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Liberalismo de Rawls x comunitarismo

Diferenças, compatibilidades e condições para implantação dos ideais comunitaristas-liberais no Brasil

Liberalismo de Rawls x comunitarismo: Diferenças, compatibilidades e condições para implantação dos ideais comunitaristas-liberais no Brasil

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Reflexões sobre as principais teorias comunitaristas – que ressaltam a importância dos laços comunitários para o exercício dos direitos humanos – em comparação com a teoria de justiça de Rawls. Estaria o Brasil preparado para abraçar essas ideias?

1. Contexto histórico de surgimento[1]

Nas últimas três décadas do século XX, ganhou nova força no mundo o “liberalismo individualista”[2], na filosofia política, na cultura social e na prática política de vários povos do mundo, o que acabou provocando um isolamento excessivo das pessoas em suas sociedades “estatais”. Esse “liberalismo renovado”, por sua vez, está relacionado com vários fatores: a) a “falência” do modelo de Estado conhecido como “Welfare State”, que gerou em inúmeros regimes capitalistas um Estado paternalista, agigantado e deficitário, por ter assumido inúmeras responsabilidades na satisfação dos interesses e necessidades sociais, muitas vezes além de suas capacidades; b) a derrocada dos regimes socialistas do leste europeu, o que fez com que os ideais “individualistas”, associados ao “bloco capitalista”, passassem a ser mais valorizados, em detrimento dos ideais integracionistas, associados geralmente ao extinto “bloco comunista”; c) a intensificação da interdependência entre mercados e do intercâmbio entre culturas, com o desenvolvimento de redes mundiais de comunicação em tempo real; a globalização financeira e comercial, informacional e cultural, por sua vez, leva a uma discussão permanente entre o universal/geral e o regional/particular. [3] d) a perda de legitimidade das democracias de base representativa/partidária, com a alienação dos indivíduos da esfera política e consequente hipertrofia da esfera privada e romântica, enquanto a esfera política é apropriada por grupos de interesses e elites oligárquicas. [4]

Como reação às distorções sociais provocadas pelo “liberalismo individualista”, desenvolveu-se, nos Estados Unidos da América, a partir de 1980, o movimento filosófico-político comunitarista, de caráter teórico-prático, com inúmeras vertentes doutrinárias[5] e os seguintes postulados básicos: a) a importância dos valores morais e de laços comunitários, no próprio desenvolvimento da autonomia dos indivíduos e na busca da justiça social; a questão se explica por as pessoas dificilmente desenvolverem as capacidades de raciocínio moral e prático, isoladamente umas das outras; b) o princípio de que a defesa de direitos individuais deve levar em conta não só os seus custos, mas também as responsabilidades sociais necessárias/complementares para o respeito desses direitos;[6] c) a orientação de que as políticas públicas governamentais devem dar mais atenção às várias instituições e grupos civis (comunidades) que integram o Estado, e que são diferentes do Mercado e do próprio Governo; d) a recomendação de que deve haver um estímulo ao desenvolvimento de virtudes cívicas necessárias entre pessoas e comunidades, promovendo-se uma maior distribuição das atividades de interesse social e a redução dos processos de atomização (isolamento) dos indivíduos.

É sobre esse movimento - o comunitarismo - que versa o presente trabalho, o qual tem como objetivo ressaltar algumas de suas discussões básicas que têm possibilitado o aprimoramento da doutrina dos direitos fundamentais.

Também procuraremos fazer uma correlação entre o pensamento comunitarista e a obra de John Ralws, pois foi a partir das discussões retomadas com a publicação de sua “Teoria da Justiça”, em 1971, que o movimento filosófico-político estudado se desenvolveu[7]. Discutiremos, por fim, algumas compatibilidades e diferenças de abordagem entre o pensamento rawlsiano e o pensamento comunitarista, tendo em vista uma contribuição para a teoria dos direitos fundamentais.

