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Redução à condição análoga a de escravo: a problemática definição de “condições degradantes” para fins penais

Redução à condição análoga a de escravo: a problemática definição de “condições degradantes” para fins penais

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O artigo analisa quais as condições de trabalho são, de fato, ofensivas à dignidade dos trabalhadores, de modo a autorizar a incidência do art. 149 da Lei Penal.

Introdução

Combater o trabalho escravo é dever constitucional indeclinável, extraído da proteção dada aos direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a proibição de tratamento desumano ou degradante e a liberdade. Trata-se ainda de dever reconhecido internacionalmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pela Organização Internacional do trabalho.

O art. 149 do Código Penal estabelece como crime a conduta de reduzir alguém a condição análoga a de escravo, por meio da submissão a trabalho forçado ou jornada exaustiva, pela sujeição a condições degradantes de trabalho, ou mediante a restrição da liberdade de locomoção em decorrência de dívida, cominando pena privativa de liberdade de dois a oito anos. Para a configuração do crime, há controvérsia sobre a necessidade de cerceamento da liberdade de locomoção ou se basta a submissão da vítima “a condições degradantes de trabalho”.

No julgamento do inquérito nº 3412, em 29 de março de 2012, sob a relatoria da Ministra Rosa Weber, o Supremo Tribunal Federal firmou o posicionamento de que o tipo penal do art. 149 tutela não só a liberdade de locomoção, mas também, e principalmente, a dignidade humana do trabalhador em razão do uso da expressão “condições degradantes”. Em sentido diverso, em 16 de outubro de 2017, o Ministério do Trabalho publicou a Portaria nº 1129 vinculando o conceito de trabalho escravo à restrição de liberdade mediante coação física, o que trouxe o tema novamente ao centro das discussões políticas sociais.

Não há dúvida de que o uso de armas, a apreensão de documentos, a opressão velada implica no devido enquadramento típico do crime de “trabalho escravo”. Todavia, as más condições de trabalho, por si sós, não podem ser aptas a integrar conceitualmente o tipo ante as graves consequências do crime. Existe, portanto, uma zona híbrida, na qual é preciso definir o que é apenas más condições laborais e o que efetivamente caracterizaria “condições degradantes” para fins penais. Este é o modo de execução do delito cuja comprovação se apresenta mais problemática, estando naturalmente sujeita à influência exercida pelas concepções ideológicas do julgador.

Diante desse quadro, o presente artigo busca enfrentar a problemática definição de “condições degradantes” para fins da caracterização do crime de redução a condições análogas a de escravo. Analisa quais as condições de trabalho são, de fato, ofensivas à dignidade dos trabalhadores, de modo a autorizar a incidência do art. 149 da Lei Penal. Parte da premissa de que a intervenção do Direito Penal só se legitima quando a tutela realizada pelos outros ramos do Direito não é suficiente para a proteção do bem jurídico. Perpassa o novo conceito de trabalho escravo, a chamada “escravidão moderna” e as formas por meio das quais pode ser praticada. Busca, ao final, compatibilizar o princípio da dignidade da pessoa humana com os princípios da livre iniciativa e da busca do pleno emprego, igualmente dotados de estatura constitucional.


Direito penal como última ratio

A primeira premissa estabelecida para o presente artigo é a de que o ordenamento jurídico incumbiu ao Direito Penal a proteção dos bens jurídicos mais caros ao indivíduo. Por essa razão, atribuiu consequências graves, como a restrição da liberdade individual do infrator, não se admitindo, sob o enfoque sistemático do Direito, que a inobservância de normas trabalhistas, por si só, implique automática e necessariamente na incidência do tipo penal de redução de trabalhadores a condições análogas a de escravo[1].

A intervenção penal apenas é legítima quando a criminalização se constitui em meio indispensável para a proteção de determinado bem ou interesse, não sendo suficiente a tutela por outros ramos do Direito. Trata-se do princípio da intervenção mínima que rege o Direito Penal[2]. O operador do direito somente deve enquadrar a conduta como típica quando o ilícito não puder ser afastado por outros ramos do Direito. Afinal, a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à proteção do indivíduo, da sociedade e dos bens jurídicos que lhes sejam essenciais[3].

O princípio da intervenção mínima dá ensejo a outros dois: fragmentariedade e subsidiariedade. O princípio da fragmentariedade estabelece que nem todos os ilícitos configuram infrações penais, pois o Direito Penal é a última etapa de proteção do bem jurídico. Refere-se a atividade legislativa orientando o legislador para somente tipificar uma conduta quando os demais ramos do direito tiver falhado.

O princípio da subsidiariedade estabelece que o Direito Penal somente deve intervir quando os outros ramos do Direito se revelarem impotentes, não sendo suficientes a proteção do bem jurídico tutelado. O direito penal há de ser a última ratio, o último recurso invocado à falta de outros meios menos invasivos. Está relacionado a atividade de aplicação do Direito quando o crime já existe, mas no caso concreto o tipo penal não deve ser aplicado por falta de legitimação para o Direito Penal atuar[4].

Os princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade são invocados em diversos julgados pelos Tribunais Regionais Federais, revelando sua importância para a aplicação e interpretação do Direito Penal.[5] No plano da realidade, nem sempre o tipo penal pode ser utilizado, pois os outros meios disponíveis – reprimenda do direito trabalhista, cível e administrativo – podem ser eficazmente empregados no combate a conduta ilícita.  

Portanto, equacionada a questão perante a Justiça do Trabalho, não se presta o Direito Penal a tutela da afirmação dos direitos e deveres inerentes às relações laborais. A caracterização do fato como criminoso é grave e demanda responsabilidade do aplicador e intérprete do direito.

