Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/60093
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Um novo processo de escolha para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal

Um novo processo de escolha para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal

Publicado em . Elaborado em .

O poder não emana do povo no momento em que as normas do estado brasileiro são postas de acordo com a visão de ministros escolhidos por um processo quase que banalizado de tão simples. Essa é uma falha do sistema brasileiro, que deve ser revista e consertada imediatamente.

RESUMO:O presente trabalho propõe um novo processo de escolha para o cargo de ministros da Suprema Corte brasileira, proposta essa que terá como ponto de partida a relevância das decisões por ela tomadas. Será ressaltada, no decorrer do texto, a necessidade de uma legitimidade democrática para os ministros do STF, em razão das amplas consequências de suas decisões, que ultrapassam as paredes do plenário do tribunal e atingem a vida de inúmeros brasileiros. A legitimidade supracitada será garantida, como se verá no desenvolvimento do texto, por meio de uma participação mais ativa dos representantes políticos no processo de escolha de um ministro para o Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Processo de escolha dos ministros do STF; Justiça Constitucional; Legitimidade democrática; Amplitude dos efeitos dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal.

ABSTRACT:The present study proposes a new choice-making process for the justices of the brazilian Supreme Court. This proposal will have as bottom line the importance of each decision taken by the court itself. The necessity of a democratic legitimacy for the court’s justices will be emphasized because of the wide range of consequences their decisions knowingly have, since these decisions go way beyond the court’s walls and reach the lives of the brazilian people. Their legitimacy will be guaranteed through a more active participation of the political representatives in the already mentioned choice making process for a justice of the brazilian Supreme Court.

Keywords: Choice making process of the Supreme Court’s justices; Constitutional Justice; Democratic legitimacy; Range of consequences of the brazilian Supreme Court’s decisions.


Considerações Preliminares

Na tripartição dos poderes estabelecida pela Constituição Federal, fica incumbido a todos os juízes do Poder Judiciário o dever de julgar e aplicar as leis do nosso país.[1] As funções práticas dos juízes variam de acordo com seus cargos, mas o trabalho resume-se,grosso modo, à aplicação das leis brasileiras nos casos concretos produzidos pelos fenômenos sociais.[2] Nesse sentido, os juízes são como uma fonte de justiça responsável por solucionar os problemas sociais, tomando como referência as leis brasileiras e a orientação jurisprudencial postas.

A função de juiz, contudo, é realizada de diferentes maneiras, e em diferentes esferas da justiça brasileira, em razão da divisão interna do judiciário.[3] O objetivo do presente artigo é abordar a função do Supremo Tribunal Federal (STF) no sistema judiciário brasileiro, já que ele tem provavelmente a mais determinante atuação entre os tribunais brasileiros.

A constituição brasileira dá ao STF, no caput do artigo 102[4], a responsabilidade de “guardar a Constituição”, e mais tarde nesse mesmo artigo descreve as formas do Supremo exercer essa proteção do texto constitucional. Em suma, ela é exercida com o julgamento de ações e recursos relacionados ao descumprimento de algum preceito constitucional que chegam à Suprema Corte.

Nesse sentido, como se sabe, é dever do STF, quando provocado, julgar se uma decisão judicial, uma lei, ou outra norma jurídica brasileira, segue as determinações e as diretivas do texto constitucional. É dessa forma que o Supremo exerce o controle de constitucionalidade, que consiste, como foi dito, na verificação da compatibilidade entre as normas infraconstitucionais e o próprio texto constitucional, ao qual elas estão subordinadas.

O controle de constitucionalidade é, entretanto, uminstitutojurisdicional extremamente complexo, podendo ser exercido no Brasil de cinco maneiras diferentes, sendo que cada uma dessas maneiras é repleta de especificidades e pormenores.[5] É por isso que o presente artigo não adentrará as características do controle de constitucionalidade em si, nem das formas como ele deve ser exercido, mas se dedicará à ideia por trás de sua utilização, e principalmente do poder que possui aquele capaz de exercê-lo.

