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Vírgula de água: ensino jurídico desescolarizado

Vírgula de água: ensino jurídico desescolarizado

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O ensino jurídico também é fonte do Direito. A sua desescolarização se faz necessária, não só como mera mudança de sistemática de ensino, mas como modo (urgente) de exercitar a igualdade e a autonomia, ao invés dos discursos de poder que, dia a dia reiterados, condicionam a prática do jurista.

1. INTRODUÇÃO

Ao refletir sobre educação, a distância entre pé no chão e quimera é bastante curta. Bem por isso, este artigo, reconhecendo tal de imediato, pretende problematizar o ensino jurídico sem descair em ambos os lados. Nem o voo dos pássaros, que nada sabem do dia de semana, nem o disparate de um “realismo supervalorizado” (1995, p. 145). Não queremos, com isso, afirmar, peremptoriamente, o triunfo deste empreendimento. Uma tentativa, tão só.

Porque aprendemos com Theodor W. Adorno (1995, p. 143-144) que, no conceito de educação para a consciência e para a racionalidade, há uma ambiguidade inarredável, a qual, ao tempo em que busca emancipação, não pode ignorar a necessidade de certa adaptação. Tal, inclusive, sob pena de despenhar na impotência de um discurso que desconhece a necessidade de adequação, mínima que seja, ante a urgência dos imperativos cotidianos.

No entanto, o ensino jurídico, como verificado em nosso país, orienta-se apenas pelo norte da adaptação, impossibilitando, de certo modo, o questionamento a propósito de seu modus operandi. Nesta perspectiva, parece-nos imperioso discutirmos esta questão com os olhos voltados para a “escolarização” e a possibilidade do ensino jurídico enquanto fonte do direito.

De tal modo, reservamos um primeiro momento para a problematização da escolarização do ensino jurídico, passando, em seguida, a um de seus desdobramentos, o qual, através da lição de José Souto Maior Borges (2000, p. 73), intitulamos “educação para o brilho”; para, ao final, refletirmos sobre o ensino jurídico como fonte do direito.

Para tanto, lançamos mão de uma análise crítica, contando, ademais, com os métodos dialético e interdisciplinar, vez que pretendemos, primeiro, refletir o real sem olvidar as contradições a ele inerentes, sabendo tratar-se de reflexão provisória, sujeita, pois, a retificações; segundo, por não se referir à matéria exclusivamente jurídica, com o necessário auxílio de outros campos do conhecimento.


2. A ESCOLARIZAÇÃO DO ENSINO JURÍDICO

Há certa visão oligárquica, observada por Rancière (2015, p. 15), de uma sociedade escola em que o governo não é mais do que a autoridade dos melhores da turma. Iniciar este capítulo com esta frase, parece-nos, já nos coloca em alguma distância do muito que se diz a propósito do ensino jurídico. Mesmo pelo especialista, vez por outra tentando salvar toda essa conhecida organização com meras mudanças curriculares. Não buscamos tampouco vergastar os famigerados cursinhos jurídicos, como se faz com frequência, como se fossem eles os grandes responsáveis por tudo quanto se vê em faculdades e demarcações jurídicas.

Não nos parece relevante, sublinhe-se, chamar atenção para grades curriculares, de sorte a dizer o quanto o ensino desta ou daquela matéria modificaria o imaginário dos juristas em formação. Mesmo porque, como bem observou Adorno, 

“(...) reformas pedagógicas isoladas, embora indispensáveis, não trazem contribuições substanciais. Podem até, em certas ocasiões, reforçar a crise, porque abrandam as necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma inocente despreocupação diante do poder que a realidade extrapedagógica exerce sobre eles” (2010, p. 8).