A “escravidão moderna”

Não há dúvida de que a figura clássica do escravo dos livros de história do homem negro, preso, acorrentado não existe mais, tanto que o tipo do art. 149 do Código Penal trata da condição análoga a de escravo, já que tecnicamente, ante a abolição da escravatura, não seria possível reduzir alguém à condição de propriedade de outrem[6]. Essa é a segunda premissa a ser firmada para que o presente artigo não se dissocie da realidade.

A conduta regida pela norma em análise é a redução do indivíduo a condições semelhantes daquelas observadas no regime escravagista, em que o status libertatis da vítima permanece tutelado pelo Ordenamento Jurídico, sendo, entretanto, no plano fático, suprimido pela ação subjugadora do agente delitivo. A Convenção sobre escravatura assinada em Genebra em 25.09.1926 conceitua a escravidão como o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exerce total ou parcialmente os atributos do direito de propriedade[7].

A Convenção suplementar sobre a abolição da escravatura, por sua vez, conceitua, em seu art. 1º b, a servidão como a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por acordo a viver ou trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a lhe fornecer determinados serviços sem poder mudar sua condição[8]. Todavia, a escravidão em sentido estrito de uma pessoa pertencer a outra não mais existe em nenhum ordenamento jurídico contemporâneo.

Para a doutrina trabalhista, nas relações contemporâneas de escravidão, não há falar-se em liberdade contratual por que as condições de contratação e execução do trabalho tornam, na maior parte dos casos, impossível o rompimento do vínculo contratual pelo trabalhador. O consentimento da vítima seria irrelevante por se tratar de uma completa alienação da liberdade, do aniquilamento da personalidade humana, da plena renúncia de si, o que deve ser visto com cautela[9].

A assertiva não parece correta. É arriscado sustentar que a liberdade contratual estaria sempre e abstratamente comprometida, afrontando os princípios e regras que regulam o contrato de trabalho, sob pena de se reputar toda e qualquer relação trabalhista na zona rural seria viciada, forçosa e passível de configurar “trabalho escravo” quando as condições de trabalho não forem compatíveis com as normas trabalhistas[10].

 Até meados da década de 90 o Brasil não reconhecia a existência de trabalho escravo em seu território, o que ocorreu pela primeira vez a partir de denúncia na Organização dos Estados Americanos no caso chamado “José Pereira”[11]. José Pereira tinha 17 anos quando foi escravizado numa fazenda localizada no Pará, Fazenda Espírito Santo. Na tentativa de fuga foi perseguido por capatazes e atingido por dois tiros, fingindo-se de morto para despistar os algozes, sobrevivendo e conseguindo ajuda da Comissão Pastoral da Terra a Organização dos Estados Americanos. O processo tramitou na Corte Interamericana de Direitos Humanos desde 1992. Em 2003, firmou-se acordo através do qual o Brasil reconheceu sua responsabilidade pelo caso, pois os órgãos estatais não foram capazes de prevenir a ocorrência do trabalho escravo[12] [13].

Há forte posicionamento no sentido de que o trabalho escravo não decorre, como regra, da maldade do empregador, mas é fator econômico que o coisifica pela sede de lucratividade[14]. Segundo a Ministra Rosa Webber, a “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade decorre de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos[15]. Nas práticas contemporâneas análogas à escravidão não interessaria ao explorador a condição de proprietário, o que exigiria maiores investimentos e responsabilidade pela vida do escravo[16].


A tipificação do crime de redução de trabalhadores a condições análogas a de escravo pelo art. 149 do CP

A redação originária do art. 149 do Código Penal, que tipificava o trabalho escravo como crime, apresentava alto grau de generalidade, não fornecendo elementos suficientes para identificação das formas pelas quais se reduz o trabalhador a tal condição e efetiva punição do infrator[17]. Ao tipificar a conduta de redução de trabalhadores a condições análogas a de escravo, o Brasil cumpriu obrigação assumida na convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, de 1956, por meio da qual todos os membros da organização se obrigaram a suprimir o emprego de trabalho forçado ou obrigatório no mais curto prazo possível[18].  

Em 11 de dezembro de 2003, a Lei 10.803 alterou o art. 149 do Código Penal com o objetivo de facilitar a tipificação das hipóteses do crime, passando a prever como caracterizadores do trabalho escravo: i) a submissão a trabalhos forçados ou jornada exaustiva; ii) a sujeição a trabalho em condições degradantes – este mais problemático e objeto do presente artigo; e iii) a restrição à liberdade de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador[19].

O §1º do art. 149 do CP trouxe ainda duas formas derivadas do tipo penal prevendo a aplicação da mesma pena para quem cerceia o uso de qualquer meio de transporte pelo trabalhador com o fim de retê-lo no local de trabalho e mantem vigilância ostensiva ou se apodera de documentos e objetos pessoais do trabalhador com o fim de retê-lo no local de trabalho. O cerceamento do acesso ao transporte poderá se dar ainda pela retenção do valor integral do produto do trabalho.

A redação dada pela nova Lei 10.803 não descriminalizou as condutas praticadas anteriormente, mas explicitou as formas da redução à condição análoga a de escravo, diminuindo o grau de abertura do tipo em relação à redação originária[20]. O tipo penal, todavia, ainda é aberto sendo necessário definir cada uma de suas modalidades.

            O “trabalho forçado” se caracteriza pelo recurso à coação e pela negação da liberdade, exigindo-se do trabalhador a prestação de serviços através da coação física, moral ou psicológica[21] [22]. É também aquele realizado sem pagamento, em troca de remuneração irrisória ou apenas da alimentação e mediante coação física e moral como ameaça à integridade física do trabalhador e de seus familiares ou a ameaça feita ao imigrante ilegal de denúncia às autoridades[23].