 


2. O liberalismo comunitarista

   Thomas Spragens, saindo em defesa de uma visão comunitarista inserida no legado liberal, observa que liberalismo e comunitarismo não são necessariamente teorias incompatíveis.[8] Considerado como corrente “contrária” ao liberalismo, o comunitarismo seria como que herdeiro da tradição cívica do partido republicano inglês do séc. XVIII, que fazia oposição aos adeptos de uma sociedade liberal fundada exclusivamente nos mercados e na proteção dos interesses (e direitos) individuais. [9]

Segundo o Professor, todavia, o ideal comunitarista que defende apenas considera insuficiente (parcialmente correta, portanto) a visão da sociedade como somatório de indivíduos na defesa de interesses privados, pois a sociedade abrange inúmeras esferas de relacionamento, além das inter-individuais, e muitos dos interesses individuais dependem sobretudo da consecução dos interesses mais importantes para a sociedade. É fato que os comunitaristas dão ênfase à promoção social de virtudes cívicas, bem como à criação de um rol de responsabilidades sociais correlatas aos direitos de cidadania. Mas isso não quer dizer que essas suas bandeiras sejam incompatíveis com a defesa dos interesses das pessoas e/ou dos indivíduos.[10]

A visão comunitarista está fundamentada na visão de que uma sociedade bem organizada abrange inúmeros círculos (ou redes) de ação formados pelas pessoas, os quais têm maior ou menor abrangência, podendo ser integrados (ou não) a entidades coletivas/comunitárias. O fato de que os indivíduos podem desenvolver diferentes capacidades, além daquela de autocontrole, demonstra que eles também podem desenvolver as qualidades necessárias para a cooperação e o autogoverno. Para os comunitaristas, toda sociedade deve ser pelo menos em parte o produto de condutas dirigidas à esfera pública.[11]

Objetivando fazer algumas correções sobre as ditas “visões estanques” do comunitarismo e do liberalismo, Spragens faz uma retrospectiva dos primórdios do liberalismo ocidental moderno, nos sécs. XVII, XVIII e XIX. Começa lembrando que no surgimento histórico do liberalismo, o conceito de liberdade era de importância central (mas não única) pelo fato de o movimento ter sido resultante da rejeição histórica à opressão do pensamento, da expressão, das atividades econômicas e religiosas.[12] A liberdades, como por exemplo a de comércio e a de religião, estavam intimamente ligadas à idéia de dignidade humana, além de serem consideradas como instrumentais para outros objetivos importantes, como maior igualdade, prosperidade, estabilidade social e harmonia cívica.

A liberdade, portanto, não representava o único valor do liberalismo, constituindo, porém, o foco de uma estratégia liberal que abarcava um rol complexo de aspirações, como igualdade política, amizade cívica e desenvolvimento individual. Saindo do campo normativo, observa-se que no campo filosófico o liberalismo também se apresentava de forma complexa, inspirando-se na ciência natural moderna e relacionando-se com idéias racionalistas e empiricistas.[13]   

Ressalta Spragens que, nesse contexto histórico, os liberais originais estavam implicitamente vinculados aos conceitos morais e filosóficos herdados da tradição clássica (grega). Tais pensadores eram moralmente mais tradicionais do que se imagina.[14] Refere-se o professor a Locke, Condorcet e Mill.

A obra de Locke é contemporânea à segunda revolução inglesa (1689), que aboliu definitivamente o regime de direito divino e instaurou uma monarquia constitucional na Inglaterra. Para o pensador, que era contrário ao “contrato de submissão” proposto por Hobbes, o conhecimento humano está ligado ao empirismo, e a motivação humana inclui valores hedonistas, mas nem por isso a sua base ideológica era positivista ou materialista. Ele acreditava em Deus, tendo escrito tratados morais e religiosos; acreditava também nas leis da natureza; defendia que a educação deveria ser dirigida para o cultivo da virtude.