Verifica-se que a função jurisdicional do STF torna necessária uma escolha apropriada de seus ministros, que tomarão decisões determinantes para o país.Entretanto, o processo de nomeação utilizado hoje possui imperfeições que o tornam antidemocrático. Essa realidade foi a causa para a elaboração de um estudo sobre o sistema de escolha brasileiro, assim como uma proposta de mudança, que tem como meta a democratização do tão importante processo de escolha de um ministro para o Supremo Tribunal Federal.

O estudo terá como foco a falta de fiscalização das indicações presidenciais pelo Senado, que há anos não recusa um ministro.  A proposta, por sua vez, terá como meta incluir de forma mais profunda o Congresso Nacional na nomeação dos ministros, aumentado o quórum para a aprovação de um ministro, assim como incluindo a Câmara dos Deputados no processo de aceitação da indicação. É importante salientar que o objetivo do artigo é principalmente expor a falha do sistema atual, propondo brevemente soluções para o processo de escolha dos ministros. Não será proposta uma reforma constitucional concreta e pronta, mas serão introduzidos alguns princípios segundos os quais uma alteração constitucional deve ser realizada.[6]

Antes de tudo, no entanto, será justificada a necessidade dessa alteração. Justificativa essa que terá como ponto de partida o poder de decisão dado a cada ministro no momento em que eles são nomeados.


Da relevância da atuação do Supremo Tribunal Federal

Ao realizar o controle de constitucionalidade nos processos objetivose subjetivos, o Supremo tem o dever de julgar se determinada lei ou ato normativo está em harmonia com a constituição.[7]-[8]-[9]-[10] O interessante dessa competência é que, obviamente, é necessário saber o que o texto constitucional determina em sua redação antes de se julgar se uma norma jurídica está ou não de acordo com ele. Em outras palavras, é necessário saber as diretivas da Constituição antes de julgar o que está ou não de acordo com elas.

Saber quais são as diretivas da Constituição significa dar uma interpretação ao texto constitucional, ou seja, estabelecer quais das possíveis interpretações do texto é a que deve ser aplicada. Isso porque a constituição brasileira, de caráter analítico, é composta majoritariamente por normas abrangentes, que estão sujeitas a inúmeras leituras, já que são abstratas e, na maioria das vezes, não tratam de casos concretos. É por causa disso que outra competência do STF é justamente definir qual dos vários entendimentos possíveis da redação constitucional é o correto, para então julgar quais normas são ou não compatíveis com ela.

Tendo isso em mente, o jurista Mauro Cappelletti escreve em seu livro Juízes Legisladores (?):

(...) o uso mais simples da linguagem legislativa sempre deixa, de qualquer modo, lacunas que devem ser preenchidas pelo juiz e sempre permitem ambiguidades e incertezas que, em última análise, devem ser resolvidas na via judiciária (...).[11]

Esse curto trecho mostra que não há redação de norma capaz de retirar do juiz a possibilidade de dar uma interpretação distinta da vislumbrada pelo legislador, mudando, por consequência, o seu entendimento. O STF, na verdade, já mudou a aplicação da Constituição por meio da introdução de uma nova interpretação da redação do texto constitucional. Foi o caso da decisão a favor da união homoafetiva[12], na qual os ministros entenderam o parágrafo 3º do artigo 226 de forma diferente da interpretação tradicional[13],julgando que sua redação não excluía a união entre pessoas do mesmo sexo.[14]

Esse poder interpretativo se mostra, então, poderosíssimo, uma vez que serve como uma carta branca por dar espaço para leituras textuais completamente contrárias à interpretação tradicional e literal da Constituição, como ocorreu no caso do julgamento da ADPF 132.[15]

Otto Pfersmann escreve sabiamente que:

Ao contrário do que sugere a doutrina tradicional, não é a “Constituição” ou a “lei” que prescreve suas ações, pois os textos são indeterminados e não têm, por sua vez, significado. Este é atribuído pelo autor que o interpreta.[16]

Um texto é composto por palavras com significados volúveis e ambíguos, que pouco dizem por si só. O que realmente as define é o que se entende dela, ou seja, aquilo que se extrai da redação constitucional. Ronaldo Xavier escreve que “(...) as palavras em uma lei são meros símbolos da linguagem para viabilizar a comunicação, buscando, portanto, passar uma informação (...)”.[17] Sendo assim, o importante das palavras é o sentido que elas transmitem, e não a forma como elas são escritas ou postas em um texto.

