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Inconstitucionalidade da cobrança de ICMS em transporte terrestre de passageiros

Inconstitucionalidade da cobrança de ICMS em transporte terrestre de passageiros

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Se a sentença proferida pelo STF na ADI 2.669, que julgou improcedente o pedido formulado pela Confederação Nacional do Transporte, estivesse pautada no pórtico da razoabilidade, certamente não se violaria, de modo direto, os princípios da isonomia, da capacidade contributiva e da livre concorrência.

1. Colocação da matéria

O assunto a seguir abordado ensejou acirrados debates no Supremo Tribunal Federal.

Em 5 de fevereiro de 2014, a Corte julgou improcedente a ADI 2669/DF, ajuizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), que pedia o fim da cobrança do ICMS em transporte de passageiros.

Votaram pela improcedência da ação os Senhores Ministros:

  • Marco Aurélio (Relator);
  • Joaquim Barbosa (aposentado);
  • Roberto Barroso;
  • Rosa Weber;
  • Luiz Fux; e
  • Ricardo Lewandowski.

Ficaram vencidos os Senhores Ministros:

  • Cézar Peluzo (aposentado);
  • Nelson Jobim (aposentado);
  • Sepúlveda Pertence (aposentado);
  • Gilmar Mendes; e
  • Celso de Mello.

Na assentada de 5 de fevereiro de 2014, o então Presidente da Corte, Ministro Joaquim Barbosa, ao trazer o seu voto-vista, decidiu pela constitucionalidade da cobrança de ICMS, argumentando o seguinte:

  • a pretensão da CNT não merece acolhida, pois não se pode estender ao transporte terrestre de passageiros a decisão da ADI 1.600-8/DF, quando a Corte declarou inconstitucional a cobrança do ICMS no transporte aéreo de passageiros. Ambos não têm as mesmas características;
  • a alegada violação à regra da isonomia seria insuficiente para que se possa estender às operações de transporte terrestre de passageiros os efeitos da decisão da Corte na ADI 1.600-8/DF, na qual o Supremo decidiu pela inconstitucionalidade da cobrança do imposto no transporte aéreo de passageiros;
  • são áreas distintas, regidas por normas distintas; e
  • os custos, os riscos, a intensidade da prestação, a abrangência, a rotatividade, a capilaridade e o grau de submissão à regulamentação estatal pertinentes ao transporte aéreo não são os mesmos aplicáveis às pessoas que exploram economicamente a malha viária.

Recordemos que o Ministro Joaquim Barbosa formulou pedido de vista na sessão plenária de 1º de outubro de 2008, apresentando o seu voto em 5 de fevereiro de 2014.

Atualmente a matéria continua sob exame do Supremo Tribunal Federal, aguardando julgamento de um recurso de embargos de declaração do acórdão publicado em 5 de agosto de 2014 e disponibilizado no dia 6 de agosto de 2014.


2. ADI 2669/DF: viragem jurisprudencial

É preciso ocorrer uma viragem jurisprudencial da matéria correlata à ADI 2669/DF, haja vista a notória inconstitucionalidade dos arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996. 

Nada obstante as tentativas de se demonstrar o indigitado descompasso dos arts. 4º, 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87/1996, perante a Constituição da República, o fato é que prevalece a equivocada tese de que é legítima, e constitucional, a cobrança de ICMS sobre a prestação de serviço de transporte terrestre de passageiros.

Dos onze integrantes do Supremo Tribunal Federal, que, à época, se debruçaram sobre a matéria, aposentaram-se: Joaquim Barbosa, Cézar Peluso, Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence.

Daquele tempo, continuam na ativa, dois membros da Corte favoráveis à declaração de inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre transporte terrestre: Gilmar Mendes e Celso de Mello.

Somando-se os 4 (quatro) Ministros aposentados com os dois na ativa, temos o montante de 6 (seis) votos, os quais poderiam, certamente, estabelecer um novo entendimento do assunto.

Portanto, uma outra visão há de despontar para justificar-se a inconstitucionalidade dos arts. 4º, 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87/1996.

A matéria convém ser reavaliada em termos técnicos, de sorte a se intentar uma mudança de paradigmas em seu enquadramento jurisprudencial.


3. Princípio da proporcionalidade

Convém adotar-se o entendimento de que o transporte terrestre de passageiros também está livre da cobrança de ICMS, tal como ventilado na ADI nº 1.600-8/DF.

 Nesse decisum, a Corte declarou inconstitucional a cobrança do ICMS no transporte aéreo de passageiros, algo perfeitamente aplicável à seara do transporte terrestre.

Se, por um prisma, ambas as modalidades de transporte podem até não possuir as mesmas características, por outro não há dúvidas de que é desproporcional não se beneficiar a frota terrestre com os benefícios concedidos à malha aérea.

Quando se sustenta a tese de que o transporte terrestre não se sujeita ao pórtico geral da isonomia (CF, art.5º, caput), se está ferindo, em última análise, o primado implícito da razoabilidade.

Não é razoável, para fins de aplicação direta e integral do vetor da isonomia, discutir se o transporte é aéreo ou terrestre.

A única coisa que importa nesse campo é o bom senso, que é o outro nome do princípio da razoabilidade, terminologia que advém dos norte-americanos.

Os alemães preferem chamá-lo de princípio da proporcionalidade.

Já os franceses e italianos rotulam-no de princípio da proibição de excesso.

Todas essas denominações são apropriadas. A doutrina e a jurisprudência predominantes consideram-nas sinônimas.

Para alguns, razoabilidade e proporcionalidade são noções distintas, posição esta que nos parece descabida. É inútil pretender extrair de figuras tão idênticas resultados diversos. No mérito, não há motivos para se fazer distinções, porquanto os critérios aferidores de ambos são os mesmos: a prudência, a sensatez, o bom senso, o equilíbrio. Na forma, não há como segregar a razão da proporção, ainda quando se invoquem elementos léxicos que justifiquem a dicotomia.

Seja como for, o escopo do princípio é fornecer parâmetros para a compreensão do alcance e da profundidade dos atos dos Poderes Públicos, permitindo se aferir a juridicidade e a validade dos mesmos.

Exemplo: se, no caso em estudo, a sentença proferida pelo Supremo Tribunal, na ADI 2.669, que julgou improcedente o pedido formulado pela Confederação Nacional do Transporte, estivesse pautada no pórtico da razoabilidade, certamente não se violaria, de modo direto, os princípios da isonomia, da capacidade contributiva e da livre concorrência.

Vários trabalhos sobre a razoabilidade[1] apontam nessa direção.

Alguns autores optaram pela influência norte-americana, extraindo o ditame da cláusula do due process.

Outros, porém, abeberando-se na publicística tedesca, vislumbraram-no como uma projeção do Estado de Direito (Rechtsstaat), sendo que ele estaria implícito na ordem jurídica pátria sob a forma de princípio não escrito.

As duas correntes conduzem ao mesmo resultado.

Tanto a cláusula do devido processo, como o pórtico do Estado de Direito, justificam a sua presença entre nós.

Pouco importa a primazia que devemos dar a esta ou àquela fonte doutrinária, se americana, alemã ou italiana.

O essencial é saber que o princípio da razoabilidade integra o ordenamento brasileiro, incidindo, por exemplo, nas operações de transporte terrestre de passageiros.   

Sem embargo, a mensagem esculpida no vetor da razoabilidade, forja o entendimento de que os efeitos da decisão proferida na ADI nº 1.600-8/DF, estendem-se, também, ao transporte terrestre.

É que a inconstitucionalidade dos arts. 4º, 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87/1996, atinge, de modo indistinto, os setores aéreo e terrestre.

