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Atribuições e cooperação em leniência: a busca do arranjo institucional

Atribuições e cooperação em leniência: a busca do arranjo institucional

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Localiza-se o instituto do acordo de leniência no sistema de combate à corrupção dos entes de accountability horizontal.

RESUMO: Trata-se de artigo em que se busca localizar o instituto dos Acordos de Leniência no sistema de combate à corrupção dos entes de accountability horizontal do ordenamento jurídico brasileiro. Partindo-se da premissa da complexidade do fenômeno da corrupção como mal a ser combatido, identificam-se as previsões normativas quanto ao instituto e as atribuições dos respectivos entes positivamente legitimados para seu uso, com o intuito de se compreender que a existência de múltiplas atribuições, e múltiplos atores, é condizente com a necessária atuação estatal no tema.

PALAVRAS–CHAVE: CORRUPÇÃO – ACCOUNTABILITY – INSTITUIÇÕES – LENIÊNCIA – ORDENAMENTO JURÍDICO – ATRIBUIÇÕES - SISTEMA.


1 – Introdução

Diariamente cidadãos brasileiros são surpreendidos com novas denúncias, fatos, gravações, detalhes que bem demonstram a percepção endêmica do fenômeno da corrupção no país (SOARES, 2017). A corrupção é fenômeno de multiplicidade conceitual, tem multicausalidade e gera impactos tão diversos quanto sua configuração. Acompanha a nossa história, marcada por colonização exploratória e paternalismo, tendo o Brasil de hoje percepção de sua ocorrência em todas as esferas de Estado e Governo. No ordenamento jurídico pátrio recebe, então, trato múltiplo, sendo percebida como crime, improbidade administrativa, infração disciplinar, ilícito em geral.

Como destacado (SOARES, 2017), ante problemas da sociedade brasileira, necessário alterar a cultura política da nação. O fomento de agências especializadas no combate à corrupção e na busca de accountability, com estrutura pública, não sujeitas a influência política, tendo articulação interinstitucional e liberdade técnica de atuação, parece caminho a se seguir, pois reforçaria a relação Estado e Sociedade com o incremento de confiança nas Instituições.

A Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) parece consolidar ou incorporar tal necessidade. De lá se retira a previsão, com atribuições e prerrogativas, das Polícias, Advocacia Pública, Controladorias do Executivo, Cortes de Contas e Ministério Público. Entretanto, existem perceptíveis falhas de coordenação e cooperação entre tais agências. Não bastasse, há problema de auto compreensão de papéis e de não estruturação para o pleno e necessário exercício das atribuições constitucionais de cada uma.

Não há uso ou situação que evidencie mais tal “desarranjo” do que o contexto da chamada “Leniência”. Comuns as manifestações quanto ao modelo “ideal” de formatação necessária para a feitura dos Acordos de Leniência. Tema do momento; estudiosos, articulistas, entrevistados fazem proliferar visões críticas ao positivado pela Lei n. 12.846/13 (BRASIL, 2013) e outros normativos.

Tojal, em entrevista, apresenta a visão das empresas, destacando que uma destas se se “dispõe a abrir informações que indubitavelmente lhe trarão ônus, para se sentir estimulada a fazê-lo, a buscar um novo paradigma de comportamento, precisa ter garantias, precisa ter tratamento de reciprocidade” (CANÁRIO, 2017). Destaca o Advogado, logo a frente, ponto que aqui interessa:

O Brasil investiu tanto num processo de fiscalização, criando uma série de órgãos, que, por lhes faltar sentido organizacional, acabam num processo de autofagia, um inviabilizando o outro. Isso precisa ser enfrentado. No limite do limite, se é para pensarmos na melhoria do sistema, dado que as virtudes são mais do que evidentes, o aprimoramento não deve ser feito no próprio instituto do acordo de leniência, mas na sua sistematização.

O mesmo reforçou a visão em mais de uma mídia virtual. Em certa ocasião destacou-se em notícia no Jornal do Comércio (2017):

...apontou a existência de vários órgãos de competência fiscalizatória e a falta de coordenação entre eles como empecilhos para a eficácia e celeridade nas tratativas. "Na prática a iniciativa de buscar um superfiscalização acabou sendo substituída por uma ação desorientada, que resultou no atraso dos acordos", afirmou Tojal. No entendimento do advogado, o que havia era um órgão "puxando o tapete do outro". "Quando todo mundo quer fiscalizar, na prática, não se fiscaliza coisa nenhuma." Nesse cenário, Tojal defendeu a necessidade de uma sistematização do processo de negociação e a assinatura de acordo de leniência. "Como o primeiro acordo assinado, esse da UTC vai permitir um avanço de modo a institucionalizar o acordo e criar uma forma sistêmica de atuação dos órgãos fiscalizadores.

Macedo e Berman (2017) em coluna, destacam iniciativa do Tribunal de Contas da União, posta em sessão de 12.7.2017, no sentido de viabilizar “negociação e assinatura de acordos de leniência de forma coordenada, harmônica e colaborativa entre o próprio Tribunal, o Ministério Público Federal, o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU), a Advocacia-Geral da União e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)”. Tal com a criação de um grupo de trabalho. O mérito dos 5 órgãos atuando conjuntamente estaria, em sugestão, na tentativa de se afastar o cenário de “insegurança jurídica, falta de racionalidade e, sobretudo, de [falta de] previsibilidade”.