O caso da ADPF 132 mostrou que a interpretação é o que realmente determina o significado extraído do texto, e que é esse significado o que estabelece a forma como o texto constitucional será aplicado, uma vez que hoje é permitido o casamento entre casais homossexuais.

Como é o Supremo quem define em seus julgamentos o entendimento “correto” de uma norma constitucional, ele tem o poder de definir como o próprio texto constitucional será posto na prática, ou seja, como o texto constitucional irá interferir na vida dos cidadãos brasileiros, que é o que realmente importa. Essa realidade coloca um peso muito grande sobre os ombros de cada ministro do STF, por saberem que eles detêm, por meio do controle de constitucionalidade, o controle de estabelecer como a pedra angular do ordenamento jurídico brasileiro será aplicada.

Por causa dessa competência determinística, que se confunde com a do Poder Legislativo, uma escolha apropriada dos ministros é de fundamental importância para legitimar suas decisões, que afetam todo o país e tratam de matérias importantíssimas. A decisão com relação à união homoafetiva, por exemplo, mudou a vida de casais homossexuais, assim como a daqueles que eram contra o casamento deles. Dessa forma, as decisões do STF ultrapassam as paredes do tribunal, e atingem a vida de inúmeros brasileiros.

Isso torna necessária uma escolha democrática dos ministros, já que, como é o povo quem deve se governar em uma democracia, é ele também, por meio de seus representantes, que deve tomar as decisões importantes para o país. Como os ministros do STF tomam decisões sobre questões extremamente relevantes para o Brasil, é o povo quem deve escolhê-los. Caso contrário, não se estaria respeitando o poder do povo determinado pela própria etimologia da palavra democracia.

Como o Brasil é um país democrático, é preciso seguir o princípio rousseauistacunhado ainda no século XVIII segundo o qual: “(...) a lei é a expressão da vontade geral(...)”.[18]Por essa razão, se a lei é não só seu mero texto, mas também o entendimento dado a ele, e é o STF quem dá à norma constitucional o seu entendimento, o povo deve ser capaz de expressar sua vontade por meio do STF para de fato controlar a produção legislativa brasileira. E o povo só pode expressar sua vontade pelo STF se ele for representado por ele, sendo que essa representação, seguindo os parâmetros político democráticos brasileiros, só é real quando é o povo quem escolhe, democraticamente, os próprios membros do Supremo. Isso não ocorre, todavia, no Brasil de hoje, onde a escolha do ministro é quase que unicamente da presidente, o que torna necessária uma mudança estrutural no processo de escolha dos ministros, a fim de torná-la uma escolha democrática.


Do processo de escolha brasileiro

No sistema de escolha atual, um ministro deve ser indicado ao STF pelo Presidente da República e ter sua indicação aprovada pela maioria absoluta do Senado brasileiro. Fica claro, com isso, que o processo de escolha passa por algum tipo de aprovação política.  Essa aprovação, entretanto, é insuficiente por uma série de razões. Uma delas consiste na prática do Senado de nunca rejeitar uma indicação do presidente. Na verdade, de todos os ministros já indicados ao STF, só cinco tiveram suas indicações presidenciais rejeitadas antes que fossem nomeados. Todas elas no governo de Floriano Peixoto, na década de 90 do século XIX.[19]

Essa aceitação automática do Senado às indicações presidenciais formou tão forte tradição que hoje a recusa de um ministro seria uma afronta ao Poder Executivo. Ela quebraria um costume bem estabelecido que dura há mais de cem anos, causando assim um transtorno imenso no cenário político brasileiro. O Poder Executivo poderia se distanciar do Legislativo, causando uma série de dificuldades para os dois. Isso atrapalharia o processo de aprovação de uma lei, que, ao ser aprovada pelo Congresso, pode ser vetada pelo presidente, além de dificultar a manutenção de uma possível medida provisória do Poder Executivo, que deve sempre passar pela aprovação do plenário do Congresso.

Em suma, a recusa de um ministro poderia desestabilizar um sistema de troca de favores e cordialidades entre os poderes executivo e legislativo, e isso dificultaria o diálogo entre os dois. Esse contexto faz a passagem da indicação pelo Senado perder seu sentido, uma vez que é feita vista grossa sobre as indicações presidenciais para ministro do Supremo Tribunal.