Não há motivos para se estabelecer uma contraposição entre tais formas de transporte.

Ambas são atingidas pelos mesmos vícios de forma e de conteúdo, vislumbrados no referido diploma legal.

Usar como paradigma a ADI nº 1.600-8/DF, na esfera do transporte terrestre de passageiros, é eliminar a condenável praxe de fraude à Constituição (Verfassungsbeseitigung).

Embora os transportes terrestre e aéreo participem de contextos diferentes, regendo-se por prescrições normativas próprias, isto não significa que se possa descumprir o disposto no art.5º, da Carta Maior, que elevou a isonomia como pedra de toque do suntuoso edifício constitucional.

Do contrário, não viveríamos num Estado de Direito (Rechtsstaat), que se reputa democrático, mas num Estado de Polícia (Polizeistaat).


4. Inconstitucionalidade “contingencial”

Embora os custos, os riscos, a intensidade da prestação, a abrangência, a rotatividade, a capilaridade e o grau de submissão à regulamentação estatal, pertinentes ao transporte aéreo, possam, num primeiro súbito de vista, até não ser os mesmos aplicáveis às pessoas que exploram, economicamente, a malha terrestre, isto não permite se chegar à tese equivocada de que os arts. 4º, 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87/1996, são inconstitucionais apenas para casos contingenciais.

A inconstitucionalidade de tais preceptivos é óbvia e translúcida. É um despautério declarar uma norma inconstitucional para certo segmento, e, noutro, de notória envergadura, não.

Incide, nesse particular aspecto, o princípio fundamental do Estado de Direito Democrático (CF, art. 1º, caput), que, na concreção de seu alcance, fulmina, por completo, o cancro da inconstitucionalidade “contingencial”.

Aliás, Estado de Direito, sem o qualificativo democrático, é tradução literal da palavra alemã Rechtsstaat, empregada desde o começo do século XIX.

Com o tempo, a terminologia incorporou-se ao vocabulário jurídico e político, significando o oposto de Polizeistaat – Estado de Polícia – avesso à parêmia “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art.5º, II).

No Brasil, o constituinte, inspirado na Carta Portuguesa de 1976 (art.2º)[2], afirmou que a República Federativa pátria “constitui-se em Estado Democrático de Direito”(CF, art.1º, caput).

Quis reforçar a ideia segundo a qual Estado de Direito e democracia, bem como democracia e Estado de Direito, não são noções tautológicas ou pleonásticas.

Vêm juntas e não separadas, pois visam reforçar a concepção de que o Estado Democrático de Direito surge em oposição ao Estado de Polícia — aquele de tipo autoritário, que apregoava o repúdio às liberdades públicas, no sentido mais vasto e completo da expressão.

As consequências de vivermos num Estado Democrático de Direito externam-se no caso vertente.

Suponhamos que o Brasil fosse um Estado de Polícia.

Seria possível, ainda que inaceitável, o Poder Judiciário, atenuar exigências de ordem formal, acatando considerações de cunho axiológico, para decretar a inconstitucionalidade dos arts. 4º, 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87/1996, para situações específicas, deixando de fora outras ocorrências. 

Com base em juízos de valor, não no império da lei, seriam facilmente supressas as formas legais, inclusive aquelas previstas na Lei Maior, a Constituição Federal!

Poderiam ser flexibilizados, por exemplo, os vetores da isonomia (CF, art. 5º, caput, e inciso I), bem como tornar-se possível, ad absurdum, a aplicação de alíquotas interestaduais, pouco importando o fato da existência de conflitos entre os Estados a respeito do ICMS!

E mais: nada obstante a impossibilidade óbvia de aplicação do primado da não-cumulatividade nesse setor, pouco importaria o fato de que a Lei Complementar nº 87/1996 foi lacônica, pois não explicou como o contribuinte poderá operacionalizar a regra básica do ICMS, haja vista que o bilhete é emitido ao portador.

Só que não estamos num Estado de Polícia (Polizeistaat).

Existe o Poder Judiciário para decidir à luz do bom senso, da razoabilidade, da proporção, dosando a sentença conforme a gravidade do cometimento reputado ilícito.

E esse senso de razoabilidade nada tem que ver com interpretação contra legem de normas jurídicas.

Aliás, em nosso País, a exegese contra legem, deu lugar, em tempos remotos, a que numerosas situações do homem, individualmente tomado, ficassem desamparadas de toda proteção judicial, quando contra elas se projetava o arbítrio das razões de Estado. No passado, a injustiça, defluindo da atitude de omissão dos Tribunais, em presença do conflito entre certas franquias constitucionais e a chamada questão política, era, então, um fato corriqueiro. Cometia-se atos brutais. Os presidentes da República, no regime militar, prendiam pessoas sem observância das formalidades do processo. Por conseguinte, cidadãos eram desterrados em lugares inóspitos. Não raro, demitia-se alguém de uma função vitalícia, como tanto tem sucedido no curso da história da República. Bastava invocar, para justificar a brutalidade de tais atos, aquela mesma medida de exceção, e logo o Poder Judiciário se abrigava numa incompetência fundada na natureza política da espécie, quando a vítima do arbítrio administrativo lhe exorava um simples habeas corpus.

Ao se valer da terminologia Estado Democrático de Direito, a Constituição colimou encontrar a fórmula necessária para eliminar o arbítrio dos poderes governamentais, reconhecendo a República Federativa do Brasil como uma ordenação estatal justa, mantenedora dos direitos individuais e metaindividuais, garantindo as formas processuais, a independência e a imparcialidade dos juízes, os quais estão submetidos ao império da lei.   


5. Função social da empresa

Há um princípio constitucional que constitui um dos pilares da Carta de Outubro: a função social da empresa (arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186, caput).

Suponhamos que o decisum da Corte Excelsa, nas barras da ADI 2.669, que julgou improcedente o pedido formulado pela Confederação Nacional do Transporte, seja mantido.

Certamente, haverá uma ofensa imediata ao princípio que assegura às empresas de transporte desempenharem uma função social.

É que a própria isonomia, a capacidade contributiva e a livre concorrência, vetores estes que condicionam a atividade empresarial, imiscuem-se no pórtico da função social das empresas.

Qualquer pessoa jurídica inscrita nos órgãos competentes, tem uma função social a realizar, por força do que determinam os arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186, caput, da Lex Mater.

Contemporaneamente, as empresas exercem uma função social.

A evolução paulatina dos bens de consumo e de produção fizeram com que os núcleos empresariais expandissem a sua área de ação, espargindo influências sobre toda a comunidade organizada.

Daí a função social da empresa, aqui entendida como a tarefa básica que a mesma deve exercitar para a satisfação dos segmentos a ela ligados – empregados, fornecedores, financiadores, distribuidores, consumidores diretos ou indiretos dos seus serviços.

Interessante observar que a função social das empresas é de índole externa corporis, porque não se limita à mera operacionalização dos seus interesses internos. Agrega em torno de si uma multiplicidade de fatores circundantes, de nítido colorido social, econômico, tecnológico e humanitário.

Por isso, as empresas desempenham uma iniludível função social, que vai desde os seus empregados, chegando ao próprio Estado, por intermédio do recolhimento de tributos.

À luz da função social da empresa não paira dúvidas: ou se preserva o seu funcionamento regular, num esforço conjunto de todos os segmentos organizados, incluindo-se aí os Poderes Estatais, ou se atropela direitos prioritários de cidadãos inermes, formada e erigida ao seu derredor.

Referimo-nos à preservação dos direitos sociais básicos daqueles que dependem da atividade mercantil para viver, ou seja, educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, nos termos do art.6º, do Texto Supremo.

