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O Estado em juízo e a denunciação à lide de agente público

O Estado em juízo e a denunciação à lide de agente público

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INTRODUÇÃO

O tema escolhido para ser objeto deste breve trabalho é tormentoso, em razão de abarcar dois institutos que se fazem presentes em ramos do direito que, no mais das vezes, não se comunicam. A denunciação da lide, elemento eminentemente processual, afeto às regras de atuação da jurisdição e a responsabilidade civil do Estado, matéria de direito administrativo que, por isso mesmo, possui normas próprias de atuação, divergindo sempre da regra geral imposta ao particular.

Assim, se se pretende discorrer acerca da possibilidade da pessoa jurídica de direito público, demandada judicialmente, denunciar à lide o agente causador do dano, é preciso enfrentar os elementos antes vistos isoladamente, dentro de um único contexto. Neste momento, quando se busca a resposta definitiva, é que surgem as divergências.

E desta dissonância surgiu o nosso interesse pelo tema, que só se fortificou a medida em que ousávamos desbrava-lo. As vacilações jurisprudenciais, os embates doutrinários, a falta de conclusão adequada para as questões mais intrigantes, nos levaram a discorrer brevemente sobre os pontos mais relevantes da matéria, sempre considerando a prática forense.


BREVE HISTÓRICO

A denunciação da lide é instituto recente no direito processual brasileiro, embora já existissem traços superficiais do modelo que se tem hoje e que podem ser encontrados desde a edição do Código Comercial e do Regulamento nº 737, que dispôs sobre o processo das causas comerciais e que tratava do chamamento à autoria, nos artigos 111 a 117, sob o nome de "Autoria".

Mais recentemente, e desconsiderando as importantes evoluções históricas impulsionadas pela doutrina, o Código de Processo Civil de 1939 tratou do tema ao disciplinar a "Intervenção de Terceiros", mantendo, todavia, a expressão "chamamento à autoria", que seria o ato pelo qual, aquele que demandava ou que era demandado acerca das coisas ou direito real, fazia notificar ou citar a pessoa de quem tivesse havido a coisa ou o direito real, para que viesse a assumir a defesa. c.f. Aroldo Plínio Gonçalves, Da Denunciação da Lide 2ª edição, ed. Forense, 1987, Rio de Janeiro, p. 119. Não havia outros casos no Código de 1939.

Só com o Código de 1973, instituído pela nº 5.868 de 11 de janeiro daquele ano, é que o chamamento à autoria deixa de existir com esse nome e, porque não, passa a abarcar novas possibilidades além da mais adequada conceituação, qual seja, denunciação da lide.

Segundo doutrina de Aroldo Plínio (p. 127), passou a ser, pois, o instituto através do qual o denunciante propõe contra o denunciado ação de regresso de forma eventual ou condicionada à sucumbência na demanda originária. Na hipótese de ocorrer a sucumbência do denunciante na ação originária, haverá o pronunciamento sobre as duas causas em uma única sentença.

Para o professor WILLIAN COUTO GONÇALVES (Intervenção de Terceiros, ed. Del Rey, BH, 1997, 1ª ed.), a DENUNCIAÇÃO "é o instituto de que dispõe a parte figurante da relação processual, ativa ou passiva, para fazer direito seu perante terceiro, a fim de garantir-se da reparação do prejuízo que da evicção, ou de uma relação jurídica, tornada patológica, prejudicial ao sujeito denunciante, pode resultar".

De qualquer sorte, o que se busca com a denunciação da lide é a garantia de efetividade do comando sentencial que deverá, de uma só vez, declarar, conforme o caso, o direito do evicto, ou a responsabilidade por perdas e danos, valendo como título executivo, como que se extrai do artigo 76 do Código de Processo Civil.

Assim, o terceiro (denunciado) é chamado para responder pela garantia do negócio jurídico firmado com o denunciante caso este reste vencido na demanda, o que faz surgir uma ação secundária e conexa, cujo mérito deverá ser apreciado simultaneamente com o julgamento da ação principal.

É, pois, verdadeira ação de regresso proposta antecipadamente, já que o denunciante não está imune às conseqüências advindas de eventual sentença desfavorável. Aliás, o risco de prejuízo é, verdadeiramente, o elemento essencial capaz de conferir à parte o acesso ao referido instituto, na medida em que pretende se resguardar na pessoa de um garante.