O objetivo da tripartição dos poderes de um estado, guiada pelo princípio dos “checks and balances”, é que um poder fiscalize o outro, para que as decisões importantes sejam tomadas pelo estado como um todo, e não só por uma parte dele.[20] Esse objetivo se estende também para a escolha de um ministro para o Supremo Tribunal, que não deixa de ser relevantíssima, como foi exposto. No entanto, a prática do Senado supracitada impossibilita a fiscalização das escolhas presidenciais para o cargo. Em outras palavras, o único método de controle das escolhas para a vaga de ministro do STF previsto na Constituição não funciona, por jamais ser utilizado. Isso anula qualquer tipo de democratização do processo de escolha

De acordo com o autor francês Michel Troper, uma composição de Suprema Corte como a do STF não é democrática, já que não é, segundo ele, representativa. Troper escreve também que o tipo de controle jurisdicional de constitucionalidade utilizado no Brasil fere princípios democráticos, já que subordina as decisões do Parlamento (Congresso Nacional) e do Presidente da República, democraticamente eleitos, a um grupo de juízes que nem mesmo receberam a aprovação direta da maioria da população.Para corrigir esse erro, Troper propõe a eleição direta dos juízes para compor a Suprema Corte, por pensar que o povo deve estar representado em uma corte que tomará decisões determinantes para o rumo do seu país.[21]

Essa visão do autor francês pode ser considerada radical pelos parâmetros atuais de escolha de um ministro, mas é algo a ser pensado, já que, no modelo atual, um grupo de ministros não eleitos de fato pode controlar as decisões de um grupo muito maior de deputados e senadores eleitos. Em outras palavras, os escolhidos pela própria população tem suas decisões legislativas completamente subordinadas ao aval do Supremo, que pode invalidá-las ao declará-las inconstitucionais. Uma lei complementar, por exemplo, pode ser declarada inconstitucional pelos ministros depois de ser pormulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Troper percebe essa incongruência sistêmica, e por isso propõe a eleição para o cargo de ministro. Essa maneira encontrada por ele, no entanto, se mostra desnecessária por vivermos em uma democracia representativa no Brasil. É certo que algumas escolhas dos políticos no Congresso não estão de acordo com a vontade da maioria da população brasileira, mas eles têm legitimidade para tomar as decisões políticas importantes do Brasil no lugar dela. É sistematicamente incoerente deixar os senadores e deputados aprovarem uma lei e, ao mesmo tempo, impedi-los de escolher os ministros do STF. É provável que a nomeação de um ministro do Supremo seja mais importante do que a aprovação de uma lei, mas ambas são decisões pertinentes relacionadas à competência legislativa no Brasil, e por isso podem ser decididas pelo mesmo órgão.

O Congresso, com o apoio do Presidente, pode aprovar uma lei, e o Presidente, como apoio do Congresso, deve ter o poder de nomear um ministro para a Suprema Corte. Como foi mencionado, o Brasil é um país onde a democracia representativa foi escolhida, e nela o povo não é consultado a todo momento para a tomada de decisões. Na verdade, nela o povo dá o seu poder de escolha aos seus representantes, nos quais ele confia e acredita, com o objetivo de otimizar o processo de decisão democrática.

O problema do modo de escolha atual não está na falta de eleição para os ministros da Suprema Corte, mas sim no processo realizado pelo Congresso e pelo presidente para escolhê-los, que está longe de ser democrático. Não é democrático porque dá poder demais a uma só pessoa: o presidente, cuja indicação para um cargo tão importante não é contestada, mas aceita com uma facilidade que não pertence à democracia. Não pertence porque numa democracia se discute posições e ideologias contrapostas, para que todas as opiniões sejam postas e, só então, seja tomada a melhor decisão. Isso não se faz presente em um processo de escolha como o do Brasil de hoje, que se assemelha a um processo autocrático[22], por estar restrito quase que exclusivamente ao presidente.


