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A interferência do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde

os riscos de uma atuação não planejada e casuística

A interferência do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde: os riscos de uma atuação não planejada e casuística

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Não é de hoje que o conflito entre o mínimo existencial e a reserva do possível permeia o cenário jurídico pátrio e é semente de várias reflexões: será que a vida de um único ser humano, apenas porque recorreu ao Judiciário, justifica o sacrifício de milhares que não adotaram idêntica providência?

CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS

A Constituição Federal de 1988, ao reconhecer a saúde como direito social ao lado da educação, da alimentação, do trabalho, da moradia, do lazer, da segurança, da previdência social, da proteção à maternidade e à infância e da assistência aos desamparados (CF, art. 6º), assegurando o acesso universal a tal direito (CF, art. 196), rompeu com o histórico constitucional brasileiro de atendimento limitado à população no tocante às demandas de saúde, erguendo um modelo de acesso universal aos procedimentos preventivos e curativos de moléstias a serem integralmente custeados pelo Estado, quando demandado por qualquer cidadão, independentemente das condições econômicas que ostentar[1].

A regulamentação, pelas Leis nº 8.080/1990 e 8.142/1990, do Sistema Único de Saúde - SUS, previsto no artigo 198 da Constituição Federal, exauriu os argumentos daqueles que sustentavam ser o direito à saúde mera norma programática, cuja concretização reclamava que atos normativos infraconstitucionais fossem editados.

Exaurida a discussão a respeito do caráter programático do direito à saúde, começou a se esboçar o problema relativo aos custos vinculados à concretização de tal direito, uma vez que as demandas da população na área de saúde são crescentes, em especial quando se leva em consideração o avanço científico que resulta na produção de drogas e tratamentos mais dispendiosos e eficientes, sendo tal quadro confrontado com as limitações orçamentárias existentes para fazer frente aos anseios da população em torno das políticas de saúde pública.

Nesse contexto, os argumentos econômicos buscaram abrigo na teoria da “reserva do possível”, gestada no Tribunal Constitucional da Alemanha, segundo a qual a concretização dos direitos prestacionais, demandantes de uma intervenção ativa do Estado, deve observar as limitações de recursos estatais, de forma que o direito almejado pelo particular ou pela sociedade somente pode ser outorgado dentro dos limites do orçamento disponível.

Embora se tenha procurado contrabalançar o argumento da reserva do possível com a garantia de um mínimo existencial, tal conceito, em razão de sua fluidez, não vem se mostrando satisfatório quando se discute a concretização de direitos prestacionais. É que há grande dificuldade em se definir, no caso concreto, os parâmetros de atendimento do mínimo existencial, uma vez que ele não pode ser compreendido apenas como o necessário para manter a pessoa viva, vestida e alimentada, pois as necessidades do ser humano evoluem juntamente com a sociedade, de forma que o mínimo necessário para se viver dignamente na atualidade, difere do que se exigia, por exemplo, há cinquenta anos.

Diante das controvérsias surgidas em face das crescentes demandas da população em torno de serviços públicos de saúde e das limitações orçamentárias existentes, o Poder Judiciário vem sendo chamado para resolver controvérsias individuais em torno da concretização do direito à saúde. Isso, ao invés de resolver o problema de acesso aos serviços de saúde pública, tem muitas vezes agravado o quadro, uma vez que os recursos existentes são redirecionados para o atendimento de uma demanda individual específica, deixando, por consequência, de ser utilizado para atender a um número maior de necessitados, pois existe uma íntima relação, de natureza funcional, entre a intervenção judicial e as dificuldades de concretização de políticas públicas de saúde previstas nos orçamentos anuais dos diversos entes da federação[2].

As decisões judiciais prolatadas em demandas individuais de saúde, não raras vezes, assumem extremos não recomendados, reconhecendo o direito à saúde como absoluto e por consequência hábil a legitimar qualquer pleito de medicamento ou tratamento, independentemente dos custos envolvidos ou de qualquer questionamento a respeito da eficácia da medida para o quadro clínico do demandante ou,  no outro extremo, a prestação jurisdicional outorgada se nega a efetivar qualquer interferência na gestão do sistema de saúde, albergada no argumento de que se deve respeitar a separação dos poderes.

É necessário, portanto, buscar elementos dentro do próprio texto constitucional que garantam o acesso ao Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV) e a concretização do direito ao usufruto de serviços públicos de saúde de qualidade, sem descurar das limitações financeiras existentes. O Constituinte de 1988 deixou claro os caminhos a serem trilhados para isso, em especial quando se referiu ao acesso universal e igualitário aos serviços de saúde pública (CF, art. 196), o que já coloca em xeque a concessão de qualquer medida judicial que outorgue medicamentos ou tratamentos que, por suas características e custos, não possam ser universalizados dentro do sistema de saúde pública. 

Assim, soluções jurídicas existem e podem ser encontradas dentro do ordenamento jurídico, sem a necessidade de respaldo em qualquer medida extrema que ponha em risco a concretização do direito social à saúde, bem como sem a necessidade de buscar fundamentação em conceitos imprecisos, como o mínimo existencial, cuja definição prática traz mais problemas do que soluções.

Portanto, é necessário identificar formas de concretização do direito à saúde sem incorrer no discurso fácil e muitas vezes irresponsável da existência de um direito absoluto, sem consideração no tocante aos custos financeiros e consequências sociais que isso envolve, podendo ensejar a implosão do próprio sistema.

Com isso, nas linhas seguintes, procuraremos delimitar a problemática que envolve o tema proposto, bem como tentaremos propor algumas formas de tratamento para tão complexa matéria.


1. A SAÚDE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

O Constitucionalismo Liberal, que começou a se consolidar após a Revolução Francesa de 1789, não ofertava ao direito à saúde qualquer relevância, uma vez que a intenção dos seus teóricos se restringia a garantir a construção em favor do homem de um ambiente de liberdade plena no qual ele pudesse disponibilizar a sua força de trabalho para quem tivesse condições econômicas de adquiri-la. Assim, o conceito de bem estar coletivo se circunscrevia ao exercício do direito de liberdade, sendo que as necessidades de cada cidadão deveriam ser por ele providas na medida em que dispusesse de recursos financeiros para isso.