Inobstante a amplitude do tema, este breve trabalho fará alvo de análise mais detida a hipótese prevista no artigo 70, inciso III do Código de Processo Civil, que reza:

Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:

I –

II –

III – àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda.

Na verdade, não se trata de resumir a dimensão do debate. A hipótese prevista neste inciso abarca, necessariamente, todas as outras descritas nos itens anteriores do mesmo cânon, sendo mesmo desnecessárias em face da previsão genérica contida neste inciso III.

É impossível não perceber os incisos I e II do artigo 70 da CPC, quando da leitura do último tópico. Ao meu sentir, tanto no caso de evicção quanto no caso do proprietário ou possuidor indireto, é patente a natureza indenizatória advinda de lei ou de contrato que, se aqui não se mostram como palavras sinônimas, também exaurem qualquer outra possibilidade de obrigatoriedade de reparação.


RESPONSABILIDADE CIVIL

Tratar do tema não é tarefa fácil, em razão das inúmeras definições que a expressão responsabilidade pode receber, sobremaneira se se emprega-la dentro da ciência jurídica que, como não seria diferente neste caso, tratou de concebe-la dentro das mais diversas acepções.

Mas não é só no campo jurídico que a palavra ganha importância. A responsabilidade é elemento que excede as raias do Direito e atinge os mais comezinhos atos do relacionamento humano, da moral, da religião, dos costumes.

Todavia, o que nos interessa verdadeiramente é o enfrentamento do tema sob a égide da violação, da infração, da inobservância de norma jurídica válida, e as conseqüências desta atividade em face do agente causador e daquele que sofreu a reprimenda ou a lesão. E neste particular, valorosa é a lição do mestre JOSÉ DE AGUIAR DIAS (Da Responsabilidade Civil, Vol. I, 9ª edição, ed. Forense, 1994, Rio de Janeiro, p.3) que, citando as lições de G. MARTON, autor da obra Lês fondements de la responsabilité civile, Paris, 1938, nº97, p.304, define responsabilidade como "a situação de quem, tendo violado uma norma qualquer, se vê exposto às conseqüências desagradáveis decorrentes dessa violação, traduzidas em medidas que a autoridade encarregada de velar pela observação do preceito lhe imponha, providências essas que podem, ou não, estar previstas".

Não se quer dizer, à evidência, que a visão "jurisdicionada" que se quer empregar isola em campo estranho os elementos adrede mencionados, como a moral e os costumes. Muito ao contrário, é certo que pode haver ofensas de ordem eminentemente jurídica que, inobstante, atingem, v.g., a moral.

Mas atingem a moral jurídica, não da norma, diga-se, mas do bem juridicamente tutelado.

É quando nasce, pois, a obrigação de reparar o dano causado ao bem jurídico protegido por lei, como fator de desestímulo ao mal causador de insegurança jurídica e social, investindo, por conseguinte, no desenvolvimento razoável da sociedade em razão da presença repressiva e preventiva do Estado em suas mais amplas acepções.

Assim também o é em relação ao mesmo Estado, personificado como ente soberano, supremo, mas que se submete e submete os seus membros às leis que edita. Se é assim, se o Estado deve se curvar aos mandamentos legais, é certo que está sujeito a reparação dos danos que causar a terceiros, devolvendo-os indenes ao estado quo ante.

Hoje, não mais albergado pela regra the king can not do wrong ou le roi ne peut mal faire, o Estado passou a ser, como de certo sempre foi, e isto apesar de eloqüentes manifestações, atingido pelas regras de responsabilidade civil na medida em que, por ser sujeito apto a exercer direitos e impor sanções, pode ser alvo de obrigações e, por via oblíqua, sofrer sanções pelo descumprimento de suas obrigações ou pelo dano que, na pessoa de seus agentes, cometer.

Não se pretende reavivar a teoria da culpa indireta, quando o Estado se torna responsável pelos atos causados por seus representantes que, como já sugeriram, não representam a vontade estatal quando da prática do ato ilícito ou do ato lícito lesivo. Ora, o agente não representa o Estado, porque o é em sua plenitude, em que pese a redação do artigo 15 do Código Civil brasileiro, parcialmente derrogado, penso, pelo § 6º do artigo 37 da Carta Política. Não fosse assim, quem seria o Soberano? Neste ponto, ousamos discordar do mestre Aguiar Dias (op. Cit. P. 559), para quem "devemos interpretar a condição da qualidade de representante como significativa de que o representante agiu em função da representação".

