, inclusive se sujeitando à atuar como instrumento para consagração das finalidades daquele.

Assim sendo, percebe-se que o ciclo que se inicia com a ineficiência do Estado em controlar a população carcerária finaliza por, após toda cadeia de atos exposta, caracterizar fator relevante para que o agente integre e se mantenha no corpo da facção criminosa.


5. A PERPETUAÇÃO DOS FATORES CRIMINÓGENOS ANTE A INÉRCIA DO ESTADO

Ao início do século XIX, surge na Europa a Escola Positiva da Criminologia, a qual se consolidaria como ciência autônoma. Três foram os maiores expoentes à época, quais sejam Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garófalo.

Desde seus primórdios, um dos objetos de estudo da Criminologia fora o criminoso, buscando-se ilustrar quais seriam os fatores criminógenos (desencadeantes ou condicionantes) que levavam o agente ao comportamento delitivo.

Lombroso, autor marcante da fase antropológica, teceu estudos no sentido de que a atuação criminosa se dava em decorrência de fatores intrínsecos (endógenos) do agente, inclusive podendo o criminoso ser percebido por sua aparência física. Referido autor chegou a reconhecer a existência de fatores externos que incidiam no comportamento criminoso, porém, aferia que estes apenas propulsionavam os fatores biológicos já existentes (Penteado. 2010, p.33).

Com o desenvolvimento dos estudos criminológicos, concluiu-se que os fatores que levam ao comportamento delitivo não se restringem aos de natureza biológica, sendo inegável a existência de fatores extrínsecos atuantes neste sentido. Nesta esteira, nasce a “sociologia criminal”.

Acerca da evolução destes estudos, relatam Castro e Codino (2013, p. 111):

[...] hay uma rama que estudia la Sociedad, o Sociología Criminal, sobre la base de los que el Positivismo denomino “factores exógenos de la criminalidade”, para opornelos o asociarlos a los que denominaron “factores endógenos” o personales. Sus principales expositores fueron Ferri y Garofalo, a los que podríamos adjuntar todos aquellos ya mencionados que aportaron tesis como la influencia em la criminalidade del clima, de la família, del precio del pan, de la pobreza, de la raza, y de la inteligência.7

A conhecida Escola de Chicago foi uma relevante vertente criminológica que se prestou ao estudo pormenorizado do ambiente social como influência no comportamento criminoso, podendo aqui ser destacado a ecologia criminal que se fundou, dentre outras circunstâncias, na desorganização social oriunda da migração, imigração e próprio crescimento da cidade que dá nome a escola8.

Fato é que, atualmente, não há como se discordar da clarividente influência de diversas causas sociológicas no comportamento delitivo, restando como relevante objeto de estudo da vertente sociológica da Criminologia.

Inquestionável que os fatores desencadeantes de cunho social irão variar conforme a sociedade, país, costumes e tempo em que são analisados. O que se pretende analisar são os aspectos que atualmente incidem sobre a sociedade brasileira, levando diversas pessoas à praticarem crimes. Ademais, de elevada importância atentar-se acerca de fatores consideráveis para a repetição do comportamento criminoso, inclusive os existentes no seio do sistema prisional, vez que este é o foco do presente trabalho.

Reunindo diversos estudos, Nestor Penteado indica como fatores sociais da criminalidade: infância abandonada, pobreza, desemprego, subemprego, meios de comunicação, habitação, migração, crescimento populacional desordenado, educação, preconceito e mal vivência (2010, p. 102-108).

A fim de evitar um estudo longo e desgastante, opta-se por não esclarecer cada um dos itens citados supra, sendo alguns eventualmente desenvolvidos ao longo do capítulo, conforme a necessidade para com o objetivo deste. Porém, apenas por visualização superficial podemos perceber claramente que todos eles são de inegavelmente contribuição para eventual comportamento criminoso, bem como estão presentes em nossa sociedade.

