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O direito penal do inimigo frente às garantias penais constitucionais

O direito penal do inimigo frente às garantias penais constitucionais

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Diante das crescentes agressividades que abarca o país, tem-se uma preocupação com a segurança pública. Analisando a doutrina do Direito Penal, encontra-se a teoria do Direito Penal do Inimigo, o qual será analisa conforme nosso ordenamento jurídico.

INTRODUÇÃO

O presente artigo fará uma abordagem acerca da teoria do direito penal do inimigo, proposta por Guther Jakobs, analisando sua (in)compatibilidade frente a um Estado democrático, que preza pelas garantias fundamentais do indivíduo.

O tema tratado possui extrema relevância atualmente, uma vez que a criminalidade que assola nosso país é latente. Desta forma, tem-se discutido a real finalidade do Direito Penal, bem como as formas de contenção da violência que esta ciência jurídica pode proporcionar, sendo uma delas o direito penal do inimigo.

Nesse sentido, o presente artigo está dividido em três capítulos, sendo que o primeiro capítulo irá analisar os conceitos do direito penal, analisando suas formas de política criminal e o fim a que se destina, bem como fazendo um aprofundamento do abolicionismo, minimalismo e expansionismo do direito penal.

No segundo capítulo, será estudado o que compõe a teoria do direito penal do inimigo proposta por Jakobs, o qual reconhece o Direito Penal como um garantidor do sistema normativo, e não um protetor de bens jurídicos, apresentando seus argumentos de forma a segregar o cidadão do inimigo, sendo que este não é reconhecido como pessoa, perdendo seus direitos quando viola a norma jurídica.

Por fim, o último capítulo fará um confronto entre a teoria proposta por Jakobs e as garantias penais do indivíduo, de forma a analisar se há compatibilidade ou não com o sistema constitucional, sendo apresentado a relação entre Direito Penal e a Constituição, bem como os princípios que garantem um Estado democrático.


1 CONCEITO DE DIREITO PENAL: ABOLICIONISMO, MINIMALISMO E EXPANSIONISMO PENAL

Este primeiro capítulo irá analisar os fins que o Estado deve seguir ao aplicar a pena, tendo como sucedâneo a aplicação do Direito Penal, verificando as funções que legitimam a intervenção penal.

Desta forma, será analisada três teorias que busca fundamentar e estabelecer a função exercida pelo o Direito Penal, quais sejam, o abolicionismo, minimalismo e expansionismo penal. Apesar das presentes teorias apresentarem divergências entre si quanto às razões que a justificam, apresentam um ponto em comum, qual seja, a necessidade do direito penal para o controle da criminalidade.

1.1 Abolicionismo Penal

O abolicionismo penal é um movimento de política criminal que surgiu nos Estados Unidos entre os anos 60 e 70 e possui como principal característica a abolição imediata de todo o sistema penal (QUEIROZ, 2001).

O abolicionismo propõe não apenas a extinção da pena, mas também de todas as premissas em que se fundamenta o direito penal, fundamentando que, nas palavras de Paulo Queiroz, “o sistema penal é em si mesmo um problema social que cria mais problemas do que resolve, razão por que deve ser abolido para dar vida às comunidades, instituições e aos homens (p. 93).

O direito penal é incapaz de prevenir, por meio de aplicação e execução da pena, a prática de novos crimes e a sua cessação. Argumenta-se que o direito penal não age positivamente no que tange à formação da vontade de praticar crimes, pois o delito é derivado de questões psicológicas ou sociais, não sendo neutralizado pela aplicação de uma pena (HULSMAN; CELIS, 2003).

Desta forma, para os abolicionistas o direito penal não é repressivo, mas sim disciplinador, arbitrário e seletivo, pois confia-se ao direito penal um poder que vai além do repressivo, configurando aos órgãos do sistema penal um controle social militarizado e verticalizado (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2013).