De qualquer sorte, é o Estado responsável pelos atos promovidos por seus agentes que, nessa qualidade, causarem a terceiros. E a qualidade de agente ou, como prevê o Código Civil, de representante estatal é conceito relevante para a apuração da responsabilidade do ente jurídico de direito público – que é o que nos interessa – em face do resultado danoso ocasionado pelo ato ilícito e, inclusive, lícito patrocinado por servidor.

Guimarães Menegale (Direito Administrativo e Ciência da Administração, Rio de Janeiro, 1937), em prestigiada lição, lança mão de critérios eminentemente subjetivos que bem se prestam à identificação desta intrincada relação, com efeito:

"Ordinariamente, distinguem-se nos atos dos funcionários públicos aqueles que são praticados em razão de sua condição humana, sob a influência de sentimentos, ambições ou paixões pessoais, capazes de os animarem em qualquer situação, independentemente, portanto, de sua qualidade de funcionário; e os que, mesmo se misturados de impulsos íntimos, eles praticarem necessariamente na situação de serviço, em relação de dependência com as funções que exerce".

E conclui:

Caracteriza-se a falta pessoal quando o ato do funcionário não se pode confundir com a execução, mesmo irregular, de um ato de função. Logo, se o ato, mesmo ilícito, é inerente à função, a falta é do serviço.

Assim, a qualidade de agente é visível quando o servidor, ainda que imbuído de sentimentos e paixões próprias do homem médio, pratica ato intrínseco ao exercício de seus misteres. Pouco importa estar vestido de uniforme, farda militar, vestes talares, identificação civil ou, até mesmo, em expediente regular.

O estudo casuístico tem ensinado que estas peculiaridades exteriores não são capazes de, por si só, responderem às questões mais intricadas do assunto, na medida em que o que deve ser perseguido à exaustão é a relação entre a prática do ato e as funções regularmente exercidas pelo agente causador do dano, enfim, do agente estatal.

Estando presente esta íntima coincidência, o Estado absorve a penalidade de seu agente, que verdadeiramente é sua própria, e, independente de culpa, o que se verá adiante, deverá responder pela defectibilidade do serviço na medida de sua imperfeição se, é claro, tal falha gerar dano a terceiro que poderá ser, inclusive, uma coletividade.


RESPONSABILIDADE CIVIL – EVOLUÇÃO e TEORIAS

Identificado o nascedouro da responsabilidade estatal, cumpre ressaltar que as conclusões a que se chegou não foram objeto de rápida evolução, em que pesem as contribuições fundamentais advindas do Conselho de Estado francês.

Em estágio que considero germinal do direito das obrigações, já se defendeu a irresponsabilidade absoluta do Estado, pelo que seus agentes deveriam responder, individualmente, pelos danos que causassem.

Já de longínqua data não se admite tal doutrina, estando mesmo superada pelas civilizações mais democráticas. Mesmo os Estados Unidos da América e a Inglaterra, que abraçavam essa descabida doutrina, passaram a admitir demandas propostas diretamente em desfavor da Administração, este país através da "Crown Proceeding Act", de 1947, e aquele pela "Federal Tort Claims Act", 1946. (Rui Stoco, Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial, 2ª edição, ed. RT, São Paulo, 1995, p. 314).

A fim de abrandar a primeira teoria, a da irresponsabilidade, passou-se então a dividir as atividades da Administração em atos de império e atos de gestão, como forma de nortear a identificação da responsabilidade do Estado. Os atos de império seriam os praticados envoltos a todas as prerrogativas e privilégios da Administração ou da autoridade administrativa, o que afastaria a obrigação de indenizar os prejuízos decorrentes do manejo deste tipo de ato.

Ao contrário, os atos de gestão, por serem praticados em condições de igualdade com o particular, poderiam gerar a obrigação de indenizar desde que, diga-se, evidenciada a culpa do Estado.

Dentro das limitações vetustas impostas pelos adeptos da irresponsabilidade estatal, tais inovações mostraram-se importantíssimas para o desenvolvimento do estudo. Foi quando passaram a vigorar os princípios do direito civil e da teoria da responsabilidade subjetiva do Estado baseada, dentro do aspecto civilista, na culpa.