Nesse contexto, a preocupação dos teóricos do liberalismo clássico (Locke, Montesquieu, Rousseau, etc.), vinculava-se exclusivamente em assegurar uma liberdade formal para o homem, sem qualquer preocupação com direitos de natureza social que pudessem assegurar seu bem estar.

A saúde, como direito de natureza prestacional, que reclama uma intervenção positiva do Estado em favor daqueles que dela necessitam, somente ganhou espaço após a segunda metade do século XX, em especial depois da Segunda Guerra Mundial, quando as atrocidades ocorridas durante o conflito levaram a humanidade a refletir a respeito da necessidade de implementação do espírito de solidariedade já proclamado durante a Revolução Francesa, mas que não havia deixado de ser apenas um conceito vazio até então.

É nesse contexto que, após a Declaração dos Direito do Homem de 1948, o direito à saúde, em seu aspecto positivo, foi expressamente mencionado no artigo 12 do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas – ONU, servindo de inspiração para que o direito à saúde fosse incorporado aos textos constitucionais de cada Estado-membro da ONU.

 Silva (2002, p. 308), noticia que a Constituição Italiana foi “a primeira a reconhecer a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da coletividade (art. 32)”, sendo acompanhada pela Constituição Portuguesa, tendo essa lhe outorgado “uma formulação universal mais precisa (art. 64)”. Informa, ainda, o aludido autor que o direito fundamental à saúde também mereceu referência na mesma época na Constituição espanhola e na da Guatemala.

No Brasil, como lembra Silva (2002, p. 307), embora o tema relacionado ao direito à saúde não fosse estranho ao Direito Constitucional, era visto como uma genérica obrigação de proteção à saúde, imposta à União sendo que, a partir da análise do arcabouço normativo na época vigente, constatava-se que isso tinha mais um sentido de “organização administrativa de combate às endemias e epidemias”, do que garantia de um efetivo direito fundamental do homem, tal como foi consagrado pela Constituição de 1988.

É a Carta de 1988 que, já em seu artigo 6º, alça o direito à saúde à categoria de fundamental, delineando melhor as suas características nos artigos 196 a 200.

A promulgação da Constituição de 1988, com a consagração do direito à saúde como fundamental, exigindo, por consequência do Estado a assunção de um papel ativo em sua garantia, mediante a concessão de prestações, tal como reclama os direitos de natureza social, criou um ambiente fértil para uma melhor compreensão dos direitos fundamentais, dentre os quais o direito à saúde. Não se trata agora apenas de proclamar a existência de um direito, como se compreendia no Constitucionalismo Clássico. Ao contrário, passa-se a reclamar do Estado, e também da sociedade, a adoção de posturas destinadas à concretização de tais direitos, a fim de que eles não sejam em meras promessas, desprovidas de efetividade.

Bonavides (1999), com o seu Curso de Direito Constitucional, teve um papel pioneiro e de destaque nessa nova compreensão dos direitos fundamentais, ao apresentar em sua obra, com precisão, a evolução histórica dos direitos de cunho prestacional. Lançou, ainda, bases sólidas para a edificação de uma nova hermenêutica dos direitos fundamentais, voltada à garantia de sua real efetividade. Com isso, ofertou alicerce doutrinário para a interpretação dos direitos fundamentais com foco em sua concretização, legando um papel de destaque ao princípio da proporcionalidade, imprescindível na compreensão das dimensões do direito à saúde que nos propomos a abordar.

Mendes (2007), por sua vez, destacou a eficácia dos direitos fundamentais, classificando-os de acordo com a postura do Estado na prestação de tais direitos, sem descurar do papel que os cidadãos também devem assumir em face do Estado a fim de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais. Com isso, disseminou-se no Brasil a compreensão da eficácia dos direitos fundamentais em seus aspectos vertical e horizontal.

 Sarlet (2001) também contribuiu com a aplicabilidade dos direitos fundamentais, construindo uma compreensão teórica de tais direitos partindo de uma definição conceitual aprofundada deles. Assim, aquilo que para alguns era visto como meras promessas ou ideais nas declarações de direitos do Constitucionalismo Clássico, passou a ser visto como direitos reais, hábeis a serem prontamente reclamados do Estado pelos cidadãos. Em relação ao direito à saúde, leciona Sarlet (2001, p. 49, 170 e 189) que se trata de um direito fundamental de segunda dimensão, que outorga ao indivíduo direitos a prestações positivas aptas a serem exigidas do Estado, que deve, em razão disso, assumir uma postura ativa, a fim de colocar à disposição dos indivíduos “prestações de natureza jurídica e material”.

Logo, atualmente não mais se questiona, dentro do sistema constitucional brasileiro, que a saúde é um direito do cidadão passível de ser reclamado em face do Estado, que deve assumir uma postura ativa voltada à sua concretização. No entanto, como todo direito de natureza prestacional, ofertar saúde pública de cunho universal envolve custos que precisam ser devidamente considerados, a fim de que não seja criado o mito da existência de um direito absoluto que na prática não poderá ser assegurado por incapacidade financeira do Estado.


2 A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E OS CUSTOS QUE TAL PROVIDÊNCIA ENVOLVE

Ao se compreender os direitos fundamentais como dotados de plena eficácia, capazes de serem reclamados do Estado, que deve assumir uma posição ativa em relação a eles, passou-se, concomitantemente a se discutir os custos da implementação de tais direitos, considerando as limitações orçamentárias padecidas por cada Estado, pois como é lembrado por Holmes e Sunstein (2000), os direitos, quaisquer que sejam eles, não são gratuitos, demandando recursos para a sua implementação e manutenção.

 No tocante à saúde, o que se vem buscando, a partir da sua constitucionalização, é a construção de parâmetros que lhe deem concretude de forma universal e igualitária, sem colocar em risco o equilíbrio financeiro do Estado, pois os custos de sua implementação como direito prestacional são, não raras vezes, bastante elevados consoante advertiu Galdino (2005).

Sarlet e Figueiredo (2010), por exemplo, buscaram estabelecer parâmetros mínimos para o atendimento de demandas judiciais relacionadas à saúde, já que em face da escassez de recursos do Estado, a concretização do direito à saúde vem sendo cada vez mais levada ao Judiciário brasileiro. Este, por seu turno, diante do despreparo de muitos juízes para enfrentar o tema, coloca em risco a própria eficácia universal e igualitária deste direito, tal como pretendido pelo Constituinte de 1988.