Por fim, sustentam que o direito penal é seletivo, vez que foca nos indivíduos mais miseráveis da sociedade; não opera dentro da legalidade, posto que viola os direitos humanos, criminalizando infinitas condutas; há uma neutralização da vítima, visto que todos são tratados da mesma maneira, não levando em consideração as característica de cada indivíduo; o sistema penal intervém sobre pessoas, e não sobre situações ou conflitos, além de não intervir de maneira preventiva, pois ingere-se quando as consequências do crime já se produziram; e o sistema penal possui um caráter sintomatológico,  ou seja, intervém apenas nas causas dos efeitos do crime, e não na violência (QUEIROZ, 2001).

1.2 Minimalismo Penal

Por outro lado, o movimento minimalista, também de cunho político-criminal, propõe um direito penal mínimo como forma de abolição gradual do sistema penal, sendo que o direito penal deve assumir um caráter residual. Nas palavras de Paulo Queiroz:

A perspectiva minimalista radical reconhece o sistema penal como um subsistema de reprodução seletiva de desigualdades materiais, criminógeno e incapaz de realizar suas funções declaradas, mas considerada impossível a supressão desse sistema sem que se desencadeiem, previamente, mudanças sociais estruturais, razão por que a preservação tática do direito penal é necessária enquanto não se operam tais mudanças (p. 106).

Apesar do minimalismo defender a ideia de caráter residual do direito penal, isto não impede a possibilidade de ampliação, em alguns casos, da intervenção penal, desde que seja necessária à proteção de direitos sociais e fundamentais. O principal método de contração do direito penal é a descriminalização de condutas cuja repressão seja inadequada.

Sendo assim, o direito penal mínimo, para Luigi Ferrajoli, é um direito condicionado e limitado, correspondendo não apenas na tutela das liberdades do cidadão frente ao arbítrio punitivo, mas também a uma ideia de racionalidade e certeza, restando, consequentemente, excluída a responsabilidade penal em que houver incerteza quanto aos seus pressupostos (2014).

1.3 Expansionismo Penal

O direito penal é o ordenamento jurídico que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando na aplicação de sanções. Nesse sentido, o direito penal está diretamente ligado com a política criminal, a qual tem o objetivo de fazer uma análise crítica do direito normatizado, com o fim de ajustá-lo aos ideais jurídicos-penais e de justiça; está ligada à dogmática e propõe modificações no sistema penal vigente (PRADO, 2013).

Nesse sentido, com o desenvolvimento tecnológico e, consequentemente, da globalização, surge uma necessidade do Estado salvaguardar os diretos de seus cidadãos, fazendo isso por meio de várias edições de leis que visem a segurança, ocorrendo o fenômeno do expansionismo penal.

A expansão do direito penal remete-se à novos tipos penais, visando maior penalização das condutas de maneira exagerada. Tal fenômeno explica-se pela relação entre liberdade e segurança, valores que são resguardados pela sociedade atual. Vê-se que esse novo Estado é caracterizado pela noção de direito penal do inimigo (ROSA, 2013).

Como forma de crítica a esse fenômeno, Gerson Faustino Rosa determina que:

Essa expansão do direito penal, aliadas a demandas crescentes de segurança, vem seguidas do ajuste de direitos que, do ponto de vista preventivo, parecem plausíveis ou até mesmo indispensáveis, mas que, sob a perspectiva do direito penal, podem ser resumidos a deformações do perfil garantista do direito penal que não se limitam, porém, às suas novas divisões, porém, ameaçam infectá-lo como um todo. Essa análise não se torna mais otimista quando se dá conta do punitivismo atual, avesso à explicações e, às vezes, à própria culpa individual. Essa epidemia penalizante acaba por contaminar todo o sistema penal, chegando a proporções inimagináveis na deformação do Estado outrora antropologicamente amigo, ao respeita a dignidade da pessoa humana e ao empenhar-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade (CANOTILHO apud ROSA, p. 61, 2013).

Tendo os entendimentos acima colacionados, pode-se afirmar que instaurou-se uma sociedade de riscos, em que proporciona a insegurança e o medo nas relações sociais. Sensação de pânico legitima essa expansão, ocasionando uma intervenção na vida do cidadão sem respeitar suas garantias fundamentais, buscando tão somente cumprir a finalidade da norma (FRANÇA; BUSATO, 2011).