Do mesmo modo, dar relevo a tal ou qual paradigma do direito se nos afigura desnecessário, precisamente por, como esclarece José Eduardo Faria (1988, p. 23), a oposição entre o jusnaturalismo e o juspositivismo é uma oposição falsa, já que o positivismo compreendido pelo “senso comum teórico dos juristas” é uma espécie de “positivismo transcendente”, que, em verdade, busca realizar os ideais jusnaturalistas. Não se quer com isso, no entanto, arredar qualquer comentário a propósito de um e outro, mas tão somente afastá-los do centro da questão debatida.

Ao revés, muito além de grades curriculares e paradigmas do direito, há algo que nos preocupa sobremaneira, justamente por se instalar sub-repticiamente, ocultado inclusive ante olhos atenciosos. Mesmo porque, como bem pontuou Wolfgang Leo Maar (1995, p. 11), em prefácio à obra “Emancipação e educação”, a educação não é necessariamente um fator de emancipação. A escolarização, eis o que, neste capítulo, merece atenção.

Através de determinada experiência, Jacotot fez, a si próprio, os seguintes questionamentos: “Seriam, pois, supérfluas as explicações do mestre? Ou, se não o eram, para que teriam, então, utilidade?” (RANCIÈRE, 2015, p. 20). Ao fazer estas indagações, Jacotot controvertia a própria importância do explicador, solidamente confirmada. Rancière esclarece:

“O segredo do mestre é saber reconhecer a distância entre a matéria ensinada e o sujeito a instruir, a distância, também, entre aprender e compreender. O explicador é aquele que impõe e abole a distância, que a desdobra e reabsorve no seio da palavra’’ (2015, p. 21-22).

Como se vê, o explicador é o que escolariza, precisamente por estreitar os caminhos do discernimento até restar um, apenas. É ele quem incute na cabeça do instruído, por exemplo, que o livro é algo impossível sem a orientação do portador do único entendimento autorizado. Isso, importante percebermos, engendra uma dependência, sem a qual o orientado não alcança a vereda da percepção. Em determinada faculdade de direito, a memória nos socorre, um professor, consagrado explicador, anunciava em suas aulas o esforço vão do estudante que, apressado, buscava o livro antes mesmo de ouvir a sua indispensável lição.

Neste ponto, a preleção de Barthes (2010, p. 11): “Chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe’’. Ora, na relação entre explicador e aluno, o erro é projetado exatamente através da fala que antecipa uma incapacidade (inexistente) e, ato contínuo, instilada no que a recebe como algo manifesto: portanto, atendido.

Da escolarização, exsurgem as desigualdades. A academia possibilita e se contenta com hierarquias, discursos de importâncias, louros em cabeças distintas. Ao tempo em que se discute, em pesquisas científicas, as injustiças sociais, como se a própria academia não contribuísse, com a sua parcela, para o objeto de sua crítica. Raduan Nassar (2016, p. 256), em “Um Copo de Cólera”, diz, através do narrador-personagem, que, “no abuso do poder, não vejo diferença entre um redator-chefe e um chefe de polícia’’. Tal se nos afigura desdobrável à universidade cuja censura lançada para fora de seus muros demonstra pouco saber de si, ao gritar de dentro.

Tanto pior quando se trata de ensino jurídico, com suas palavras-chave, seu “gosto da verticalidade” (2001, p. 12), seus ludíbrios que intentam nos enganar com ordem, interesse público, função social da propriedade, com artigo quinto e outros analgésicos que nos paralisam numa crença indiferente.

Importante, ademais, atentar a uma outra faceta. Ei-la: a escolarização como equívoco entre processo e substância.

Ivan Illich, em seu “Sociedade sem escolas” (1985, p. 16), diz-nos que especialmente os estudantes mais pobres percebem, intuitivamente, o que a escola faz por eles. Ato contínuo, afirma:

“Elas os escolariza para confundir processo com substância. Alcançado isto, uma nova lógica entra em jogo: quanto mais longa a escolaridade, melhores os resultados; ou, então, a graduação leva ao sucesso. O aluno é, desse modo, escolarizado a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com educação, diploma com competência, fluência no falar com a capacidade de dizer algo novo’’ (1985, p. 16).