Dessa forma, um direito que deve ser concretizado mediante a adoção de postura de cunho universalista pelo Estado, vem sendo objeto de uma crescente intervenção do Judiciário mediante a apreciação de demandas individuais, criando a necessidade de parâmetros de julgamento, o que foi defendido, dentre outros, por Brito (2012)  e Lima (2010), pois os juízes não podem elastecer, por meio de uma ação interpretativa, o campo de alcance de um direito, agindo como se legislador fosse, na expressão de Cappelletti (1999), sob pena de inviabilizá-lo, dada a impossibilidade do Estado em arcar com os seus custos.

A importância de cada direito precisa ser devidamente reconhecida, como bem sustentou Dworkin (2007), em obra que já se tornou clássica. Isso demanda, por outro lado, responsabilidade de quem aplica a norma jurídica, pois sob o discurso da proteção irrestrita do direito, pode-se criar sérios óbices à sua implementação por falta de recursos financeiros.

Respeitar um direito significa não apenas identificar a sua existência no ordenamento jurídico. É necessário interpretar o alcance que o legislador a ele pretendeu ofertar, dentro das limitações financeiras do Estado, pois os custos de sua implementação se encontram umbilicalmente vinculados à própria existência do direito.

Desconsiderar o aspecto econômico do direito, ainda mais em se tratando daqueles que reclamam uma intervenção positiva do Estado, significa criar um discurso demagógico, sem compromisso com a sua efetividade, pois ainda que as necessidades em torno da prestação sejam infinitas, os recursos para custeá-la e a capacidade contributiva dos cidadãos sempre serão limitados.


3  A INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E OS CUSTOS ENVOLVIDOS

Os avanços tecnológicos envolvendo o tratamento de moléstias é impressionante. A cada ano, novas drogas e tratamentos são descobertos. O que era moderno em termos de assistência à saúde é facilmente suplantado por novas iniciativas neste campo. No entanto, os avanços tecnológicos envolvendo a assistência à saúde tem um custo e eles, em geral, são bastante elevados.

A Constituição Federal de 1988, ao assegurar, em seu artigo 196, a saúde como um direito de todos e dever do Estado, ensejou a institucionalização de um quadro preocupante. Refiro-me a forma de intervenção do Judiciário voltada, supostamente, a concretização desse direito à saúde, que vem sendo tratado como absoluto.

Com isso, sob a complacência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, surgem, diariamente, decisões judiciais assegurando tratamentos médicos ou a concessão de medicamentos que, em função do valor, não tem nenhuma condição de serem universalizados no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Trata-se, na verdade, do atendimento de pretensões isoladas, que não levam em consideração as políticas de planejamento desenvolvidas pelos órgãos legalmente encarregados de implementarem as políticas de saúde pública no Brasil.

O magistrado, quando diante de um caso isolado, impressiona-se com o apelo emotivo que ele, no geral, envolve, sem, por outro lado, mensurar as consequências de sua intervenção, que pode significar um remanejamento de recursos que poderiam salvar a vida de inúmeras pessoas, que serão, em razão disso, sacrificadas para atender a pretensão do agente que acionou o Judiciário.

Uma breve exposição numérica expõe a dimensão do problema.

Segundo dados do Governo Federal mencionados por Rosa (2012), se todas as demandas de saúde atualmente em tramitação contra a União Federal forem atendidas, será necessário o dispêndio da considerável quantia de R$ 393 milhões de reais, o que corresponde a quatro por cento do orçamento total do Ministério da Saúde para o ano de 2014, fixado em cerca de R$ 106 bilhões de reais.

Têm-se, portanto, um quadro no qual todo o planejamento dos órgãos executores do orçamento federal da saúde é desconsiderado, com prejuízo para o atendimento de todos os usuários do SUS.

Nesse contexto, é necessário que se leve em consideração um determinado ponto de direito financeiro: os orçamentos não são formulados com o planejamento de sobras, uma vez que não existe a figura da lucratividade do Estado. Os orçamentos públicos são vinculados especificamente ao montante das despesas que a eles se encontram vinculadas. Portanto, não existe mágica. Se uma parcela do orçamento é remanejada sem prévio planejamento, despesas que se encontravam vinculadas a ela ficarão a descoberto e precisarão deixar de ser executadas, caso não ocorra uma suplementação.

Com isso, se houver se concretizado a estimativa da União do montante necessário ao atendimento das demandas de saúde, quatro por cento das ações do Ministério da Saúde planejadas para o exercício de 2014 precisaram deixar de ser executadas. Com isso, programas de imunização foram prejudicados, leitos hospitalares podem ter sido desativados, medicamentos voltados ao atendimento de inúmeros cidadãos carentes talvez deixaram de ser fornecidos.

O drama individual presente na demanda levada ao Judiciário oculta o sofrimento de milhões de cidadãos que ficarão sem atendimento, caso o juiz avalie apenas as peculiaridades do caso concreto, sem considerar as macro implicações oriundas de sua decisão.

Ao discorrer a respeito dos custos envolvendo o tratamento judicial das demandas de saúde, Neves (2013), menciona, dentre outros, um caso levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal pelo Município de Tubarão, por meio da Petição nº 36.033/2012, apresentada nos autos do Recurso Extraordinário nº 566.471/RN, Rel. Min. Marco Aurélio. Segundo ele narra, os gastos municipais previstos no orçamento para o ano de 2012 vinculados ao atendimento da farmácia básica, foram fixados em cerca de novecentos e setenta e um mil reais, enquanto os dispêndios do Município em apreço, para o atendimento de demandas judiciais no mesmo exercício, movida por aproximadamente seiscentos munícipes, ultrapassava a cifra de novecentos e setenta e cinco mil reais.

Há, portanto, uma clara irracionalidade na aplicação do direito à saúde. Ele vem sendo tratado como absoluto sendo, por meio dele, assegurável o acesso a qualquer medicamento ou tratamento médico, independente dos custos envolvidos. Essa interpretação, conforme já mencionou Neves (2013), não tem paralelo em qualquer lugar do mundo. Por mais rico que seja o país, nenhum deles assegura aos seus cidadãos o acesso a todo e qualquer recurso médico, sem preocupação com o montante de recursos necessários para isso.