Percebe-se, pois, que o ambiente dos Acordos de Leniência, em especial, é pautado por má compreensão de papéis, ausência de visão sistemática e, forte no apelo da segurança jurídica, sugestões de multiplicidade de órgãos para celebração única.

O presente artigo buscará, então:  identificar o que o ordenamento jurídico prevê sobre Acordos de Leniência; identificar as atribuições dos agentes legitimados e concluir sobre o trato sistematizado, ou não, do instituto.    


2 – A Leniência.

A Lei Anticorrupção surgiu a partir de um contexto em que o Estado Brasileiro firmou compromissos internacionais que exigem a adoção de medidas de combate à corrupção, tais como: a) Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, promulgada pelo Decreto Presidencial nº 3.678/2000 (BRASIL, 2000); b) Convenção Interamericana contra a Corrupção (CICC), promulgada pelo Decreto Presidencial nº 4.410/2002 (BRASIL, 2002); e c) Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (CNUCC – Convenção de Mérida), promulgada pelo Decreto Presidencial nº 5.687/2006 (BRASIL, 2006).

Nesse panorama, a Lei nº 12.846/2013 passou a integrar o microssistema de combate à corrupção, numa relação entre o poder sancionador do Estado e a prática de atos lesivos à Administração Pública. Pretendeu-se atribuir ao Estado meios mais eficazes para punir de maneira eficiente os atos ilícitos que atentem contra o patrimônio público, os princípios da Administração Pública e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Nesse sentido é o entendimento da doutrina (ARAÚJO, 2016, p. 263-264):

A Lei nº 12.846/2013, portanto, atende aos anseios da Constituição Federal, uma vez que, ao dar “musculatura” ao Estado para mais eficientemente punir ilícitos da espécie, dá a este meios mais aptos e eficazes para que cumpra o seu papel de protetor dos direitos fundamentais e valores objetivos que geralmente são afetados com os atos corruptos.

O artigo 16 da Lei Anticorrupção, porém, não previu um instituto inovador no ordenamento jurídico brasileiro. A prática “leniente” do Estado com o agente envolvido em uma infração e que colabora na obtenção de informações acerca do ilícito, com a apresentação de provas do fato e de sua autoria, em contrapartida à diminuição das penalidades que lhe seriam impostas em virtude do mesmo fato teve origem na década de 1970, nos Estados Unidos.

De acordo com a doutrina (FIDALGO e CANETTI, 2016, p. 342 apud RIBEIRO e NOVIS, 2010), o primeiro programa norte-americano de leniência não obteve sucesso por adotar critérios subjetivos, o que gerava insegurança jurídica:

Esse programa, contudo, não teve sucesso, em virtude dos critérios subjetivos por ele previstos para a celebração dos acordos pelo Departamento de Justiça Norte Americano, o que gerava grande insegurança jurídica para os possíveis interessados, desincentivando a sua utilização.

No Brasil, o acordo de leniência foi previsto inicialmente pela Lei Antitruste, com a edição da Medida Provisória n. 2.055-4/2000, posteriormente convertida na Lei n. 10.149/2000 (BRASIL, 2000), que trouxe alterações à Lei 8.884/1994 (BRASIL, 1994), que tratava da prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica.

O sistema introduzido pela Lei n. 8.884/1994 estabelecia a competência da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça para a celebração dos acordos de leniência. O artigo 35-B previa a possibilidade de extinção da ação punitiva do agente infrator e colaborador, caso a proposta fosse apresentada antes da instauração da investigação pelo órgão, ou a redução de um a dois terços nos demais casos, desde que a colaboração resultasse na identificação dos demais envolvidos e na obtenção de informações e documentos que comprovassem a infração noticiada ou objeto de investigação.

A lei estabelecia como requisitos que a empresa colaboradora ou a pessoa física fosse a primeira a se qualificar em relação à infração noticiada, a imediata cessação de seu envolvimento nos atos anticoncorrenciais trazidos ao acordo, a confissão quanto a matéria noticiada, a cooperação plena com as investigações e o processo administrativo, que a Secretaria de Direito Econômico não dispusesse de provas suficientes e desde que a empresa ou a pessoa física não tenha estado à frente da prática da conduta dos atos infracionários.

 Atualmente, o sistema concorrencial está previsto na Lei 12.529/2011 (BRASIL, 2011). De acordo com o Guia Programa de Leniência Antitruste do CADE (CADE, 2016):

o programa de leniência permite que empresas e/ou pessoas físicas envolvidas ou que estiveram envolvidas em um cartel ou em outra prática anticoncorrencial coletiva obtenham benefícios na esfera administrativa e criminal por meio da celebração de Acordo de Leniência com o Cade, comprometendo-se a cessar a conduta ilegal, a denunciar e confessar sua participação no ilícito, bem como a cooperar com as investigações apresentando informações e documentos relevantes às investigações.

O novo sistema de combate às condutas anticoncorrenciais manteve os requisitos estabelecidos pela legislação anterior, porém passou a prever a competência do Cade para a celebração dos acordos de leniência e estendeu a extinção da punibilidade, além dos crimes contra a ordem econômica previstos na Lei n. 8.137/1990 (BRASIL, 1990), aos crimes diretamente relacionados à prática de cartel, como os tipificados na lei de licitações e no artigo 288 do Código Penal. Dessa forma, por trazer como benefício a imunidade total ou parcial também na esfera penal, há a participação do Ministério Público como interveniente anuente.