 Se por um lado essa era uma concepção um pouco burguesa da virtude, nem por isso era uma celebração de um autointeresse isolado. Seu individualismo político e econômico era limitado por outros valores e obrigações: assim, por exemplo, os direitos de propriedade privada estavam vinculados ao esforço (trabalho) humano; as nossas próprias vidas, sendo propriedade de Deus, não poderiam ser tiradas nem por nós mesmos; devemos administrar nossas vidas de forma responsável. [15]

Assim, para Locke, os direitos individuais eram complementados de obrigações morais, por meio de um compromisso com o bem comum que constituía o propósito das sociedades. Tratava-se de um teórico procurando um equilíbrio entre contrato e consenso, entre Direito Natural e direitos naturais; um misto de liberdade, igualdade legal e moral (não social ou econômica), cooperação social e promoção da virtude.[16]

Escrevendo um século ou mais adiante, Condorcet e John Stuart Mill também exibiram uma concepção tradicional de sociedade, ligada a noções sobre as virtudes humanas, apesar de tanto o primeiro (anticlérico) quanto o segundo (agnóstico) não ligarem tais noções a quaisquer crenças teológicas. Para eles a sociedade liberal se justificava por permitir o desenvolvimento moral das pessoas/cidadãos, evitando-se que os cidadãos exigissem para si mais do que a sua parte devida (sendo esse excesso chamado pelos gregos de “pleonexia”). O controle racional sobre as paixões era fundamental para a conduta moral; as virtudes abrangiam a benevolência, a capacidade de compartilhar dos sentimentos de outros (compaixão, ou “sympathy”); o compromisso com a verdade. Aliás, esta última era vista como uma obrigação moral, parte do florescimento humano e característica de boas sociedades. Tais pensadores podem ter se afastado do veio principal clássico (a tradição de civilidade), em face de seu secularismo e de seu otimismo exacerbado sobre a capacidade da ilustração (o conhecimento) de gerar virtudes. Mas eles sem dúvida estavam inseridos naquela tradição moral, não eram céticos e nem relativistas morais.[17]

Apartando-se um pouco da tradição moral clássica, tanto Condorcet quanto Mill passariam a defender um complexo conjunto de bens humanos autenticamente “liberal”, por estarem centrados na autodeterminação política, civil e econômica. Todavia, a expansão das liberdades civis e a maximização da igualdade política eram valorizadas não só como bens em si mesmas, mas como causas eficazes da criação de outros bens humanos. Dentre estes, podemos citar a criação de uma união social contra opressões; o aumento da igualdade social, da prosperidade, da estabilidade e da amizade cívica; o desenvolvimento moral, a solidariedade social e o senso comunitário. Lembra o Professor Spragens que esse “otimismo” (em relação ao poder transformador da liberdade e da igualdade), se por um lado era um pouco exagerado, por outro, estava fundado na convicção de que todos esses “bens humanos” eram mutuamente causativos.[18]

Essa “fundamentação moral” da sociedade, conforme idealizada pelos pensadores liberais citados, veio, todavia, a sofrer uma erosão considerável na filosofia, nas ciências e na cultura, a partir de fins do séc. XIX. O darwinismo pôs em crise o sentido de natureza fixa que em Hume gerara a noção de uma moralidade universal (e que viria a influenciar Kant[19]); o relativismo e o historicismo levaram ao abandono da crença em uma ordem natural e em direitos naturais que inspirara o liberalismo de Jefferson e Paine; o positivismo e o emotivismo questionaram a importância cognitiva de todos os postulados morais; o existencialismo, em sua forma mais radical, propôs que a escolha de um plano de vida é um ato de vontade totalmente ilimitado. Por fim, o pós-modernismo trouxe a idéia de que todas as normas sociais são politicamente construídas, arbitrárias e contingentes (incertas, casuais).  [20]   

O liberalismo contemporâneo estaria situado em um contexto cultural diferente daquele que nutriu e limitou o liberalismo original,[21] sendo mais secular, mais materialista, mais agnóstico[22] com relação à boa vida e à virtude humana, tendo radicalizado a concepção de individualismo político. De se ver que, a partir de fins do séc. XIX, se por um lado a maximização da liberdade e da igualdade teria acabado com as desigualdades políticas, por outro, não teria impedido a concentração de poder econômico e o consequente distanciamento entre as elites e os trabalhadores.[23]   