Desta forma, tendo em vista que atualmente os problemas sociais não se vê satisfeito pelo direito penal, entendem os estudiosos das ciências criminais ser inevitável sua expansão, mas a principal crítica que se faz é que essa ampliação do direito de punir não pode basear-se, principalmente, em penas privativas de liberdade.

Sendo assim, constata-se o fato de o direito penal ser utilizado como “resposta imediata” a todos os problemas da sociedade moderna, ainda que sem maiores proporções. Consequentemente, o uso abusivo da pena privativa de liberdade como resposta aos clamores sociais tende a uma punição sem limites, não atrelando-se ao princípio da adequação.


2 O DIREITO PENAL DO INIMIGO POR GUNTHER JAKOBS

O presente capítulo irá analisar o conceito da teoria do direito penal do inimigo, bem como avaliar sua aplicação como forma de política criminal. Para isto, serão analisadas as principais características que compõem esta teoria, começando pelo funcionalismo sistêmico proposto por Guther Jakobs.

Além disso, serão apresentadas as críticas contra a aplicação desta teoria, bem como sua importância para o Direito Penal.

2.1 O funcionalismo sistêmico de Jakobs

O funcionalismo surgiu como forma de definir a verdadeira função do direito penal e, antes de ser analisado o funcionalismo sistêmico de Jakobs, é preciso tecer comentários a respeito da imputação objetiva, tanto na visão de Jakobs como de Roxin.

Para o sistema naturalista, os crimes de resultado limitavam-se a descrever uma modificação no mundo exterior, enquanto o finalismo acrescenta uma concepção subjetivista, qual seja, o dolo, não havendo ação típica sem esta finalidade. Outros dados psíquicos, como fins especiais de agir, também passam a integrar o tipo, passando a conter elementos de tipo objetivo e subjetivo (GRECO, 2002).

Desta forma, pode-se notar que o finalismo apenas acrescentou ao conceito do tipo naturalismo o componente subjetivo, ou seja, o tipo objetivo do finalismo é idêntico ao tipo do naturalismo e é exatamente isto que vem a ser modificado pela imputação objetiva, isto é, modifica o conteúdo do tipo objetivo, afirmando que é necessário preencher uma série de requisitos para considerar determinado fato como objetivamente típico, além da ação, causalidade e resultado. Tais requisitos consistem na criação de um risco juridicamente proibido e a realização do risco no resultado (GRECO, 2002).

Roxin, com base na doutrina elaborada por Honig, desenvolveu vários critérios para a imputação objetiva, sustentando que só pode ser imputável o resultado que pode ser finalmente previsto e dirigido pela vontade, sendo critérios para a imputação objetiva a diminuição do risco, criação de um risco juridicamente relevante, aumento do risco permitido e fim da proteção da norma. Nesse sentido, Roxin desenvolveu o conceito de funcionalismo moderado, pelo qual não basta a realização formal do tipo para a configuração da tipicidade, determinando, ainda, que a função do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos (PRADO, 2005).

Roxin pretende demonstrar que o Direito Penal não deve deixar de lado a análise dos efeitos que produz na sociedade, afirmando que se as soluções alcançadas no caso concreto forem insatisfatórios, poderão ser corrigidos através dos princípios garantistas e das finalidades políticos-criminais do sistema penal, ou seja, o sistema penal deve ser estruturando teologicamente. Nesse sentido:

A dogmática deixa de estar estritamente vinculada à exegese do Direito positivo, ou a conceitos deduzidos da natureza das coisas, para incorporar, como parâmetro valorativo, as finalidades que o Direito Penal busca alcançar, permitindo, em última instância, que a solução do caso concreto se amolde em maior medida às finalidades do sistema penal (BITENCOURT, p. 123, 2016).