Mas a doutrina evoluiu, superando os conceitos civilistas para alcançar a teoria da responsabilidade objetiva, vale dizer, da responsabilidade sem culpa, da responsabilidade pública. É neste particular, advirto, que se pretendeu chegar com todas as remissões históricas adrede mencionadas, cuja importância resta aqui evidenciada para a melhor compreensão do problema objeto deste breve estudo.

Os compêndios indicam como marco do desenvolvimento das teorias publicistas o, portanto, famoso caso BLANCO, ocorrido em 1873. Fiel à narrativa da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, 11ª edição, ed. Atlas, 1999, São Paulo, p. 503), eis o episódio:

"A menina Agnès Blanco, ao atravessar uma rua em Bordeaux, foi colhido por uma vagonete da Cia. Nacional de Manufatura do Fumo; seu pai promoveu ação civil de indenização, com base no princípio de que o Estado é civilmente responsável por prejuízos causados a terceiros, em decorrência de ação danosa de seus agentes. Suscitado conflito de atribuições entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo, o Tribunal de Conflitos decidiu que a controvérsia deveria ser solucionada pelo tribunal administrativo, porque se tratava de apreciar a responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público. Entendeu-se que a responsabilidade do Estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque se sujeita a regras especiais que variam conforme as necessidades do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os diretos privados".

A partir de então, é que iniciaram, segundo consta dos manuais, os estudos mais aprofundados acerca do tema. Mas a evolução não foi apenas doutrinária, restrita ao mundo abstrato das letras.

As Constituições pátrias, desde o império, saborearam evoluções dignas de nota, que servirão, em razão do objeto deste breve trabalho, para melhor compreensão das conclusões que chegaremos ao final. Vejamos, pois, sucinto quadro explicativo:

1824 - Art. 179. item 29: Os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções, e por não fazerem efetivamente responsáveis aos seus subalternos.

1890- Art. 79. Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões, em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos. (c.f. "projeto" publicado no Decreto nº 510, de 22/06/1890)

1891- Art. 79. Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões, em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos.

1934 – Art. 171. Os funcionários públicos são solidariamente responsáveis com a fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos.

§ 1º - Na ação proposta contra a Fazenda Pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte.

§ 2º - Executada a sentença contra a Fazenda Pública, está promoverá execução contra o funcionário culpado.

1937 – Art. 158. Os funcionários públicos são solidariamente responsáveis com a fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos.

1946 – Art. 194. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.

§ único. Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.

1967 – Art. 105. As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.

§ único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, no caso de culpa ou dolo.

1988 – Art. 37, § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que os seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de culpa ou dolo.

As evoluções históricas são evidenciadas nas redações dadas pelos legisladores de então, onde se pode perceber as influências das doutrinas mais primitivas, como o é a da irresponsabilidade civil do Estado (1824), passando pela responsabilidade estatal subjetiva, baseada circunstancialmente na culpa (1934), atingindo, finalmente, os primórdios da responsabilidade objetiva (1946).


RESPONSABILIDADE ESTATAL – A teoria do risco administrativo.

Sem maiores apreciações terminológicas, eis que alcançamos o momento histórico ideal. A teoria do risco é a que, em razão da aplicação da culpa objetiva do Estado, melhor alberga os pensamentos doutrinários atuais, porquanto afasta qualquer preocupação com os elementos civilistas da culpa e que norteiam o campo da responsabilidade civil.

Sem enfrentar o tema aparentemente pacificado entre os mestres, notadamente em relação às diferenças hoje superadas envolvendo a teoria do risco administrativo e do risco integral, o que só se mostra útil para apreciação das questões terminológicas, o que, infelizmente é a tônica dos discursos jurídicos destes tempos, é de se ver que a pertinência do debate se assenta sobre o nexo de causalidade e não mais sobre a culpa.

A questão é saber se há interdependência entre o serviço e a lesão, não interessando a ocorrência de funcionamento deficiente ou insuficiente (faute) do serviço público e, por que não dizer, do agente prestador.