            Para Rosa Webber, o fenômeno “trabalho forçado” pressupõe coação física ou moral, ou seja, impor-se contexto capaz de levar o prestador dos serviços a obedecer a ordens e vontade de outrem sem a possibilidade de reação[24], tendo como nota característica a violação da liberdade. Logo, quando o trabalhador não pode decidir espontaneamente pela aceitação do trabalho ou a qualquer tempo pela sua permanência o trabalho, há trabalho forçado.

            A “jornada exaustiva” de trabalho, nos termos da Orientação nº 03 da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, é a que por circunstância, intensidade, frequência e desgaste causa prejuízo a saúde física e mental do trabalhador, agredindo sua dignidade e decorre de situação de sujeição que por qualquer razão torna irrelevante a sua vontade[25]. Exige-se do empregado a execução do trabalho de modo a lhe esgotar completamente, eis que cumpridas em jornada de trabalho extensas, não podendo se prolongar por mais tempo do que suas forças lhe permitem[26].

            O conceito de trabalho exaustivo deve ser analisado de acordo com a particularidades de cada indivíduo, levando em conta sua estrutura física, idade, sexo e natureza da atividade realizada[27].  Não é suficiente, contudo, para caracterizar o crime de redução à condição análoga a de escravo a jornada superior ao limite de horário para horas extraordinárias ou a demanda por horas extraordinárias sem pagamento[28]. Para a configuração da jornada exaustiva de trabalho não basta o trabalho esgotante, mas a imposição de um trabalho em jornada exaustiva[29].

A restrição à liberdade de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador – por meio do chamado trucksystem ou sistema de barracão – decorre da retenção de salário pelo empregador em razão de dívidas com ele contraídas. A dívida decorre da venda inflacionada de produtos pessoais, alimentícios, ferramentas, equipamentos de proteção, por que resulta em uma restrição física ou moral da liberdade subjetiva do trabalhador de rescindir unilateralmente o contrato de trabalho enquanto não quita sua dívida com o patrão. A restrição de locomoção como forma de redução de trabalhadores à condição análoga a de escravo não exige aprisionamento em seu conceito mais restrito, podendo ocorrer por diversas outras formas como retenção de documentos e objetos pessoais do trabalhador e pelo cerceamento de transporte e servidão por dívida[30].

            Por fim, as “condições degradantes” de trabalho para caracterização do trabalho análogo ao de escravo estão relacionadas, segundo parte da doutrina, à precariedade das áreas de vivência, instalações sanitárias, alojamento e locais para o preparo e armazenamento dos alimentos, como também a falta de fornecimento de água potável, de equipamento de proteção individual, do padrão alimentar negativo e da falta de higiene no local de trabalho, decorrentes de situação que sujeita o trabalhador tornando irrelevante a sua vontade[31].

Mas, cada uma dessas irregularidades trabalhistas caracteriza, por si só, o trabalho escravo para fins penais? É preciso que quais delas estejam presentes para a tipificação da conduta? Há necessidade de cerceamento do direito de locomoção considerando a localização topográfica do art. 149 na parte relativa aos crimes contra a liberdade individual? Como identificar a “degradância” no caso concreto? É o que se pretende refletir adiante ao se enfrentar a problemática definição de “condições degradantes” para fins penais.


A portaria nº 1129/2017 do Ministério do Trabalho e a caracterização do trabalho escravo

Em 16 de outubro de 2017, foi editada pelo Ministério do Trabalho e Emprego a Portaria nº 1129, de 16 de outubro de 2017, que estabeleceu de forma detalhada o conceito de condição análoga a de escravo ascendendo a discussão acerca da temática do combate ao trabalho escravo no Brasil. Segundo o normativo, trabalho forçado seria aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade; a jornada exaustiva decorreria da submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria; a condição degradante estaria caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade[32].

Ainda de acordo com a nova norma, a condição análoga à de escravo se caracteriza quando há submissão do empregado a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária; cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico; ou a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto[33]. 

O partido Rede Sustentabilidade ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a referida portaria, cujo pedido liminar foi provido ensejando a suspensão de sua aplicabilidade. Dentre os vícios sustentados, destacam-se a restrição do conceito de “redução à condição análoga a escravo”; o condicionamento da inclusão de empregador na “lista suja” do trabalho escravo e da divulgação dessa lista a prévio ato do Ministro do Trabalho; a criação de entraves burocráticos e políticos para a atuação dos órgãos e autoridades envolvidos na fiscalização e combate às formas modernas de escravidão; e o afastamento de requisitos mínimos para a celebração de Termos de Ajustamento de Conduta sobre a matéria, o que tende, segundo sustentam, a gerar impunidade[34].

            Argumentou-se que o ato normativo impugnado restringiu radicalmente o conceito de trabalho escravo, pretendendo retornar ao marco jurídico anterior a 2003, em que a redução a condição análoga à de escravo pressupunha a restrição à liberdade de locomoção do trabalhador. Nessa linha, defendeu a violação do princípio da dignidade humana e do postulado da proibição ao retrocesso[35], ferindo diretamente preceitos fundamentais da Carta de 88[36]. 

            A despeito da coerência dos argumentos sustentados, a questão relativa à vinculação do conceito de trabalho escravo a restrição da liberdade ainda é controversa e não está pacificada. Há posicionamento, igualmente coerente, inclusive de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, como o Ministro Gilmar Mendes e o Ministro Marco Aurélio, de que as más condições de trabalho não são aptas a integrar conceitualmente o tipo de trabalho escravo ante as graves consequências do crime[37].

            O problema das normas trazidas pela Portaria, contudo, está em vincular o conceito de trabalho escravo à restrição da liberdade por meio apenas da coação física. Ignora-se que o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos, compondo um cenário capaz de impedir o trabalhador de reagir, de sair daquela situação conforme adiante se demonstrará ao definir o conceito de “condições degradantes” para fins penais sem perder de vista que, de alguma forma, a violação da dignidade humanda do trabalhador por meio de condições degradantes de trabalho deve estar de alguma forma, ainda que indiretamente, vinculada a violação ao direito à liberdade do trabalhador.