Por outro lado, Jakobs afirma que a função do direito penal está na reafirmação da vigência da norma que o comportamento ilícito violou, “quem viola a norma, antes de destruir um bem jurídico, antes de eliminar uma vida ou destruir o patrimônio alheio, exterioriza um esboço do mundo, de um mundo no qual a norma não vige”. Para ele, só será tipicamente objetiva a ação que viole um papel, que deduz-se através da posição de garantidor, a criação do risco juridicamente proibido confunde-se com a violação do dever que incumbe ao garantidor (GRECO, p. 121, 2002).

O funcionalismo sistêmico de Jakobs caracteriza-se pela forma radical do critério funcional, de forma que os parâmetros do sistema penal encontram-se no interior do próprio sistema, sem ingerências de limites externos. O verdadeiro bem jurídico penal a ser protegido é a norma, pois somente assim respeitam-se os bens de interesse dos indivíduos e do convívio social. Em outros termos:

O normativismo de Jakobs é muito mais radical que o de Roxin: este admite que o normativismo encontre limites na realidade empírica e em critérios valorativos, a qual teria suas próprias exigências e condicionaria as construções jurídicas e as soluções a que deve conduzir; postula, ademais, uma dogmática do Direito Penal aberta a princípios político-criminais a partir dos quais interpreta as normas jurídico-positivas. Jakobs, por sua vez, incorporando fundamentalmente a teoria dos sistemas sociais de Luhmann, concebe o Direito Penal como um sistema normativo fechado, autorreferente (autopoiético) e limita a dogmática jurídico-penal à análise normativo-funcional do Direito positivo, em função da finalidade da prevenção geral positiva da pena, com a exclusão de considerações empíricas não normativas e de valorações externas ao sistema jurídico positivo (BITENCOURT, p. 125, 2016).

Desta feita, compreende-se que Jakobs afirma que o direito penal  garante a vigência da norma, não a proteção de bens jurídicos. Consequentemente, criou-se o conceito de funcionalismo radical, o qual determina que o delito é toda violação da norma que vai contra as viabilidades sociais de convivência. A missão do direito penal está ligada a prevenção geral (CALLEGARI; LYNETT; JAKOBS; MELIÁ, 2005).

2.2 Noções e críticas à teoria do Direito Penal do Inimigo

O direito penal do inimigo é uma teoria desenvolvida por Guther Jakobs criada 1985 em que, prima facie, defende a ideia de que deve existir dois tipos de Direito, sendo um voltado para o cidadão e o outro para o inimigo, sendo que ambos pertencem ao mesmo contexto jurídico-penal. Logo que criou esta teoria, alegava que o direito penal legítimo seria o direito penal do cidadão, garantindo ao indivíduo que cometeu uma infração garantias de que voltará a agir de acordo com a norma, tendo acesso a todos os direitos penais e processuais penais previstos em lei. No entanto, a partir de 1999, passou a defender a aplicação do direito penal do inimigo, alegando não ser este direito ilegítimo, pois esta distinção entre direito penal do cidadão e direito penal do inimigo seria necessária para proteger a ordem jurídica (MARTINS; ESTRADA, 2009).

O direito penal do inimigo vê no criminoso não um cidadão a ser respeitado, mas sim um perigo que deve ser neutralizado. Para Jakobs, é possível caracterizar o direito penal segundo o autor, podendo enxerga-lo como cidadão ou inimigo (GRECO, 2005).

Em oposição ao direito penal do cidadão, que visa à estabilização da norma, o direito penal do inimigo possui a função de afastar perigos futuros, sendo suas  principais características a ampla antecipação da punibilidade, pena desproporcional nos tipos correspondentes, transição para uma legislação de “combate” e o desmantelamento de garantias processuais. O direito penal do inimigo visa à prevenção do perigo (NEUMANN, p. 160, 2007).

O caráter punitivo do direito penal tem como função manter a previsibilidade das relações sociais, confirmando a vigência das normas, apesar da sua esporádica violação, concluindo que o direito garante a proteção da vigência das normas, e não de determinados bens jurídicos. Nas relações sociais há um risco tolerado pelo direito, sendo que determinada conduta, apesar de prevista em lei, não seria punida. No entanto, quando uma conduta é vedada pelo ordenamento jurídico, gerando um risco não admitido pela sociedade, surge a necessidade de punição como forma de reafirmar a vigência da norma no grupo social (MORAES, 2008).