Ainda que em análise sumária, percebe-se que vários dos fatores desencadeantes guardam relação entre si e com atuações precárias por parte do Estado.

Dados do ano de 2015 indicam que, no Brasil, 4,9% da população vive em situação de pobreza extrema9. Veja-se que este montante se refere à pobreza extremada, sabendo-se que a parcela populacional que se encontra em dificuldades financeiras, fator relevante para o estudo criminológico, certamente se encontra em patamares superiores.

Referidas dificuldades evidentemente guardam relação com outros fatores criminógenos, como o desemprego, subemprego, habitação, migração, crescimento populacional desorganizado e educação.

Ora, por vezes o desemprego ou o subemprego (“bicos”) são causas da pobreza do agente. Esta, pode ser causa da migração para outras áreas do país, em busca de melhores condições de vida, fator este que, por sua vez, contribui para o crescimento populacional desordenado em determinadas regiões e condições desfavoráveis de moradia, como o surgimento de favelas e guetos.

Por fim, a pobreza pode ser visualizada como causa e consequência de uma educação deficiente. Causa porque a família pobre não dificilmente opta por ter seus filhos empregados, gerando renda, ao invés de estarem estudando. Consequência pelo motivo de que com déficit de educação, a colocação no mercado de trabalho e consequente angariação de renda se vê dificultada.

Deste modo, percebe-se que a ineficácia de políticas públicas assistenciais, habitacionais, educacionais, entre outras atuações deficientes do Estado, contribuem diretamente para o surgimento e perpetuação de fatores desencadeantes da criminalidade em nosso país.

Neste ponto, importante relutar que não se pretende dizer que a pobreza é causa proeminente da criminalidade, haja vista a indiscutível gama de pessoas estruturadas financeiramente que praticam crimes e tantas outras que se inserem no conceito social de pobreza e nunca praticaram qualquer infração penal. O raciocínio apenas se porta à demonstrar que esta, bem como outras circunstâncias, acaba por fomentar o ingresso de pessoas na criminalidade.

Em análise aos números divulgados pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), corroborando com o raciocínio explanado, Kazmierczak traça interessante perfil predominante no sistema carcerário brasileiro (2010, p. 112-113):

Verifica-se que a população carcerária é composta por pessoas jovens, negros ou pardos, e de baixa escolaridade, que cometem, em sua maioria, crimes patrimoniais ou tráfico de drogas. Repita-se, não defende-se que a falta de condições sociais é condição para se adentrar à criminalidade, mas que esta acaba por impulsionar ou fomentar seu ingresso diante da ausência de condições mínimas de vida digna, oportunidade de ascensão social e emprego. Tudo isso se aplica a questão de reincidência criminal, pois a ausência destas condições acaba por provocar o retorno à criminalidade. (grifo nosso)

A parte destacada da transcrição supra suscita ponto de destaque no estudo dos fatores condicionantes da criminalidade, uma vez que os fatores elencados não somente contribuem para a entrada do agente ao mundo do crime, mas também pela reiteração de seus atos delituosos, fazendo com que este se mantenha na criminalidade.

Ademais, rememora-se a ausência de assistência estatal ao egresso, fazendo com que este se encontre totalmente desamparado ao retornar ao convívio social, fator que contribui inteiramente para reincidência em atos criminosos, haja vista a despreparo intelectual e profissional da maioria e o preconceito social inegavelmente existente.

Adentrando ao teor deste trabalho, importa salutar acerca da existência de fatores desencadeantes no interior do sistema prisional, afinal, não se pode negar que a população carcerária, com suas peculiaridades e principalmente pelo montante de pessoas que atualmente abarca, não seja compatível com um conceito abrangente de sociedade. Vai-se além, procura-se discutir a existência de fatores que não somente contribuem para o agente manter seu traço criminoso, mas aprofundar sua vivência prisional integrando uma facção criminosa.

Afim de ilustrar praticamente como as facções criminosas tomaram corpo muito pela ineficácia estatal em relação a políticas carcerárias mínimas de dignidade, volta-se a utilizar como exemplo o “Primeiro Comando da Capital”.