A definição de “condições degradantes” para fins de caracterização do crime de redução de trabalhadores a condições análogas à de escravo

            De acordo com o recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal, seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, o crime de redução de trabalhadores a condições análogas a de escravo se configura mediante a sujeição do trabalhador a condições degradantes, não se exigindo necessariamente a privação da liberdade[38]. Entende-se que a violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação de modo que, se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, atingindo níveis gritantes, por meio da submissão a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou condições degradantes, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal [39] [40].

            Houve um reconhecimento legislativo da transmutação do bem jurídico tutelado, seguindo tendência internacional, de modo que a liberdade deixou de ser o único bem jurídico tutelado, despontando como objeto de tutela da norma penal também a dignidade da pessoa humana[41] [42]. Segundo César Roberto Bitencourt, protege-se aqui a liberdade sob o aspecto ético social e a própria dignidade do indivíduo, também igualmente elevada ao nível de dogma constitucional[43]. Rogério Greco defende que o bem juridicamente protegido é não apenas a liberdade da vítima como também a vida, a saúde e a segurança do trabalhador ante a menção as condições degradantes como hipótese de incidência do crime[44].

            Se o tipo do art. 149 do Código Penal criminaliza a submissão do trabalhador a “condições degradantes”, tutelando não apenas a liberdade individual, mas a dignidade humana, é preciso enfrentar a problemática da definição de “condições degradantes” para fins penais. 

A doutrina trabalhista defende que a só constatação de alojamentos inadequados em barracos de lona já configuraria condições degradantes e, por conseguinte, trabalho análogo ao escravo[45], assim como a falta de água potável e alimentação suficiente e adequada, bem como a ausência de refeitório e cozinha adequados, a falta de instalações sanitárias adequadas, a falta de equipamento de proteção individual ou coletiva, a falta de assistência médica e a falta de registro do trabalhador. Cada um desses elementos, por si só, já configuraria a sujeição do trabalhador a situação análoga a de escravo[46]. Sustenta-se que em 2003 o legislador brasileiro decidiu ampliar a proteção conferida aos trabalhadores, por meio de opção legislativa deliberada, que merece ser reconhecida e respeitada, eis que exercida democraticamente para que, a pretexto de se interpretar a lei, não se venha a derrogar a nova redação[47].

            Esse, contudo, não é o melhor entendimento sob pena de se considerar todo e qualquer trabalho na zona rural do país como análogo ao escravo e criar um direito penal máximo que desborda dos limites de sua atuação, avançando para o campo dos outros ramos do direito, em total desrespeito aos princípios basilares da fragmentariedade e subsidiariedade, corolários do princípio da intervenção mínima.

            Primeiro, para caracterizar trabalho escravo, mediante “condições degradantes”, deve restar configurada uma lesão das vítimas superior àquelas já punidas na esfera trabalhista. Nesta análise, a configuração de vários fatores há de ser levada em conta, tais como a restrição da liberdade, jornadas exaustivas, ausência de descanso, condições dos alojamentos e de higiene, exposição a agentes nocivos ou a risco de acidentes, em um contexto em que a associação de diversos fatores leve ao resultado semelhante à escravidão.

Não há condições degradantes de trabalho para fins de caracterização de trabalho escravo contemporâneo pelo só descumprimento de normas de segurança sem a coisificação do trabalhador, por irregularidades quanto ao cumprimento da legislação trabalhista. Tampouco alçam o patamar de condições degradantes para fins penais a mera precariedade das acomodações dos trabalhadores em especial quando compartilhada por um dos réus e sua família e advertidos os trabalhadores previamente das condições de trabalho[48].

A violação das regras trabalhistas, por si só, atrai a tutela jurídica em âmbito judicial próprio – a Justiça do Trabalho, cujo órgão de cúpula, o Tribunal Superior do Trabalho, vem, de forma reiterada, condenando empregadores ao pagamento de indenizações por danos morais nos casos em que trabalhadores são submetidos a condições consideradas, sob a ótica trabalhista, degradantes.

Não é sempre que se pode legitimamente afirmar que as irregulares condições de trabalho, de moradia, de segurança e de salubridade a que sujeitos os trabalhadores lesiona as suas dignidades de modo a reclamar a intervenção do Direito Penal, que, como já antecipado, é a última “ratio”. Em regra, as infrações às normas de medicina, saúde e segurança do trabalho podem ser suficientemente reprimidas mediante a aplicação das penalidades administrativas previstas na própria legislação trabalhista[49].

Nesse sentido, é esclarecedora a distinção feita pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, no bojo do inquérito penal nº 3412[50]:

Deve-se caminhar para a distinção de situações. O ordenamento jurídico legou ao Direito Penal a tutela dos bens jurídicos mais caros ao indivíduo, daí a cominação de consequências sancionatórias graves, chegando-se à possibilidade

[51]

Segundo, para a caracterização do “trabalho escravo”, mediante submissão a condições degradantes, o consentimento da vítima deve ser obtido de forma viciada, mediante coação ou erro. Sujeitar-se a condições degradantes de trabalho tem o sentido de permitir que consigo seja feita alguma coisa, sem que o sujeito tenha vontade de se colocar naquela situação, se rendendo e se conformando[52]. O consentimento da vítima só é irrelevante se obtido de forma viciada, mediante fraude, coação ou erro. Ausentes esses vícios, sabendo o trabalhador exatamente sob que condições serão realizadas as atividades e podendo ele a qualquer tempo se retirar voluntariamente dessa situação, não há trabalho escravo[53].