Dito de um modo claro e direto, empresas possuem gente em seus quadros, que precisa de seu funcionamento regular para “ganhar o pão”.

São seres humanos, que, como qualquer um de nós, acerta, erra, precisa comer, estudar, estar sadio, ter trabalho, diversão, segurança etc.

Óbvio que a enumeração descrita no art.6°, da Constituição Federal, é meramente exemplificativa, não esgotando o rol dos direitos sociais, que vêm espraiados em várias passagens da Lei das Leis.

Tanto é assim que a educação, a saúde, a segurança, a previdência (ou seguridade social), a proteção à maternidade, à infância e a assistência aos desamparados são assuntos que receberam tratamento constitucional destacado, ex vi dos arts. 196 a 203 (caput, I e II); 205 a 214; 227 a 229, do Texto Maior.

Face a tudo isso, suponhamos que determinada companhia seja prejudicada, financeiramente, em decorrência do julgamento da ADI 2.669, que, até o momento, permite a cobrança do ICMS das empresas prestadoras de serviços de transporte interestadual e intermunicipal de passageiros.

O resultado será: corte de gastos, demissão, desemprego, não prestação de serviços à comunidade, dentre tantos outros fatores aí relacionados.

Induvidosamente, a manifestação constituinte originária sofrerá investidas, se o mister empresarial ficar impedido de desempenhar sua função, porque os direitos básicos do art.6°, da Carta Maior, não consignam meras simbologias.

Expliquemos.

O Capítulo II, da Carta de 1988, inaugura-se trazendo a locução direitos sociais.

Essa terminologia é difícil de ser determinada. Ela é plurissignificativa. O seu sentido irá variar a depender do contexto em que for empregada.

Disso emerge a enorme dificuldade de se entender, na prática, que sejam direitos sociais.

Existe até algo de pleonástico em tudo isso, afinal todo direito é, em si mesmo, produto da vida em so­ciedade — ubi societas, ibi jus[3].

Seja como for, a pessoa jurídica possui uma função social a cumprir e a expressão direitos sociais se lhe aplica no sentido estrito, longe daquela acepção lato sensu.

É que o constituinte originário voltou-se para o amparo aos menos favorecidos, inclusive àqueles que dependem do salutar desenvolvimento empresarial para terem seus empregos garantidos.

O escopo do art.6°, da Carta de Outubro é proporcionar ao ser humano uma condição de vida mais decente e condigna com o primado da igualdade real.

Incluem-se aí os velhos, que ainda trabalham para manter a família, os empregados e desempregados, os portadores de deficiências, as crianças, os adolescentes etc.[4]

Os direitos sociais também funcionam para garantir que certas situações, incorporadas, em definitivo, ao patrimônio humano, sejam preservadas.

Nesse aspecto, incluem-se a qualidade de vida, a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Por isso, funcionam como meio para se alcançar um fim, isto é, servem de substrato para o exercício de incontáveis direitos humanos fundamentais, e. g, aqueles arrolados nos arts. 5º e 7º da Constituição[5].

E a função social da propriedade? Será que ela repercute, de algum modo, na matéria que estamos estudando?

Sim.

A cobrança desproporcional e indevida de ICMS levará a função social que a empresa tem a cumprir ao limbo, nada obstante o fato de consignar uma robusta garantia constitucional (CF, arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186, caput).

Sendo o Texto Supremo o berço primário da função social da propriedade, é patente a função social que a atividade empresária tem a cumprir, algo que não advém de uma fantasia mental ou de um mero criacionismo do intelecto humano.

E não podemos imaginar a função social das empresas sem aquilo que Léon Duguit vislumbrou ao estudar o tema.

Segundo Duguit, as empresas desempenham função social, porque a propriedade não é um direito “intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder”[6] (grifamos).

Trazendo esse magistério para o centro da nossa análise, cobrar ICMS de transporte rodoviário de passageiros é matar as necessidades sociais que as empresas devem responder.


6. Dois pesos e duas medidas?

Ocorreu algo inaceitável no julgamento da ADI 2.669: o completo menosprezo à livre concorrência.

E mais: usaram dois pesos e duas medidas no exame da matéria.

Para o transporte aéreo, adotaram um entendimento, e, para o transporte terrestre outro.

Nada se falou, nas manifestações dos votos vencedores, sobre os primados da capacidade contributiva e, sobretudo, da seletividade.

Também há que se observar a inexistência de qualquer parâmetro lógico para, na ADI 1.600-8/DF, invalidar-se a cobrança do ICMS, e, na ADI 2.669, admitir a possibilidade!

Não iremos fazer aqui uma dissertação sobre o vetor da isonomia e o seu cabal menosprezo no caso vertente.

Apenas queremos adentrar no âmago da questão: o uso equivocado, pelo Supremo Tribunal Federal, do princípio da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto.

Equivocado, porque criou-se uma situação, no mínimo, constrangedora: a existência de duas ações diretas de inconstitucionalidade, apontando como inconstitucionais preceitos idênticos da Lei Complementar nº 87, de 13-9-1996, para se chegar a resultados diversos.

 Criou-se uma situação teratológica, porque a Corte partiu da premissa de que o transporte aéreo não se compara ao transporte terrestre de passageiros.

Resultado: na ADI 1.600-8/DF declararam a inconstitucionalidade sem redução do texto, de modo a invalidar os preceitos da referida Lei Complementar nº 87, apenas, para o transporte aéreo. 

O princípio da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto é a técnica decisória que possibilita à Corte Suprema excluir determinadas hipóteses de aplicação de um programa normativo.

Sem empreender qualquer alteração gramatical dos textos legais, permite que o Supremo aplique uma lei, num determinado sentido, a fim de preservar a sua constitucionalidade.

Tanto a Lei nº 9.868/1999 (art. 28, parágrafo único) como a Lei nº 9.882/1999 (art. 10) estipulam a competência para a Corte Excelsa declarar, parcialmente, a inconstitucionalidade sem redução do texto.

Ao afastar, parcialmente, a aplicação da norma, o instituto busca a clareza dos textos normativos e a existência de decisões judiciais abalizadas e coerentes, algo que não ocorreu no caso em comento.

A declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto apresenta eficácia erga omnes (contra todos) e efeito vinculante, relativamente aos órgãos do Poder Judiciário, da Administração Pública federal, estadual e municipal (Lei nº 9.868/1999, art. 28, parágrafo único).

No Brasil, foi Lúcio Bittencourt quem primeiro vislumbrou, em 1949, a importância da declaração parcial sem redução do texto. Ensinou que uma lei pode ser válida quanto a certo número de casos ou pessoas e inválida em relação a outros. Concluiu, enfim, que algumas leis, redigidas em linguagem ampla, eram inaplicáveis a fatos pretéritos, embora se aplicassem a situações futuras[7].

O Supremo Tribunal Federal vem utilizando a categoria desde a década de sessenta.

Em tema de leis tributárias, que instituíam tributos e começavam a cobrá-los no mesmo exercício financeiro, a Corte aplicou o instituto. Argumentou que essas leis eram compatíveis com o Texto Magno, em todo o conteúdo, exceto pela inobservância do princípio da anterioridade. Decidiu, então, mantê-las no ordenamento, autorizando que fossem aplicadas, sem qualquer mácula, no exercício financeiro seguinte[8].

Noutra feita, a Corte, examinando a aplicação de leis relativas à correção monetária, entendeu que elas não poderiam desrespeitar situações consolidadas. Nesse ínterim, resolveu apenas declarar a inconstitucionalidade das hipóteses contrárias à Carta Magna, sem proceder, contudo, a alterações em seus programas normativos[9].