No séc. XX, os liberais, orientados para o discurso dos direitos, passaram a priorizar a liberdade, sendo chamados de “libertarianistas”, ou a igualdade, sendo denominados de “igualitarianistas”. Ambas as duas vertentes liberais seriam individualistas, e tendo diferentes premissas morais, todavia não dariam tanta importância à questão da virtude e dos objetivos da comunidade. Esta não seria ignorada, mas vista de forma secundária.[24]

Para os liberais “libertarianistas”, como Robert Nozick, os direitos deveriam ser assegurados aos indivíduos desde que estes respeitassem os direitos de outros. Milton Friedman fala da incompatibilidade da teoria liberal com as idéias dos igualitarianistas, por defender que o liberalismo não é uma ética que abrange tudo e todos, e que o problema ético deve ser resolvido pelo indivíduo. Para a corrente libertarianista, a virtude de uma sociedade orientada pelo mercado é a redução do atrito social por não forçar decisões majoritárias sobre a alocação de bens sociais; ela daria valor à comunidade pois seu sistema não contribui para a sua desordem e rebelião. Os mercados seriam formados pelas transações consensuais de indivíduos agindo em interesse próprio, sendo essa a essência da interação social legítima.[25]

Já para os liberais igualitarianistas, como por exemplo John Rawls e Bruce Ackerman[26], todos os direitos válidos seriam limitados por uma “norma superior da igualdade”. A liberdade é importante na vida humana, e liberdades específicas são permitidas desde que não comprometam as chances de vida dos cidadãos desafortunados.[27] O plano de vida de cada um deve ser tão valioso quanto o de qualquer outro. [28] [29]

Como prestam atenção apenas periférica e/ou secundária à comunidade, libertarianistas e igualitarianistas acabam desenvolvendo visões inadequadas sobre o que é necessário para criar comunidades, dentro de políticas que prejudicam laços comunitários. A igualdade entre os cidadãos seria necessária para eliminar as barreiras ao desenvolvimento da amizade cívica, mas não seria suficiente, por si só, para desenvolvê-la. Rawls, por exemplo, em seu conceito de “união social” presume que as pessoas possam aderir a uma concepção comum de justiça, e se sacrificar por seus concidadãos mesmo que tenham noções incompatíveis do bem.[30]

Segundo Thomas Spragens, nenhuma das duas correntes fornece uma noção convincente da “boa sociedade”, por extraírem um elemento de seu contexto e o oferecerem como objetivo principal da organização política e das políticas públicas. Ambas têm partes da verdade, perdendo todavia dimensões de uma sociedade bem ordenada.[31] As críticas trocadas seriam mais sólidas do que cada registro ou teoria própria: os libertarianistas não percebem que uma sociedade fundada exclusivamente no mercado leva a desigualdades profundas, gerando divisões e tensões sociais e preocupações egoístas; os igualitarianistas, por sua vez, não percebem que o regime estatista, enquanto motor da igualdade, seria por demais coercitivo, deletério da excelência e da eficiência e estimulador de outras formas de hostilidade grupal. O professor questiona como a liberdade, vista como simples “falta de impedimento” (na herança teórica de Hobbes), pode ser a finalidade essencial de uma sociedade; além disso, questiona também em que termos se quer uma sociedade “igualitária”, pois seria preferível ocupar uma posição inferior (e desigual) em uma sociedade próspera, do que ocupar uma posição igual a todos em uma sociedade pobre.[32] 