Terceiro, para a caracterização de “condições degradantes” para fins penais, é imprescindível que o trabalhador esteja impossibilitado de reagir. O crime só se consuma com a efetiva redução da vítima a condição análoga a de escravo. Uma eventual jornada exaustiva ou uma esporádica condição degradante de trabalho pode configurar violação à lei trabalhista, mas por si só não é suficiente a consumação do crime se o trabalhador puder reagir e não estiver efetivamente reduzido a condições análogas a de escravo[54].

A restrição da liberdade de forma violenta se sobressai na análise do tipo, mas não é elemento exclusivo a ser analisado. Mesmo sem a sua constatação, é possível, em tese, a configuração do crime quando a liberdade do trabalhador é anulada por qualquer outra forma como acontece, a título ilustrativo, na hipótese de isolamento da fazenda e da existência (ou temor da existência) de animais ferozes nas proximidades do alojamento impedindo a saída dos trabalhadores. O cerceamento da liberdade dos trabalhadores pode ocorrer por diversos meios como, por exemplo, retenção indevida de salários, de documentos ou mesmo com a prática do trucksystem.

Não há consumação do delito quando a vítima não se torna submissa ao poder de outrem, por tempo juridicamente relevante resultando na efetiva redução do ofendido a condição análoga a de escravo[55].  É necessário, de algum modo, a supressão do estado de liberdade, sujeitando a vítima moral e fisicamente ao poder do dominador; não é qualquer irregularidade nas relações laborativas suficientes para determinar a incidência do art. 149.

Exemplificativamente, no bojo do processo nº 645-88.2013.4.01.3303, que tramitou na subseção judiciária da Justiça Federal em Barreiras na Bahia, os réus foram absolvidos, pois não havia “condições degradantes” para fins penais a configurar a tipicudade do crime do art. 149 do CP. As vítimas, apesar de ressaltarem as péssimas condições do local de trabalho, deixaram claro que eram livres, que não existia vigilância e que o horário de trabalho era definido por elas. Uma das vítimas relatou que no período em que permaneceu na fazenda, cerca de 15 (quinze) dias, visitou a família “umas duas vezes”, usando bicicleta até o ponto de ônibus. Outra vítima ressaltou que não foi enganada, sabia o que o esperava, sabia que ia dormir em barracão, mostrando que o consentimento da vítima não foi obtido de forma viciada e ela podia a qualquer tempo voluntariamente sair da situação em que se encontrava.

Nos autos do processo nº 2007.39.04.001121-1 que tramitou na subseção de Castanhal, no Pará, o juiz federal Omar Belloti Ferreira absolveu os réus das imputações do crime do art. 149 do CP, por entender não ser possível legitimamente afirmar que as condições de trabalho, de moradia, de segurança e de salubridade a que estavam sujeitos os obreiros tenha lesionado as suas dignidades de modo a reclamar a intervenção do Direito Penal, que, como se sabe, é a última ratio. Há, portanto, que se entender que as infrações às normas de medicina, saúde e segurança do trabalho foram suficientemente reprimidas mediante a aplicação das penalidades administrativas previstas na própria legislação trabalhista.

No caso, segundo entendimento do magistrado, inexistiu a comprovação de que os trabalhadores foram arregimentados mediante a utilização de qualquer meio fraudulento e a situação verificada resultou de fatores de ordem econômica da região e da pouca ou nenhuma qualificação dos obreiros que, diante da necessidade de assegurar a sobrevivência, aceitaram pactos laborais desprovidos dos direitos trabalhistas, o que demanda a firme e proporcional reprimenda dos órgãos competentes na matéria, sem, contudo, constituir ilícito penal.

Logo, o “trabalho degradante” para fins penais e alguma espécie de limitação à liberdade de ir e vir costumam andar juntas[56] sem que seja necessária a existência de violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo[57].


Conclusão

O crime do art. 149, caput do CP não consiste em tornar escravo o sujeito passivo do delito, visto que há muito foi abolida a relação jurídica de escravidão no país. Mas, a conduta regida pela norma em análise é a redução do indivíduo a condições semelhantes daquelas observadas no regime escravagista, em que o status libertatis da vítima permanece tutelado pelo Ordenamento Jurídico, sendo, entretanto, no plano fático, suprimido pela ação subjugadora do agente delitivo.

Não se exige para a adequação típica a mesma conduta de outrora, com a segregação do trabalhador, inclusive com emprego de correntes e vigilância armada. A recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não exige a comprovação de coação da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento direto da liberdade de locomoção das vítimas para a configuração do crime de redução a condições análogas a de escravo. Pode haver a caracterização do delito pelo preenchimento de um dos verbos alternativos constantes no tipo penal: pela submissão a trabalho forçado ou jornada exaustiva, pela restrição da liberdade de locomoção em decorrência de dívida, e, finalmente, pela sujeição do trabalhador a condições degradantes de trabalho.

Essa forma de execução do delito é a mais problemática, tendo em vista a indeterminação do conceito de “condições degradantes”, o que foi enfrentado.

Com base na premissa de que o direito penal é regido pelo princípio da intervenção mínima, para a tipificação da conduta como trabalho escravo na esfera criminal, ficou claro que a caracterização das “condições degradantes” depende i) da existência de uma lesão às vítimas superior àquela já punida na esfera trabalhista; ii) de o consentimento do trabalhador ter sido obtido de forma viciada, mediante coação ou erro; iii) da impossibilidade de o trabalhador reagir, de se libertar do sistema imposto resultando na sua coisificação e efetiva redução a condições semelhantes a de escravo.