Assim, em vez de cassar a lei, a Corte prefere aplicá-la sem nenhuma mácula, preservando-a para uso futuro[10].

Acontece, porém, que a situação em estudo possui especificidades.

Em primeiro lugar, a legislação complementar não sopesou o caráter específico do transporte terrestre e interestadual de passageiros.

Não determinou o marco, no qual se dá o ponto de partida, onde se inicia a prestação do serviço de se levar pessoas nos cantos e recantos do País.

Numa palavra, a Lei Complementar nº 87 não estipulou o marco, o ponto de partida mesmo, do qual deflui a prestação dos serviços de transporte terrestre de passageiros.

Esse é o contexto em que a Corte Suprema julgou procedente, em parte, a ADI 1.600-8/DF, declarando a inconstitucionalidade, sem redução do texto, de preceptivos da Lei Complementar nº 87, de sorte a não se cobrar ICMS do segmento aéreo intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e de cargas.

Não levou em conta, porém, que todos esses preceitos declarados inconstitucionais em nada regulamentaram as nuances da malha terrestre.

Quer dizer, o uso, pelo Supremo Tribunal, do princípio da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto criou um quadro anômalo para as empresas de transporte terrestre, porque baseou-se em dois pesos e duas medidas.

O fato é que o mau uso, no caso vertente, do princípio da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto culminou no cancro da interpretação constitucional de preceitos inconstitucionais.

Muitas vezes, os atos dos Poderes Públicos e dos particulares estão de desacordo com a constituição.

Mesmo assim, o intérprete confere às normas constitucionais um entendimento que valida atos contrários à Lex Mater.

Estamos diante da exegese constitucional de preceitos inconstitucionais.

Ou seja, a lei ou ato normativo estão em absoluta contrariedade com a constituição, e, nada obstante, o exegeta confere-lhe um significado que a torna constitucional.

No Brasil, é corriqueira a praxe de se interpretar de modo constitucional as leis e atos normativos inconstitucionais.

Embora muitas leis estejam em absoluto antagonismo com o Texto de 1988, recebem uma exegese distorcida, equivocada, ensejando uma interpretação que lhes convalida.

Essas leis passam a ser cumpridas mediante a suposição de que são constitucionais, quando, verdadeiramente, não o são.

As exegeses constitucionais de preceitos inconstitucionais fulminam a vida das constituições.

Os efeitos provocados por essas deformações variam em grau e em profundidade e podem vulnerar a Carta Suprema, em maior ou menor extensão.

Vários são os exemplos de exegeses constitucionais de preceitos inconstitucionais.

Impossível seria enumerá-los exaustivamente, pois é incomensurável a pletora de casos que chegam, todos os anos, ao Supremo Tribunal Federal, inclusive em sede de embargos de declaração.

Tais violações, mais ou menos intencionais, derivadas de uma interpretação maliciosa ou sub-reptícia, podem provocar mudanças eventuais ou, até, permanentes, suspendendo, por algum tempo, a produção de efeitos da norma constitucional.

Na vigência da Constituição brasileira de 1946, por exemplo, tivemos a exegese constitucional de leis ordinárias inconstitucionais.

O constituinte deixou sob os auspícios da lei o encargo de erigir critérios para a feitura de concursos públicos (art. 186).

Nesse ínterim, leis ordinárias foram editadas admitindo a efetivação de servidores extranumerários ou interinos sem concurso. Outros diplomas normativos chegavam a anunciar a abertura de certames que nem se realizavam.

Outorgavam, de antemão, benefícios aos extranumerários, impedindo a aprovação de candidatos que estivessem fora do serviço público.

Essas práticas, corriqueiras no curso de nossa trajetória constitucional, e que desbordam as técnicas de controle de constitucionalidade, devem ser repelidas, venham de onde vierem.

Em vez de adaptarem as constituições ao influxo do fato social cambiante, fulminam-lhes a forma e o conteúdo.


7. Trabalho, livre iniciativa e livre concorrência

No caso vertente, é indiscutível a ofensa perpetrada pelos arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, contra os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), a  livre iniciativa (CF, art. 1º, IV) e a livre concorrência (CF, art.170, IV), vetores fundamentais do arcabouço constitucional da República.

O trabalho, certamente, dignifica a existência terrena, e, quando livre e criativo, liga o homem a Deus. Daí a Constituição enfatizar o respeito e a dignidade ao trabalho em diversos lugares (arts. 5º, XIII, 6º, 7º etc.), para dizer que a garantia ao trabalho engloba empregados e empregadores, autônomos e assalariados.

Aliás, para lograr o seu desígnio constitucional, o labor deve ser livre. Daí o constituinte tê-lo encampado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, IV).

Quando o Supremo Tribunal concebeu, na literalidade, a terminologia “navegação aérea” como sendo algo diferente de “transporte” acabou matando os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), porque criou uma situação exdrúxula para os prestadores de serviços de transportes terrestres intermunicipais, interestaduais e internacionais.

Exdrúxula, porque os mesmos vícios que solapavam o setor aéreo, declarados inconstitucionais, foram considerados “lícitos” para o transporte rodoviário.

Desse modo, a desigualdade, a irrazoabilidade, o desprezo à capacidade contributiva e à seletividade tributárias, inadmitidos pela Corte na seara do transporte aéreo, não foram consideradas, por ela mesma, na esfera da malha terrestre!

Certamente, não há como o labor ser livre, face a uma situação desse jaez, onde o desequilíbrio na concorrência compromete da neutralidade tributária das pessoas jurídicas de direito privado.

Moral da história: o segmento aéreo foi beneficiado ao menoscabo da via terrestre.

O respeito à capacidade contributiva e à livre concorrência, argumento de base da ADI 2.669/DF, ajuizada pela Confederação Nacional de Transporte, ficaram à míngua.

E, ao prescrever os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a Constituição aduziu que a ordem econômica se funda nesse primado, valorizando o labor humano em relação à economia de mercado, nitidamente capitalista.

Priorizou, pois, a intervenção do Estado na economia, para dar significado aos valores sociais do trabalho. Estes, ao lado da iniciativa privada, constituem um dos pilares do Estado brasileiro.

Certamente, “A livre-iniciativa está consagrada na ordem econômica constitucional e como fundamento da própria República Federativa do Brasil, podendo atuar o particular com total liberdade, ressalvadas apenas as proibições legais. Não se tolera restrição a tal liberdade, sem o devido respaldo legal”[11].

Sem dúvida, a livre iniciativa proíbe todo e qualquer posicionamento discriminatório quanto ao transporte terrestre, face à flagrante desigualdade em onerar com o ICMS tal setor produtivo.

As empresas possuem o direito constitucional de beneficiarem-se do princípio nodular da livre iniciativa, assim como da livre concorrência.  

Decerto, a livre concorrência, gizada no art.170, inciso IV, da Lex Mater, no posto de vetor basilar da ordem econômica, não constou nas constituições pregressas. No ordenamento constitucional anterior, por exemplo, ela vinha implícita na liberdade de iniciativa.

Homenageado pela Carta de 1988, a livre concorrência não se compactua com quaisquer tipos de discriminações.

Aliás, o Texto Magno estimula o exercício igualitário das relações mercantis.

O que enseja a intervenção estatal é o uso desmensurado e antissocial da livre concorrência.

Práticas abusivas, portanto, derivadas do capitalismo monopolista, dos carteis, dos oligopólios, não encontram respaldo constitucional, assim como não há supedâneo normativo para se quebrar a neutralidade do poder de tributar do Estado.

Seja como for, as companhias de transporte terrestre de passageiros fazem jus à igualdade de concorrência, à liberdade de contratar e à liberdade de instalar estabelecimento comercial, observados os limites impostos pela legislação ordinária.

