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O resguardo do direito à segurança individual pela legislação penal brasileira

O resguardo do direito à segurança individual pela legislação penal brasileira

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O escopo do presente artigo é abordar o tema da importância do direito a proteção individual, bem jurídico este que devera ser fundamentalmente resguardado.

RESUMO: Resguardado como um bem jurídico fundamental à preservação da vida, o direito à segurança individual sustenta-se na necessidade intrínseca ao ser humano de não se encontrar em condições de vulnerabilidade no meio social em que está inserido. Por se tratar de um tema abrangente, no presente estudo, serão ponderados o direito à segurança individual, no que diz respeito à tutela do direito à vida, bem como as circunstâncias em que são observadas as condutas tipificadas pelo Código Penal Brasileiro atual. Abordar-se-ão ainda os procedimentos penais ordinários no que tange à periclitação da vida e da saúde individual para a manutenção da ordem pública.

PALAVRAS-CHAVE: Segurança individual. Vulnerabilidade social. Ordem pública. Direito fundamental. Periclitação da vida e da saúde. Direito Penal.


INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como critério principal discorrer sobre a importância do direito à proteção individual no que diz respeito à promoção da paz e à manutenção da ordem pública. Dentre os crimes contra a pessoa dispostos no Título I, da Parte Especial do Código Penal, encontram-se os crimes contra a periclitação da vida e da saúde, no Capítulo III.

Através da leitura e interpretação de artigos científicos a despeito do tema, buscar-se-á, neste trabalho, tratar dos crimes de perigo, compreendidos como a probabilidade de lesão a um bem jurídico penal. Desse modo, quando o legislador origina uma figura típica de perigo, objetiva, em esfera sancionatória, coibir condutas que se enquadrem na probabilidade de causar danos a outrem, bem como assegurar o devido dever de cuidado aos indivíduos considerados imputáveis.

São subdivisões dos crimes de perigo, os crimes de perigo concreto e os crimes de perigo abstrato, distinguindo-se um do outro porque, nos primeiros, há a necessidade de demonstração da situação de risco sofrida pelo bem jurídico penal tutelado, o que somente pode ser reconhecível por uma valoração subjetiva da probabilidade de superveniência de um dano.

Por outro lado, no crime de perigo abstrato, há uma presunção legal do perigo, que, por isso, não precisa ser provado. Punindo-se, dessa forma, o comportamento perigoso a fim de que se possa, no futuro, evitar um possível dano em sua concretude, o que incidirá na possibilidade do autor responder penalmente pelo crime de dano.

Verificar-se-á, por fim, a importância da responsabilidade do Estado em assegurar a integridade física e psicológica dos indivíduos, a fim de garantir-lhes a segurança necessária à própria existência digna da pessoa humana, de maneira ampla e criteriosa, resguardando inclusive a mera exposição do bem jurídico tutelado a perigo de dano.


DOS CRIMES DE PERIGO E DANO

Os crimes de periclitação da vida e da saúde no Código Penal Brasileiro são retratados na parte Especial, denominados como espécie do gênero crimes de perigo. Segundo Rogério Greco: “Os delitos de perigo, a seu turno, podem ser subdivididos em crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto. ” O crime de perigo abstrato, é tido como uma mera presunção de perigo, já o crime de perigo concreto, quando realizado, deverá ser comprovado, em juízo, a proximidade do perigo ao bem protegido.

O crime de perigo poderá ser também individual (quando atinge somente uma pessoa, ou um grupo determinado delas), comum ou coletivo (quando atinge um número indeterminado de pessoas, a coletividade), iminente (aquele que está para acontecer) e futuro ou mediato (é aquele que pode se originar de tais condutas, como por exemplo, o porte de uma arma). No entanto, o crime de perigo, em si, é considerado antecedente ao crime de dano, possuindo natureza subsidiária a dele. Podendo essa subsidiariedade ser expressa ou tácita. Em outras palavras, o crime de dano, absorve o delito de perigo.

Fazem parte dessa espécie gênero crimes de perigo, os delitos definidos nos artigos 130 a 136 do Código Penal, englobando o perigo de contágio venéreo, o perigo de contágio de moléstia grave, o perigo para vida ou saúde de outrem, o abandono de incapaz, o abandono de recém-nascido, a omissão de socorro e maus tratos. Porém, neste presente artigo científico, serão abordados apenas os temas dos artigos 130 ao 134, citados dentre estes.