Os membros da facção em tela repetidamente expuseram que os principais objetivos do grupo eram a melhoria das condições dos estabelecimentos prisionais e a cessação das práticas violentas por parte de agentes do Estado, obviamente com diversas reivindicações paralelas e circunstanciais.

Sabe-se notoriamente que as condições nos estabelecimentos prisionais de nosso país são, há muito, ultrajantes à dignidade e integridade dos prisioneiros. A superlotação carcerária culmina em diversos setores deficientes em âmbito penitenciário.

Falta de leitos suficientes, produtos de higiene pessoal, vestuário, cobertores, assistência médica e odontológica, convívio com animais transmissores de doenças, sujeira e mal cheiro disseminados, entre outros fatores, tornam o ambiente carcerário em local inabitável.

Ainda, a precária assistência jurídica prestada mancha um dos maiores interesses da população carcerária, qual seja a ciência acerca da sua situação processual e a obtenção da liberdade por intermédio de benefício legal.

Neste sentido, quando da “megarrebelião”10 no ano de 2001, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello assim se manifestou:

O Estado é o grande devedor nessa área. Não é de hoje que não vem cumprindo os dispositivos constitucionais que o obrigam a assegurar o respeito à integridade física e moral dos presos e a prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. (Jozino, 2005, p. 86).

Clarividente que poderiam ser destacadas outras circunstâncias que depreciam a estada prisional dos agentes. Porém, os fatores citados nos possibilita visualizar o notório cenário e sensação de abandono que vivem os nossos presidiários. Ao adentrar ao sistema carcerário, o indivíduo conclui rapidamente que, estando ali, será desprezado pelo Estado. Após, provavelmente desprezado pela sociedade. Logo, parece-nos evidente a gama de fatores desencadeantes correlacionados a deficiente política penitenciária brasileira.

Neste cenário de total desamparo e de dificuldades que terão que ser enfrentadas durantes anos, surge a figura da facção criminosa que “controla a penitenciária”. Entidade forte, rica, protetora de seus integrantes, procedendo a diversas reivindicações de melhorias para o local e preocupada com a condição do recluso.

Há diversos informes que demonstram que o “PCC” atua de modo a amparar e suprir as necessidades, inclusive financeiras, dos reclusos e de sua família.

Conforme relata Josmar Jozino (2005, p. 57):

Parte do dinheiro o PCC usava como uma espécie de fundo de solidariedade. Eram comprados mantimentos para as famílias carentes de detentos, ou eram adquiridos alimentos, remédios e cobertores para os próprios presos. As mulheres indicadas pelos fundadores do Partido do Crime se encarregavam de fazer o ‘recolhe’ – arrecadação de dinheiro junto aos presidiários e egressos financeiramente mais estruturados -, a fim de que fossem distribuídas cestas básicas às pessoas mais pobres ligadas ao sistema prisional.

Ora, vejamos o cenário que surge para o detento: de um lado o Estado que lhe parece pouco preocupado em ampará-lo e alterar as condições ali existentes; de outro a facção, forte combatente e protetora da população carcerária e de suas famílias.

Parece-nos lógico que o contexto prisional de hoje exerce forte influência, ainda que subjetiva, para que o agente ingresse na facção criminosa, pois nela ele deposita suas esperanças de alcançar melhorias ou de, ao menos, manter-se seguro em sua integridade física e vida.

Em seu estudo, segue Jozino (2005, p. 112):

Por causa da falta de assistência médica, morosidade no acompanhamento jurídico dos processos e outros direitos não respeitados, os presos deixavam de acreditar no sistema prisional e depositavam cada vez mais suas esperanças no Primeiro Comando da Capital.

Nesta esteira, percebe-se que a situação carcerária atual é um claro incentivo para que os indivíduos sejam integrantes ou ao menos simpatizantes das facções criminosas.