Enfatize‐se que é muito difícil a tarefa de o legislador infraconstitucional regular a matéria da livre concorrência.

Daí as leis antitrustes não lograrem os efeitos desejados[12], exigindo-se bom senso, por parte do Poder Judiciário, no enfrentamento do assunto.


8. Inconstitucionalidades formal e material

Os arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, ferem, formal e materialmente, a Constituição da República Federativa do Brasil.

Vejamos, amiúde, o porquê dessa assertiva.

Na situação vivida pelas empresas de transporte rodoviário, não há dúvidas de que os arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, sujeitam-se a requisitos de forma, subjetivos e objetivos, a serem verificados no exame de sua constitucionalidade (nomodinâmica constitucional).

Diz-se que uma lei é formalmente inconstitucional quando é elaborada por um procedimento contrário à constituição, ou quando emana de órgão incompetente, ou, ainda, quando é criada em tempo proibido.

Os arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, violaram, formalmente, o art.155, § 2o, III, do Texto de Outubro.

Recordemos que o referido art.155, § 2o, III, da Carta Magna, contempla a seletividade do ICMS em decorrência da essencialidade das mercadorias e serviços.

Como exemplo, temos as companhias de transporte terrestre, cujo serviço por elas prestado engloba um universo de pessoas, insurgindo daí o cunho seletivo de sua atividade.

De outro sítio, os arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, violaram, substancialmente, a Constituição Federal.

O tema em epígrafe relaciona-se com os requisitos materiais de verificação da inconstitucionalidade das leis e dos atos normativos (nomoestática constitucional).

A inconstitucionalidade material, substancial ou intrínseca é a que afeta o conteúdo das disposições constitucionais.

Mas o que significa afetar o conteúdo dos preceitos constitucionais?

Significa violar a matéria de fundo presente na constituição.

Foi o que ocorreu com a Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, que malsinou o primado do Estado de Direito (CF, art.1o, caput), a isonomia (CF, art.5o, caput), a função social da empresa (CF, arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186, caput), os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), a  livre iniciativa (CF, art. 1º, IV), a livre concorrência (CF, art.170, IV) e o vetor republicano (CF, art.1o, caput).

8.1. Digressões necessárias

Sustentamos a tese de que estão presentes, no caso em estudo, as inconstitucionalidades formal e material.

Façamos, pois, algumas digressões, saindo um pouco do objeto específico de nosso estudo, com visando fornecer subsídios para reflexões necessárias ao deslinde da problemática correlata à inconstitucionalidade da cobrança de ICMS em transporte terrestre de passageiros.

Existem diferentes comportamentos que ensejam a inconstitucionalidade, permitindo a formação de juízos de inconstitucionalidade.

Juízos de inconstitucionalidade são avaliações das prováveis condutas que podem contrariar, ou não, o texto supremo.

Esses juízos de inconstitucionalidade realizam-se pelos órgãos encarregados de defender a constituição.

No Brasil, é o Poder Judiciário que exerce, de modo preponderante, o juízo de inconstitucionalidade.

Cumpre ao Judiciário verificar se um dado diploma normativo é, ou não, contrário à carta magna.

Interessante observar que uma lei ou ato normativo podem apresentar, de uma só vez, diferentes tipos de inconstitucionalidade.

Exemplo: lei ordinária traz a pecha da inconstitucionalidade formal e, ao mesmo tempo, material.

Outro exemplo: ato normativo evidencia a inconstitucionalidade parcial e, ao mesmo tempo, por omissão.

Mais um exemplo: medida provisória apresenta a inconstitucionalidade direta e, ao mesmo tempo, por ação.

A utilidade de catologar os diferentes tipos de inconstitucionalidade é precisamente esta: saber quais os comportamentos contrários à constituição.

Numa linguagem figurada, diríamos: a pesquisa dos diferentes tipos de inconstitucionalidade possibilita o diagnóstico da doença que compromete a saúde do ato normativo. Descoberta a doença, poderemos curá-la, porque saberemos qual o remédio a utilizar.

8.1.1. Inconstitucionalidade formal

A inconstitucionalidade formal é instrumental ou extrínseca.

Existem três tipos de inconstitucionalidade formal:

• inconstitucionalidade formal propriamente dita;


• inconstitucionalidade formal orgânica; e


• inconstitucionalidade formal temporal.


No Brasil, as duas primeiras são as mais importantes. Tanto é assim que prevalece na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a tese de que a inconstitucionalidade formal propriamente dita (advinda da inobservância dos pressupostos de elaboração normativa) e a inconstitucionalidade formal orgânica (oriunda do desrespeito à competência inscrita pelo constituinte) vulneram a constituição por vício de forma[13].

Vejamos cada categoria em separado.

A inconstitucionalidade formal propriamente dita é aquela que contamina o procedimento de elaboração das espécies normativas pela inobservância dos pressupostos técnicos, exigidos para a feitura delas. Por isso, acarreta a nulidade de emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.

Exemplo: medida provisória que não observou os pressupostos da relevância e urgência apresentará a inconstitucionalidade formal propriamente dita por ofensa, direta, ao art. 62, caput, da Constituição.

Outro exemplo: emenda constitucional proposta por menos de 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal também apresentará a inconstitucionalidade formal propriamente dita. É que o art. 60, I, da Carta brasileira, estabelece o quórum mínimo de 1/3.

Em tema de inconstitucionalidade formal propriamente dita, a Corte Excelsa declarou inconstitucional o art. 2o da Lei estadual n. 498/92, do Estado do Tocantins, na parte que modificou, sem prévia consulta plebiscitária, a área, os limites e as confrontações de Município, temas que já tinham sido submetidos a plebiscito. O mesmo ocorreu com o art. 48 do ADCT da Carta do Maranhão e da Lei estadual n. 4.956/89[14].

Esse entendimento do Supremo proveio da exegese do art. 18, § 4o, da Constituição brasileira, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 15/96. Somente consultando as coletividades, por meio de plebiscito, é que as Assembleias Legislativas estaduais podem dispor, mediante lei, sobre a criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios. Do contrário, será inconstitucional, formalmente falando, ainda quando as leis estaduais sejam regularmente votadas e sancionadas.

Já a inconstitucionalidade formal orgânica é praticada por órgãos que não detêm a competência constitucional para elaborar certos atos normativos, e, mesmo assim, o fazem. Gera, portanto, vícios de competência.

Exemplo: prefeito municipal elabora lei delegada. Pelo art. 68 da Carta de Outubro as leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. Eis uma inconstitucionalidade formal orgânica, pois prefeitos municipais são constitucionalmente incompetentes para elaborar leis delegadas.

Outro exemplo: Presidente de Tribunal de Justiça pretende regular matéria, via lei complementar, inerente ao Estatuto da Magistratura. A situação é sobremodo estapafúrdia, porque apenas o Supremo Tribunal Federal possui a iniciativa de lei complementar para disciplinar a matéria (CF, art. 93, caput). No caso, a inconstitucionalidade formal orgânica será inequívoca.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, encontramos julgados reconhecendo a inconstitucionalidade formal orgânica, cujo exemplo vigoroso é a problemática da usurpação de iniciativa de competência reservada ou exclusiva. 

Num primeiro momento, o Pretório Excelso entendia que o vício poderia ser sanado mediante simples sanção do projeto aposta pelo Chefe do Poder Executivo.

Nesse ínterim, criou a Súmula 5: “A sanção do projeto supre a falta de iniciativa do Poder Executivo”.

Mas inúmeros reclamos doutrinários foram expendidos contra esse enunciado sumular[15].