Estes artigos têm como objetivo ajudar a resguardar, de uma certa forma, nossos direitos fundamentais de maior valoração, previstos na Constituição Federal, a saúde e a vida.


PERIGO DE CONTÁGIO VENÉREO

1. Apresentação

Primeiramente, ao se tratar do artigo 130, devemos lembrar que esse, assim como os outros relacionados, foi elaborado na década de 40, quando o Código Penal passou a entrar em vigor. Nessa época os homens da sociedade costumavam frequentar assiduamente prostíbulos, vulgarmente conhecidos como “bórdeis”, onde mantinham relações sexuais e praticavam atos libidinosos com as mulheres que lá se prostituiam. Através desses atos, passavam a adquirir a doença da moléstia venérea, que é transmissível. Em tempos que não se havia tratamento adequado para cura da doença, muito menos para a prevenção de contaminação, esta foi se propagando.

Com a intenção de prevenir esse acontecimento degradante, os legisladores criaram leis, com intuito de minimizar a ocorrência de contágio dessas doenças, punindo penalmente os indivíduos que transmitirem a doença, que saibam ou devam saber que estão contaminados, e punindo de forma qualificada, aumentando sua pena, aquele que tem por única e exclusiva intenção, a transmissão. Porém, o contexto do artigo fala de forma genérica e nada específica sobre o que seja a doença citada no próprio, moléstia venérea. Ficando a cargo dos estudiosos da medicina, defini-la. O doutrinador André Estefam, relata:

A norma penal busca imediatamente a proteção da saúde humana e, mediatamente da vida; aliás, toda defesa daquela visa, em última análise, ao resguardo desta. A incriminação do ato dá-se em razão da imensa facilidade de propagação das moléstias venéreas, tais como as sífilis, a gonorreia, o cancro mole e linfogranulomatose inguinal. A definição legal, ademais, era necessária, sobretudo no caso da figura prevista na cabeça da disposição, porque, sem esta, o comportamento do agente seria penalmente atípico. A norma conclama seus destinatários a que pratiquem relações sexuais com segurança e proteção.

Nesse artigo encontramos uma controvérsia. No caso, o Código Penal tipifica somente a conduta criminosa por dolo, sendo este direto ou eventual, porém, costuma-se punir também os crimes culposos, quando intimamente não se tem a intenção de o fazer, quando o indivíduo não age de forma proposital.

2. Classificação Doutrinária

Segundo Estefam, a infração constitui crime de mera conduta, “motivo por que sua realização típica integral dá-se com a prática do ato sexual com potencial de contágio.” Sendo assim o agente que praticar o ato responderá por lesão corporal, previsto no artigo 129 do Código Penal. Podendo ser essa lesão grave (art.129, § 1º), gravíssima (art.129, § 2º), ou até seguida de morte (art. 129, § 3º). Se este praticar o crime, e por acaso, não ocorrer a infecção, gerando apenas uma ofensa à saúde, responde pela infração de perigo (art. 130). Pois a vítima se encontrou nesse estado, correndo risco de ser contaminada. Admite-se também a tentativa que é quando o agente tem a intenção de contaminar a pessoa a qual se relaciona, mas por circunstâncias alheias a sua vontade, não obtêm êxito.

O crime de perigo no caso tratado neste artigo, é muito bem definido por Rogério Greco, que segundo ele:

Crime próprio, quanto ao sujeito ativo (uma vez que somente a pessoa contaminada é que poderá praticá-lo), sendo comum quanto ao sujeito passivo (pois que qualquer pessoa pode configurar como vítima deste crime); de forma vinculada (pois que a lei penal exige, para fins de reconhecimento da sua configuração, a prática de relações sexuais ou atos libidinosos); de perigo concreto (podendo ocorrer a hipótese de crime de dano, prevista no § 1º do art. 130 do CP), doloso (sendo dolo direto ou mesmo eventual); comissivo; instantâneo; transeunte (quando a vítima não se contaminar); não transeunte (quando houver o efetivo contágio da vítima); unissubjetivo; plurissubsistente; condicionado à representação.