A intervenção do Judiciário, sob o argumento de concretização do direito à saúde, tem conduzido a um claro paradoxo. De um lado, ele tem assegurado tratamentos de custos elevados, muitas vezes no exterior, que nenhum país ou plano de saúde no mundo asseguraria, enquanto tem fechado os olhos para os milhões de brasileiros que padecem diariamente nas filas dos hospitais à espera de uma simples consulta médica ou de acesso a um leito de UTI.

Será que a vida de um, apenas porque recorreu ao Judiciário, justifica o sacrifício de milhares, que não adotaram idêntica providência? Que direito absoluto e este que salva um e permite que milhares pereçam? Enquanto o Judiciário não tiver condições de se postar de forma coerente diante desse paradoxo, ele nada tem a comemorar no que se refere aos efeitos de sua atuação nas demandas de saúde.

Um argumento que sempre é colocado quando essa problemática é enfrentada indica que há um enorme desperdício de recursos públicos com ações não essenciais, como a publicidade governamental, custeio de entretenimento ou corrupção. No entanto, se todos esses pontos fossem equacionados e se todo o orçamento do Estado fosse destinado ao custeio de ações de saúde, ainda assim não se poderia garantir, para uma população de mais de duzentos milhões de habitantes, o acesso a saúde pública como um direito absoluto, tal como inúmeras decisões judiciais vem afirmando. Logo, o argumento é falacioso e não soluciona as questões postas.

3.1 O CASO SOPHIA

Dentre os diversos casos que são noticiados na imprensa, no que se refere a pleitos individuais de tutela do direito à saúde, um caso foi bastante noticiado no primeiro semestre de 2014. Trata-se da situação dramática vivenciada por Sophia Gonçalves de Lacerda, com menos de um ano de vida na ocasião, portadora de uma moléstia rara conhecida como Síndrome de Berdon ou Síndrome Microcólon, Megabexiga e Hipoperistalse (MMIHS).

Tal doença impossibilita o seu portador de se alimentar de forma convencional, uma vez que o seu aparelho digestivo é bastante comprometido. A solução médica apontada para uma possível cura demanda a realização de um transplante multivisceral, por meio do qual o paciente recebe de doadores as partes faltantes ou comprometidas do aparelho digestivo, o que pode viabilizar uma normalização de suas funções.

A realização do transplante multivisceral é um procedimento médico bastante complexo, não havendo notícias de que tenha sido realizado com êxito no Brasil até o início do ano de 2014.

Os genitores da paciente tomaram conhecimento de que o transplante multivisceral já foi realizado de forma exitosa no Jackson Memorial Medical localizado nos Estados Unidos da América, tendo os procedimentos sido conduzidos pela equipe liderada por um médico brasileiro chamado Rodrigo Vianna. Segundo informações de tal profissional, o índice de sobrevivência dos pacientes submetidos ao transplante em consideração alcança índices entre cinquenta e cinco e setenta e cinco por cento. O custo do procedimento alcança a cifra de aproximadamente um milhão de dólares americanos.

A existência de uma perspectiva de cura para a moléstia padecida pela pequena  Sophia motivou o ajuizamento, por seus pais, de uma demanda na Justiça Federal[3] na qual se pleiteou que a União fosse compelida a custear todo o tratamento da paciente, bem como os encargos administrativos para o traslado dela e de um acompanhante para os Estados Unidos da América, assim como os custos de estadia durante o período em que ela precisaria aguardar, em solo americano, o aparecimento de um doador que, segundo a instituição médica, gira em torno de seis meses.

Tendo o pedido de antecipação de tutela sido deferido parcialmente pelo juízo de primeiro grau, no sentido de que a paciente fosse submetida ao procedimento médico reclamado no Hospital das Clínicas vinculado à Universidade de São Paulo, a requerente, por meio dos seus representantes, ingressou com um recurso de agravo de instrumento[4] junto ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, distribuído ao Desembargador Federal Marcio Moraes que, em decisão de 15 de abril de 2014[5], negou a transferência imediata da autora para os Estados Unidos da América, tal como pretendido, tendo determinado  a remoção dela para o Hospital das Clínicas em São Paulo que havia informado, nos autos do processo, possuir condições técnicas para a realização do transplante multivisceral.

Efetivada a remoção da autora para o Hospital das Clínicas, segundo informações que foram trazidas aos autos processuais pela equipe médica encarregada de cuidar da paciente, os seus pais não permitiram que a criança fosse, sequer, tocada pelos médicos para realização precisa do diagnóstico da moléstia, sendo a equipe, inclusive, tratada de forma agressiva pela mãe da paciente, conforme ficou documentado na Decisão datada de 27 de maio de 2014[6].

Nessa mesma data, diante da situação narrada pela equipe médica, a antecipação de tutela foi deferida pelo relator, nos termos pretendidos inicialmente pela paciente na pessoa dos seus representes, com a determinação da imediata transferência dela para ser submetida ao tratamento pretendido junto ao Jackson Memorial Medical, localizado em Miami, nos Estados Unidos da América, com a obrigação da União Federal de arcar com todos os custos vinculados ao cumprimento integral da decisão.


4 O JUIZ, A EMOÇÃO E AS DEMANDAS ENVOLVENDO O DIREITO À SAÚDE

Apesar do caso da pequena Sophia Gonçalves de Lacerda não ser isolado, ele se presta para nos conduzir a algumas reflexões. O drama da paciente levado ao conhecimento do Judiciário de forma individualizada, não possibilita ao julgador apreciar, com isenção, os efeitos da decisão que irá tomar. A carga emocional que envolve tais processos é bastante acentuada. Ali se encontra um juiz que, como ser humano, sente-se envolvido pelo sofrimento que a situação representa e não quer se sentir responsável pelo eventual desfecho trágico que uma apreciação mais cautelosa da situação poderá ensejar.