Os apelos foram ouvidos, e o Supremo alterou a Súmula 5, passando a decidir da seguinte maneira: “A sanção do projeto de lei que veicule norma resultante de emenda parlamentar aprovada com transgressão à cláusula inscrita no art. 63, I, da Carta Federal, não tem o condão de sanar o vício de inconstitucionalidade formal, eis que a vontade do Chefe do Poder Executivo — ainda que deste seja a prerrogativa institucional usurpada — revela-se juridicamente insuficiente para convalidar o defeito radical oriundo do descumprimento da Constituição da República”[16].

Por último, temos a inconstitucionalidade formal temporal.

Ocorre quando o órgão competente para editar leis e atos normativos o faz em tempo proibido, fora dos períodos de normalidade institucional.

A inconstitucionalidade formal temporal é uma modalidade anacrônica, ou seja, pouco usual e de difícil constatação prática, mas que convém ser registrada, pois pode ocorrer, inclusive, no Brasil.

Exemplo: emenda constitucional aprovada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. Padecerá da inconstitucionalidade formal temporal porque o § 1o do art. 60 de nossa Constituição proíbe emendas nessas ocasiões.

A experiência constitucional evidencia que a inconstitucionalidade formal temporal delineia-se nas épocas de reformas constitucionais, quando os limites temporais e circunstanciais do poder constituinte derivado são transgredidos pela ação do legislador[17].

8.1.2. Inconstitucionalidade material

O tema em epígrafe relaciona-se com os requisitos materiais de verificação da inconstitucionalidade das leis e dos atos normativos.

A inconstitucionalidade material, substancial ou intrínseca é a que afeta a matéria de fundo presente nas constituições.

Matéria de fundo é o assunto, o tema, a substância que está por trás dos artigos, incisos ou alíneas da constituição. Não diz respeito ao procedimento, nem à técnica formal de produção legislativa; relaciona-se à conveniência ou inconveniência de editar, ou não, determinada lei ou ato normativo. Nisso, abrange os grandes princípios formulados pelo constituinte e o quadro de valores supremos inseridos na mensagem constitucional positivada.

Exemplo: o inciso LIV do art. 5o enuncia: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. A matéria de fundo, subjacente a esse enunciado, consiste no devido processo legal material, que logra um sentido amplo, genérico, inominado, cujo objetivo é proteger, de modo incondicional, os direitos fundamentais. Mas o constituinte nem se refere ao aspecto material da referida cláusula. Apenas finda o preceptivo com o jargão “devido proces- so legal”, sem minudenciá-lo. É precisamente nesse ponto que aparece a matéria de fundo do inciso LIV do art. 5o. Ela está embutida nas entrelinhas da disposição constitucional, nos escaninhos da mensagem prescritiva, embora não haja a mínima referência, direta ou específica, a seu respeito.

Para ilustrar, eis algumas das matérias de fundo presentes no Texto de 1988:


 • Matérias de fundo correlatas ao Preâmbulo — compreendem assuntos ligados aos direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade, harmonia social, paz, fraternidade e justiça. Albergam, pois, fórmulas principiológicas de elevado caráter abstrato, mas que não têm força cogente se tomadas de per si. Por isso, é relativo o valor do Preâmbulo na verificação da inconstitucionalidade material. Ele só funcionará como parâmetro de exame da constitucionalidade se for confrontado com outros preceptivos constitucionais expressos. Exemplo: nada adianta alegar que uma lei complementar fere o Preâmbulo da Constituição no item igualdade; é mister que se entrelace esse juízo com a mensagem prescrita no caput do art. 5o: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Matérias de fundo correlatas aos fundamentos da República — englobam temas 
versados nos arts. 1o, 3o e 4o da Constituição: soberania, cidadania, dignidade humana, valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa; sociedade livre, justa e solidária; desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza, da marginalidade, das desigualdades sociais e regionais; promoção do bem geral; a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos etc.

Matérias de fundo correlatas às liberdades públicas — abarcam o Título II da Constituição, que disciplina os direitos e garantias fundamentais. Nesse particular, merece destaque a cláusula do devido processo legal material (art. 5o, LIV), acima referida, da qual dimanam outros vetores dotados de inegável relevância no exame da inconstitucionalidade material, a exemplo do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, objeto de análise específica nas páginas vindouras.

Matérias de fundo correlatas à principiologia da Constituição — aqui residem os grandes princípios, expressos e implícitos, que podem servir de apanágio para detectarmos a inconstitucionalidade material das leis e dos atos normativos. Exemplificam os princípios expressos ou explícitos: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, acessibilidade aos cargos e funções públicas, remuneração dos servidores, improbidade administrativa, autonomia gerencial dos entes administrativos etc. Ilustram os princípios implícitos: paz, fraternidade, amor ao próximo, solidariedade, justiça, respeito mútuo entre os homens, progresso social, boa-fé, proibição do enriquecimento sem causa, máximas da experiência etc. 


Essa catalogação foi meramente exemplificativa. Claro que existem outras matérias de fundo que demandam pesquisa no Texto Constitucional.

O mais importante é sabermos que, no Brasil, a avaliação da inconstitucionalidade material encontra respaldo em assuntos subjacentes à Carta Maior. Eles veiculam a ideia de direito e de justiça que formam o coração do ordenamento constitucional pátrio.

A partir do momento que essa ideia de direito e de justiça é desrespeitada temos a inconstitucionalidade material das leis e dos atos normativos, porque a liberdade do legislador é limitada pela Constituição Federal.

Deveras, há na Carta de 1988 uma espécie de quadro de valores que nos fornece subsídios para entendermos a ideia de direito e de justiça que a preside.

Essa constatação é importantíssima, pois demonstra que o legislador não é um ser ilimitado. Não poderá sair legislando do modo como quiser e da maneira que bem entender. Sua liberdade circunscreve-se às ideias de direito e de justiça plasmadas na Carta Maior. É engano pensar que as leis podem conter tudo. Elas só serão constitucionais, materialmente falando, se estiverem de acordo com a substância da constituição.

Exemplo: uma lei ordinária foi elaborada à luz de todas as exigências técnicas previstas na Constituição brasileira. Mesmo perfeita do ponto de vista formal, só será constitucional se, e somente se, lastrear-se na ideia de direito e de justiça decorrentes da manifestação constituinte originária.

Sem embargo, resta saber como se manifesta a inconstitucionalidade material.
Certamente, a matéria de fundo presente na Constituição pode ser violada de duas maneiras: pela incompatibilidade entre o conteúdo da norma e o da constituição; e
pelo excesso do ato de legislar.

Examinemos ambas as formas.

A inconstitucionalidade material pela incompatibilidade entre o conteúdo da norma e o da constituição é comum no Brasil.

Incontáveis foram as vezes que a competência legislativa foi exercida contra constitutionem. Basta citar a extinta contribuição provisória sobre movimentação financeira — a CPMF, exemplo eloquente de inconstitucionalidade material pela incompatibilidade entre o conteúdo da norma e o da constituição. 

Já a inconstitucionalidade material pelo excesso do ato de legislar configura hipótese de desvio da função legislativa, enquadrando-se, de modo geral, naquilo que os franceses chamaram de desvio de poder (détournement de pouvoir).

Estamos diante da inconstitucionalidade finalística ou teleológica, também chamada de inconstitucionalidade por desvio de poder.

Como se vê, a inconstitucionalidade finalística não constitui uma categoria autônoma, mas, tão só, mero desdobramento da teoria da inconstitucionalidade material pelo excesso do ato de legislar. Ela decorre do desvio de poder legislativo. É constatada pela contradição entre o fim do ato normativo e o fim do bem constitucionalmente tutelado.