Para cumprir com a finalidade da norma, ou seja, a manutenção da ordem social, Jakobs cria dois círculos de direito, embora aplicáveis em um só contexto jurídico, sendo o primeiro referente ao direito penal do cidadão, aplicando-se aos delitos cotidianos, e o segundo refere-se ao direito penal do inimigo, aplicável aos casos inversos. Em suma,

O direito penal do cidadão é o direito de todos, o direito penal do inimigo é daqueles que constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só a coação física, até chegar à guerra. O direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, o direito penal do inimigo combate perigos (JAKOBS apud MORAES, p. 25, 2008).

O direito penal do inimigo é voltado a impedir a destruição do ordenamento jurídico e, consequentemente, do grupo social. Tem como foco uma resposta à criminalidade, o qual se não tomar medidas que neutralizem esse comportamento, pode colocar em risco as estruturas sociais. Nas palavras de Prittwitzs:

“Direito penal do inimigo é um direito penal por meio do qual o Estado confronta não os seus cidadãos, mas seus inimigos. Em que isso se faz viável? Primeiramente, tomando-se a lei concretamente – o Código Penal e a legislação processual penal, o que se vê é que, onde se trata de punição de inimigos, se pune antes e de forma mais rígida; o ponto de vista do direito material, a liberdade do cidadão de agir e (principalmente) de pensar é restringida; ao mesmo tempo, subtraem-se direitos processuais do inimigo (PRITTWITZS apud MORAES, p. 26 e 27, 2008)”

Depreende-se que o direito penal do inimigo, apesar de ter sido pensado a partir de concepções funcionalistas e, portanto, de prevenção geral positiva, no sentido de prevenção do ordenamento jurídico como forma de proteger a sociedade, sua finalidade é de prevenção especial, na modalidade negativa (MORAES, 2008).

Por outro lado, há severas críticas a respeito da teoria do direito penal do inimigo. A principal delas é que o direito penal do inimigo não estabiliza normas (prevenção geral positiva), mas sim delimita determinados grupos de infratores e, consequentemente, cria um direito penal do autor (JAKOBS; MELIÁ, 2008).

Ao defender um direito penal do autor, estaria legitimando um direito penal tão repressivo que acabaria punindo o agente pela mera cogitação do crime. O direito penal do inimigo visa aplacar o clamor público por meio de soluções eficazes na contenção da criminalidade, sob o fundamento de que com uma punição mais severa seria possível evitar que os crimes mais graves acontecessem por meio da coação e sem garantias. A redução de direitos e garantias processuais não ficaria limitada apenas aos considerados inimigos, mas também a todos os cidadãos, tendo em vista que o conceito de inimigo é muito genérico (MARTINS; ESTRADA, 2009).

Desta feita, pode-se dizer que essa teoria, ao invés de ser progressiva, é regressiva, pois objetiva eliminar toda a proteção que o indivíduo possui. O direito penal deve ser interpretado em consonância com o texto constitucional, pois deve-se limitar o poder punitivo estatal e, principalmente, efetivar as garantias fundamentais do indivíduo como sujeito de direitos (PASCHOAL, 2003).


3 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E AS GARANTIAS PENAIS DO ACUSADO

O último capítulo analisará a teoria de Gunther Jakobs com o Estado Democrático de Direito, ou seja, irá averiguar se a teoria do Direito Penal do inimigo é compatível com um Estado democrático.

Desta forma, para analisar essa compatibilidade, será apresentado o direito penal comparando com as garantias constitucionais, tendo como principal base o princípio da dignidade da pessoa humana.

3.1 AS GARANTIAS PENAIS PRESENTES NA CONSTITUIÇÃO

Analisando as garantias fundamentais dos indivíduos presentes na Constituição, percebe-se que estas garantias possuem íntima relação com o Direito Penal, já que este é o ramo que protege o indivíduo contra agressões em seu desfavor. Dessa forma, o direito de punir do Estado incidirá sobre a violação de bens jurídicos relevantes, que são os protegidos pela Constituição.