Interior ao ensino jurídico, aí o cotidiano de universidades para nos demonstrar, a graduação em direito é, necessariamente, divulgada como caminho para o sucesso, materializado, quase sempre, na toga de um magistrado ou no excelente terno de um advogado de grande banca de advocacia. E, então, quando se anuncia, por exemplo, a mudança de dispositivos, o estudante de direito observa tal como obstáculo, necessitando de mais algumas horas de memorização. Porque é preciso acertar ao menos 90% da prova. Pouco se lhe dá se a alteração vem em socorro de alguém que padece e necessita auxílio.

Qual em Rancière, Illich (1985, p. 16) percebe, igualmente, a realidade social tornada escolarizada, institucionalizando-se valores e, via de consequência, visão única, padronizada.

Imediatamente, necessário tecer algumas palavras a propósito de algumas preleções de Adorno pertinentes ao tema em debate. A escolarização, sabemos, trabalha com a categoria de ideologia. Sobre este ponto, o filósofo alemão, em “Educação – para quê?” (1995, p. 143), diznos que a organização do mundo converteu-se a si mesma em sua própria ideologia, exercendo, por tal, uma pressão tão imensa sobre as pessoas, que supera toda a educação. A partir disso, ocorre o que ele chama de “obscurecimento da consciência pelo existente”.

Ora, interior ao que chamamos, aqui, de escolarização do ensino jurídico, tal obscurecimento é facilmente verificável. Na dogmática jurídica, uma espécie de “ventre mágico” (1985, p. 47), para utilizarmos a expressão de Illich, impossibilita o vislumbre de coisa qualquer que não seja considerada, para o direito, como existente. De tal modo, muito além da assertiva de Adorno, o ensino jurídico obscurece as consciências dos que dele participam com a própria fabricação da realidade, tornando ilusória toda e qualquer perspectiva diversa do prescrito e sedimentado.

Ato contínuo, através de um “realismo supervalorizado” (1995, p. 145), o processo de adaptação se dá de um modo dolorido, o que, por conseguinte, torna praticável a identificação do adaptando ao agressor. Cá, importante lembrar a lição de Paulo Freire (1987, p. 32-33), para quem o opressor se afigura como testemunho de homem para o oprimido. Mais adiante, no quarto capítulo, demonstraremos, mais detidamente, como se verifica tal identificação.

Como contraponto a essa escolarização, aqui verificada no ensino jurídico, Adorno fala, em “Educação e emancipação” (1995, p. 180), em emancipação acompanhada de uma certa firmeza do eu, lembrando, inclusive, a lição de Kant cuja emancipação é apresentada como categoria dinâmica, um vir-a-ser. Precisamente porque, e isto observamos muito bem através do direito, nossa organização social permanece heterônoma.

Além de se contrapor à escolarização através da emancipação, Adorno nos fala em uma educação para a contradição e resistência, sabendo, de antemão, que “o mecanismo de ausência de emancipação é o mundus vult decipi em âmbito planetário, de que o mundo quer ser enganado” (1995, p. 183). No próximo capítulo, esboçaremos certa consequência proveniente dessa aspiração ao ludíbrio. Não obstante, cumpre-nos anotar as seguintes palavras do filósofo alemão:

“(...) qualquer tentativa séria de conduzir a sociedade à emancipação – evito de propósito a palavra educar – é submetida a resistências enormes, e porque tudo o que há de ruim no mundo imediatamente encontra seus advogados loquazes, que procurarão demonstrar que, justamente o que pretendemos encontra-se de há muito superado ou então está desatualizado ou é utópico” (ADORNO, 1995, p. 185).

De tal modo, observamos as dificuldades características que se apresentam àqueles que se propõem à reflexão de uma outra possibilidade (ou outras possibilidades) de educação. Parece-nos, sobretudo no que se refere ao ensino jurídico, que a desescolarização, por intermédio da emancipação, reclama urgência e olhos atentos.