Das lições do mestre CAIO MÁRIO (Instituições de Direito Civil, ed. Forense, Rio, 1961, vol. I, p. 466, n. 116) extrai-se que "o princípio da igualdade dos ônus e dos encargos exige a reparação. Não deve um cidadão sofrer as conseqüências do dano. Se o funcionamento de serviço público, independentemente da verificação de sua qualidade, teve como conseqüência causar dano ao indivíduo, a forma democrática de distribuir por todos a respectiva conseqüência conduz à imposição à pessoa jurídica do dever de reparar o prejuízo e, pois, em face de um dano, é necessário e suficiente que se demonstre o nexo de causalidade entre o ato administrativo e o prejuízo causado". (grifamos)

É que para ser possível ao príncipe soberano "dar lei a todos em geral, e a cada um em particular" (Jean Bodin, Os seis livros da República, 1576) nessa cessão de liberdades que se pretendeu em favor do grande Leviatã, a República ou o Estado exercem atividades que comportam riscos de grandeza superior aos eventualmente promovidos por particulares.

Mas não é só. Além da potencialidade dos riscos, a hipossuficiência do administrado em face do Soberano é de tal forma desproporcional em favor deste último, que a apreciação da responsabilidade se tornaria dificílima ou, porque não, impossível. Neste aspecto, coube ao legislador constituinte conferir à parte evidentemente mais forte a obrigação de provar a sua não-culpa.


O AGENTE DENUNCIADO À LIDE.

Feitas estas considerações que considero essenciais para as conclusões que estão adiante, tenho que alcançamos o ponto nodal deste arrazoado, a saber: o agente público causador do dano, por culpa ou dolo, pode ser denunciado à lide pela pessoa jurídica a que está vinculado, se esta sofrer ação da vítima do ato (i)lícito? A esta tormentosa questão, ofereceremos nossa resposta adiante, após breve análise das vacilações que atingem o tema.

Não há consenso na doutrina acerca da possibilidade de se denunciar à lide o agente faltoso, isto quando o Estado for chamado para se defender em ação judicial. Alguns autores entendem que a denunciação é inadmissível em razão da divergência insuperável existente entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade do agente causador, discutida sob o manto das doutrinas civilistas.

Ao autor da demanda caberá provar o nexo de causalidade entre o serviço oferecido pelo Estado e o dano daí advindo, pouco importando, como se viu, se este serviço está eivado de falhas. Rememorando CAIO MÁRIO, é necessário e suficiente que se demonstre o nexo de causalidade entre o ato administrativo e o prejuízo causado.

Ao ente público denunciante, todavia, cabe, no mesmo feito e nos mesmos autos, provar a culpa do agente denunciado que, como se sabe, não é presumida e nem tampouco objetiva. Tal demandaria extensa dilação probatória a ser travada entre o denunciante e o denunciado, o que emperraria o desenrolar da marcha processual iniciada por quem menos se interessa pela aferição da culpa, ou seja, o lesado.

É, à evidência, indiscutível prejuízo ao autor da demanda.

Existe ainda pertinente ponderação acerca do papel do servidor público perante a administração. Para os mestres que rejeitam a denunciação, onde se incluem Vicente Greco Filho, Celso Antônio Bandeira de Mello, Lúcia Vale Figueiredo, Weida Zancaner, entre outros, o servidor público não é garante do ente a que está vinculado, nem por força de lei nem por força de contrato, o que afastaria cabalmente a possibilidade de se obedecer à regra do artigo 70, inciso III do CPC.

Ao revés, há densa jurisprudência em favor da denunciação do agente causador do dano. O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de ter por "admissível a denunciação à lide do servidor pela fazenda pública, demandada por ato daquele, independentemente da tese de defesa adotada" (RESP 47705).

O Sodalício também já decidiu ser "de todo recomendável que o agente público, responsável pelos danos causados a terceiros, integre, desde logo, a lide, apresente sua resposta, produza prova e acompanhe toda a tramitação do processo" (STJ-RT 667/172). E foi mais além, como se vê:

"Na ação reparatória, pode a entidade pública promover a denunciação da lide ao seu preposto, sem necessidade de atribuir-lhe, desde logo, a culpa pela ocorrência."(RSTJ 106/167) (grifamos)

É, por certo, uníssono o pensamento da Côrte especial, havendo raros e antigos julgados que vão de encontro ao posicionamento hodiernamente defendido, onde constava "que em relação à exegese do art. 70, III, CPC, melhor se recomenda a corrente que não permite a denunciação nos casos de alegado direito de regresso, cujo reconhecimento demandaria análise de fundamento novo não constante da lide originaria" (RESP 47705).