Diante da ideia de bem jurídico penal, começaram a surgir teorias de que a Constituição é que define os bens, ou seja, levando em consideração de que é a Constituição que emana os valores mais importantes para a sociedade, é nela que o legislador deve se pautar quando escolher bens a serem protegidos pelo Direito Penal. Pode-se dizer que o constituinte busca o bens jurídicos penais na sociedade, enquanto o legislador os retira da Constituição. (PASCHOAL, 2003).

Nesse sentido, Alberto Silva Franco afirma que:

A estreita vinculação entre a ordem jurídica e a ordem social recomenda o exame da própria realidade social para a identificação dos bens jurídicos mais relevantes para o indivíduo e para a convivência societária. Afirma-se, em princípio, que a Constituição de um país define esses bens, revelando-os como expressão consensual da vontade dos membros de uma comunidade, como expressão hierarquizada daqueles interesses que se consideram essenciais para o funcionamento do sistema social (FRANCO apud PASCHOAL, p. 50, 2003).

Luiz Regis Prado também assevera que o conceito de bem jurídico deve ser entendido levando-se em consideração a Constituição, a fim de se operar uma normativização das diretrizes político-criminais (PRADO, 1997).

Dessa sintonia que surge entre a Constituição e o Direito Penal, determina-se o que pode ser considerado bem jurídico penal, isto é, o que pode ser protegido pelo ius puniendi do Estado.

Desta forma, uma das formas de relacionar o Direito Penal e a Constituição é fazer com que esta seja um limite negativo daquele. Toda conduta criminosa que não desrespeite a Constituição será admitida, ainda que o valor tutelado não seja tratado na Constituição. A Constituição é o limite negativo do Direito Penal (PASCHOAL, 2003).

Há também quem compreenda a Constituição como um limite positivo ao  Direito Penal, afirmando que o legislador somente pode utilizar a tutela penal para proteger bens que foram definidos na Constituição. Não é suficiente que a lei penal não entre em conflito com a Constituição, é necessário que o direito de punir do Estado recaia sobre bens que foram discriminados no texto constitucional (PASCHOAL, 2003).

Com isso, analisando as posições negativas e positivas da Constituição, busca-se esclarecer a ligação que o Direito Penal possui com o Direito Constitucional, sendo que a Constituição é um limitador do direito de punir do Estado, de forma a não contrariar os direitos constitucionais.

3.2 A APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

Analisando os pormenores da teoria de Jakobs, bem como as principais funções do Direito Penal, o direito penal do inimigo surgiu como forma de contenção ao aumento da criminalidade, principalmente diante dos diversos ataques terroristas que assola o mundo contemporâneo.

Diante da periculosidade que o inimigo pode resultar em uma sociedade, a teoria de Jakobs busca neutralizar este indivíduo perigoso, almejando proteger o sistema penal, propondo dois tipos de direitos a serem aplicados, quais sejam, o direito penal do cidadão e o direito penal do inimigo, os quais se insurgem contra a norma, não possuindo, portanto, qualquer direito ou garantia fundamental, visto que suas condutas ferem o sistema jurídico.

O inimigo não possui nenhuma garantia processual, sendo que a sua punição será a aplicação de uma medida de segurança, o qual visa retirá-lo do convívio social o máximo de tempo possível.

Sendo assim, entende-se que tal teoria não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, visto que sua proposta fere o ordenamento jurídico como um todo, sendo algo completamente totalitário. Por mais perigoso que o indivíduo possa ser, ele não pode perder seus direitos e garantias fundamentais, visto que tal conduta afronta o Estado garantidor. Ademais, o termo “inimigo” é algo muito vago, passível de várias interpretações, não havendo uma maneira segura de distinguir o inimigo do cidadão, podendo levar a decisões arbitrárias e abusivas.