3. EDUCAÇÃO PARA O BRILHO: EQUÍVOCOS E PENDURICALHOS

Correlato ao ensino jurídico, há se discutir sobre a própria academia, sua postura característica e uma espécie de movimento globular, sempre a impedir nova paisagem, outros mares. De imediato, declaramos: este capítulo é uma construção cujo alicerce é representado pela obra de Lima Barreto. Daí o sistema de status e o fetiche da erudição (OAKLEY, 2011, p. 118- 119).

A narrativa “o homem que sabia javanês” parece nos dizer algo a respeito da academia, sobretudo a de Direito. Explicamos: Castelo encontra um anúncio no jornal a propósito da necessidade de um professor de javanês e, mesmo desconhecendo o idioma, acaba por candidatar-se. Velozmente, toma nota sobre a geografia e literatura de Java, ao tempo em que memoriza alfabeto, poucas palavras e frases do idioma. O interessado em aprender javanês, logo desiste, pedindo, em seguida, a Castelo para traduzir o livro, grande motivo do interesse do primeiro. O Barão, o qual recebe os serviços de Castelo, aumenta-lhe o salário e o recomenda ao ministro das relações exteriores. Uma pausa.

Como se verifica, o sucesso do personagem se dá através de uma erudição que ele próprio não tem. Indaguemos, pois: transpondo a literatura em direção à academia, o que é que muda? Acaso não temos bons – e inumeráveis – exemplos de acadêmicos que sustentam toda uma 8 carreira sob o signo da aparência? Não só. Qual no conto citado, não tornam-se, pela própria visibilidade e fama, uma espécie de oráculo, de sorte a escolherem os próximos ungidos, vez por outra também com idêntico esteio?

Na narrativa, o Barão morre, deixando a Castelo um legado, do qual este tira proveito para publicar uma autobiografia e, como pontua Oakley (2011, p. 121), alguma pseudo-erudição em javanês. Adquire, por consequência, notoriedade, é celebrado na Europa, almoça com o presidente do Brasil e recebe posto consular em Havana.

Lima Barreto, em várias oportunidades, observou e tornou palavra esta nossa mania em fazer fracassar o discurso inteligente, ao tempo em que abraça e festeja certo arrivismo. Interior ao Direito, há muito pontuou Becker (1999, p. 111), basta pronunciar duas ou três palavras em alemão para darmos graças e louvores ao enunciador. De tal modo, nos são despejados livros de qualidade duvidosa, aos quais prestamos culto ante bancas de concursos ou jurisprudência de tribunal.

Surgem, ato contínuo, teorias que parecem ser criadas com o intuito de confundir, não dizer nada, conquanto a verborragia incontida. Suspeitamos, inclusive, que muitos temas dispensáveis só permanecem em debate precisamente para que algumas pessoas não percam o seu espaço de fala. Sentimos, ademais, porque estamos fincados no dia de semana, descontentamento excessivo, ao invés de admiração, ante esse pedantismo que nos traz ainda outro ludíbrio. Aqui, evocamos a nossa própria condição de estudante.

A academia tem seu próprio modo de existir. Tão mais assim na “demarcação jurídica”. Algo mais ou menos transcendental, distante da planície, onde os seus objetos de estudo ganham corpo, veias, sangue, ferida. E a construção dos discursos se dá de modo obscuro. Como bem observou Becker (1999, p. 108), “a obscuridade da linguagem produz um efeito quase religioso”, de sorte a conquistar uma incompreensão que encanta precisamente por não compreender. Importa-nos, neste ponto, demonstrar o quanto este modus operandi acadêmico condiciona o ensino jurídico e, consequentemente, a prática de juristas.

Por tudo que se vê, resta fácil verificar que tal desencadeia um movimento de simplificação – ainda que rebuscada –, em que apenas a memorização de certo alfabeto e algumas palavras são suficientes, pois se Castelo acabara cônsul! E, assim, o ensino jurídico é reduzido a esquemas e fórmulas de onde melhores da turma extrairão a glória. Isso deságua no que encontramos hoje: o diploma como legitimação da mediocridade. Não se trata, sobrelevamos, de distinguir “inteligências”.