Já o professor Yussef Said Cahali (Responsabilidade civil do Estado. São Paulo : Malheiros, 1995) enxerga a existência harmônica entre as duas teorias. Em sua ótica, se o dano causado pela pessoa jurídica resultar de evento fundado em falta anônima, onde não se possa identifica o agente causador, não se deve admitir a denunciação, pois se estaria inovando nos fundamentos invocados pelo próprio autor.

Todavia, se a causa de pedir refletir a culpa ou o dolo do agente, é permitida sua denunciação à lide, na forma do que determina, segundo o seu entendimento, o artigo 70, inciso III do Código de Processo Civil. É esta a doutrina que tem merecido destaque no cenário jurídico atual, motivo pelo qual, sintomaticamente, tem sido abraçada como a resposta mais apropriada para os dissídios advindos de tão intricadas questões.

Inobstante tanto, e confessando minha predileção pela doutrina que rechaça a denunciação em casos que tais, não me parece adequada a solução acima exposta.

Inicialmente porque a obviedade da solução salta aos olhos. Ora, se a falta é anônima e se não é possível identificar o agente causador do dano, é desnecessário qualquer tipo de discussão acerca da possibilidade de denunciar, na medida em que não se sabe quem denunciar. Mesmo que a ignorância seja apenas do autor, vale dizer, admitindo que o ente público, diferentemente do lesado, identifique o agente que, por culpa ou dolo, tenha causado o dano, não haveria diferença, já que o Estado deveria transmudar completamente as fundamentações iniciais promovidas pelo autor e baseadas, é certo, na teoria do risco administrativo.

Analisemos o seguinte exemplo: o cidadão, por defeito mecânico em semáforo de trânsito instalado em avenida de grande movimentação, se vê obrigado a desviar de outro veículo e, por conta desta manobra, atinge um muro edificado às margens da via. Propõe ação contra o Município a fim de recuperar os valores despendidos com os reparos em seu bem. Neste caso, o causador da falta é – para o autor – anônimo.

O Município, devidamente citado, não identifica o responsável pelo ocorrido. Força é convir que, face ao anonimato, ninguém será denunciado à lide. Ao meu ver, neste particular, a doutrina não traz qualquer novidade, sendo mesmo obvia, já que o caso não admite conclusão divergente.

Da mesma forma, se o Município soube identificar o agente público que, ao fazer a troca das lâmpadas do semáforo, estando embriagado, não o fez corretamente, gerando pane em todo o sistema de tráfego da região, poderia promover a denunciação? É evidente que não, já que não se pode trazer fundamento novo à demanda calcada na responsabilidade objetiva do Estado, nos mesmos moldes da hipótese anterior.

Na verdade, írrito é o debate acerca da falta anônima. Ora, anônima para quem? Para a vítima, para o Estado ou para ambos? Se não se sabe quem causou o dano, não existe sujeito a ser denunciado.

Assim, se o que se pretende é preservar as fundamentações do autor, seria melhor que a admissão ou não da denunciação da lide de agente faltoso ficasse submetido às alegações lançadas na petição inicial. Caso o autor se preocupe em identificar o agente e lhe atribua culpa pelo evento, estaríamos diante de hipótese permissiva da denunciação da lide, quando o Estado poderia, baseado nos próprios argumentos do lesado, manejar a referida intervenção de terceiros.

Ao contrário, se a vítima não pudesse ou não quisesse identificar o agente e nem tampouco lhe atribuir culpa pelo resultado danoso, ao Estado restaria discutir a demanda nos moldes ofertados pelo autor, cuidando de se esquivar da obrigação de indenizar nos limites admitidos pela lei. Isto - frise-se - mesmo que o ente público consiga identificar o servidor negligente e possua elementos hábeis para a provar sua culpa dentro dos critérios civilistas.