A “condição degradante de trabalho” para fins do delito tipificado no art. 149 exige não apenas o descumprimento de normas de proteção ao trabalho, mas, aliado a isso, há de existir um cenário capaz de impedir o trabalhador, de alguma forma, de reagir, de sair a situação degradante em que se encontra. Não é todo trabalho degradante que pode ser considerado penalmente relevante, mas apenas aquele que trouxer como consequência a redução do trabalhador à condição semelhante à de um escravo. Essa conclusão deve-se também ao fato de que esse modo de execução do delito está inserido ao lado de outras formas extremamente graves que, sem dúvida, são os modos mais eficazes de escravizar o trabalhador.


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Notas

[1] Voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, no inquérito penal nº 3412 de Alagoas. Disponível em: file:///C:/Users/JU579/Desktop/Artigo%20jurídico/Trabalho%20escravo/STF%20inteiro%20teor%20Rosa%20Weber.pdf.  Acesso em 01 de dezembro de 2017.

[2] MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. p. 370.

[3] STF, HC 92463/RS, rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 16.10.2007.

[4] MASSON, Cleber. Ibid. p. 380.

[5] PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIME AMBIENTAL (PESCA DE LAGOSTA MEDIANTE UTENSÍLIOS PROIBIDOS). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. DENÚNCIA. NÃO RECEBIMENTO. 1. Pretende o Ministério Público Federal a reforma da decisão que, aplicando o princípio da insignificância, não recebeu a denúncia oferecida em desfavor de MARCONE GOMES DE SOUZA, pela suposta prática do crime previsto no art. 34, caput e parágrafo único, inciso II, da Lei nº 9.605/98 (pesca de lagosta por meio de utensílios proibidos). 2. O princípio da insignificância, corolário dos postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado, tratando-se de direito penal, visa a excluir a tipicidade penal. 3. A aplicação do referido princípio exige, na análise da materialidade do tipo penal, a comprovação cabal da conjunção, aceita jurisprudencialmente, de quatro aspectos: a) a mínima lesividade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade; d) inexpressividade da lesão jurídica (STF, 2ª T., HC nº 94765/RS, rel. Min. Ellen Gracie, julg. em 09/09/08). 4. Na hipótese dos autos, o denunciado realizou atividade de pesca de lagosta mediante "utilização de petrechos proibidos, dentre eles, cilindro de ar comprimido, nadadeiras e máscaras de mergulho. Ocorre que, ao realizar o mergulho com o cilindro de ar comprimido, o investigado sentiu dores e precisou ser atendido, e, em decorrência do acidente, foi aberto inquérito administrativo pela Capitania dos Portos do Rio Grande do Norte, a qual investigou os fatos e realizou a apreensão do material utilizado na pesca. Por fim, consoante narrativa do Órgão Ministerial, a esposa do denunciado reconheceu que no dia do acidente a pesca rendeu 2 quilos de lagosta e 6 quilos de peixe." 5. Tal princípio é aplicável ao caso, "tendo em vista o grau de afetação mínimo da ordem social, na medida em que o comportamento atribuído pelo Ministério Público Federal não se mostrou suficiente para desestabilizar o ecossistema, ou melhor, observa-se que a prática de tais condutas, em razão de serem consideradas inexpressivas, não constituem a materialidade do fato criminoso, requisito essencial para a configuração da justa causa penal." 6. Recurso em sentido estrito desprovido. (RSE 00003982920164058400, Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro, TRF5 - Terceira Turma, DJE - Data::31/08/2016 - Página::76.); APELAÇÃO CRIMINAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. VALOR INFERIOR AO ESTIPULADO NO ART. 20 DA LEI 10.522/2002 E NAS PORTARIAS NºS 75 E 130/2012 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. A existência de uma conduta típica pressupõe a violação a bem juridicamente relevante, tendo em vista que "as normas penais positivadas constituem, em última análise simples manifestação da tutela que o Estado exerce sobre os bens que considera relevantes" (STF, HC96412/SP). 2. Considerando que, a partir da Lei n. 11.457/2007, os débitos decorrentes de contribuições previdenciárias passaram a ser considerados como dívida ativa da União, atribuindo-se-lhes tratamento semelhante ao dos créditos tributários, os critérios a serem adotados para a incidência do princípio da insignificância ao crime do art. 168-A do CP devem ser os mesmos dos delitos de natureza tributária. 3. Se a própria Fazenda Pública dispensa a propositura de ações judiciais por pressupor ausência no interesse na lide, deve-se afastar a incidência do direito penal, em respeito ao princípio da fragmentariedade. Isso decorre da não admissão de que se impute a penalidade mais árdua de que dispõe o Estado, se o bem jurídico atingido é insignificante para o próprio órgão que representa os interesses do Estado, na defesa de tal bem jurídico. 4. Considerando que o valor das contribuições previdenciárias omitidas foi de R$4.640,39, portanto, bem inferior ao patamar de R$20.000,00 (vinte mil reais) - previsto no art. 20 da Lei 10.522/2002 e atualizado pelas Portarias nºs 75 e 130/2012 do Ministério da Fazenda -, deve ser mantida a absolvição por atipicidade da conduta. Precedentes do STJ. 5. Apelação a que se nega provimento. (ACR 200882000057950, Desembargador Federal Manuel Maia, TRF5 - Primeira Turma, DJE - Data::06/07/2016 - Página::1.)

[6] FARIAS, Débora Tito. Velhos e novos problemas do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Organizadores: MIESSA, Élisson. CORREIA, Henrique. Estudos Aprofundados. Ministério Público do trabalho. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 255.

[7] Art. 1º da Convenção de Genebra de 1926. “A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade (...)”.

[8] Flávia Piovesan ressalta que a proibição do trabalho escravo é absoluta no direito internacional, não cabendo invocar circunstâncias excepcionais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política, tratando-se de direito absoluto. (Trabalho escravo e degradante como forma de violação dos direitos humanos. In: Trabalho escravo contemporâneo:o desafio de negar a superação. São Paulo: LTR, 2006. P. 161-162).