Nos casos envolvendo a tutela do direito à saúde, em especial nas situações extremas, o juiz normalmente age compelido pela emoção. Como não dispõe de conhecimentos técnicos e geralmente é apresentado pelo demandante um relatório médico que sinaliza como única alternativa de cura ou de sobrevida para o paciente o tratamento ou medicamento indicado, o juiz não costuma levar em consideração os custos, muitas vezes acentuado, do procedimento médico requerido e tende a deferir a antecipação de tutela, tratando o direito à saúde de forma absoluta. Quando confrontado com os custos desse direito erigido ao patamar de absoluto, costuma se valer de argumentos estereotipados, como a existência de corrupção na gestão dos recursos estatais, aplicação de verbas em atividades que considera não essenciais como propaganda e outros similares.

A tranquilidade de consciência que o juiz pensa alcançar ao acobertar um direito à saúde de cunho absoluto, não se importando com os custos envolvidos em sua decisão, é falsa. Os recursos financeiros do Estado não são infinitos e a capacidade contributiva dos cidadãos é limitada. Logo, é evidente que não há a possibilidade real do Estado acompanhar integralmente todos os avanços da medicina, garantindo a todos, indistintamente, o acesso a qualquer medicamento ou tratamento, mesmo aqueles em fase experimental e sem preocupação com os seus custos.

Essa realidade não existe. A decisão do juiz que pensa estar assegurando a vida daquele paciente, cujo drama chegou ao seu conhecimento por meio de uma demanda individual, pode significar a morte de diversos outros pacientes que perecerão porque os recursos que poderiam ter-lhe salvo a vida foram utilizados, muitas vezes, para custear uma aventura experimental destinada, supostamente, a garantir a vida de uma pessoa.

Por mais chocante que a realidade seja, a tentativa de salvar a vida de Sophia, pode ter significado a morte de muitos anônimos, por falta de um leito hospitalar, de uma cirurgia cardíaca de rotina e outros procedimentos médicos menos complexos e mais eficazes.

A gestão do sistema de saúde envolve um planejamento complexo. Com o orçamento disponível, os gestores avaliam quais os procedimentos voltados ao atendimento do maior número possível de pessoas poderão ser custeados dentro do exercício financeiro. Ações preventivas são delineadas. Procedimentos curativos são avaliados e, após isso, chega-se à conclusão a respeito da forma mais adequada de investimento nas ações de saúde pública. Quando o juiz, sem conhecimento do conjunto do sistema público de saúde, começa a interferir na forma de alocação dos recursos disponíveis, com a finalidade de atendimento das pretensões de um indivíduo, ele cria dificuldades gerenciais em todo o sistema, de forma que os gestores precisarão, para custear a despesa não planejada, efetivar um remanejamento de recursos, o que pode levar a implosão de todo o planejamento anteriormente delineado.

Com a interferência do Judiciário por meio das demandas individualizadas voltadas à tutela do direito à saúde, a gestão dos recursos públicos alocados para o atendimento delas entra num contexto de casuísmo, no qual os que acessam o Poder Judiciário são privilegiados com ações de saúde que não teriam garantidas em qualquer lugar do mundo, enquanto os recursos utilizados para isso podem ser a causa da morte de inúmeros outros que não tiveram tal privilégio e que necessitam de terapias mais simples e eficazes.

Assim, é necessário que o juiz leve em consideração que aquele drama presente nos autos levado a sua apreciação não é único e nem maior do que outros vivenciados por anônimos. Os casos que chegam ao Judiciário são, não raras vezes, encabeçados por incluídos socialmente, que têm acesso a bons advogados e possuem planos de saúde particulares que, dada a peculiaridade do tratamento ou medicamento almejado, não são cobertos por esses planos. Com isso, retira-se recursos que poderiam ser utilizados na atenção básica de saúde, por anônimos que padecem miseravelmente longe da visão do julgador, para atender a um caso em particular.

A insistência numa proteção absoluta ao direito à saúde, tal como vem sendo do sustentada pelo Judiciário brasileiro, pode contribuir para que esse direito exista apenas para poucos, em detrimento de todos os demais cidadãos que, em decorrência dos recursos insuficientes e indevidamente remanejados pelo Judiciário, não terão acesso a ações básicas de assistência à saúde.


5  SAÚDE: A DIFERENÇA ENTRE O DIREITO UNIVERSAL E O ABSOLUTO

A Constituição Federal de 1988 assegurou, em seu artigo 196, que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (destaquei)”.

Do dispositivo constitucional acima transcrito, é possível se extrair que a saúde, como direito de natureza prestacional garantido pelo Constituinte de 1988 a todos os brasileiros, bem como aos estrangeiros residentes no Brasil, nos termos do artigo 5º, caput, da Constituição Federal, possui as seguintes características: a) sua garantia se dará mediante políticas sociais e econômicas voltadas a prevenção de doenças, primordialmente; b) os acessos aos serviços de promoção, proteção e restabelecimento da saúde deverá ser promovido com a observância do acesso universal e igualitário.

Como bem ponderou Holmes e Sunstein (2000), todos os direitos possuem custos, ainda que não estejam vinculados a prestação estatais voltadas a um cidadão em especial. No entanto, quando se trata de direitos de natureza prestacional, os valores envolvidos para assegurar a implementação prática de tal direito são ainda mais acentuados, uma vez que, no geral, não é possível assegurar o usufruto de tal direito de forma coletiva e indeterminada.

Cada cidadão, candidato ao usufruto do direito de natureza prestacional, possui necessidades específicas, que colidem com as restrições financeiras padecidas pelo próprio Estado, que, dada a limitação da capacidade contributiva dos seus cidadãos, não tem condições de atender, de forma ilimitada, a todas as expectativas de prestações materiais almejadas individualmente.

É preciso, portanto, adequar os limites da prestação material a ser ofertada a cada cidadão às disponibilidades orçamentárias do Estado, evitando que o incremento na disponibilidade material de uma prestação em favor de determinado indivíduo prejudique o acesso dos demais a prestações de idêntica natureza. Isso, doutrinariamente, já foi chamado como necessidade de observação da “reserva do possível”, compreendida como os limites financeiros de que o Estado dispõe para atender às prestações de natureza material.

Com relação ao direito à saúde, a Constituição deixou claro que tal direito deverá ser prestado, de forma universal e igualitária. Isso significa dizer que as prestações vinculadas a tal direito devem ser disponibilizadas a todos os indivíduos que dela necessitarem, devendo o acesso ser concretizado em condições de plena igualdade.