Exemplo: ao editar uma lei ordinária, o legislador, valendo-se de sua competência legal, persegue finalidade contrária àquela prevista na constituição, somente para beneficiar ou prejudicar setores ou segmentos da sociedade.

Outro exemplo: suponhamos que o legislador, com base na norma constitucional programática do art. 205 de nossa Constituição, elabore diploma normativo que não contemple o desenvolvimento da pessoa humana e o seu preparo para o exercício da cidadania. Assim o fez no intuito de baixar elevados custos para o setor da educação privada. Eis uma inconstitucionalidade finalística, pois o programa encampado pelo constituinte foi frustrado por provisões le- gislativas contrárias aos expressos fins constitucionais.

A inconstitucionalidade finalística, que pode assolar qualquer tipo de norma constitucional, seja de eficácia absoluta, seja de eficácia plena, contida, limitada, esvaída ou, até, exaurida, é muito comum na experiência europeia. Na Itália, por exemplo, Vezio Crisafulli relata-nos que a jurisprudência da Corte italiana é pródiga em detectar a existência de disposições legais que contrariam os fins traçados na Carta peninsular[18].

No Brasil, o estudo da inconstitucionalidade finalística é útil na medida em que serve para revelar a existência do elo de incompatibilidade entre o conteúdo da norma e o da constituição.

Embora os estudiosos pátrios não tenham enfrentado o tema com maior profundidade, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desde a década de cinquenta, reconhece a categoria[19].

Sem dúvida, o Poder Judiciário, e, em especial, o Pretório Excelso, está capacitado, inclusive pela sistemática da Carta de 1988, para preencher a margem de indeterminação das normas constitucionais. Poderá, até, buscar auxílio nas máximas da experiência e mesmo nos dados concretos extraídos da realidade econômica, política, social e cultural.

É nesse ínterim que se situa a inconstitucionalidade finalística, verdadeiro parâmetro de confronto para avaliar se existe, ou não, contraste entre os fins constitucionais e os preceitos das leis comuns.

Pode ocorrer de os legisladores editarem leis que exorbitam as finalidades constitucionais. Praticam o mister legiferante de modo inapropriado, sem qualquer senso de lógica ou razoabilidade. Cometem exageros pela maledicência ou pela inaptidão de exercerem o mandato para o qual foram eleitos. Daí elaborarem normas com escopos totalmente contrários àquilo que foi demarcado pelo constituinte originário. Quer dizer, extrapolam a imaginação criadora, perfeitamente admissível quando exercida à luz dos padrões supremos da norma de hierarquia máxima: a constituição.

E nem se fale que os legisladores têm discricionariedade. O exagero da liberdade de configuração normativa deve ser repudiado[20].


9. Princípio republicano e ADI 1.600-8/DF

A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 1.600-8/DF, que reconheceu a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, encontra-se consentânea com o ditame republicano, elevado à pedra de toque do suntuoso edifício constitucional pátrio (CF, art.1o, caput).

Mas o mesmo não podemos dizer a respeito da ADI 2.669/DF, porque o decisum aí proferido, além de não ter se debruçado a respeito das principais alegações de inconstitucionalidade da Confederação Nacional de Transporte, solapou o princípio republicano.

Deveras, dentre os fundamentos da República brasileira, estampados no Título I da Carta Magna, está o pórtico republicano, que estabelece a forma de governo do Brasil.

Consagrou-se, por seu intermédio, a ideia de que os juízes, assim como quaisquer membros dos demais Poderes de Estado, devem, necessariamente, considerar e primar pela observância dos direitos e prerrogativas comezinhas da cidadania, a exemplo da igualdade e da capacidade contributiva.

A força do vetor republicano ressoa sobre toda a ordem jurídica. Basta ver que ele não pode sofrer emendas constitucionais, haja vista o limite implícito no art. 60, § 4o, I, da Carta de 1988.

Seu acatamento é obrigatório por parte até dos entes federativos, a começar pela União (CF, art. 34, VII, a).

Do simples cidadão ao Presidente da República, todos devem respeitá-lo.

Sua importância é enorme. Basta ver que quaisquer atos governamentais, legislativos ou judiciais só serão legítimos se forem praticados sob a sua égide.

Mas o pórtico republicano nem sempre é levado às últimas consequências.

O constituinte reformador brasileiro, por exemplo, fulminou-o ao admitir reeleição para cargos públicos unipessoais (EC n. 16/97, que deu nova redação aos arts. 14, § 5o; 28, caput; 29, II; 77, caput; e 82 da CF).

Ora, república contrapõe-se à monarquia, onde tudo pertencia ao Rei, que governava de modo absoluto e irresponsável.

A res (coisa) publicae (povo) foi um brado contra a realeza, em homenagem ao governo responsável e de muitos, inclusive daquilo que se convencionou chamar de governo de juízes, não raro presente na vida constitucional dos Estados.


10. Conclusões

Ao cabo das premissas e digressões acima expendidas, chegamos às seguintes conclusões a respeito do assunto:

a) É preciso ocorrer uma viragem jurisprudencial da matéria correlata à ADI 2669/DF, haja vista a notória inconstitucionalidade dos arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996. 

b) A observância atenta do princípio da proporcionalidade evidencia que o setor de transporte de passageiros está livre da cobrança de ICMS, tal como ventilado na ADI nº 1.600-8/DF. É irrazoável não se beneficiar a frota terrestre com os benefícios concedidos à malha aérea. Ora, quando se sustenta a tese de que o transporte terrestre não se sujeita ao pórtico geral da isonomia (CF, art.5º, caput), se está ferindo, em última análise, o primado da razoabilidade. Não é razoável, para fins de aplicação direta e integral do vetor da isonomia, discutir se o transporte é aéreo ou terrestre. A única coisa que importa nesse campo é o bom senso.

c) Se, por um lado, as atividades desempenhadas pelas empresas de transporte terrestre não são idênticas àquelas exercidas pela companhias aéreas, por outro não se pode chegar à tese equivocada de que os arts. 4º, 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87/1996, são inconstitucionais apenas para casos contingenciais. Isto porque, é um despautério declarar uma norma inconstitucional para certo segmento, e, noutro, de notória envergadura, não. Incide, aqui, o princípio fundamental do Estado de Direito Democrático (CF, art. 1º, caput), que, na concreção de seu alcance, fulmina, por completo, o cancro da inconstitucionalidade “contingencial”.

d) As empresas de transporte rodoviário desempenham uma função social. A isonomia, a capacidade contributiva e a livre concorrência condicionam-lhes a atividade, imiscuindo-se no pórtico da função social das empresas. Qualquer pessoa jurídica, inscrita nos órgãos competentes, tem uma função social a realizar, por força do que determinam os arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186, caput, da Lex Mater. À luz da função social da empresa não paira dúvidas: ou se preserva o seu funcionamento regular, num esforço conjunto de todos os segmentos organizados, incluindo-se aí os Poderes Estatais, ou se atropela direitos prioritários de cidadãos inermes, formada e erigida ao seu derredor. Trazendo esse magistério para o centro da nossa análise, cobrar ICMS de transporte rodoviário de passageiros é matar as necessidades sociais que as empresas de transporte terrestre devem cumprir.

e) Ocorreu algo inaceitável no julgamento da ADI 2.669: o completo menosprezo à livre concorrência. Para o transporte aéreo, adotaram um entendimento, e, para o transporte terrestre outro. Nada se falou, nas manifestações dos votos vencedores, sobre os primados da capacidade contributiva e, sobretudo, da seletividade. Também há que se observar a inexistência de qualquer parâmetro lógico para, na ADI 1.600-8/DF, invalidar-se a cobrança do ICMS, e, na ADI 2.669, admitir a possibilidade. Nesse contexto, subverteram o princípio da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, cujo uso foi equivocado. Isto porque, criou-se uma situação, no mínimo, constrangedora: a existência de duas ações diretas de inconstitucionalidade, apontando como inconstitucionais preceitos idênticos da Lei Complementar nº 87, de 13-9-1996, para se chegar a resultados diversos.