Um novo processo de escolha para os ministros do Supremo

Foi visto anteriormente no texto que o problema dos ministros do STF é que eles têm poder demais sem terem legitimidade democrática para isso. Eles podem reinterpretar a Constituição mudando completamente sua aplicação, como já foi feito antes, sem serem escolhidos pelo povo, ou mesmo terem suas decisões reguladas por algum poder cujos membros foram escolhidos pela população brasileira. Não há respeito ao já mencionado preceito segundo o qual a lei emana do povo. Por essa razão, a seguinte proposta terá como objetivo democratizar as nomeações dos ministros do STF, a fim de tornar a tão importante função da Suprema Corte uma função legítima e condizente com os princípios do estado democrático de direito.

Foi escrito no capítulo anterior que um dos maiores problemas do processo atual é a aprovação automática e displicente do Senado com as indicações presidenciais. Isso porque, quando ela ocorre, não há fiscalização do nome indicado pelo presidente, o que anula o mais básico princípio da tripartição dos poderes segundo o qual um poder deve fiscalizar o outro a fim de impedir que uma decisão importante seja tomada somente por um deles. Para impedir, então, que isso continue acontecendo, é necessário dificultar o processo de aprovação de uma indicação. Dificultar o processo de aceitação significa, em primeiro lugar, aumentar o quórum mínimo para a aprovação de um ministro, já que com isso serão necessários mais senadores apoiando a nomeação para validá-la.

Cada senador representa um alto número de eleitores, e por isso é necessário tentar agradar a cada um deles, a fim de agradar, com isso, a parte da população que nele votou. É claro que não se pode exigir unanimidade ou até mesmo algo perto disso para a nomeação de um ministro do Supremo, em razão da falta de funcionalidade disso, mas, quanto maior o quórum mínimo for para realizá-la, maior será atendência de a indicação presidencial ser a correta e representar a vontade geral do país.

Um projeto de lei complementar, por exemplo, deve receber a aprovação da maioria absoluta das duas casas do Congresso antes de ser encaminhado ao presidente.[23] É então coerente que uma pessoa como um ministro do STF, que irá compor uma corte com o poder de anular qualquer dessas leis complementares, passe por um processo de escolha mais complicado do que o de aprovação delas.

Entretanto, está previsto no parágrafo único do artigo 101 da Constituição que uma indicação do presidente deve ser aprovada somente pela maioria absoluta do Senado.[24]Isso dificulta completamente o enfrentamento do Senado com as indicações presidenciais, já que, hoje, 41 senadores podem manterjuntos a prática do Senado de nunca rejeitar um nome ao cargo de ministro do Supremo. Deve-se frisarque só o bloco de apoio ao governo e o bloco do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) têm juntos 49 senadores ao todo.[25] Eles seriam, portanto, capazes de aprovar qualquer ministro para o Supremo, já que têm mais do que a maioria absoluta do quórum do Senado. Como então realizar algum tipo de fiscalização se os outros 32 senadores tem sua vozes sufocadas diante da base de apoio ao governo unida, que, obviamente, nunca contrariará uma indicação da presidente?

Uma democracia deve ser formada com base no diálogo e no debate, sem que haja monopólio do poder de escolha em algo tão importante como uma nomeação. Por isso cada bloco deve ceder com o objetivo de que seja encontrado um nome com o qual a esmagadora maioria concorde. No cenário atual, entretanto, esses dois blocos nem mesmo precisam se preocupar com o consenso dos outros 32 senadores, por saberem que deles não precisarão.

O ideal para impedir o que está acontecendo é aumentar o mínimo de senadores necessários para a aprovação de uma indicação. É necessário que o quórum mínimo seja maior do que três quintos, já que três quintos é o necessário para se aprovar uma PEC,[26] uma vez que o novo ministro poderá, com seus colegas, mudar a leitura da restiva emenda constitucional, e com isso sua aplicação, por meio da introdução de uma nova interpretação do indeterminado texto normativo. Isso torna sua escolha infinitamente mais importante do que a aprovação de uma emenda à constituição.

Percebe-se, com isso, ser necessária uma mudança do quorum de aprovação senatorial para ministro do Supremo da atual maioria absoluta para dois terços. Isso seria suficiente para evitar que blocos isolados no Senado neutralizem outros, além de permitir que a oposição ao presidente unida consiga derrubar uma indicação que é para ela inadequada. Essa mudança também preservaria a coerência necessária ao ordenamento jurídico, já que a nomeação do ministro deve ter mais apoio do que uma aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) ou de uma lei complementar, por ser mais importante que ambas.