[9] FLORIAN, Eugenio. Trattato di Diritto Penale – Delitti contro La liberta Individuale, Casa Editrice Dott. Francesco Vallardi, 1936, p. 284-285.

[10] MELO, Luís Antônio Cargo de. Trabalho escravo contemporâneo: Crime e conceito. Org:Élisson Miessa. Henrique Correia. In: Estudos Aprofundados. MPT. Ministério Público do Trabalho. Salvador: Juspodivm, 2015.  p. 568-641.

[11] NOGUEIRA, Christiane V. FABRE, Luís Carlos Michele. KALIL, Renan B. CAVALCANTI, Thiago Muniz. Recentes avanços legislativos no combate a escravidão. Organizadores: MIESSA, Élisson. CORREIA, Henrique. Estudos Aprofundados. Ministério Público do trabalho. Salvador: Jus Podivm, 2015. p. 236.

[12] Em dezembro de 2002, a Lei do Seguro Desemprego é alterada, prevendo a concessão do benefício a trabalhadores resgatados de situação de trabalho em condições análogas à de escravo, o que foi considerado pelo Ministério Público do Trabalho como medida de grande importância, pois evitaria o processo de “re-vitimização”.

[13] Atualmente, o Brasil não só reconhece e combate ao trabalho análogo ao escravo como ampliou a proteção para alterar o art. 243 da Constituição Federal e prever que as propriedades rurais e urbanas onde forem localizadas a exploração de trabalho escravo serão expropriadas sem qualquer indenização e todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em ocorrência de sua exploração serão confiscados (emenda constitucional 81 aprovada em 2014).

[14] FARIAS, Débora Tito. Ibid. p. 254.

[15] Voto da Ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber, no julgamento do Inquérito nº 3412 Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Rosa Weber, DJe 12/11/2012.

[16] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Op. Cit. p. 138.

[17] MELO, Luis Antonio Camargo de. Ibid. p. 622.

[18] O compromisso brasileiro é ainda reforçado pelo art. 8º, §1º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, pelo art. 6º da Convenção Americana de Direitos Humanos, pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial mulheres e crianças e pela solução amistosa do caso José Pereira pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 24.10.2003 (BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes Federais. 9ed São Paulo: Saraiva, 2014. p. 138).

[19] A redação anterior era sucinta: Art. 149 – “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo: (...)”.

[20] BALTAZAR JUNIOR. Ibid. p. 136.

[21] NOGUEIRA, Christiane V. FABRE, Luís Carlos Michele. KALIL, Renan B. CAVALCANTI, Thiago Muniz. Ibid. p. 240.

[22]Essa também é a interpretação de Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Júnior e Fábio M. de Almeida Delmanto, para os quais “submetendo-o a trabalhos forçados” significa fazendo-o obedecer às ordens e a vontade de outrem mediante coação física ou moral contra sua vontade. (Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 532-533).

[23] BALTAZAR JÚNIOR. Ibid. p. 140.

[24] Voto da Ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber, no julgamento do Inquérito nº 3412 Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Rosa Weber, DJe 12/11/2012.

[25] NOGUEIRA, Christiane V. FABRE, Luís Carlos Michele. KALIL, Renan B. CAVALCANTI, Thiago Muniz. Ibid. p. 241.

[26] MELO, Luís Antônio Camargo de. Ibid. p. 629.

[27] PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 261.

[28] BALTAZAR JÚNIOR. Ibid. p. 141.

[29] BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho com redução do homem a condição análoga a de escravo e dignidade da pessoa humana. Disponível em: www.pgt.mpt.gov.br/publicacoes. Acesso em 01.dez.2017.

[30] NOGUEIRA, Christiane V. FABRE, Luís Carlos Michele. KALIL, Renan B. CAVALCANTI, Thiago Muniz. Ibid. p. 240.

[31] NOGUEIRA, Christiane V. FABRE, Luís Carlos Michele. KALIL, Renan B. CAVALCANTI, Thiago Muniz. Ibid. p. 242.

[32] Art. 1º, incisos I a III da Portaria nº 1129/2017.

[33] Art. 1º, inciso IV da Portaria nº 1129/2017.

[34] https://www.conjur.com.br/dl/rede-questiona-stf-portaria-mudou.pdf

[35] SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição do retrocesso, dignidade humana e direitos sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Revista Eletrônica sobre Reforma do Estado, n. 15, 2008.

[36] https://www.conjur.com.br/dl/rede-questiona-stf-portaria-mudou.pdf p. 19.

[37] Voto do Ministro Marco Aurélio, no julgamento do Inquérito nº 3412 Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Rosa Weber, DJe 12/11/2012.

[38] STF, Inquérito 3412, Rosa Weber, Pl., m, 29.3.12. STJ, HC 239850, Dipp, 5ª T, u., 14.8.12.

[39] “ (...) concluo que, para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessária a coação física da liberdade de ir e vir, ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas cuja presença deve ser avaliada caso a caso (Voto da Ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber, no julgamento do Inquérito nº 3412 Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Rosa Weber, DJe 12/11/2012).

[40] Em sentido contrário, posicionou-se o Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, nos seguintes termos: “O legislador ordinário optou por proceder à enumeração das condutas que indicam a redução do trabalhador a condição análoga à de escravo: a) submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva. O fenômeno pressupõe coação física ou moral, ou seja, impor-se contexto capaz de levar o prestador dos serviços a obedecer a ordens e vontade de outrem sem a possibilidade de reação; b) sujeitar o prestador dos serviços a condições degradantes de trabalho, restringindo, por qualquer meio, a respectiva locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. (...) somente haverá conduta típica prevista no artigo 149 do Código Penal se demonstrado pelo Estado-acusador o cerceio à liberdade de ir e vir dos prestadores de serviço, a impossibilitá-los de reagir ou deixar o local de trabalho, diante de quadro opressivo imposto pelo empregador.” (Voto do Ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal no Inquérito n° 3.412, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Rosa Weber, DJe 12/11/2012).