3. Sujeitos Ativo e Passivo

Sujeito ativo é tido como qualquer pessoa, portadora da doença venérea, que a transmite através dos atos determinados no artigo. Já o sujeito passivo, poderá ser qualquer pessoa ofendida, sem mais distinções.


PERIGO DE CONTÁGIO DE MOLÉSTIA GRAVE

1. Apresentação

Tem como objetivo a segurança física da pessoa, e a preservação de sua saúde, punindo penalmente o agente que praticar o ato doloso contra a vítima, tendo como igualitária a pena dada ao art. 130 § 1º. Esse ato praticado é considerado um delito de ação livre, pois distinto do artigo 130, não é obrigatório ocorrer o contágio através da relação sexual, ato libidinoso ou qualquer outro em específico, podendo assim, se consumar por diversas ações, sendo essas diretas (através do contato corporal) ou indiretas (através de elementos auxiliares, como seringas, alicates de unha, etc.). Segundo Greco:

Dessa forma, pode o agente valer-se de meios diretos ou indiretos à consecução da transmissão da moléstia grave. Meios diretos dizem respeito à aqueles em que houver um contato pessoal do agente, a exemplo do aperto de mão, beijo, abraço, etc. Meios indiretos são aqueles que decorrem da utilização de quaisquer instrumentos capazes de transmitir a moléstia grave, a exemplo de seringas, bebidas etc.

Não se admite forma culposa no delito. A norma não pune o ato praticado culposamente, mediante imprudência, imperícia ou negligência. Porém, na ocorrência de um caso, em que o agente transmitir a doença contagiosa a vítima, sem ter o conhecimento que se encontra com a tal, será cabível responder por lesão corporal culposa, previsto no art. 129, onde não ocorre a intenção de transmissão, mas mesmo assim a vítima prejudica-se. Contudo, a tentativa será admitida. E será configurado crime impossível, quando a vítima que o autor pretende atingir, já estiver contaminada com a moléstia grave, não sendo ele, dessa forma, o transmissor da doença.

No entanto, há um pequeno conflito aparente, entre os artigos 129 e 131 do CP, que é solucionado pelo princípio da especialidade, pois assim como 130, o 131 também é especial diante ao 129.

Tratando-se do artigo 131, fica-se nitidamente visível, a falta de definição sobre do que se trata a moléstia grave, dando ênfase apenas a punição quando se pratica o crime. Porém, não cabe ao âmbito jurídico definir esse tipo de doença. Assim, é essencial a perícia médica, para fazer uma análise do contágio e saber a que risco a vítima foi exposta. Esta também servirá como uma prova pericial para saber se o agente no momento da relação, se encontrava ou não com a moléstia grave. O artigo 152 do C.P. afirma: “Quando a infração penal deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”

2. Classificação Doutrinária

O crime de perigo de contágio de moléstia grave, trata-se de um crime próprio, de dano, com dolo direto, de meio de execução livre, comissivo, podendo também ser comissivo por omissão, unissubsistente ou plurissubsistente, monossubjetivo, instantâneo, formal, se consumando com a mera conduta da transmissão.

O sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa, homem ou mulher, contato que seja portadora da moléstia grave contagiosa. E o sujeito passivo também pode ser qualquer pessoa, porém, não poderá portar a doença da moléstia grave, vindo a adquiri-la depois do delito, cuja perigo de contágio foi submetida.

3. Divergências

Existe a hipótese de crime cometido pelo agente, e este não estar contaminado com a moléstia grave, mas utilizar-se de instrumentos contaminados com a doença, para servir como objeto de contágio.

No entanto, a descrição do artigo 131, faz a exigência do agente ser portador da moléstia grave para transmiti-la.

Sendo assim, se o infrator cometer o delito com objeto de terceiros, com a intenção de transmitir a moléstia grave, não responderá pelo crime tipificado no art. 131, e sim por lesão corporal, art. 129.


PERIGO PARA A VIDA OU SAÚDE DE OUTREM

1. Apresentação

Mais uma vez é notória a preocupação do legislador com a segurança da pessoa física, com intuito de preservar sua vida e saúde, objeto jurídico indisponível.