Nessa proposta, os dois terços são, evidentemente, um exemplo de mudança, que pode ou não ser respeitada. O que não pode deixar de ser seguida é a proposta de tornar o quórum mínimo para a aprovação da indicação presidencial maior do que o da PEC, tendo em vista que o ministro poderá ter papel fundamental na aplicação dela.

Nesse contexto, se a escolha de ministro continuar sendo responsabilidade quase que única do presidente, haverá a chance considerável de as nomeações serem inadequadas, guiadas pelo interesse pessoal do presidente em nomear ministros que defenderão suas opiniões na Suprema Corte. Entretanto, se o quórum mínimo de fato aumentar, a oposição terá força para exigir boas nomeações ao tribunal. Nomeações que seguirão as exigências do presidente e do Congresso, ou seja, dos representantes do povo brasileiro.

Entre 2014 e 2018, por exemplo,o presidente nomeará cinco ministros à Suprema Corte, ou seja, quase metade dela, em menos de quatro anos.[27]Se esses cinco novos ministros forem vinculados ao novo presidente de alguma forma, eles tomarão sempre decisões semelhantes e condizentes com a vontade presidencial. Isso significaria que o presidente teria, em todos os julgamentos, cinco ministros do seu lado, o que daria a ele uma ampla vantagem nas decisões do STF, que são, como foi exposto, importantíssimas. Como então não fiscalizar suas indicações, a fim de impedir que ele nomeie companheiros políticos e ideológicos que votarão todos juntos para a aprovação das posições dele próprio? Hoje, essa pergunta é ignorada e posta de lado, uma vez que, como foi escrito, os blocos de apoio ao governo aprovam sem maiores problemas a indicação presidencial de um ministro, o que dá ao presidente o controle da mais alta corte do Poder Judiciário brasileiro.

Outra mudança imprescindível é a inclusão da Câmara dos Deputados no processo de aprovação da indicação presidencial. Todas as leis promulgadas no país passam, necessariamente, pela votação da Câmara, e por isso é de imensurável importância que a indicação dos juízestambémo faça, até porque o Parlamento brasileiro é formado com a Câmara ao lado do Senado, e não separada e abaixo dele.[28]

Não batasse, sabe-se que, no bicameralismo federativo brasileiro, a Câmara dos Deputados é composta pelos represenantes do povo, enquanto o Senado Federal representa os Estados-Membros e o Distrito Federal.[29]-[30] Note-se, então, que a presença da Câmara dos Deputados no processo de escolha dos ministros do STF fará com que a vontade do povo esteja presente na nomeação. Excluir a Câmara do processo de aceitação da indicação de ministro é também uma escolha que, além de ser incoerente, reduz o número de representantes democraticamente eleitos pelo povo responsáveis pela aprovação da indicação presidencial, o que torna o processo, logicamente, menos participativo e menos democrático.

O quórum mínimo para a Câmara poderia ser também de dois terços já que, em geral, os quóruns das duas casas são os mesmos. Além disso, usando o mesmo raciocínio do Senado para a Câmara, dois terços também seriam um quórum mínimo satisfatório para a aprovação de um ministro. Isso tomando como base a quantidade de deputados necessária para a aprovação de uma PEC.

Essa maior participação do Congresso na nomeação é necessária para dificultar a entrada de qualquer um no Supremo, além de aumentar o debate em torno dos nomes propostos, o que enriqueceria o processo de aprovação e diminuiria as chances de uma escolha equivocada.

Dessa forma, impõe-se observar que as mudanças no processo de escolha dos ministros são mudanças estruturais, por modificarem a forma segundo a qual um ministro é escolhido. Essas mudanças têm como objetivo, como foi anteriormente escrito, a legitimação democrática da função exercida pelo STF. Com elas, os ministros terão a aprovação declarada de uma extensa parte do Congresso e do presidente brasileiro, podendo portanto atuar com a legitimidade que o estado democrático exige para existir.