O Banco Central do Brasil tem como principal finalidade o acompanhamento do Sistema Financeiro Nacional e a fiscalização das instituições financeiras, demais instituições autorizadas a funcionar e as pessoas físicas que atuam sobre ele. A partir da atividade fiscalizadora exercida sobre o Sistema Financeiro Nacional, a Medida Provisória 784/2017 (BRASIL, 2017), previu o processo administrativo sancionador para que o Banco Central do Brasil estabelecesse as sanções aos infratores das normas do sistema.

Além do processo administrativo sancionador, a Medida Provisória n. 784/2017 criou a possibilidade de o Banco Central celebrar acordos de leniência com pessoas físicas e jurídicas que confessem a prática de infração às normas legais ou regulamentares cujo cumprimento lhe caiba fiscalizar, com a extinção da ação punitiva ou a redução da penalidade aplicável, desde que haja efetiva, plena e permanente colaboração para a apuração dos fatos investigados.

Na mesma linha, referida Medida Provisória previu a possibilidade de a Comissão de Valores Mobiliários - CVM, dar início a um processo administrativo sancionador para a apuração de infrações junto ao mercado de capitais. Como é sabido, a CVM exerce atividade fiscalizadora em todo o território nacional, em relação a pessoas físicas e jurídicas que integram o sistema de distribuição de valores mobiliários, assim como companhias abertas, fundos de investimento, administradores de carteiras de valores mobiliários, consultores e analistas de valores mobiliários e, ainda, auditorias independentes das sociedades anônimas.

Alternativamente ao processo administrativo sancionador, a Medida Provisória 784/2017 estabeleceu a possibilidade de a CVM celebrar acordo de leniência com os infratores das normas do mercado de capitais, desde que estes se comprometam a entregar informações e documentos sobre a prática delitiva, resultando em incremento da atuação investigatória, repressora e preventiva do Estado. Em contrapartida, haverá a redução ou isenção de punições ao agente colaborador.

A lógica do sistema reside no fato de que o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários possuem poder fiscalizatório e de aplicação de penalidades no âmbito do sistema financeiro nacional e do mercado de capitais, respectivamente. Dessa forma, são os órgãos legitimados para a celebração do acordo de leniência quando os atos de infração forem praticados em tais âmbitos de atuação.

Já no âmbito da Lei Anticorrupção, os acordos de leniência visam transacionar os atos de corrupção praticados no seio da Administração Pública, com o mesmo viés de redução ou extinção das penalidades que seriam impostas, desde que o agente infrator colabore efetivamente com as investigações e que desta colaboração resulte a alavancagem na apuração dos atos, com a identificação dos demais envolvidos na infração, se houver, e a obtenção de documentos que comprovem a infração noticiada.

O artigo 16, da Lei 12.846/2013 estabelece que a celebração do acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos de corrupção se dará caso estas colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que desta colaboração resulte a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber, e a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.

Com efeito, o acordo de leniência deve ser entendido como um meio de se buscar a reparação do dano causado e do enriquecimento ilícito, de forma mais eficiente, à luz dos princípios da supremacia do interesse público, preservação da empresa, função social da propriedade e da viabilidade econômica empresarial.

Nesse sentido é o entendimento da doutrina (FIDALGO e CANETTI, p. 338, 2016):

Acordos de leniência são acordos celebrados entre o Poder Público e um agente envolvido em uma infração, com vista à sua colaboração na obtenção de informações sobre o tema, em especial sobre outros partícipes e autores, com a apresentação de provas materiais de autoria, tendo por contrapartida a liberação ou diminuição das penalidades que seriam a ele impostas com base nos mesmos fatos.

De acordo com a redação do artigo 16, da Lei nº 12.846/2013 os acordos de leniência serão celebrados pela autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública vítimas do ato de corrupção.

O parágrafo 10 do dispositivo estabelece que compete à Controladoria Geral da União celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo Federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a Administração Pública estrangeira. Da mesma forma, o artigo 29, do Decreto nº 8.420/2015, ao regulamentar a Lei Anticorrupção, definiu a competência da CGU para celebrar os acordos de leniência quando os atos lesivos objeto das tratativas foram praticados no âmbito do Poder Executivo Federal.

Segundo a doutrina, apesar de o dispositivo estabelecer que a competência para a celebração do acordo de leniência caberia à autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública, não se deve interpretá-lo de forma a permitir que qualquer unidade de competência possa celebrá-lo.