Tratando-se do art. 132 do C.P., o autor do delito danoso, tem a consciência e a intenção maldosa, de expor a vítima ao perigo de vida. O autor Fernando Capez declara a respeito do crime previsto no artigo:

Trata-se de delito de caráter eminentemente subsidiário, por expressa disposição contida em seu preceito secundário: “(...) se o fato não constitui crime mais grave”. Se praticado crime de maior gravidade, ele absorverá, assim, o crime de perigo em tela. Da mesma forma, não incidirá o crime em questão, ainda que a pena prevista seja maior, se o fato puder ser enquadrado em algum crime específico, como o de maus tratos (art. 136, C.P.).

Há uma ressalva em questão no dispositivo, o qual a lei só punirá o delito penal de perigo para vida e saúde de outrem, se esse, não apresentar um resultado mais grave, danoso. Se houver efetivamente o dano como resultado criminal, o crime de perigo não existirá. Pois o artigo ressalta o fato de expor, que se presume um comportamento comissivo, ou seja, a vítima corre apenas o risco.

2. Classificação Doutrinária

Esse crime subsidiário, com subsidiariedade expressa. Está no rol dos crimes de perigo direto iminente, ou seja, individual, devendo atingir a vítima determinada, prevendo o acontecimento do ato. Será também de forma livre; comum (quanto ao sujeito ativo e passivo); comissivo ou omissivo impróprio; de perigo concreto (pois deverá ser constatadas provas de que o agente expôs a vida ou saúde da vítima em perigo); doloso; instantâneo; transeunte (exceto quando houver a prova pericial); plurissubsistente e unissubjetivo.

O sujeito ativo neste caso poderá ser qualquer pessoa, homem ou mulher. E o sujeito passivo também será qualquer pessoa, devendo apenas ser determinada.

3. Divergências

Daremos ênfase, a um dos temas mais repercutidos, o conflito de normas entre a Lei n° 9.437/97 e o artigo 132 do Código Penal, ambos tratando do tema do crime de disparo de arma fogo, o qual tem como objeto jurídico á incolumidade pública. Para existir o conflito de normas, entre elas terá que existir, um desses dois requisitos: unidade de fatos ou pluralidade de normas identificando o mesmo fato como delituoso.

Com o intuito de resolução dos conflitos de normas, os doutrinadores apresentam princípios buscando solucioná-los: Princípio da Consunção, Princípio da Subsidiariedade, Princípio da Especialidade.

Utiliza-se, então, do princípio da Subsidiariedade, para solucionar tal conflito, podendo este subsidiariedade ser tácita ou expressa. Segundo João Marcelo Brasileiro, autor do artigo que trata somente deste conflito citado, explica:

Sempre em que se falar em subsidiariedade de uma norma, deve-se ter em mente a primariedade de uma outra, apesar das duas normas defenderem graus de violação do mesmo bem jurídico, a infração definida pela norma subsidiária é de menor grau que a principal, ficando, pois absorvida por esta. Tal raciocínio deve ser feito no caso concreto, nunca em abstrato.

O crime de disparo de arma de fogo, poderia ser enquadrado perfeitamente no art. 132, quando o autor da ação tiver a intenção de expor a saúde ou a vida da determinada vítima em perigo. Diferentemente do caso previsto no art. 28 da L.E.P, Lei de Contravenções Penais.

Em 20 de fevereiro de 1997, a Lei 9.437 foi lançada, criando assim um novo delito em relação ao disparo da arma de fogo, previsto no art. 10. § 1°, III. A criação dessa lei teve como resultado a revogação do art. 28 da L.E.P.

A partir de então, surge a dúvida em questão. Qual norma eficaz a ser utilizada para esse crime de disparo da arma de fogo? Pois a Lei criada mais recentemente, também fala da conduta do agente ao disparar a arma, tendo como objetivo a intenção de expor a vítima a perigo. Quem pratica este determinado crime, deverá responder pelo artigo 132 do C.P. ou pela Lei 9.437/97? Como já citamos, o conflito será resolvido pelo princípio da Subsidiariedade.


ABANDONO DE INCAPAZ

1. Apresentação

A presente explanação tem por finalidade maior expor, de maneira concisa, sobre os crimes que põe em risco a vida dos indivíduos, classificado como de perigo concreto. De maneira mais precisa, refere-se a um público específico que será mais adiante arrolado.