Considerações Finais

Ante o exposto, não se pode ignorar tudo o que foi mostrado nos capítulos anteriores do texto. O processo de escolha atual dos ministros do Supremo é falho e arriscado, por dar espaço para o abuso de poder do presidente, que nomeia hoje os ministros quase que sozinho.  É válida a visão de que o STF tem legitimidade para decidir, porém esse poder de decisão não é condizente como estado brasileiro que preza, em primeiro lugar, pelo poder do povo no governo do Estado. É incoerente impor que o legislador seja eleito se o ministro da Suprema Corte pode ser nomeado sem nenhuma dificuldade pelo presidente e sua base de apoio no Senado. Ministro esse que terá uma posição na legislação do país tão ou mais importante que a do próprio legislador, por definir a interpretação do texto constitucional e poder, com isso,afastar do ordenamento jurídico leis ou atos normativos considerados inconstitucionais, assim como mudar a aplicação deles em defesa da Constituição Federal.

O poder não emana do povo no momento em que as normas do estado brasileiro são postas de acordo com a visão de ministros escolhidos por um processo quase que banalizado de tão simples. Essa é uma falha do sistema brasileiro, que deve ser revista e consertada imediatamente. Foi essa, na verdade, a abordagem do presente artigo: reparar uma incongruência do ordenamento pretensamente completo do estado brasileiro.

Este trabalho foi escrito há um ano. Seu autor já mudou de posição, com relação ao melhor processo de escolha de ministros para o STF.


Referências Bibliográficas

            ANJOS, Margarida; FERREIRA, Marina. Dicionário Mini-Aurélio. 6ª edição. Curitiba: Editora Positivo, 2007.

            BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª Ed. Coimbra: Almedina, 1998.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; MENDES, Gimar. Comentários à Constituição do Brasil. 1ª edição. São Paulo : Saraiva/Almedina, 2013 - (Série IDP).

            CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. 2ª edição. Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1999.

            COSTA, João. Jurisdição Constitucional: Um breve panorama sobre algumas novidades. Brasília: Senado Federal, 2013.

            ­­­­­­­____________. AmicusCuriae e AmicusLegislatoris. Brasília: Senado Federal, 2013.

            GARNER, Bryan A. Black’s Law Dictionary. 2ndpocketedition. Saint Paul (Minnesota): West Group, 2001.

            KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. 1ª edição. Porto Alegre: Fabris, 1986.

            LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Método, 2007.

            MELLO, Celso de. Notas sobre o Supremo Tribunal Federal. 3ª edição. Brasília: Editora do Supremo Tribunal Federal, 2012.

            MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade – Aspectos Jurídicos e Políticos. São Paulo: Saraiva, 1990.

            MONTESQUIEU. De l’EspritdesLois.

            MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

            MORTARI, Cezar A. Introdução à Lógica. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2001.

            PFERSMANN, Otto. PositivismoJurídico e Justiça Constitucional no Século XXI. Trad. Alexander Coutinho Pagliarini. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014 – (Série IDP: direito comparado).

            ROUSSEAU, J.J. Du Contrat Social.

            SANTIAGO NINO, Carlos. Introdução à Análise do Direito. Trad. Elza Maria Gaspartotto. 1ª edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

            TROPER, Michel. Pour une ThéorieJuridique de l’État.1ª edição. Paris: PressesUniversitaires de France.

_________. La ThéorieduDroit, leDroit, l’État. 1ª edição.Paris: PressesUniversitaires de France.

XAVIER, Ronaldo Caldeira. Português no Direito. 16ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010.           


Notas

[1]Entende-se portripartição dos poderes: “The division of governmental authority into three branches- legislative, executive, and judicial- each with specified powers and duties on which neither of the other branches can encroach; the constitutional doctrine of checks and balances.” Ver: GARNER, Bryan A. Black’s Law Dictionary. 2ndpocketedition.Saint Paul (Minn): West Group, 2001, p. 637.

[2] Essa é a ideia da transformação feita pelo juiz de uma norma hipotética (geral e abstrata) para uma norma categórica (específica e individualizada). Ver: SANTIAGO NINO, Carlos. Introdução à Análise do Direito. Trad. Elza Maria Gaspartotto. 1ª edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 88. Ou então a ideia da transformação da norma geral para a individual de Kelsen. Ver: KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. 1ª edição. Porto Alegre: Fabris, 1986, p. 10.