... a lei atribui tal tarefa à autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública, o que, à primeira vista, pela referência que se fez aos órgãos da administração pública, autorizaria que qualquer unidade de competência celebrasse tais acordos, o que não parece ser a solução mais adequada ou eficiente. O ideal, a nosso ver, seria que essa competência fosse centralizada nos órgãos de controle interno já existentes ou a serem criados com o objetivo específico de aplicação desta lei. (FIDALGO e CANETTI, 2016, p. 354)

Na mesma linha, Carvalhosa (2015, p. 390-391) atenta à hipótese em que as autoridades máximas de cada órgão podem também estar atingidas pelos delitos praticados pela pessoa jurídica, o que ensejaria a necessidade de apenas os órgãos correicionais e disciplinares serem competentes para firmar o acordo de leniência, in verbis:

Embora o caput do art. 16 outorgue genericamente competência para celebrar acordos de leniência à desfrutável “autoridade máxima” do ente público envolvido – o que em si é uma contradição em termos com a finalidade da presente Lei  - o § 10º do art. 16 retifica essa instransponível aberração, determinando que cabe à CGU celebrar tais pactos no âmbito do Poder Executivo Federal, bem como nos “atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.

(...)

Essa competência é, como reiterado, reservada aos órgãos correicionais e disciplinares dos entes implicados, tanto na investigação (inquérito) como no processo penal-administrativo. Somente esses órgãos correicionais e disciplinares na pessoa de seus titulares podem ser competentes para negociar e firmar pactos de leniência, na presunção legal de sua independência frente às “autoridades máximas”, por isso que investidos de específicas atribuições e funções investigativas e administrativamente judicantes.

Em se tratando do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União, o artigo 2º, inciso I, do Decreto nº 5.480/2005 (BRASIL, 2005) conferiu, ainda, atribuições especiais ao órgão, designando-o como órgão central do Sistema de Correição do Poder Executivo Federal. O artigo 65, inciso I, da Medida Provisória 782/2017 (BRASIL, 2017), estabelece como competência do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União as “providências necessárias à defesa do patrimônio público, ao controle interno, à auditoria pública, à correição, à prevenção e ao combate à corrupção, às atividades de ouvidoria e ao incremento da transparência da gestão no âmbito da administração pública federal”.

Desta feita, o artigo 65, inciso I, da Medida Provisória 782, de 31 de maio de 2017, deixa claro que a atuação do órgão no combate à corrupção se dá perante toda a Administração Pública Federal, incluindo, portanto, tanto os órgãos integrantes da Administração Direta, quanto as entidades pertencentes à Administração Indireta. Assim, a expressão “Poder Executivo Federal”, prevista no artigo 16, da Lei Anticorrupção, que delimita a competência para o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União firmar acordo de leniência, diz respeito a toda a Administração Pública Federal, direta e indireta.

O acordo de leniência não tem o condão de esgotar o que apurado durante as negociações, não havendo a quitação integral do dano, nos termos do art. 16, §3º, da LAC: § 3o  O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado.

Desta feita, o acordo de leniência ressarcirá o que foi acordado e ficou comprovado nas tratativas relacionadas àquele específico objeto e com a delimitação dos documentos, sem prejuízo de responsabilização da empresa infratora caso surja posteriormente qualquer informação ou documento que foi ocultado quando da celebração da leniência.

O Ministério Público Federal, por sua vez, também tem celebrado acordos de delação premiada no âmbito penal e acordos relacionados às ações de improbidade administrativa, dentre outros ajustes, ao fundamento, quanto a parte final, que lhe caberia atuar na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, por força do artigo 127 da Constituição Federal.

Se de um lado o acordo de delação premiada consiste no instrumento através do qual, em diversos dispositivos legais, foi prevista a redução da pena ou a extinção da punibilidade do agente que confessa a prática do fato criminoso, colaborando para o desmantelamento da empreitada criminosa, recuperação da vítima ou do objeto do ilícito. De outro, acordos em ações de improbidade, sem obediência à lei 12.846/2013, não poderiam ser tecnicamente classificados como de Leniência em corrupção, ou apresentam natureza diversa.


3 – As atribuições.

A atuação do Estado frente aos atos de corrupção é interdisciplinar, formando as diversas normas que o regulamentam e os vários órgãos que nele atuam um microssistema de combate à corrupção.

Nesse sentido, a Constituição Federal, ao delimitar as funções institucionais de cada órgão de Estado, deixou claro que o combate à corrupção consiste em uma atuação concatenada e sequencial entre os agentes de Estado. Apesar de em alguns momentos o caráter interdisciplinar da matéria fazer transparecer uma atuação sobreposta, na verdade, deve ser interpretada como uma atuação interligada, com o compartilhamento de informações e o sequenciamento de atos.

Os acordos de leniência consistem em meio alternativo à sanção tradicional implementada pelo Estado. Assim, a partir do momento em que a função punitiva não se mostra eficaz, ante a realidade do caso concreto, para restabelecer a harmonização das relações sociais e o desincentivo às práticas ilícitas, busca-se um instrumento mais eficiente para a apuração do ilícito e a responsabilização dos infratores.

O acordo de leniência, como visto, foi previsto inicialmente no direito concorrencial, em virtude das dificuldades encontradas na apuração ordinária dos atos de cartel.

Segundo Simão e Vianna (2017, p. 70):

... a implementação de instrumentos negociais no combate à ilícitos parece ter-se fundamentado precipuamente na investigação e repressão dos delitos de maior complexidade, aqueles cujas características acabam por dificultar a ação persecutória ordinária do Estado. Mas entendemos que a matéria pode ser vista ainda sob uma amplitude maior. Acreditamos que os instrumentos negociais, quando implementados de forma coesa, juridicamente sólida e transparente, exercem importante papel na política de repressão à prática de ilícitos.