Nessa linha, Spragens defende o comunitarismo como uma tentativa de reforma do liberalismo, resgatando a complexidade normativa e a profundidade moral que se perdeu nos últimos séculos, ressaltando que não pretende com isso retornar às teorias do séc. XVII, pois que elas tinham incoerências e fraquezas, como a de misturar tradições morais com as novas epistemologias, ontologias e antropologias de então (lembre-se da “tendência natural” da riqueza de gerar a distribuição de bens sociais...). O cenário político e filosófico do séc. XX (e do séc. XXI) é diferente, por apresentar inúmeras formas de pensar convivendo entre si; a realidade contemporânea abrange capitalismo industrial, globalização, democracia de massas e pluralismo social. [33]

Quando se refere ao resgate da complexidade normativa do liberalismo original, o Professor tem em mente os três valores fundamentais da revolução francesa, liberdade, igualdade e fraternidade.[34] As variantes liberais desenvolvidas no séc. XX ter-se-iam tornado problemáticas por enfatizarem o primeiro ou o segundo valor em detrimento do último, visto como “amizade cívica em uma comunidade florescente”. Este deve ser o objetivo último de uma sociedade liberal, desde que os outros dois valores também sejam garantidos de forma extensiva a todos os cidadãos.[35]   

Por sua vez, ao se referir ao “resgate da dimensão moral“ do liberalismo, o Professor Spragens ressalta que ela se perdeu nas teorias contemporâneas muito em face de seus exageros, não se podendo privilegiar uma doutrina da perfeição humana. O Estado liberal deve manter a neutralidade ante as várias doutrinas morais e religiosas, mas não uma neutralidade absoluta, pois há que se diferenciar os bons cidadãos dos sociopatas. Algumas virtudes cívicas liberais devem ser reconhecidas e estimuladas, como o autocontrole, a aceitação da legalidade, o respeito pelos direitos dos outros, a disposição de se engajar em projetos comuns (defendidas por Mill), sendo essenciais para viabilidade das democracias liberais e presentes em bons governos. O desenvolvimento moral seria derivado de uma cidadania democrática, onde existe um “consenso sobreposto” acerca dos pontos centrais da vida moral.[36] A busca desse “consenso” não pode ser ignorada ou pressuposta (a não ser em comunidades homogêneas), sendo essencial para uma organização social integrada com o seu governo.[37]  Isso não significa adotar uma doutrina sectária do bem e nem interferir nos planos pessoais de cada um, mas possibilitar que estes se desenvolvam em um ambiente pluralista.[38]

  O resgate da complexidade normativa e da dimensão moral do liberalismo, dentro da linha do comunitarismo liberal, traria implicações para as políticas públicas e para a organização social: reconhecendo-se sempre a importância do Governo e do Mercado na estrutura social, deve-se, todavia, prestar a devida atenção para as condições dos outros elementos institucionais da Sociedade Civil, que abrangem comunidades locais, famílias, vizinhanças, igrejas, instituições educacionais e associações civis. Nesse diapasão, essenciais as políticas públicas de apoio à saúde dessas instituições civis, promovendo a amizade cívica e um senso de objetivo comum; limitando o poder excludente e enfraquecedor de governos ou mercados fortes. Assim, haverá um ambiente produtivo para o desenvolvimento humano e para a felicidade. [39]

Essa visão comunitarista liberal, reconhecendo a importância dos direitos individuais na proteção dos cidadãos contra a opressão majoritária, todavia, entende que quando o confronto jurídico (entre direitos individuais) passa a ser a forma paradigmática de interação social, a sociedade se torna amarga e dividida, e que, portanto, devem-se construir formas políticas de mediação, reconciliação e compromisso, que buscam a síntese criativa de interesses diversos e preocupações morais divergentes. Em face de tal postura, os comunitaristas tendem a apoiar políticas públicas e outros projetos que ofereçam a possibilidade de criar laços entre as usuais fissuras de classe, raça, etnia e religião. [40] Menciona o professor o “Programa de Serviço Nacional”, dizendo ainda que os comunitaristas procurarão promover instituições, como escolas públicas, que coloquem pessoas de diferentes origens, classes e grupos atuando em projetos comuns. A retórica comunitarista abrangeria termos como “identidade comum” e “inclusividade”.[41]