Em capítulo anterior, demonstramos a necessidade de uma educação desescolarizada, norteada pela igualdade. Ao revés, trata-se do que José Souto Maior (2000, p. 73) chama de “educação para o brilho”, fenômeno que deteriora a própria educação. Além: da educação para o brilho, advém certo obstáculo à crítica, ao qual o estudante com aspirações acadêmicas deverá se adequar, sob pena de se ver excluído do círculo cujo pertencimento é sonhado.

Neste ponto, evocamos o dramaturgo norueguês, Henrik Ibsen, precisamente em “uma casa de bonecas”. Já no desfecho da peça, a personagem diz ao marido: “vivi das piruetas que te fazia, Torvald; mas era o que te convinha” (2016, p. 165). Ora, parece-nos, como estudante que somos, que os acadêmicos postos no topo da hierarquia acadêmica esperam, de nossa parte, algo como piruetas em seu próprio louvor, em confirmação a tudo quanto já disseram. Quando na verdade, como na música de Caetano, interessam-nos outras palavras, não as deles.

Em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, Lima faz-nos ver a hierarquia que bem poderíamos atribuir a sua criação à academia. Enquanto o personagem Borges utiliza os livros em proveito da própria fatuidade, demonstração de um saber que não tem, Quaresma lê desinteressadamente. No entanto, é este último que é repreendido, precisamente por não ser bacharel. Aqui, verifica-se excelente demonstração de hierarquia engendrada por títulos acadêmicos. Não é incomum ouvirmos algum acadêmico de Direito usar o Lattes para afastar uma crítica, a qual ele enxerga como vinda de baixo. Porque no Direito também temos os nossos “discursos vivos” (2012, p. 118), como satirizou Drummond. Eles os que podem falar e suas falas as que são aceitas antes mesmo de lançadas, ainda que embaralhe a sintaxe e concluam com um grande vazio.

Afinal, como na tradição picaresca espanhola, o acadêmico puxa uma cadeira, acomodase à maneira de um erudito e narra as próprias peripécias no mundo da intelectualidade. O douto, qual em “o homem que sabia javanês”, compraz-se, satisfeitíssimo, ante as próprias artimanhas narradas. Há sempre um ouvido atento, tomando nota, ávido por repeti-las.

Afinal, qual o narrador kafkiano, importante que, a propósito deste capítulo, diga-se: “Só apresentamos um relatório”. O que, por consequência, permite-nos avançar ao próximo.


4. O ENSINO JURÍDICO COMO FONTE DO DIREITO

Em “Sobre a impossibilidade de ensinar direito: notas polêmicas para a desescolarização do direito”, Luís Alberto Warat propõe pensar o ensino jurídico como fonte do direito. Esclarece:

“(...) o ser jurista é um produto das faculdades de Direito. Ninguém pode ser advogado de um jeito diferente ao escolarizado. É nas escolas de Direito onde se produzem os sentidos das sentenças, onde se estabelecem os pontos de conjunção dos diferentes fragmentos normativos (Jairo Bisol). Passar por essa instrução deixa a muitos advogados formados num conflito desumanizante entre a autoconsciência e o papel imposto” (2004, p. 432).

Antes de avançarmos, necessário evocar a expressão “senso comum teórico dos juristas”, engendrada pelo mesmo Warat, sob a influência de Althusser. Importante porque é o próprio ensino jurídico quem engendra esse “senso comum”, representando, por sua vez, a “condição de produção dos diversos discursos jurídicos” (2004, p. 33). Em outra oportunidade, demonstramos como o senso comum teórico dos juristas controla os atos dos destes últimos (AMORIM, 2013, 1-4).