A partir de então, diversos instrumentos normativos passaram a prever a possibilidade de celebração de acordo de leniência na apuração de ilícitos administrativos e criminais, gerando uma posição crítica em diversas searas do Direito quanto a eventual insegurança jurídica na pulverização do instituto.

Ocorre que, conforme já explanado acima, os diversos acordos de leniência passíveis de serem celebrados no ordenamento jurídico possuem escopos diferentes e dizem respeito a atos lesivos com naturezas jurídicas diversas.

O acordo de leniência celebrado no âmbito do direito concorrencial decorre do poder atribuído ao Cade de investigar, decidir e aplicar penalidades quando praticadas infrações à ordem econômica, consistindo em um dos principais instrumentos de combate à prática de cartel. Abrange tanto pessoas físicas quanto pessoas jurídicas envolvidas na conduta anticoncorrencial coletiva e concede benefícios administrativos e criminais com a celebração do acordo.

O objetivo principal do Programa de Leniência do Cade é “detectar, investigar e punir infrações contra a ordem econômica; informar e orientar permanentemente as empresas e os cidadãos em geral a respeito dos direitos e garantias previstos nos artigos 86 e 87 da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC) e nos artigos 197 a 210 do Regimento Interno do Cade (RICADE); e incentivar, orientar e assistir os proponentes à celebração de Acordo de Leniência Antitruste do Cade (Acordo de Leniência)”.

O âmbito de incidência do Acordo de Leniência Antitruste são as infrações contra a ordem econômica, notadamente o Cartel e aquelas infrações previstas no artigo 36 da Lei nº 12.529/2011, bem como os crimes descritos na Lei 8.137/1990, na Lei 8.666/1993 (BRASIL, 1993), e no art. 288 do Código Penal, conforme art. 87 da Lei 12.529/2011.

Os artigos 29 e 30 da Lei Anticorrupção, de outra banda, expressamente ressalvam as competências do Cade, diante de suas proteções jurídicas distintas. A Lei 12.846/2013 visa proteger a Administração Pública Nacional e Estrangeira de atos que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, enquanto que a Lei 12.529/2011 visa proteger o sistema econômico nacional de práticas anticompetitivas.

Conforme se observa, as tratativas de leniência previstas na Lei Antitruste e na Lei Anticorrupção ocorrem perante autoridades distintas, ante a sua autonomia e seu objeto jurídico diverso. O acordo firmado por uma das autoridades competentes e no âmbito de sua atribuição não impedirá o acordo firmado pela outra autoridade, que também possui legitimidade diante das competências legais a ela estabelecidas.

Dessa forma, a mesma conduta tipificada como crime de cartel, prevista no art. 4º, da Lei nº 8.137/90 também configura infração permanente de fraude à licitação, prevista no art. 5º, IV, “d” da Lei 12.846/2013, a depender do caso concreto, referente ao ajuste entre os ofertantes, e não há que se falar em bis in idem, uma vez que tutelam objetos jurídicos com naturezas distintas.

No combate à prática de cartel, tutela-se a ordem econômica. Na conduta de fraude à licitação, pune-se a ofensa ao patrimônio público, aos princípios da Administração Pública e aos compromissos internacionais (art. 5º da Lei nº 12.846/2013), incluindo a proteção de direitos humanos e o ressarcimento ao erário.

No tocante ao acordo de leniência firmado com a Comissão de Valores Mobiliários, o escopo consiste na preservação do funcionamento regular e eficiente do mercado de capitais. Assim, os efeitos do acordo estão restritos às sanções administrativas impostas em decorrência da competência fiscalizatória da própria CVM, não havendo identidade com o fundamento das penalidades impostas pelo Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União no âmbito do processo administrativo de responsabilização.

Os acordos de leniência foram previstos em diferentes diplomas normativos, perante autoridades administrativas diversas e com negociações independentes, em virtude da particularidade de cada objeto jurídico tutelado perante a Administração Pública. As tratativas são desenvolvidas com independência e a critério das autoridades competentes conforme o bem jurídico tutelado, e a celebração de um acordo não depende da celebração de outros acordos nas demais esferas.

Da mesma forma em que explanado quanto aos acordos de leniência firmados perante o Cade, não há que se falar em bis in idem, uma vez que a prática do mesmo fato pode ofender o sistema financeiro nacional, o mercado de capitais e, ainda, atentar contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra os princípios da Administração Pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

O que não há é previsão normativa de “Acordo de Leniência’ feito exclusivamente pelo Ministério Público. No direito positivo, não há. E que não se diga que o art. 127 da Constituição o indica. Estamos a falar de escopos e atribuições diversas, com ferramentas diversas, justamente no sentido de permitir visão e atuação sistemáticas. Utilizar-se de fundamentos indiretos ou genéricos configura justamente o descompasso do sistema que o legislador construiu. A insegurança jurídica, talvez, venha justamente do não respeito ao sistema estabelecido. Em suma, do não respeito à norma positivada.

 O artigo 131 da Constituição Federal prevê que cabe à Advocacia Geral da União a representação judicial e extrajudicial da União. A LC 73/1993 (BRASIL, 1993), no artigo 4º, inciso VI, estabelece como atribuições do Advogado Geral da União “desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente”.