Importante elucidar que neste âmbito atrativo não estão inseridos somente agentes do sexo masculino, mas também mulheres, geralmente integrantes da população carcerária feminina ou companheiras de algum membro da facção. Inclusive, a maior facção paulista tem constituído um setor feminino de integrantes, organizado com estrutura hierárquica e divisão de funções.

Referido autor, em obra acerca das mulheres que integram a facção criminosa em tela, discorre (2008, p. 87):

As irmãs do PCC exercem cargo de piloto nas cadeias. Elas tentam resolver os problemas e os conflitos internos. Também podem liderar rebeliões e decidir se alguma rival vai ou não morrer. [...] Mas a principal e mais importante função das chefes do Comando Feminino do PCC é zelar pela ordem ou disciplina nas prisões.

[...]

Nas ruas, o PCC também tem um grupo de mulheres batizadas. Elas são minorias. Cuidam ainda da parte assistencial, como entregas de remédios e cestas básicas para as famílias dos presos. Também distribuem presentes para os filhos dos detentos.

No caso do estado de São Paulo, o “PCC” não somente impõe suas regras na maioria dos estabelecimentos prisionais, como pratica ações de modo a suprir diversas necessidades da população carcerária, muitas destas que deveriam ser preenchidas pelo Estado. Além disso, o recluso se vê protegido quando da integração na facção, estando ao lado de agentes poderosos dentro do sistema.

Por derradeiro, conforme as citações anteriormente transcritas, ressalta-se que a facção que comanda os presídios paulistas não atua tão somente perante a população carcerária. Há diversas ações de caráter assistencial que tem como alvo a família do recluso.

Percebe-se que integrar e se submeter aos mandamentos da facção surge como uma opção viável para o preso, posto que neste sentido estará protegido em âmbito carcerário, terá determinados benefícios que não conseguiria alcançar sem o apoio da facção, bem como consegue de alguma forma amparar a sua família que, por vezes, está sujeita a necessidades financeiras.

Notório que as ações da facção surgem como forma de captação de novos integrantes, fator, este, que corrobora com sua expansão e consolidação no sistema carcerário brasileiro.

Conclui-se que a ineficiência e desestrutura estatal em diversos setores sociais acaba por fazer surgir diversos fatores criminógenos que contribuem para o início de uma “carreira” criminosa de diversos agentes. Ainda, vislumbra-se que o ciclo aí não se encerra, vez que os fatores continuam presentes durante e após o cumprimento da pena, colaborando com o elevado número de reincidência atualmente existe.

Outrossim, a inércia estatal não somente acarreta em fatores desencadeantes de cunho social, como também em condicionantes presentes no interior do sistema carcerário pátrio, fazendo com que o indivíduo não somente inicie e mantenha sua atuação delinquente, mas também, por vezes, acabe por integrar uma facção criminosa. Associação, esta, que toma contornos de irretratabilidade, inclusive sob pena de morte.


6. CONCLUSÕES

É desanimador a realidade vivida pelos presidiários dentro dos cárceres brasileiros. A precariedade enfrentada por estes é de tamanha proporção que faz com que vivam em uma condição desumana, sendo imprescindível a existência de comportamentos sociais de reivindicações, com finalidade de se alcançar melhores condições de vida durante o cumprimento da pena.

Ao transpormos a teoria das leis da imitação de Gabriel Tarde para realidade dos presídios brasileiros, observamos que os presidiários acabam sendo interligados por esses comportamentos sociais entre si e devido aos fatores que os influenciam histórica e diariamente dentro do meio em que estão submetidos, a organização grupal é inevitável.

Dessas organizações entre os presidiários que nascem as facções criminosas, e acabam por criar suas próprias normas informais, as quais acabam por regrar o comportamento no interior dos presídios, inclusive com resquício de benefício para o Estado, sem prejuízo de se oportunizar condições de vida mais digna aos presidiários.