Está solução valeria tanto para os comportamentos omissivos quanto para o comportamento comissivo do Estado. A meu ver, não ganha relevo a ressalva proposta por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, para quem "a regra em nosso Direito Constitucional é a da responsabilidade objetiva para os comportamentos comissivos do Estado e, salvo casos excepcionais, responsabilidade subjetiva (por culpa do serviço) para os comportamentos omissivos: a saber, quando o Estado, devendo legalmente agir para evitar um dano e, podendo faze-lo, não o fez ou não o fez tempestiva ou eficientemente". (Curso de Direito Administrativo, 13ª ed., ed. Malheiros, p. 91, 2001)

A leitura do artigo 37, § 6º da Lei Maior não sugere qualquer distinção entre o dano causado por ação ou omissão do agente, já que ambos os comportamentos estão aptos para gerar efeitos contra e a favor de terceiros.

A propósito, o ilustrado mestre, arrimando-se em ensinamentos de WEIDA ZANCANER, rechaça a idéia da denunciação da lide, exatamente porque as discussões acerca da culpa subjetiva do agente retardariam o desfecho da demanda, procrastinando o processo em razão de discussões impertinentes às alegações do autor ou inadmissíveis, face às peculiaridades inconciliáveis das teorias da culpa objetiva e subjetiva.

Não creio, todavia, que o retardamento da marcha processual seja elemento suficiente para se afastar a denunciação do agente. A dilação probatória é, no mais das vezes, simplória e resumida, não exigindo mais que uma única audiência para a sua conclusão. Ademais, aquele que ousa enfrentar a máquina estatal não encontra soluções rápidas e eficazes ao longo do processo.

Ao contrário, e o leitor há de me perdoar pelo momentâneo distanciamento do mundo teórico, os prazos dilargados, o reexame necessário, os recursos infindáveis, precatórios, suspensão de segurança, são alguns exemplos que fazem com que as discussões acerca da celeridade fiquem obscurecidas e diminutas, não ganhando eco se envolvidas no contexto processual das lides contra o poder público.

Afora tanto, creio tenha se tornado "jargão político" os discursos inflamados e quase sempre oportunistas levantados em defesa da incessante busca pela celeridade processual, como se um julgamento rápido fosse tão importante quanto um julgamento justo. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, em artigo publicado na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, (Vol 9, Jan – Fev 2001, p. 05) foi feliz em dizer que "a celeridade não constitui o único valor em jogo, e o legislador processual, aqui e alhures, dificilmente se animaria a sobrepô-la de modo tão radical a quaisquer outros. O que sugere o bom senso é tentar encontrar o justo ponto de equilíbrio entre as solicitações contrapostas que aí se manifestam; e, para isso, muito ajudaria que tivéssemos elementos objetivos, colhidos na realidade quotidiana do foro e dotados de confiabilidade superior à das nossas variáveis experiências pessoais – ou, a fortiori, das meras impressões pelas quais não raros nos deixamos guiar".

Da mesma forma, não parece confiável afirmar, definitivamente, que o agente público não pode ser denunciado à lide por não assumir a posição de garante do Estado. A afirmação é, em parte, verdadeira, porquanto merece ressalvas.

Com efeito, eis a redação do artigo 70, inciso III do Código de Ritos:

"àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda".

Ora, o agente é obrigado por lei (Constituição da República, art. 37, 6º) a indenizar o prejuízo do que perder a demanda (Estado), desde que tenha agido com dolo ou culpa. Neste caso, e só neste particular, o agente figura como garante do Estado, estando sua obrigação condicionada à condenação da pessoa jurídica em razão de ato ilícito por si praticado. Há, em razão do artigo 37 §6º da Constituição da República, vinculação jurídica material entre o denunciante e o denunciado.

É o que ocorre nas ações entre particulares, debatidas, portanto, dentro da órbita das teorias da culpa civilistas. Ao terceiro prejudicado com a sentença favorável à mulher, resta o direito regressivo contra o marido e seus herdeiros (art. 250, C.C. revogado e art. 1646 C.C vigente). Aquele que tiver perdido, ou a quem houverem sido furtados, coisa móvel ou título ao portador, pode reavê-los da pessoa que os detiver, salvo a esta o direito regressivo contra quem lhos transferiu (Art. 521, caput, C.C. revogado).

É o que está previsto, também, nos artigos 690 §1º, 750 e 816 §4º (este último artigo corresponde ao art. 1481, §4º, C.C. vigente), todos do Código Civil revogado. As pessoas ali indicadas são obrigadas, por lei, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda, constituindo-se em verdadeiros garantes na relação processual litigiosa, justamente porque a lei conferiu ao lesado o direito regressivo.