Feito o Acordo de Leniência previsto na lei 12846/2013, de titularidade do Ministério da Transparência e Controladoria-geral da União, evidencia-se o porquê da participação suficiente da AGU no processo administrativo. Não só por expressa previsão legal, o que já seria suficiente, mas também porque se os “Acordos de leniência” transigirem acerca da não propositura da ação de improbidade administrativa, cuja titularidade pertence à Advocacia Geral da União ao representar a União, estará a AGU legitimada a fazê-lo pois pode, regra geral e por força de lei, como visto, celebrar acordos pela União.

A celebração do acordo de leniência pode acarretar o não ajuizamento da ação de improbidade administrativa em relação aos fatos descritos e objetos do acordo. A partir do momento em que a legislação atribuiu a competência para a instauração do processo administrativo de responsabilização ao Ministério da Transparência, e Controladoria-Geral da União e, o ajuizamento da ação de improbidade administrativa à Advocacia Geral da União, quando os atos de corrupção forem praticados em âmbito federal, tais entidades também detém a competência para negociar e eventualmente celebrar o acordo de leniência.

Com efeito, o artigo 17 da Lei 8.429/92 (BRASIL, 1992), define a legitimidade ativa para a propositura da ação de improbidade, e elenca, dentre os legitimados, a pessoa jurídica interessada. O interesse a que se refere a Lei de Improbidade Administrativa é aquele que diz respeito à relação jurídica de direito material, abrangendo o interesse direto e o indireto.

A diferença, destaca-se, é que apesar de tanto o ente como o Ministério Público terem legitimidade para o ajuizamento de ação de improbidade, apenas a Advocacia Pública respectiva poderá transigir quanto a seus interesses na seara civil. Neste campo a advocacia pública representa o ente, sendo vedado ao MP o fazer, pela mesma Constituição Federal que especifica os papéis das Funções Essenciais à Justiça.

Segundo a Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida, relatora do Agravo de Instrumento 5023972-66.2017.4.04.0000/PR, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, “Não há antinomia abrogante entre os artigos 1º e 2º da Lei nº 8.249/1992 e o artigo 1º da Lei nº 12.846/2013, pois, naquela, justamente o legislador pátrio objetivou responsabilizar subjetivamente o agente ímprobo, e nesta, o mens legislatoris foi a responsabilização objetiva da pessoa jurídica envolvida nos atos de corrupção”.

Repise-se, ainda, que o Ministério Público não tem poder para transacionar o processo administrativo de responsabilização, de titularidade do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União, levando em conta que não é cabível ao Parquet aplicar multas administrativas e sanções de inidoneidade às empresas.

Nesse sentido, há que se distinguir duas situações: a possibilidade de celebração do acordo de delação premiada com a pessoa física que praticou o fato que também possui natureza criminal e a celebração do acordo de leniência em virtude da responsabilidade administrativa da pessoa jurídica na prática de atos de corrupção, nos termos do artigo 16 da Lei nº 12.846/2013.

Neste ponto, importante diferenciar a delação premiada realizada pelo MPF do Acordo de Leniência. Apesar de possuírem algumas características em comum, como a figura do colaborador e a redução de sanções, não se confundem, tendo em vista o âmbito de sua aplicação diferenciado.

A colaboração premiada é instituto do direito penal, tendo por finalidade principal a obtenção de provas para fins de investigação. O delator é pessoa física e o benefício obtido tem reflexos diretamente na liberdade individual do sujeito colaborador. Devido à natureza do instituto, seu objetivo principal não é a reparação do dano, mas a obtenção célere de informações que possam funcionar em prol do Sistema Nacional Anticorrupção.

Neste sentido, percebe-se que o paralelismo entre a ratio que norteia a colaboração em meio ao processo penal, e aquela que fundamenta os acordos de leniência do Direito Administrativo Sancionador; em ambos, o que se busca é aumentar a carga de eficiência das investigações dos ilícitos que, por sua complexidade e nível de organização, oferecem dificuldades ao deslinde tão somente através da atuação do Poder Público. (FIDALGO e CANETTI, 2016, p. 351).

(...) Portanto, a Carta Magna conferiu ao parquet funções específicas, que lhe conferem, ao mesmo tempo, competências exclusivas (caso da promoção da ação penal pública), concorrentes (como a proteção do patrimônio público) e a de fiscal da aplicação da lei. Nada obstante, a promoção da responsabilização administrativa de pessoas jurídicas, nos termos previstos pela Lei 12.846/2013, é claramente a atividade que se insere na função executiva do Estado. Cenário diferente seria se o legislador tivesse optado pela via da esfera penal, como o fez para as condutas lesivas ao meio ambiente. Mas não é esse o caso. Trata-se de hipótese clássica do que a doutrina conceitua como o exercício do poder de polícia do Estado, em sentido estrito. (SIMÃO e VIANNA, 2017, p. 231/232).

A atuação do Ministério Público, portanto, dá-se no âmbito criminal e na seara civil da Lei nº 8.429/1992, não se confundindo com a atividade típica do exercício do poder de polícia pela Administração Pública e no exercício do poder sancionatório, instrumentalizado, dentre outras formas, pelo acordo de leniência previsto pela Lei Anticorrupção. Como é sabido, um mesmo fato pode configurar um ilícito penal, ato de corrupção e improbidade administrativa, acarretando responsabilidade nas três esferas, independentes entre si.