O Judiciário brasileiro, no entanto, ao interpretar a saúde como direito de todos e a garantia de acesso universal a tal direito, atribuiu a ele o significado de absoluto, compreendendo que todo e qualquer medicamento ou tratamento do qual o indivíduo vier a necessitar, deve ser custeado integralmente pelo Estado, sem  consideração com os custos a ele vinculados, sob o inconsistente argumento de que ao se garantir a saúde independente das considerações vinculadas aos custos do direito, estar-se-á, na verdade, resguardando o direito a vida que não pode subsistir dissociado da saúde.

O argumento de que a vida é um direito absoluto e, como a saúde encontra-se vinculado a ele, também o passa a ser, é inválido. Isso porque o Constituinte de 1988 não atribuiu a qualquer direito, por mais fundamental que seja, a característica de “absoluto”. Se a vida é o direito fundamental base, em torno do qual todos os direitos fundamentais gravitam, nem ele mesmo goza da garantia de ser intocável - haja vista que, pelo menos no caso de guerra declarada, a Constituição prevê a possibilidade de aplicação da pena de morte (CF, art. 5º, XLVII, “a”) – como a saúde poderia ser?  

Os avanços da medicina são constantes e as moléstias são submetidas a novos e mais eficazes tratamentos a cada dia. No entanto, os custos de acesso a tratamentos de última geração muitas vezes são enormes, de sorte que nenhum Estado, por mais bem aquinhoado que seja, teria condições de disponibilizar a todos os seus cidadãos o acesso irrestrito a qualquer avanço da medicina. Deve-se levar em consideração que os direitos de natureza prestacional demandam recursos e esses não são ilimitados.

Ao agir movido pela emoção e, tendo em consideração apenas o caso que lhe foi submetido, é mais cômodo para o julgador atender ao pleito de medicamento ou tratamento almejado sem levar em consideração as implicações que a sua decisão terá na gestão do sistema público de saúde. Concedendo a prestação, o julgador aplaca a sua consciência, uma vez que imagina que o indivíduo terá acesso a todos os recursos médicos disponíveis que poderão lhe dar esperanças de cura para a sua moléstia ou garantia de sobrevida. No entanto, é preciso se pensar nas pessoas que morrerão ou deixarão de ter atendimento básico em decorrência dos efeitos financeiros de tal decisão.

É que as ações de saúde são planejadas anualmente, com base nos recursos disponíveis. Ao se levar em consideração o orçamento vinculado à saúde, o gestor delimita quais serão as ações preventivas e curativas que poderão ser disponibilizadas de forma universal e igualitária a todos os cidadãos que vierem a delas necessitar. Ao introduzir nessa equação o casuísmo do Judiciário na apreciação de demandas individuais, o planejamento da aplicação dos recursos é prejudicado, impondo aos gestores do sistema público efetivar adaptações, mediante a supressão de medidas planejadas anteriormente, a fim de atender a ordem judicial voltada ao atendimento de um indivíduo em particular.

Como se não bastasse os prejuízos para o planejamento e execução das ações de saúde que o casuísmo das demandas individuais voltadas à garantia do direito à saúde provoca, é preciso se considerar também que um outro valor muito caro estabelecido no artigo 196 da Constituição Federal é desconsiderado, qual seja, o acesso igualitário às ações e serviços de saúde pública.

Quando se demanda um tratamento ou medicamento de alto custo, cujo fornecimento não foi planejado no âmbito do sistema público de saúde, o indivíduo, de certa forma, está pleiteando que o seu direito de acesso a saúde não se encontra em condições de igualdade com os demais. Ele é superior e deve ser garantido até os limites das promessas que a medicina oferta para o seu caso, independente dos custos envolvido, uma vez que a sua saúde é um direito absoluto e deve ser garantido sem quaisquer limites de cunho financeiro, pois é até mesmo incompatível com a moral limitar as suas esperanças de vida em razão de uma suposta escassez de recursos, agindo dessa forma como o ser egoísta, que considera apenas o seu direito sem levar em consideração os demais, tal como alertou Marx (2010, p. 48)[7].

 Se o juiz aceita argumento acima, ele adota uma postura de incompatibilidade com o artigo 196 da Constituição Federal, pois, em última instância, não há condições de universalizar, no âmbito do sistema, por exemplo, um tratamento de alto custo prestado no exterior, disponibilizando-o, de forma potencial, a todos os cidadãos. Logo, se não existe a garantia em potencial a todos que venham a necessitar do tratamento concedido ao demandante, é evidente que a igualdade almejada pelo Constituinte foi ferida ou mesmo aniquilada.

Julgar demandas envolvendo o direito à saúde, dada as limitações de recursos disponíveis para o atendimento às prestações, implica fazer, o que doutrina vem denominando como “escolhas trágicas”. O juiz, por mais que se sensibilize com a situação em particular do indivíduo que reclama a prestação de saúde, deve levar em consideração que existem anônimos, não raras vezes mais humildes e desassistidos do que aquela parte, que perecerão em decorrência dos reflexos de sua decisão, de sorte que não será possível acalmar a sua consciência, mesmo que conceda ao requerente a oportunidade de, muitas vezes, submeter-se a uma aventura médica de custo financeiro elevado, na esperança de adiar ao máximo o único destino certo para o qual o homem caminha desde o seu primeiro dia de vida.

Portanto, a saúde, como todos os direitos, não é absoluto e se submete às balizas delimitadas pela Constituição e a um quadro de recursos financeiros escassos, de forma que a sua concretização deve ser efetivada com a observância das disponibilidades orçamentárias do Estado, a quem compete tabular procedimentos e terapias médicas que, de acordo com os recursos disponíveis, possam ser ofertados, em condições de igualdade, a todos os indivíduos que venham a necessitar.


6 ALGUMAS BALIZAS PARA APRECIAÇÃO JUDICIAL DE DEMANDAS ENVOLVENDO O DIREITO À SAÚDE

A apreciação judicial de demandas envolvendo o direito à saúde não pode ser conduzida por fatores emocionais, atrelados ao drama individual posto no processo. É que a situação posta não é única e, geralmente, não é mais grave do que outras que não chegaram ao conhecimento do julgador. É importante que o juiz leve em consideração o efeito sistêmico que a sua decisão terá, ou seja, é importante que ele considere que em se tratando de questões envolvendo necessidades que se alargam em face de recursos escassos, não há como sua decisão não ter reflexos na gestão do sistema público de saúde.