f) É indiscutível a ofensa perpetrada pelos arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, contra os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), a livre iniciativa (CF, art. 1º, IV) e a livre concorrência (CF, art.170, IV). Com efeito, as empresas possuem o direito constitucional de beneficiarem-se de todos esses princípios nodulares da República, fazendo jus, por exemplo, à igualdade de concorrência, à liberdade de contratar e à liberdade de instalar estabelecimento comercial, observados os limites impostos pela legislação ordinária.

g) Não há dúvidas de que os arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, sujeitam-se a requisitos de forma, subjetivos e objetivos, a serem verificados no exame de sua constitucionalidade. De outro lado, os arts. 4º; 11, a e c; 12, V e XIII, da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, violaram, substancialmente, a Constituição Federal.

h) A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 1.600-8/DF, que reconheceu a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, encontra-se consentânea com o ditame republicano, elevado à pedra de toque do suntuoso edifício constitucional pátrio (CF, art.1o, caput). Mas o mesmo não podemos dizer a respeito da ADI 2.669/DF, porque o decisum aí proferido, além de não ter se debruçado a respeito das principais alegações de inconstitucionalidade da Confederação Nacional de Transporte, solapou o princípio republicano.


Notas

[1] Algumas referências: Carlos Roberto Siqueira Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1989; Rodney L. Mott, Due process of law, Ed. Bobbs-Merril, 1926; Raquel Denize Stumm, Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1995; Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília, Ed. Brasília Jurídica, 1996; Willis Santiago Guerra Filho, Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997; Gilmar Ferreira Mendes, A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Repertório IOB de jurisprudência, São Paulo, n.23, p.470, dez., 1994;Paulo Armínio Tavares Buechele, O princípio da proporcionalidade e a interpretação da Constituição, São Paulo, 1999; Maria Paula Dallari Bucci, O princípio da razoabilidade em apoio à legalidade, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política,16:173.

[2] Magistério Doutrinário: “este conceito — que é seguramente um dos conceitos-chave da CRP — é bastante complexo, e as suas duas componentes — ou seja, a componente do Estado de direito e a componente do Estado democrático — não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático” (...) “Esta ligação material das duas componentes não impede a consideração específica de cada uma delas, mas o sentido de uma não pode deixar de ficar condicionado e de ser qualificado em função do sentido da outra” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3. ed., Coimbra, Coimbra Ed., 1984, p. 73).

[3] Le Fur, Droit individuel et droit social, in Archives de philosophie du droit et sociologie juridique, Paris, 1934, p. 34; Josserand, Évolutions et actualités, Paris, 1937, p. 159; Gustav Radbruch, Introducción a la ciencia del derecho, Barcelona, 1932, p. 108.

[4] Conferir: Belen Alonso Garcia, El regimen jurídico de la protección social del minusvalido, Madrid, Ed. Civitas, 1997.

[5] Daniel E. Herrendorf, Los derechos humanos ante la justicia: garantia de la libertad inominada, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1998.

[6] Leon Duguit, Traité de droit constitutionnel, Paris, Ed. Fontemoing, 1921, t. 3, p. 86.

[7] O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, Rio de Janeiro, Forense, 1949, p. 128

[8] STF, RMS 11.853, Rel. Min. Luiz Gallotti, DJ de 17-8-1966; STF, RMS 16.588, Rel. Min. Victor Nunes Leal, DJ de 12-3-1968; STF, RE 61.102, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, DJ de 14-2-1968.

[9] STF, RMS 16.986, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, RTJ, 43:575; STF, RMS 16.661, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, RTJ, 59:185; STF, RE 63.318, Rel. Min. Victor Nunes Leal, RTJ, 46:205.

[10] STF, ADIn 319-4, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 30-4-1993, p. 7563.

[11] TRF, 5a Região, 2a  T., AC 93.05.27765/CE, Rel. Juiz José Delgado, DJ, 2, de 27-9-1993, p. 40993.

[12] Legislação: arts. 1o, caput, 20, I, 21, VIII, 27, V, 54, caput, da Lei n o 8.884, de 11 de junho de 1994; e art. 52 do Decreto n o 2.594, de 15 de maio de 1998.

[13] Precedentes: STF, ADIn 103/RO, Rel. Min. Sydney Sanches, j. em 3-8-1995, DJU de 8-9-1995; STF, ADIn 1.279-MC/PE, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 27-9-1995, DJU de 15-12-1995; STF, ADIn 1.421-MC/DF, Rel. Min. Francisco Rezek, j. em 27-3-1996, DJU de 31-5-1996; STF, ADIn 864/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 25-4-1996, DJU de 13-9-1996; STF, ADIn 1.064/ MS, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 7-8-1997, DJU de 26-9-1997. 

[14] Nesse sentido: STF, ADIn 1.262/TO, Rel. Min. Sydney Sanches, j. em 11-9-1997; STF, ADIn 458/ MA, Rel. Min. Octavio Galloti, j. em 8-6-1998.

[15] Posicionamento doutrinário: “Ainda na vigência da Constituição de 1946, pensávamos que essa jurisprudência merecia revisão. Com maior força julgamos que isso se impõe no regime constitucional vigente, muito cioso do resguardo do princípio da iniciativa privativa. As razões doutrinárias do nosso modo de pensar são, porém, as mesmas de ontem. Admitir o saneamento da falta de iniciativa do Executivo pela sanção leva-nos sempre a conclusões inaceitáveis. Sob certo aspecto, equivaleria a sustentar que a sanção tornaria o preceito da iniciativa exclusiva apenas diretório quando houvesse sanção. Aportaríamos à contradição de que a mesma cláusula seria ora mandatória ora não. Se ela é imperativa — e não teria sentido pensar de outro modo — trata-se de uma competência de direito público, que é indelegável ou irrenunciável na ausência de disposição em contrário” (Nelson de Sousa Sampaio, O processo legislativo, 2. ed. rev. e atual. por Uadi Lammêgo Bulos, Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 194-195).

[16] STF, ADIn 1.070/MS, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 23-11-1994, DJU de 15-9-1995.

[17] Marcelo Neves, Teoria da inconstitucionalidade das leis, São Paulo: Saraiva, 1988, p. 115-116.

[18] Lezioni di diritto costituzionale, 4. ed. Padova: CEDAM, 1976, v. 2, p. 337-338.

[19] STF, RE 18.331, Rel. Min. Orozimbo Nonato, j. em 21-9-1951, RF, 145:164.

[20] Liberdade de configuração normativa: “Não se deve falar de uma discricionariedade do legis- lador, senão de uma ‘liberdade de configuração’ normativa (Gestaltungsfreiheit des Gesetzgebers, na expressão usual do Tribunal Constitucional alemão)” (Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, Curso de direito administrativo, Madrid: Fundación Banco Bilbao Vizcaya/Civitas, 1997, p. 159).        


Autor

  • Uadi Lammêgo Bulos

    Uadi Lammêgo Bulos

    Advogado Constitucionalista. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Constitucional (SBDC), Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor de "Constituição Federal Anotada", "Curso de Direito Constitucional" e "Direito Constitucional ao alcance de todos" (Editora Saraiva).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BULOS, Uadi Lammêgo. Inconstitucionalidade da cobrança de ICMS em transporte terrestre de passageiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5320, 24 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63658. Acesso em: 2 maio 2024.