Desta forma, inconteste o ciclo que se fecha no interim deste tema. A sociedade e Estado são grandes mantenedores de diversos fatores desencadeantes da criminalidade. Porém, estes não se esgotam apenas em meio social livre, como se manifestam de forma clarividente no interior do sistema prisional, tornando-o ambiente motivacional à reincidência criminosa.

A precariedade carcerária, cumulada à inércia estatal para com os agentes que nela residem, ainda origina outros fatores condicionantes, quais sejam os que levam o agente a buscar o preenchimento de seus anseios e necessidades nas facções criminosas. Fato, este, que nos leva a duas conclusões capitais: a prestação deficiente de serviços básicos por parte do Estado colabora diretamente para que os agentes integrem as facções criminosas, o que, por sua vez, contribui para a ampliação e perpetuação do poderio das organizações nos presídios brasileiros e em nossa sociedade.

Por fim, importante relutar que o combate às facções criminosas somente será efetivo quando extrapolar a mera utilização do Direito Penal, com estipulações emergenciais quase que totalmente no sentido de maior coibição e punição. O problema de grupos desta natureza merece atenção e, principalmente, atuação sociológica e criminológica, sem prejuízo de outras ciências que visem a colaborar com sua resolução.


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Notas

1 Tradução livre pelos autores: “Todos os atos importantes da vida social eram executados, segundo ele, a partir do imperativo do exemplo; e o crime não podia ser a exceção, pois encontrava sua causa na imitação”.

2 Acerca das leis de imitação: Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. 2012, p. 83.

3 Matéria datada de 26/04/2016, acessada em 24/05/2016. Conteúdo completo disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-04/mais-de-40-mil-presos-entraram-na-populacao-carceraria-brasileira

4 Informações publicadas em junho de 2015. Matéria disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/numero-de-presos-dobra-em-10-anos-e-passa-dos-600-mil-no-pais.html

5 Item 11 do “Estatuto do PCC”: “O Primeiro Comando da Capital – PCC – fundado no ano de 1993, numa luta descomunal, incansável contra a opressão e as injustiças do Campo de Concentração, ‘anexo’ à casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, tem como lema absoluto ‘a Liberdade, a Justiça e a Paz’.”.

6 Item 13: “Temos de permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 2 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre esse que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. [...].”.

7 Tradução livre pelos autores: “há um ramo que estuda a Sociedade, ou Sociologia Criminal, com base no que o Positivismo denominou “fatores exógenos da criminalidade”, para opô-los ou associa-los ao que denominaram “fatores endógenos” ou pessoais. Seus principais expositores foram Ferri e Garofalo, aos quais poderíamos juntar todos aqueles já mencionados que apontaram teses como a influência na criminalidade do clima, da família, do preço do pão, da pobreza, da raça e da inteligência.”

8 Para um estudo detalhado da ecologia criminal: Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. 2012, p. 146.

9 Dados publicados pelo Banco Mundial. Matéria completa disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151009_reducao_pobreza_banco_mundial_ac_lgb

10 O evento conhecido por megarrebelião, ocorrido no dia 18 de fevereiro de 2001, restou caracterizado pela revolta simultânea de presos em vinte e nove penitenciárias do Estado de São Paulo. Notícia completa disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121461.shtml


Abstract: This scientific essay will do a criminological analysis about mass criminality, identifying existing theoretical justifications for grouping agents facing the criminal practice. It is intended to transfer the theoretical study to practical field of our society, making an approach about the origin of criminal factions in our prison system. Moreover, we will bring theoretical and practical documents in proof not only for the creation of factions, but also to prepare its informal system, including acceptance pleasure state. We will get in the study of exogenous factors of crime, through the customarily cited by doctrine and existing within the Brazilian population, but with special emphasis on the perceived triggers in our prison system, which arise from notorious indifference of the State in protecting the prison, attempting to show that directly contribute to and recurrence and to expansion and perpetuation of criminal factions.

Key Words: Criminology. Exogenous Factors Crime. Criminal Factions. Law of Imitation.


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