[3] CF, art. 92.

[4] Lê-se no caput do artigo 102: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (...)”.

[5]COSTA, João. Jurisdição Constitucional: Um Breve Panorama Sobre Algumas Novidades. Brasília: Senado Federal, 2013, p. 11-23 e 35-54.

[6]Não se desconhece as diversas Propostas de Emendas à Constituição que tramitam nas Casas do Congresso Nacional, buscando alterar o processo de escolha dos ministros do STF, tais como: PEC nº 3/2014, PEC nº 44/2012, PEC nº 58/2012, PEC nº 038/2008, 473/2001, apresentadas, respectivamente, pelos Senadores Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), Cristovam Buarque (PDT-DF), Roberto Requião (PMDB/PR) e pelos Deputados Antônio Carlos Pannuzio e outros, divulgadas no sites do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Elas, contudo, não abordam o tema do processo de escolha dos ministros do Supremo Tribunal da forma como está sendo feito no presente artigo. Por essa razão não será dada especial atenção às sugestões dos parlamentares.

[7] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 309-318.

[8]MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade – Aspectos Jurídicos e Políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 250-251.

[9]CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª Ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 861.

[10]COSTA, João. AmicusCuriae e AmicusLegislatores. Brasília: Senado Federal, 2013, p. 60-63.

[11]CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. 2ª edição.Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1999, p. 20-21.

[12] Acórdão completo da decisão disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633

[13] CANOTILHO, J.J. Gomes; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; MENDES, Gilmar. Comentários à Constituição do Brasil. 1ª edição. São Paulo : Saraiva/Almedina, 2013, p. 2118-2120- (Série IDP).

[14] Lê se no parágrafo 3º do artigo 226: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

[15] Cabe citar, ao lado da ADPF 132, a ADPF 54, que legalizou o aborto de fetos anencefálicos. Essa decisão gerou uma acalorada discussão em todo o país, e mudou a própria legislação brasileira.

[16]PFERSMANN, Otto. PositivismoJurídico e Justiça Constitucional no Século XXI. Trad. Alexander Coutinho Pagliarini. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 102. – (Série IDP: direito comparado).

[17]XAVIER, Ronaldo Caldeira. Português no Direito. 16ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010. P. 11. Ver também: MORTARI, Cezar A. Introdução à Lógica. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2001, p. 31.

[18]Tradução livre de: “La loi est l’expression de la volonté générale”. ROUSSEAU, J.J. Du Contrat Social. Livre II, Chapitre3.

[19]MELLO, Celso de. Notas sobre o Supremo Tribunal Federal. 3ª edição. Brasília: Editora do Supremo Tribunal Federal, 2012, p. 18.

[20]MONTESQUIEU. De l’EspritdesLois. Livre III.

[21]A crítica de Troper ao controle jurisdicional tradicional está espalhada por sua obra. Ver principalmente: TROPER, Michel. Pour une Théorie Juridique de l’État. 1ère édition. Paris: PressesUniversitaires de France, 1994, p. 329-346; TROPER, Michel. La Théorie du Droit, le Droit, l’État. 1ère édition. Paris: PressesUniversitaires de France, 2001, p. 173-193.

[22]Autocrático se refere, nesse caso, à decisão de um autocrata, que seria um soberano independente. Ver: ANJOS, Margarida; FERREIRA, Marina. Dicionário Mini-Aurélio. 6ª edição. Curitiba: Editora Positivo, 2007, p.154.

[23] CF, art. 69.

[24] Lê-se no trecho constitucional citado: “Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal”.

[25]Ver divisão dos blocos internos do Senado em: http://www.senado.gov.br/senadores/liderancas.asp

[26] CF, art. 60, § 2º.

[27]Essas cinco nomeações ocorrerão em razão da aposentadoria compulsória dos ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Rosa Weber, Teori Zavascki e Ricardo Lewandowski. Ver respectivos currículos vitae dos ministros em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfComposicaoComposicaoPlenariaApresentacao. 

[28] A Constituição Federal determina no artigo 44 que: “O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal”.

[29] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Método, 2007, p. 328.

[30]MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 390.



Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.