Para início de consideração, determina-se que o bem jurídico tutelado em questão é o bem da vida, no caso a segurança. Visa, assim, o Direito Penal, tutelar seus sujeitos e assegurar, ainda que colocado anteriormente de forma ampla, o desenvolvimento social e individual. Assim, leciona Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 232)

[...] é o bem relevante para o indivíduo ou para a comunidade (quando comunitário não se pode perder de vista, mesmo assim, sua individualidade, ou seja, o bem comunitário deve ser também importante para o desenvolvimento da individualidade da pessoa) que, quando apresenta grande significação social, pode e deve ser protegido juridicamente. A vida, a honra, o patrimônio, a liberdade sexual, o meio ambiente etc. São bens existenciais de grande relevância para o indivíduo.

2. Sujeitos Ativo e Passivo

Acerca dos sujeitos do disposto no artigo 133, antes de iniciar a delimitação, podemos generalizar e falar que pode ser amparado pelo referido artigo aquele abandonado. Aquele que, não podendo defender-se, perde sua segurança e começa a correr risco de vida em virtude da ação dolosa de outrem. A definição de abandono, para estes tipos penais explicados, gira no sentido de ser deixado em desamparo por aquele que possui dever de tutela, assistência ou cuidado, não sendo crime próprio, determinado a agentes específicos.

Em cada artigo do Código, há um núcleo, e a partir deste, é possível desmembrar o dispositivo para a devida interpretação. Damásio de Jesus pondera sobre os verbos tidos como núcleo do artigo 133 do Código Penal, relacionados no seu caput:

1) cuidado é a assistência eventual;

2) guarda é a assistência duradoura;

3) vigilância é a assistência acauteladora;

4) autoridade é o poder de uma pessoa sobre outra, podendo ser de direito público ou privado;

Em relação ao sujeito passivo, mais uma vez retoma-se o conceito de abandono para falar que independente de estado físico ou mental, será vítima quem não for capaz de providenciar sua própria segurança e em virtude disso esteja vulnerável de forma certa, deixando para o juiz valorar o caso concreto.

O objeto jurídico é o interesse de o Estado tutelar a segurança da pessoa humana, que, diante de determinadas circunstâncias, não pode por si mesma defender-se, protegendo a sua incolumidade física. (JESUS, DAMÁSIO, pg.100)

Utilizando uma interpretação extensiva, entende-se pela definição dos sujeitos do professor Damásio de Jesus que o sujeito ativo possui legitimidade de cuidado, como por exemplo, a cuidadora que deixa de prestar o devido cuidado ao idoso que se prestou a cuidar, seja por uma ação ou omissão da cuidadora; já o sujeito passivo será aquele que está sob o cuidado, guarda de outrem e que esteja incapaz de zelar pela segurança da própria vida.

3. Objetividade e Subjetividade

Bitencourt, em seu pensamento, ratifica a ideia ao falar que o crime acontece quando alguém que possuía o vínculo de assistência, tutela, abandona aquele incapaz de proteger-se sozinho. Cabe falar ainda que, objetivamente, essa incapacidade não é vista sob o ponto de vista da transitoriedade ou em definitivo, tendo em vista ser irrelevante para desconfigurar o dever de tutela do sujeito ativo.

Guilherme de Souza Nucci na mesma linha de pensamento proclama: “ (a incapacidade) não se trata de um conceito jurídico, mas real”.

Acerca do elemento subjetivo, fala-se em dolo de perigo, o qual o agente tem total consciência do perigo a que expõe a vítima, como se este aceitasse o perigo concreto a que submete aquela, por meio abandono.

Quanto à consumação do crime, ocorre com o abandono efetivo do incapaz, devendo a vítima encontrar-se em situação de perigo real. Para Cezar Roberto Bitencourt, a tentativa é teoricamente possível, especialmente na forma comissiva, mesmo que a configuração seja difícil.