Nesse sentido é o entendimento manifestado pela Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida, relatora do Agravo de Instrumento 5023972-66.2017.4.04.0000/PR, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

Com efeito e, em suma, no âmbito das competências, parecem acertadas e harmônicas as normas integrantes do microssistema de combate à corrupção, uma vez que, na seara administrativa, a empresa dispõe do acordo de leniência (Lei 12.846/2013), enquanto na seara penal o instrumento é o acordo de colaboração, (Lei nº 12.850/2013), este alcançando, como visto, a pessoa física. Coerentemente, no primeiro, administrativo, a autoridade competente integra a Administração Pública Direta ou Autárquica, enquanto no segundo, penal, a atribuição é do Ministério Público.

A crítica ao sistema consiste no fato de que, em âmbito administrativo, tanto os atos de corrupção quanto os de improbidade são objeto do Direito Administrativo Sancionador, o que ensejaria bis in idem.

Ocorre que, conforme já explicitado, o combate à corrupção integra um microssistema, composto pela Lei Anticorrupção, pela Lei de Improbidade Administrativa e pela Lei de Organizações Criminosas. A integração desse sistema é extraída, além da natureza jurídica da sanção aplicada e da norma de responsabilização, do princípio da conformidade funcional, mediante o qual cada órgão de Estado deve exercer sua atribuição de acordo com o que estabelecido pelas leis e pela Constituição Federal. Não há bis in idem, assim como a um servidor público podem lhe ser aplicadas as penas de infração disciplinar, sem prejuízo das penas da Lei de improbidade administrativa caso o fato e/ou a conduta também se configure improbidade, conforme arts. 9, 10 e 11 do citado diploma.

Em suma, complexidade não quer dizer ausência de sistema e a multiplicidade de campos de responsabilização ou entes decorre muito mais da também complexa conceituação, configuração e identificação do fenômeno da corrupção, e da criatividade do corrupto, do que de uma vontade explícita e institucional de não atuar ou atuar mais.

Não se pode perder de vista que a corrupção é um problema social que se põe à resolução dos órgãos de controle pelos corruptos, servidores públicos e particulares, e não um problema gerado pelos órgãos de controle. Caso, em utópica visão, estivéssemos livres de corrupção, sequer se precisaria de um órgão de controle. Mas não é essa nossa realidade.    


4 – Conclusão.

No presente texto destacou-se, de início, a motivação do mesmo, qual seja: o discurso geral de insegurança jurídica supostamente gerada pela multiplicidade de órgãos, sem maior preocupação de se especificar papéis e searas de responsabilização, no contexto dos chamados “Acordos de Leniência”. Tal visão pode ser verificada em diversas fontes como recentes sítios jurídicos na internet[1] e leva a manifestações generalistas como suposta solução[2].

Em segundo momento, dedicou-se a detalhar as competências e atribuições, ou a falta delas, das entidades diretamente envolvidas em tais acordos, para tentar melhor delimitar seus escopos e diferenças. Indicou-se, pois, que atuação harmônica, ou coordenada, não quer dizer, e nem poderia significar, órgãos fazendo absolutamente a mesma coisa em qualquer situação. As atuações devem se complementar, não necessariamente concorrer, como regra.

O’Donnell (1998) destaca que a questão de existência de autonomia e defesa de fronteiras com, por outro lado, existência de coordenação e trabalho conjunto é tão complexa quanto necessária. Ao ponto de O’DONNELL classificar a usurpação ilegal de autoridade de uma agência sobre outra agência como uma das duas formas ou direções principais de violação da accountability horizontal. A outra seria a obtenção de vantagens ilícitas obtidas por autoridade pública, ou, para o Autor, “corrupção”.

O Autor (1998, p. 47), para bem demarcar sua preocupação com a questão da usurpação de atribuições, indica que, no longo prazo, “a usurpação seja mais perigosa que a corrupção para a sobrevivência da poliarquia”, pois “uma utilização sistemática da primeira simplesmente liquida a poliarquia, enquanto a disseminação sistemática da segunda (corrupção) irá seguramente deteriora-la, mas não a elimina necessariamente”. Para o autor, a usurpação apresentaria, ainda, maior barreira ao surgimento de agências estatais autônomas típicas às poliarquias formalmente institucionalizadas.

Assim, a atuação harmônica das instituições de Estado quanto à responsabilização decorrente da prática de um mesmo fato atende ao interesse público, ao princípio da eficiência e à economicidade, uma vez que ocorre a utilização racional dos recursos e informações obtidas nas diversas searas e a integração dos agentes estatais responsáveis pelo combate à corrupção.

O arranjo necessário à eficiente atuação tem como norte, porém, o direito, em especial normas constitucionais e infraconstitucionais que estabelecem competências. Insegurança jurídica, parece, advém mais de desrespeito ao direito positivo do que da distribuição de searas de responsabilização. Evidentemente não se está a falar que todo o sistema está perfeitamente implantado. Longe disso. Diversas são as falhas, inclusive normativas. Ruídos entre as instituições são público e notórios, a exemplo da relação Ministério Público Federal e Polícia Federal, como mencionado por Rodas (2017).