Por meio da epistemologia tradicional, o ensino jurídico preconiza certa pureza de um conhecimento tornado teoria, dando, por consequência, ao jurista a percepção de uma atividade profissional imaculada e cristalina. É tudo quanto basta para afastar este mesmo jurista da pertinente consciência política, o qual, através desse ludíbrio, passa a acreditar-se apartado de responsabilidade e compromisso ante o reflexo de seus atos na vida dos homens.

Em concórdia ao que sustentamos, Antônio Alberto Machado, explana:

“Apesar de tais evidências de que o direito encerra mesmo um conteúdo axiológico, o fato é que o direito liberal burguês, na modernidade, procurou sempre produzir um discurso tendente à ocultação dos aspectos valorativos, tanto da produção quanto da aplicação e também do ensino do direito. No século XX, por exemplo, a ideologia jurídica prevalecente, normativista e positivista, logrou um espantoso êxito nessa tarefa de ocultar as dimensões axiológicas do direito e de sua ciência, impondo-se como a mais prestigiada maneira de conhecê-lo, aplicá-lo e transmiti-lo de modo politicamente asséptico” (2005, p. 40).

Tal assepsia culmina no que Warat chamou de “cultura detergente” (2004, p. 62), isto é, um pensamento sem sujeira. O que se nos afigura absolutamente perigoso e pérfido, precisamente por, ocultando a substância dos enunciados, ser enxertado nos estudantes com grande facilidade. Sabemos, ao chegarmos ao curso de direito, a escola já nos tornou partes dela, escolarizando-nos, de modo que nos adaptamos às exigências para as quais não concorremos nem sabemos quais as suas origens. Enquanto juristas em formação, já suficientemente dóceis por todo esse processo anterior, esses discursos prescritos pela dogmática exsurgem como alimento de sabor deleitoso, suave, facilmente digerível.

Daí que não se pode olvidar o secreto currículo, apontado por Illich e retomado por Warat, existente nas faculdades de direito. É precisamente ele que “regula os modos silentes em que se aprende a ser um bacharel em direito, a serviço da concentração de riqueza, hoje a serviço do pensamento único que legitima a economia e o modo de fazer (não fazendo) política no Império” (2004, p. 433).

Neste aspecto, importante urdir algumas palavras a propósito dos meios pelos quais o ensino jurídico difunde a sua pureza, ao tempo em que opera nas fissuras dos próprios discursos. Isso porque Marilena Chauí, em seu “Cultura e democracia”, ensinou-nos que o discurso ideológico é um discurso feito de espaços em branco, tal qual uma frase na qual houvesse lacunas. Por tal, cumpre-nos completá-las.

Por meio do ensino jurídico, há uma certa caricatura da figura do técnico, gerando, inclusive, certa fetichização da técnica. Na graduação, nada mais corriqueiro do que ouvir da boca de um docente o clichê “precisamos ser técnicos”. Com tal chavão, intenta afastar qualquer reflexão mais detida e aprofundada, é dizer, afugentar tudo o que representa ameaça ao que serve de arrimo à dogmática jurídica. Sabendo disso, Paulo Freire (2009, p. 27) se opunha a expressão “tia”, utilizada nas escolas. Para ele, reduzir a professora à condição de tia representa uma armadilha ideológica. No que concordamos. Referente ao ensino jurídico e à própria prática forense, a figura do técnico exsurge para fazer do jurista um simples burocrata, operador de leis, sem qualquer compromisso com o que desborde o campo normativo. Um ardil que merece atenção.

Theodor W. Adorno, em “Educação após Auschwitz” (1995, p. 133), ao problematizar a fetichização da técnica, exemplifica com o homem que, projetando um sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschwitz com mais rapidez e fluência, olvida o que acontece com estas mesmas vítimas. Parece pertinente pensar isso interior ao direito. Através da técnica jurídica (ou invenção de uma técnica própria), o jurista tende a esquecer o local para onde são levados os que, por ele, são reificados em autos etc. Bem por isso, pensando o ensino jurídico, não podemos esquecer a lição do autor, para quem a exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação.