4. Classificação Doutrinária - Fundamentos Jurídicos

Das formas qualificadas presentes no dispositivo, os §1º, 2º e 3º, a situação mais contemplada pelos tribunais é a do abandono ao idoso e a do menor por seus genitores. Assim, além da figura imediata da criança e de enfermos, o idoso, infelizmente, também é vítima recorrente do abandono, contemplado no parágrafo 3º, inciso III, adicionado por força da Lei 10.741 de 2003, Estatuto do Idoso. Além disso, ao serem analisadas de forma extensiva as duas fontes, o idoso também está acobertado em seu Estatuto, no artigo 4º, em se tratando de sanção.

Sobre o referido dispositivo mencionado anteriormente, João José Caldeira Bastos comenta em seu artigo:

Fala-se em relação jurídica de cuidado quando alguém tem o encargo de zelar, nas circunstâncias, pela saúde e integridade física de outrem; de guarda, quando a obrigação é mais envolvente, diante da incapacidade natural ou relativa da outra parte; de vigilância, quando a obrigação se restringe a um compromisso ocasional de observação e proteção acautelatória; de autoridade, na hipótese de um poder-dever de mando e orientação, vinculado a normas de direito público ou direito privado. Basta qualquer uma dessas relações para que ocorra o delito. O comum, porém, é que elas coexistam, ao menos em parte. O pai, por exemplo, no que tange ao filho menor, com quem sai a passeio, mantém sobre ele deveres de cuidado, vigilância, guarda e autoridade.

BASTOS, João José Caldeira. Abandono de incapaz: Estrutura típica, formas qualificadas e aumento de pena.Jus Navigandi.

Na visão doutrinária, o elemento chave é o vínculo pré-existente entre os sujeitos, para que assim esteja de forma concreta, configurado o abandono.

Damásio E. de Jesus (1999, p.101.) fala, ainda, que “não havendo essa vinculação especial entre autor e ofendido, isto é, não incidindo o dever legal de assistência, conforme o caso, o sujeito pode responder pelo delito de omissão de socorro.”

No caso da materialidade do delito, Custódio da Silveira (1973), entende que a ausência daquele que possui a responsabilidade, o dever de tutela, é indiferente ao tempo em que a vítima foi deixada, bastando encontrar-se na situação a situação perigosa.

Esse pensamento do autor (1973, p. 184/185) gera polêmica entre juristas a respeito dessa necessidade de afastamento daquele que deve receber cuidado, assistência fazendo com que o próprio aumente seu campo de interpretação ao falar que abandono consiste em toda ação ou omissão que se destoe da ideia de custódia.

Nessa mesma linha de pensamento, o abandono ao menor, principalmente por seus genitores, torna-se uma conduta cada vez mais vista nos meios de comunicação, casos em que os pais deixam os filhos, crianças sem capacidade de providenciar seu alimento ou segurança, sozinhos em casa, por qualquer motivo. O juiz julgará o caso de acordo com a gravidade desse abandono.

O tipo penal não admite a modalidade culposa para o abandono de incapaz. Nesse caso, para configurar crime o agente deve estar consciente do ato e ter dolo para praticá-lo, seja direto ou eventual.


EXPOSIÇÃO OU ABONDONO DE RECÉM-NASCIDO

1. Apresentação

O legislador pátrio ao elencar no artigo 134 do Código Penal uma modalidade específica de abandono ao recém-nascido, cria um tipo qualificado em relação ao crime de abandono. Tem por finalidade, assim, proteger especificamente o recém-nascido diante da sua extrema fragilidade.

A circunstância do abandono exige que esse fique exposto a situação concreta de risco, da qual pode-se deduzir que sozinho, sempre estará vulnerável.

2. Sujeitos Ativo e Passivo

       O termo desonra própria nos remete a razão ou motivação para o crime e, além disso, quem poderá ser incluído no rol de agentes deste crime classificado como próprio. Têm-se, então, duas correntes em que em uma somente a mãe poderá sujeito ativo, posto que se trata de situação em que se visa ocultar desonra própria e somente esta possui o vínculo mais estreito e direto com o recém-nascido. Nesta perspectiva, ainda, há outra corrente que permite incluir para agente, além da mãe, o pai. Ressalta-se que a interpretação deste delito enquanto crime próprio, na realidade, advém de interpretação do contexto social do caso concreto, tendo em vista a constante transformação do seio familiar atualmente.