Diante dessa problemática, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, propomos quatro parâmetros[8] que podem ser utilizados pelos juízes quando da apreciação de demandas envolvendo o direito à saúde, de forma a não deixar o direito sem proteção, observadas, todavia, as balizas que a própria Constituição Federal delimitou.

Inicialmente, entendemos que apenas as ações de saúde que puderem, dentro dos limites orçamentários, serem ofertadas a todos os cidadãos que delas necessitarem sem colocar em xeque os limites do orçamento vinculado à saúde, poderão ser concedidas judicialmente. Isso decorre diretamente do artigo 196 da Constituição Federal, que prevê a saúde como direito de todos e dever Estado, cujo acesso deve ser universal e igualitário.

Não é possível que o Judiciário seja utilizado como fonte de criação de privilégios dentro do sistema público de saúde. É sabido que o orçamento vinculado à saúde é objeto de planejamento no tocante a sua destinação. Logo, se ocorre a interferência do Judiciário de forma casuística, é evidente que todo o trabalho de planejamento no que se refere à aplicação dos recursos públicos será prejudicado e, por extensão, toda a coletividade.

O argumento de que o Judiciário, ao interferir na gestão orçamentária da saúde no âmbito de demandas individuais, está contribuindo para a concretização do direito à saúde, parece-nos bastante questionável. Não vemos como se possa concretizar um direito, concedendo-o a um indivíduo em detrimento de outros que serão prejudicados. Isso porque, como não se trabalha em direito financeiro com a noção de excedente, pois todos os recursos do orçamento já são previamente alocados, é evidente que a utilização de uma parcela destes recursos ao alvedrio do que foi planejado previamente pelos gestores da saúde pública, implicará em prejuízo para uma ou algumas das ações planejadas, em detrimento dos indivíduos que por meio dela seriam beneficiados.

Assim, não se concretiza direitos retirando-os de um grupo de beneficiários para entregar a outro, não raras vezes menor do que o conjunto que anteriormente seria assistido pela ação de saúde que não mais poderá ser executada em sua integralidade.

Como decorrência do que estamos sustentando, entendemos que uma outra baliza a ser observada pelo julgador ao apreciar demandas envolvendo o direito à saúde deve ser não obrigar os gestores do Sistema Único de Saúde- SUS a fornecer medicamento ou procedimento preventivo/curativo que não tenha sido previamente incorporado no planejamento do SUS, mediante, por exemplo, previsão na relação de medicamentos de dispensação gratuita aos usuários do sistema.

Em nossa visão, a inclusão de novo medicamento ou procedimento de custeio gratuito pelo SUS por interferência do Judiciário somente deve ser admitida no âmbito de demanda coletiva, que viabilize, em caso de procedência do pedido, o atendimento a todos os que vierem a necessitar, viabilizando o prévio planejamento do custeio, de forma a não privilegiar apenas a um indivíduo em detrimento da coletividade.

Caso se admita que o Judiciário possa determinar o custeio pelo SUS de medicamento ou procedimento que não tenha sido objeto de planejamento prévio para efeitos de dispensação gratuita, o que não consideramos adequado, entendemos que, pelo menos, não se pode admitir que o juiz determine que o SUS custei medicamento com marca previamente indicada por profissional de saúde, quando existir genérico que o substitua de forma eficaz ou sem registro prévio junto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.

Assim, caso o juiz entenda que é cabível a concessão de ordem judicial determinando ao SUS que arque com os custos de medicamento ou procedimento sem previsão de dispensação gratuita, deve, pelo menos, procurar onerar o menos possível o planejamento da gestão do sistema público, evitando a concessão de medicamento de marca, beneficiando com a sua decisão um fabricante específico ou determinando a concessão de terapia cuja segurança e eficácia ainda não foi aferida pelo órgão estatal competente.

Por fim, defendemos que o julgador jamais deve determinar o custeio pelo sistema público de saúde de tratamento médico no exterior. Isso porque, como o direito à saúde, assim como todos os direitos sociais, estão vinculados aos limites da disponibilidade orçamentária, o sistema público de saúde não está obrigado a custear toda e qualquer terapia que ofereça promessa de cura ou sobrevida ao indivíduo. Isso nenhum sistema público de saúde o faz, por mais rico que seja o país. Logo, admitir esse nível de interferência do Judiciário na gestão do sistema de saúde pública chega a ser, no mínimo, temerária. 

Quando o SUS é obrigado de redirecionar do seu escasso orçamento milhares ou milhões de reais para atender a um cidadão, o prejuízo para a coletividade é evidente. Num ambiente de escassez de recursos, o administrador encontra-se, muitas vezes, diante da necessidade de efetivar escolhas trágicas, ou seja, é necessário negar um atendimento especifico a um demandante, a fim de que um número maior de indivíduos, com perspectivas de cura ou sobrevida maiores do que ele, sejam atendidos.

Por mais que essa visão pareça ser dura, não se deve esquecer que os recursos para o custeio das ações de saúde não são ilimitados. Logo, no mundo dos fatos, a falta de disponibilidade financeira para o atendimento das necessidades de todos é uma realidade, de sorte que a gestão deve privilegiar as situações em que o maior número possível de usuários do sistema público de saúde possam ser alcançados e se deve privilegiar o atendimento das situações que tenham maiores perspectivas de êxito.

Dessa forma, assim como não é razoável se defender que pelo fato de a Constituição Federal assegurar os direitos sociais à moradia ou ao trabalho, por exemplo, o Estado deve ser obrigado a custear uma moradia ou assegurar uma vaga de trabalho para todos os necessitados, independentemente das disponibilidades de recursos financeiros para tal finalidade, da mesma forma não se pode sustentar que o Estado está obrigado a custear toda e qualquer promessa de cura para um paciente em especial, ainda que se trate de uma terapia experimental ou realizada no exterior, possibilitando que os escassos recursos públicos sejam utilizados para atender aos anseios do egoísmo humano, que somente enxerga as suas necessidades, sem qualquer consideração com os demais.