Ora, em códigos, jurisprudência e preleções dogmáticas, uma ação de reintegração de posse nada sabe de indigentes que ficarão sem teto, para satisfazer a vontade de uma única pessoa, dona de outros tantos imóveis. A abstração, propalada por professores e doutrinas jurídicas, esquecem que, sob palavras, corpos são premidos. Por tal, o estudante, afeito a todas essas explicações, quando tem de enfrentar a atividade jurídica, só sabe agir com o auxílio de muletas de abstração. E então que uma fome não é fome, caso não esteja prevista em dispositivo qualquer. Tudo para, ao revés do que relatou Duncan Kennedy (2014, p. 24), “no sacar a los estudiantes del contexto idealizado de la facultad de derecho, donde no teníam posibilidad alguna de entender cómo son en realidad las cosas, y exponerlos a la vida em estado crudo”.

Aqui, como se vê, os discursos jurídicos alcançam o objetivo precípuo, qual seja, a “aderência ao opressor” (1987, p. 32). Não esquecendo, ademais, do que Paulo Freire chamou de “prescrição”, isto é, “o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas dos opressores” (1987, p. 32). No direito, no entanto, ainda que continuem sendo estranhas, as pautas são facilmente assimiladas, justamente porque, através da escolarização do ensino jurídico, o jurista é, de imediato, reconhecido na figura do suposto vencedor, o que, ato contínuo, faz-lhe perseguir o triunfo como único objetivo de vida.

A escolarização, neste ponto principalmente, cumpre seu papel. Bem por isso, acerta Ivan Illich (1985, p. 47), ao dizer que o universitário foi escolarizado para desempenhar funções seletas entre os ricos do mundo. Não para refletir sobre a própria condição, mas para atender, como contraprestação de um serviço, todas as exigências necessárias à permanência desse estado de coisas.

Boaventura de Sousa Santos, em “Para uma revolução democrática da justiça”, traz-nos um exemplo interessante a propósito da perniciosidade ocasionada pela escolarização. Vejamos:

“A título de ilustração, não posso esquecer um episódio que se passou com uma assistente minha num projeto de investigação que realizei na Colômbia. Era indígena e frequentava o primeiro ano da Faculdade de Direito da Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá. Numa aula de direito civil, em que o professor lecionava que a terra é um objeto de propriedade, que se compra e se vende, ela pediu para falar e disse: 'Mas, professor, em minha comunidade não é assim, nós não podemos possuir terra porque nós somos parte dela, a terra não nos pertence, nós é que pertencemos a ela'. Ao que o professor respondeu, rispidamente: 'Eu estou aqui para ensinar o Código Civil, não me interessam outras concepções” (SANTOS, 2011, p. 94).

Ora, dentro da escolarização do ensino jurídico, alguns valores triunfam sobre outros, como sempre acontece. Assusta-nos, no entanto, a escolha entre quais serão os prevalecentes: a propriedade sobre a vida, o direito individual sobre o difuso etc. Sabemos, apesar, que a dogmática jurídica, escamoteando os próprios interesses, vez por outra anuncia o contrário, de sorte a legitimar a própria arbitrariedade. De modo que a escolarização, ao tornar secundário tudo o que não pode ser mensurado, sobretudo em ouro, faz com que aceitemos toda sorte de hierarquização. Revelou-nos Illich (1985, p. 63): “Numa sociedade escolarizada, a guerra e a repressão civil encontram uma justificativa educacional”.

Como já se vê, são várias as facetas da escolarização utilizadas pelo ensino jurídico. Não se nos parece possível esgotar o tema nesta oportunidade, o que, aliás, não pretendemos. Ademais, retomando o que expomos inicialmente, não desconhecemos a ambiguidade característica ao tema educação. De tal modo, não somos irresponsáveis ao ponto de ignorar certa medida de adaptação. Até porque temos consciência das necessidades cotidianas, que não podem esperar.