Celso Delmanto e Cezar Roberto Bitencourt, citados por Capez (2012, p.241), encontram-se dentro da primeira corrente, sustentando que por ser crime próprio, a desonra própria somente poderá se referir à mãe, embasando tal afirmação no estudo comparado com o delito de infanticídio; o pai, segundo eles, responde apenas por omissão de socorro

Como se vê, é uma questão crítica. Há doutrinadores que interpretam o dispositivo de forma mais restrita, como Fernando Capez, de maneira que somente a mãe é o sujeito ativo desse crime, assim como há aqueles que defendem que o pai também é parte legítima. Não há entendimento pacificado acerca do impasse.

Interpretando o caput do artigo 134, podemos notar que ao falar em honra, surge a possibilidade de uma interpretação ampla, ao apresentar a ideia de somente o sujeito que possuir honra, terá capacidade para ser agente do crime; sendo honra um conceito subjetivo, o juiz poderá valorar esta no ato do julgamento. Assim, como a razão do crime perde-se se o agente falhar neste quesito, incidirá em abandono ou maus tratos, por exemplo.

No polo passivo, ainda que de entendimento pacífico quanto ao recém-nascido, existe ainda a discordância quanto ao conceito deste. Mas, para parte da doutrina (Bitencourt e Fragoso, por exemplo), entende que deve ser alguém nascido há poucos dias.

Quanto ao sujeito passivo, a divergência reside quanto ao momento de considerar recém-nascido o ser humano para o ordenamento jurídico.

Estritamente falando, recém-nascido é o ser humano que acabou de nascer com vida, ou seja, que finalizou o parto com vida extrauterina caracterizada pela instalação da respiração pulmonar. Entretanto, o alcance deste tipo penal seria muito estreito, caso se aceitasse somente a figura da vítima que terminou de ser expulsa com vida do útero materno. Sabe-se que nos primeiros dias ainda se pode considerar a criança uma recém-nascida, de forma que preferimos esse critério, ainda que vago, mas a ser analisado concretamente pelo magistrado. (NUCCI, Guilherme de Souza, 2012, p.699, 700)

Sobre o termo subjetivo da palavra recém-nascido, João José Caldeira Bastos adota interessante posicionamento em seu artigo ao sugerir o conhecimento social como importante fator no desenvolvimento da corrente:

Essa elasticidade, no entanto, não decorre da lei, pois a condição de recém-nascido jamais dependeu da maior ou menor habilidade materna (ou paterna) de guardar segredo quanto ao fato do nascimento. Ainda que através de outra expressão vaga, sabe-se que recém-nascido é simplesmente aquele que "nasceu há pouco", segundo os dicionários.  Esse "pouco" tempo de vida extrauterina está longe de ser delimitado pelo número e tipo de pessoas que dela tomam conhecimento.

BASTOS, João José Caldeira. Exposição ou abandono de recém-nascido: limites da dogmática penal. Boletim Jurídico.

Embora seja termo que possua diferentes interpretações, de acordo com o momento ou com a hora, caberá também ao juiz valorar de acordo com o caso concreto.

3. Classificação Doutrinária

 Em relação a subjetividade, tal qual no caso de abandono de incapaz é o dolo de perigo; é o ato de abandonar o recém-nascido. A consumação, então, se dá com o abandono efetivo do recém-nascido, desde que este esteja colocado em uma situação fática de perigo com tal ação. Ainda que a mãe abandone o filho por certo tempo e retorne para cuidar, não impediria que tal conduta fosse considerada abandono. É possível a tentativa. (Sidneyjan Brito Souza. Da periclitação da vida e da saúde. Webartigos)

Capez refere-se também quanto à consumação:

Consuma-se o delito com o abandono, desde que resulte perigo concreto para o recém-nascido. Trata-se de crime instantâneo de efeitos permanentes. Isso quer dizer que o crime de exposição ou abandono de recém-nascido consuma-se em um dado instante (com a exposição ou abandono), mas seus efeitos perduram no tempo, independentemente da vontade do agente, já que o resultado produzido pela conduta subsiste sem precisar ser sustentado por ele. (CAPEZ, Fernando, 2012, pg. 243.)