Entretanto, é o respeito às normas basilares, às atribuições constitucionalmente definidas que permitirá o seguro caminhar da atuação estatal no combate à corrupção por suas várias ferramentas. O “Acordo de Leniência” é uma destas. Tais determinações de competência é que configuram e delimitam o sistema que se quer implementar. Não se respeitar norma, ou a imprevisibilidade institucional de seu respeito é demonstração categórica da falha do sistema em si, o que pode ser mais grave que a própria ocorrência do fenômeno da corrupção, este como a falha (social) esperada para solução via sistema.

Dessa forma, o combate à corrupção consiste em uma atuação conjunta das instituições de Estado, de maneira concatenada, não havendo que se falar em sobreposição necessária de ações, mas no compartilhamento de informações e no sequenciamento dos atos. As atribuições institucionais estão expressamente delimitadas pela Constituição Federal e pelas leis que integram o microssistema de combate à corrupção, excluindo-se, portanto, a ideia de insegurança jurídica ou qualquer espécie de vácuo normativo que possa acarretar a atuação desalinhada dos órgãos de Estado. Ao contrário, a atuação compartimentada e, ao mesmo tempo, integrativa, na medida em que as questões se correlacionam, torna efetivo o sistema.

Forte em O’Donnell, não se trata a cooperação ou colaboração do não exercício de atribuições por uma ou outra instituição. É o contrário. Devem todas exercer as suas e se complementar. Não exercer ou impedir que se exerça uma atribuição constitucional ou legal, por exemplo, significa usurpação que, no Estado Democrático de Direito, é tão ou mais grave que a corrupção.

Ao complexo fenômeno da corrupção não cabe solução única, pois são várias as configurações e consequências de tal fenômeno em nossa sociedade, levando-se a previsão de responsabilização múltipla em nosso ordenamento. “Culpar o sistema”, isoladamente, pela baixa eficiência no combate a corrupção, sem buscar o respeito ao estabelecido e às atribuições dos entes de accountability horizontal parece-nos, em especial ante “soluções generalistas”, querer exatamente que nada seja feito.

Não por menos Colaço (2009), após esclarecer sobre a evolução pós 1988 da Política de Controle da Gestão Federal, deixa claro que a crítica comum, e fundamentada, à estrutura de “múltiplas chibatas”, ou “múltiplas camadas de controle”, no sentido de vários órgãos realizando a mesma atividade de controle, gera efeitos negativos à gestão pública (COLAÇO, 2009, p. 101-104), o que a torna legítima. Entretanto, após evolução dos órgãos de controle fortalecidos ou criados pela Constituição de 1988, inclusive com atribuições ali definidas, imprescindível que a atuação dos órgãos de controle seja coordenada e complementar (ou sequencial), ou seja, que diferentes aspectos sejam controlados de forma combinada.

A recomendação se aplica, parece, de forma clara ao uso do instituto da Leniência. Colaço (2009) salienta que o objetivo da coordenação, ou compreensão sistemática dos papéis, evitará super-dosagem, redundância ou a presença de lacunas graves no processo de controle (acrescentamos que efetivamente se evita desperdício de recursos públicos). E isso quer dizer que não será efetiva estratégia de controle fundada apenas na presença de múltiplos atores controlando o mesmo aspecto.

Em conclusão, a complexidade da atuação de controle demanda multiplicidade de atores. Tal multiplicidade foi definida, em grau, pela Constituição Federal, estabelecendo-se, ali, as atribuições fundantes.  Entretanto, a todo o ordenamento jurídico, ou seja, normas infraconstitucionais incluídas, cabe sistematizar o uso das ferramentas de combate à corrupção existentes, transformando-se o potencial acúmulo ou repetição não econômica de atuações, em coordenado e mais efetivo exercício de competências de controle. É possível, pois, um arranjo institucional adequado no complexo e novo sistema dos Acordos de Leniência. O “arquiteto”, porém, é o direito positivado.        


5 - Referências:

ARAÚJO, Kleber Martins de. Processo Administrativo de Responsabilização. Lei Anticorrupção e temas de compliance. Salvador: Editora JusPodivm, 2016, 2ª ed.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 10 Set. 2017.

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BRASIL. Decreto n. 3678/2000. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3678.htm>. Acesso em 15 Set. 2017.

BRASIL. Decreto n. 4410/2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4410.htm>. Acesso em 15 Set. 2017.

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BRASIL. Lei n. 8429/1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8429.htm>.  Acesso em 15 Set. 2017

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BRASIL. Lei n. 8666/1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm>.  Acesso em 10 Set. 2017.

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Notas

[1] Por exemplo, a reportagem do site TV Migalhas:  Acordo de leniência: Multiplicidade de órgãos envolvidos gera insegurança a empresas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI241885,71043-Acordo+de+leniencia+Multiplicidade+de+orgaos+envolvidos+gera>.

[2]Como a apresentada pelo site da Folha de São Paulo, na reportagem: Governo quer balcão único para negociar acordos de leniência. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/07/1905533-governo-busca-balcao-unico-para-negociar-com-empresas-sob-suspeita.shtml>.


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Informações sobre o texto

O artigo tem co-autoria com RAISSA TORRES MORAES DELÁZARI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Pedro Vasques. Atribuições e cooperação em leniência: a busca do arranjo institucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5411, 25 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64573. Acesso em: 6 maio 2024.