[41] Para Christiane V. Nogueira, Luís Carlos Michele Fabre. Renan B. Kalil, Thiago Muniz Cavalcanti, o trabalho escravo contemporâneo deve ser concebido, em verdade, como a exploração da mão de obra em condições ofensivas à dignidade do trabalhador, através do uso e descarte de seres humanos, que alarga o abismo econômico entre trabalhador e empregador e fulmina a função social inerente ao trabalho. (Ibid., p. 239).

[42] BALTAZAR JÚNIOR. Ibid. p. 136.

[43] Para o autor é irrelevante que a vítima tenha ou disponha de relativa liberdade, pois esta não é suficiente para lhe libertar do jugo do empregador (BITENCOURT, César Roberto. Código Penal Comentado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 493). No mesmo sentido: BITENCOURT, César Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte especial. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 485.

[44] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Volume II. Niterói: Editora Impetus, p. 631.

[45] “Inicialmente, então, temos a situação paradigmática, que sempre caracterizará. trabalho degradante: barraco de lona plástica, sem disponibilização de água, sem local para as refeições, sem banheiro, sem equipamentos de proteção, sem assistência médica. E a partir disso temos situações progressivamente menos graves, mas que ainda caracterizam trabalho degradante: digamos, há água potável, mas não há equipamento de proteção, e há alojamentos, os quais, entretanto, são superlotados, sem camas e sem ventilação.” GOMES, Rafael de Araújo. Trabalho Escravo no Brasil. Análise a partir do exemplo de Mato Grosso. Disponível em https://pt.scribd.com/document/77010533/TRABALHO-ESCRAVO-NO-BRASIL-ANALISE-A-PARTIR-DO-EXEMPLO-DE-MATO-GROSSO. Acesso em 01.dez.2017. p. 6/7.

[46] FELICIANO, Guilherme Guimarães. Do crime de redução à condição análoga a de escravo na redação da lei 10.823/2003. Revista de Direito do Trabalho n 114, p. 81-93, abr-jun.2004. p. 86.

[47] “Nesse sentido, há de se recordar que o Projeto de Lei nº 7.429/2002, de autoria do Senador Waldeck Ornelas, que acabou sendo convertido na Lei nº 10.803, chegou a receber parecer negativo de seu relator, o Senador Júlio Delgado, o qual recomendava a exclusão da expressão “condições degradantes de trabalho”, por considerá-la vaga. Tal entendimento não foi referendado pela maioria dos parlamentares, tendo sido aprovada, inequivocamente, a proposição de ampliar o rol de condições definidas como análogas à de escravo. A opção do legislador poderia ter sido outra. Poderia ter sido criado um tipo penal exclusivo para o trabalho degradante. Ou então a posição do relator do Projeto poderia ter prevalecido, não sendo incluída no Código Penal qualquer menção a condições degradantes de trabalho. Não foram essas, entretanto, as escolhas do legislador em 2003. Pretendeu-se, parece-me, justamente ampliar o rol de condutas penalmente típicas, alcançando hipóteses novas – trabalho degradante, jornada exaustiva –, associando-as propositadamente a um delito já reconhecido por juristas e leigos como extremamente grave, e que desperta imediata repulsa e comoção, que é o trabalho escravo.” GOMES, Rafael de Araújo. Ibid. p. 06.

[48] BALTAZAR JÚNIOR. Ibid. p. 142.

[49] Sentença do juiz federal de Cárceres Omar no bojo do processo nº 2007.39.04.001121-1 que tramitou na Subseção Judiciária de Castanhal da Justiça Federal do Pará.

[50] Na mesma linha, interessante conhecer a reflexão feita pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes “Quer dizer, criam-se parâmetros que não encontram nenhuma relação com a realidade. Se nós lermos essa resolução, certamente nós vamos dizer: Será que nós não estamos vivendo, em nossas casas, em condições análogas à de escravo. E isso passa a ser a forma de interpretar o 149. Lê-se o art. 149 a partir da resolução, exatamente esses itens que estão aqui. Não é agua fresca. Não é água sequer saudável, é água filtrada. Se se fizer o exercício, quanto domicílios no Brasil tem água filtrada? Quantas casas têm fossa? Nós não estamos falando do mundo rural, basta fazer esse levantamento para verificar que há um divórcio. O problema não é exigir esse tipo de conforto, não é exigir condições mínimas, é transformar isso em crime. Nós precisamos refletir sobre isso. O problema não é do tipo penal, é ler o tipo penal com esse tipo de orientação, com esse tipo de instrução.” (Voto no Inquérito STF nº 3564/MG).

[51] Voto do Ministro Marco Aurélio no Inquérito n° 3.412, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Rosa Weber, DJe 12/11/2012.

[52] BIANCHINI, Alice. Reforma Criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 344.

[53] Se o sujeito passivo se coloca em situação de sujeição total livremente e se mantém nessa situação sem que haja qualquer iniciativa da pessoa favorecida, não há como afirmar que o crime se configurou e que a suposta vítima foi sujeitada a condições degradantes.  (FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal – Parte Especial, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1995.p. 161).

[54] DELMANTO, Celso. DELMANTO, Roberto. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Ibid. p. 534.

[55] BITENCOURT, César Roberto. Ibid. p. 494.

[56] GOMES, Rafael de Araújo. Ibid. p. 5.

[57] STF, Inq n° 3.564, 2ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 17/10/2014.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Gabriela Macedo. Redução à condição análoga a de escravo: a problemática definição de “condições degradantes” para fins penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5301, 5 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63211. Acesso em: 26 abr. 2024.