Da mesma maneira, não nos parece pertinente estancar na adequação. Ao revés, ao tempo em que se adapta minimamente, busca-se, através da conscientização e consequente emancipação, outras possibilidades, porquanto já consciente da mediocridade da situação tal como se apresenta. Foi Paulo Freire (2009, p. 30) quem alertou a propósito de sempre haver algo diferente a se fazer em nossa cotidianidade educativa.

De modo que, com a “teoria da semiformação”, pensada por Adorno, necessitamos ter clareza de que a formação, por si só, não basta. Ora, Wolfgang leo Maar (1995, p. p. 11), sublinhemos, demonstrou que a educação não é necessariamente um fator de emancipação. É preciso ir além dos diplomas, da hierarquia dos títulos, sob pena de sucumbir à dinamicidade da emancipação. Mesmo porque o nosso país, repleto de bacharéis, representa o grande fracasso em se apostar numa escolarização do ensino jurídico. Sendo assim, aos que, no imediatismo, julgarem quimera tudo quanto dito nestas linhas, basta olhar ao redor e verificar o quanto uma sociedade escolarizada, pedagogizada pode alcançar o paroxismo da mediocridade, a qual, se quiserem, poderão designar com outra palavra. O que, no fundo, não altera nada.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Recordamos, de imediato, a voz distante de Roberto Lyra Filho (1984, p. 7) cujas palavras combatem os críticos que, insatisfeitos com os muros reacionários do ensino jurídico, desertam, buscando locais nos quais o trânsito é livre e demasiado plácido. Um modo, parecenos, de vociferar conscientemente em vão, falto de força para enfrentar o que se nos apresenta equivocado.

Como se vê, não há aqui, ao apontarmos catástrofes, mensagem qualquer de desencorajamento. Todo o contrário, ao preenchermos as lacunas dos discursos da escolarização, queremos desvendar tudo quanto se dá furtivamente, derribar biombos, para, em seguida, refletir sobre outros horizontes, torná-los possíveis. Sem, no entanto, cair no erro de, ao destruir um dogma, erigir outro.

Ao revés, necessário eliminar a figura do explicador, de sorte a possibilitar a autonomia de cada um, cada qual bosquejando a própria emancipação. Aqui, devemos evocar Rancière (2015, p. 66), que, através de suas reflexões e escrita, revelou-nos a fantasia abrigada pela toga de Paris para, em seguida, anunciar-nos a consequência da consciência, em cada um de nós, dessa desilusão. Ora, ao inexistir explicador, como constatação autorizada, já não se poderá evocar a distinção entre inteligências, restando arruinados imposição, subordinação, erro e culpa incutidos por discurso de poder.

Já agora percebemos o quão urgente se faz a desescolarização do ensino jurídico. Um modo de exercitar a igualdade, tão pronunciada em salas de aula, e autonomia. Urgente porque os discursos de poder, dia a dia reiterados, condicionam a prática do jurista que acaba por acreditar, como única possibilidade, nesta paisagem de arrogância e sequidão. Por isso, o título deste artigo. Uma vírgula de água representa fresta na pedra, neste instante, capaz de chorar e sentir não a piedade que mascara outros interesses, mas a dor de quem descobriu uma ferida que acende. Porque o jurista tem de saber que, por detrás de palavras que ordenam, que prescrevem coisa qualquer, repousa um corpo que nada sabe de abstração, posto que é fome, frio, dor, desejo.

De resto, o conto “Nova Califórnia” (1997, p. 195-204), de Lima Barreto, aparece-nos como alerta. O olhar hierarquizante e utilitarista, encontrado no ensino jurídico (e em tudo o mais), acaba por enxergar, onde queremos pessoas, ossos capazes de se converterem em ouro.


6. REFERENCIAL

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AMORIM, Breno S.. Vírgula de água: ensino jurídico desescolarizado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5132, 20 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59210. Acesso em: 26 abr. 2024.