Mesmo que a teoria do direito penal do inimigo fosse regulamentada no ordenamento jurídico de forma detalhada e abrangendo suas formas de aplicação e abrangência, ainda assim tal teoria seria inconstitucional, tendo em vista que os indivíduos não podem ser tratados de forma diferente, pois é um dos postulados do Direito Constitucional o princípio da isonomia, devendo-se aplicar os mesmos direitos e garantias a qualquer indivíduo. Privar qualquer indivíduo de seus direitos e garantias fundamentais seria o mesmo que fulminar as cláusulas pétreas previstas no art. 60 da Constituição de 1988.

Ademais, a adoção dessa teoria levaria a crer que o direito penal fundamenta sua punição levando-se em consideração um direito penal do autor, e não do fato, ou seja, para a punição do agente leva-se em conta exclusivamente suas características pessoais, e não o fato cometido.


CONCLUSÃO

O presente artigo teve por fim promover uma análise crítica a respeito da teoria do Direito Penal do Inimigo proposta por Guther Jakobs, bem como a sua aplicação em um Estado democrático de Direito, chegando-se a conclusão que tal teoria não deve prevalecer.

Desta forma, no primeiro capítulo foi feito um estudo acerca das propostas de políticas criminais, sendo que o abolicionismo penal propõe a descriminalização de condutas; o minimalismo defende a intervenção ultima ratio do Direito Penal; e o expansionismo penal utiliza-se de instrumentos que amplia  a intervenção do Direito Penal, criando mais leis como forma de neutralizar a criminalidade, sendo demonstrado que este modelo vai contra o direito penal mínimo, pois entende-se que o Direito Penal somente pode intervir quando os outros ramos do Direito não forem capazes de resolver o problema. Aplica-se o princípio da fragmentariedade.

Posteriormente, foi analisada a teoria do Direito Penal do Inimigo, criada por Guther Jakobs. Tal teoria estabeleceu-se com o advento do Direito de terceira velocidade, pautando-se pela retirada dos direitos e garantias fundamentais da pessoa considerada inimigo, adotando-se tipos penais abertos e mais rigorosos. Sua teoria foi baseada nos conceitos do funcionalismo sistêmico, o qual visa proteger o sistema penal, e não bens jurídicos.

Desta forma, o último capítulo demonstrou a correlação que o Direito Penal possui com a Constituição, sendo que o texto constitucional visa delimitar e proteger os bens jurídicos, devendo o legislador ordinário obedecer esses limites. Com isso, ficou claro que a teoria do Direito Penal do inimigo não pode ser aplicada em um Estado garantista, uma vez que tal teoria aniquila toda a proteção que a Constituição proporciona a seus indivíduos, já que leva em consideração unicamente a proteção do sistema penal.

Tal teoria encontra-se em absoluto descompasso com o ordenamento jurídico atual, visto que o direito penal do inimigo é considerado uma nova roupagem do direito penal do terror, durante a Idade Média, e do direito penal do autor, durante a Segunda Guerra Mundial.

A melhor forma de se combater o crime é a adoção de políticas criminais, aplicando-se o Direito Penal sancionador como ultima ratio, ou seja, quando tiver esgotado todas as possibilidades de controle da criminalidade por outros métodos que não a sanção.

Adotar a teoria do direito penal do inimigo como forma de combater ou neutralizar a criminalidade seria ferir de morte toda a conquista que os povos conquistaram para o reconhecimento e consagração dos direitos humanos.

Aos que são adeptos à aplicação do direito penal do inimigo justificam sua utilidade como forma de endurecimento das penas e como forma de mostrar uma rápida solução para a sociedade para combater a criminalidade, mas ao fazer isso, afronta os princípios democráticos do Estado de Direito.

Desta feita, pode-se afirmar que o direito penal do inimigo configura um retrocesso social, regredindo à época da Idade Média, caracterizada pela inquisição, desprezando todas as conquistas que os povos conseguiram quanto aos direitos humanos. Antes de abarcar  um direito que visa um etiquetamento das pessoas, distinguindo-as em grupos de cidadão e inimigo, deve-se levar em consideração que a pessoa é o centro da democracia, é o ser dotado de garantias e direitos fundamentais, a qual não pode ser submetida a nenhum tratamento desumano ou degradante.


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