Assim é que "se não há direito de regresso, é incabível a denunciação" (STF-RT 605/241; RTJ 126/404 E STF-RT 631/255).

É o caso do agente causador do dano, com a ressalva de que a condenação do poder público deve vir baseada, também, na culpa do agente, reconhecendo-a. Quando a lei federal fala em "prejuízo do que perder a demanda", é fundamental se ter em mente que esta regra deve ser integrada pelo texto da Carta Cidadã, onde o agente deve indenizar, sim, o "prejuízo do que perder a demanda", mas nos casos de ter agido com dolo ou culpa.

Se ao prolatar a sentença, o magistrado reconhecer a obrigação estatal de indenizar, não está o agente, como conseqüência imediata, obrigado a ressarcir os cofres públicos, ainda que tenha sido denunciado à lide. Todavia, se a sentença declarar inequívoca a culpa do agente, este responderá regressivamente pelos prejuízos que tenha causado no exercício de seu mister.

Isto porque "a procedência do pedido dos autores, contra o denunciante, não acarreta, direta ou automaticamente, a responsabilidade da denunciada. Há que se perquirir, ainda, da relação jurídica nova, posta à denunciação" (Ac. un. Da 3ª CCv do TJRJ, na Ap. 4.112/86).

Por isso entendo que a denunciação da lide, em casos que tais, fica adstrita à causa de pedir declinada pelo autor, considerando-a pelo fato e pelos fundamentos jurídicos do pedido. Se em sua causa de pedir restar evidenciada a culpa do agente e, mais que isso, nos fundamentos de seus pedidos estarem presentes elementos deduzidos na culpa subjetiva do agente por ato doloso ou culposo seu, é evidente que a instrução poderá, em havendo denunciação, trazer à tona a culpa subjetiva do agente.

Em outras palavras, não é permitida, na denunciação da lide, a intromissão de fundamento novo, ausente da demanda originária, que não seja a responsabilidade direta decorrente da lei e do contrato. Assim, não se tratando "de caso de futura ação regressiva, fundada em garantia a que se obrigará o terceiro, mas de defesa fundada em culpa de outrem" (JTACSP 98/122), não cabe a denunciação.

O professor VICENTE GRECO FILHO (Direito Processual Civil Brasileiro, ed. 1981, p.143) também entende não ser permitido, na denunciação, "a intromissão de fundamento jurídico novo, que não seja responsabilidade direta decorrente da lei e do contrato".

E revela pensamento originalíssimo, capaz de justificar, ainda mais, o entendimento aqui esposado, senão vejamos:

"Observe-se, também, que, por tradição histórica, uma das finalidades da denunciação é a que o denunciado venha a coadjuvar na defesa do denunciante e não litigar com ele, arguindo fato estranho à lide".

Ora, se a pessoa jurídica de direito público pretender inovar os fundamentos jurídicos da demanda, que não contenham em seu bojo elementos informadores da culpa do agente, deverá formar nova situação litigiosa a fim de guerrear contra seu preposto. Ao revés, se o autor insurgir-se contra o ato lesivo e atribuir culpa ao agente público, este poderá coadjuvar na defesa do denunciante, exatamente porque o debate sobre a culpa subjetiva interessará a ambos.

Mas diferentemente do que já lecionaram, entendo ser desinteressante discutir se o causador do dano é identificável, se a falta é anônima, ou se o ato ilícito decorreu de falha mecânica, força maior ou caso fortuito. O que deve averiguar o intérprete é se dos fatos expostos pelo autor e das conseqüências jurídicas daí resultantes emergem elementos suficientes para, in casu, identificar o agente responsável pelo ato.

Se positivo, cabe a denunciação, mas não genericamente a obrigação do agente em indenizar, mesmo diante da condenação do Estado. Cumpre, pois, e na instrução processual, evidenciar a ilicitude do ato praticado pelo servidor, quando então, uma vez comprovada a sua culpa, a sentença servirá de título para duas execuções: uma execução contra a parte vencida e outra desta parte vencida contra o réu, contra aquele que, em face dela, está obrigado a reparar o dano sofrido.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CÂMARA, Raphael Americano. O Estado em juízo e a denunciação à lide de agente público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 491, 10 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5921. Acesso em: 6 maio 2024.