Como trata-se de forma qualificada do abandono de incapaz, a consumação naturalmente se dará com o abandono gerando perigo concreto para o sujeito passivo, que não possui chance de defesa ou de cuidar-se.

O autor ainda comenta a respeito da modalidade do crime:

Cuida-se aqui dos crimes qualificados pelo resultado na modalidade preterdolo. Há dolo de perigo no fato principal (exposição ou abandono do recém-nascido); já os resultados agravadores são punidos a título de culpa. Se presente o dolo de dano, o agente poderá responder pelo delito de infanticídio ou homicídio, conforme esteja ou não sob influência do estado puerperal, ou então pelo delito de lesão corporal qualificada, se presente o animus laedendi. (CAPEZ, Fernando, 2012, pg. 243.)

A partir da leitura de Capez, a forma qualificada, por ser um crime próprio com caráter de dolo direto, seus resultados estão ligados à forma preterdolosa, com previsão para pena máxima de até 2 anos de detenção, variando entre a lesão corporal grave e a morte. Dificilmente, então, apresenta-se a conduta do sujeito com dolo eventual, já que comprovada a intenção de dolo com dano, o chamado animus laedendi citado por Capez, qualificar-se-á este pelo crime de infanticídio ou homicídio.

Salienta-se, ainda, que não há a modalidade culposa. Responde, então, o agente na medida de sua culpabilidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A função desempenhada pelo bem jurídico-penal tratado no presente estudo, como critério de garantia individual e de limitação estatal, não pode ser afastada para um plano secundário, porém ainda assim deve ser contrabalanceada com certa prudência. Não é demasiado assegurar que o processo penal é o que há de mais importante na vida de alguém que venha a ser dirigido pelo Sistema Penal, o que pode ser facilmente comprovado a partir da verificação dos efeitos de uma condenação, seja ela de cunho individual ou penal.

De maneira mais atual, existe a possibilidade de se relacionar bem jurídico como um instituto que tem fundamentada relevância para a sociedade como um todo, implicando em um juízo positivo de valor acerca de uma determinada conduta social para o desenvolvimento humano.

Os bens considerados merecedores da tutela penal são aqueles que apresentam importância no que diz respeito à dogmática penal, os quais estão dispostos expressamente, ou apenas indiretamente pela Constituição Federal.

Não basta, contudo, apenas a valoração jurídica da segurança individual para que esta seja respaldada penalmente, pois há a necessidade de que a ofensa e as condutas colocadas em prática em seu desfavor sejam relevantes, a ponto de poder lesá-la gravemente ou de pelo menos colocá-la em situação de eminente previsibilidade de lesão, daí sim, como resposta a estas ofensas, o legislador penal as tornará condutas criminalizadas.

Destaque-se que o processo de criminalização de uma determinada ação lesiva à segurança individual, não se restringe a este juízo positivo de reprovabilidade, mas sim a uma compreensão criteriosa do Princípio da Necessidade, ou seja, mesmo que haja a lesão ou a ameaça de lesão, deve-se verificar se será aplicado ou não o Direito Penal.

Torna-se oportuno ainda salientar que em um Estado Democrático de Direito, pluralista e secularizado, recorrer-se de imediato ao Direito Penal é atentar contra a dignidade da pessoa humana, haja vista a existência de meios punitivos menos onerosos para os indivíduos e a razão de que o Estado não está autorizado a estipular sanções desnecessárias aos jurisdicionados.

O momento atual é de importante reflexão no sentido de que nem sempre se analisa o fato de que uma conduta praticada hoje possa vir a se tornar uma prática comum na sociedade, levando muitas vezes a um processo de criminalização desnecessário, não podendo o legislador, entretanto, criminalizar certa conduta a um determinado bem jurídico à sua mera vontade, pois se faz necessário um estudo amplo e criterioso do quanto o bem é valorado na sociedade.

Portanto, só podem ser colocadas à categoria de crimes de periclitação da vida e da saúde condutas que efetivamente obstruam o satisfatório conviver social, a partir disso, conclui-se que aquelas condutas que são tidas como meros incômodos de pequena monta, ou que causam diminutos dissabores são consideradas como desprovidas de relevância penal, ficando suas resoluções direcionadas a outros mecanismos formais ou informais de controle social.


REFERÊNCIAS

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