Portanto, insistimos: o sistema deve ser de atendimento universal e igualitário, sem espaço para privilégios. No entanto, o que se verifica, não raras vezes no cotidiano forense é que alguns demandantes começam os seus tratamentos no sistema privado de saúde. Mas, quando algum medicamento ou procedimento de alto custo é recomendando para o tratamento de sua moléstia, recorrem imediatamente ao Judiciário, reclamando o seu custeio pelo SUS, em detrimento dos menos afortunados que pleitearam, desde o início, o seu atendimento pelo serviço público, submetendo-se a espera por uma consulta inicial, ao agendamento de exames, encaminhamento a um especialista e outros percalços que os usuários integrais do SUS muitas vezes precisam enfrentar.

Logo, o Judiciário tem como papel assegurar direitos e não promover privilégios, tal como se tem verificado, infelizmente, na apreciação de demandas envolvendo o direito a saúde. Isso porque, sem qualquer respaldo constitucional, muitos julgadores vêm interpretando tal direito como absoluto, de forma a se considerar imoral qualquer ponderação relativa aos seus custos. Assim, observar balizas que garantam equidade na apreciação de demandas envolvendo o direito à saúde se mostra como um caminho a ser trilhado, de forma assegurar a eficácia, em sua integralidade, ao que o Constituinte de 1988 pretendeu.


CONCLUSÃO

O direito à saúde, tal como previsto na Constituição Federal de 1988, não é absoluto. A sua concretização deve ser conduzida com base na observância da equidade e na garantia de acesso universal às ações disponibilizadas gratuitamente pelo Estado. A interferência do Poder Judiciário, no âmbito do casuísmo das demandas individuais, não contribui para a sua concretização de forma justa. Ao contrário, ao não levar em consideração o planejamento das ações efetivadas pelos gestores, o Judiciário termina por aprofundar iniquidades dentro do sistema público de saúde, causando prejuízos para a coletividade.

Ao se deparar com uma demanda envolvendo o direito à saúde, o juiz deve ter a cautela de não se deixar conduzir pela emoção, pois a sua intenção de garantir o acesso a todas as promessas que a medicina disponibiliza para um determinado caso, como forma de garantir uma esperança de cura ou sobrevida para um indivíduo, pode significar o perecimento de inúmeros outros anônimos, cujo drama silencioso não chegou ao conhecimento do julgador.

Diante dessa problemática, e como forma de contribuir para a sua discussão, propomos no presente trabalho quatro balizas que podem nortear o julgador ao apreciar as demandas individuais envolvendo o direito a saúde, quais sejam: a) apenas terapias que puderem ser ofertadas, de forma universal, a todos que delas vierem a necessitar, ou seja, que tenham sido objeto de prévio planejamento pelos gestores do SUS, poderão ser outorgadas em demandas individuais; b) a inclusão judicial de terapia para fins de dispensação gratuita pelo SUS somente deve ocorrer em sede de ação coletiva; c) não se deve conceder judicialmente terapia médica experimental ou desprovida de registro no órgão de controle nacional competente; d) jamais se deve obrigar o custeio, pelo sistema público de saúde, de  tratamento no exterior.

Com isso, sustentamos que o direito à saúde deve ser concretizado de forma tão ampla quanto possibilitarem os recursos disponíveis para o seu custeio, privilegiando-se o planejamento prévio realizado pelos gestores do sistema público de saúde, sob pena de o casuísmo das demandas individuais crescentes inviabilizarem o sistema, deixando desassistidos os mais necessitados.


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Notas

[1] Aguiar (2011, p. 17-40), apresenta um histórico da evolução da forma de tratamento da saúde ao longo da história brasileira. Destaca, por exemplo, que, desde o período colonial até meados do século XX, existiu uma clara cisão entre os serviços privados de saúde atrelados à medicina liberal, destinados a pequena parcela da população de maior poder aquisitivo, enquanto os demais cidadãos não tinham acesso a qualquer assistência à saúde, exceto quando prestada por instituições de caridade, normalmente vinculadas à Igreja Católica. A atuação do Estado, na maior parte das vezes, era voltada, apenas, ao controle das epidemias que rotineiramente atacavam a população, não havendo qualquer garantia de saúde como um direito a ser postulado em face do Estado. O Ministério da Saúde, por exemplo, somente foi criado como pasta independente em 1953, haja vista que, até aquele momento, as ações de saúde eram conduzidas pelo Ministério da Educação. 

[2] Pode-se dizer, pelo aspecto do funcionalismo, que diversas dificuldades de execução de políticas públicas de saúde estão vinculadas às interferências do Poder Judiciário na execução orçamentária, em decorrência de demandas individuais (BARROS e LEHFELD, 2012, p. 52).

[3] Trata-se da Ação tombada sob o nº 0001778-95.2014.4.03.6110, distribuída ao Juízo da 3ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Sorocaba, interior do estado de São Paulo.

[4] Tombado sob o nº 0008474-47.2014.4.03.0000.

[5] Publicada na Edição nº 73/2014, de 24/04/2014, do Diário Eletrônico da Justiça Federal da 3ª Região.

[6] Publicada na Edição nº 97/2014, de 29/05/2014, do Diário Eletrônico da Justiça Federal da 3ª Região.

[7] “(...) os assim chamados direitos humanos, os droits de l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são dos os direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade (negrito não consta do original).”

[8] O Conselho Nacional de Justiça realizou, em maio de 2014, a I Jornada de Direito da Saúde, oportunidade em que foram aprovados quarenta e cinco enunciados destinados a orientar os julgadores na apreciação das demandas envolvendo o direito à saúde. No entanto, entendemos que aquelas que tratam da  saúde pública (as dezenove primeiras), ainda são norteadas pela equivocada visão de que o direito à saúde é absoluto, não havendo nelas uma consideração consistente no tocante ao problema do casuísmo das demandas individuais, bem como aos danos coletivos decorrentes de uma crescente interferência do Judiciário na alocação dos recursos destinados à saúde pública, sem qualquer planejamento prévio e sem preocupação com os efeitos decorrentes dessa atuação.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques de. A interferência do Poder Judiciário na concretização do direito à saúde: os riscos de uma atuação não planejada e casuística. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5089, 7 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58277. Acesso em: 26 abr. 2024.