Nesse contexto, a manutenção e o encorajamento de uma esfera pública deliberativa é vital na formulação de políticas públicas. [42]A cidadania passa a ser um conceito mais robusto, as pessoas deixam de ser recebedores passivos de proteção e benefícios do governo e passam a ter papel ativo nos assuntos de interesse comum, dividindo responsabilidades pelo bem de todos. Concordamos com o autor quando este ressalta que, por sua vez, a criação de uma “cidadania responsável” não deve ser imposta a princípio por se tratar mais de uma questão cultural do que legal. O desenvolvimento da cidadania, portanto, deve ser em regra apenas estimulado por meio de educação cívica e de rituais da esfera pública acessíveis a todos. [43]

Conclui o Professor Spragens que o “comunitarismo liberal” é plenamente possível e desejável, pois, ao tempo em que abraça as bandeiras tipicamente liberais, como o compromisso com o governo representativo, a legitimação pelo consenso, o respeito ao Direito, os direitos e as liberdades civis, todavia também defende uma concepção da “sociedade boa” fundada em laços comunitários, os quais já eram valorizados nos textos dos liberais originais. Nesse sentido, o comunitarismo seria reformador e não substitutivo do liberalismo, agindo contra os efeitos nocivos da “utopia do mercado“ (do libertarianismo) e da “utopia do Estado de Bem-estar” (do igualitarianismo). [44]

 


3. Alguns tipos de comunidades

Discorrendo acerca dos diversos tipos de “comunidades” que existem dentro de cada sociedade, Robert Fowler enumera três grandes grupos, ressaltando não serem eles exaustivos: a) as comunidades de idéias, que abrangem os modelos “participativo” e “republicano”; b) as comunidades de crise, como por exemplo o movimento de proporções globais (ou quase) nascido da degradação ambiental no planeta; c) comunidades de memória, que são formadas em torno de ideais religiosos ou de tradições comunitárias.[45]

Quando se refere a “comunidades de idéias”, Fowler fala primeiramente da concepção de “comunidade participativa”, isto é, aquela onde as pessoas decidem juntas, face a face, em um debate público, respeitando-se mutuamente em um contexto tão igualitário quanto possível. O debate público movimenta um processo interativo de autolegislação e de criação da comunidade política. A “comunidade participativa” estimula a autoconfiança das pessoas e o espírito público por meio de uma unidade e de uma satisfação comunais crescentes. Essa concepção parte do pressuposto de que as pessoas, em um meio participativo, podem desenvolver as suas capacidades de pensar, de se informar, de debater e de aprender com a discussão. Elas querem ser mais do que indivíduos egoístas e se unir a uma comunidade pública, o que lhes falta é uma oportunidade.[46]

No conceito de “comunidade de idéias”, Fowler fala ainda da “comunidade republicana”, ressaltando a influência de J.G.A. Pocock no desenvolvimento desse conceito, que pressupõe apoio às virtudes cívicas entre cidadãos com inúmeras diferenças em suas posições políticas e sócio-econômicas, o que possibilita a expansão da participação comunitária a níveis nacionais, indo muito além do universo pequeno das “comunidades participativas”.[47] Assim, podemos concluir que, enquanto estas se referem geralmente às reuniões, associações e/ou agrupamentos em esferas locais, a “comunidade republicana” abrangeria esferas de discussão mais abrangentes, dentro de um Estado federado ou no âmbito de toda uma Federação.  

Por sua vez, as “comunidades de crise pública” referem-se àqueles agrupamentos ou redes associativas que são moldados mais pelos problemas dos tempos atuais do que necessariamente por idéias intelectuais. A atenção da sociedade a tais comunidades não significa necessariamente a aprovação delas. Nesse caso, Fowler refere-se às “comunidades tribais”, baseadas em etnia, nacionalidade, religião, raça e outros conceitos “tribais”, os quais são utilizados muitas vezes em verdadeiras “batalhas” por poder e por identidade própria. Nenhuma forma de comunidade é tão fechada, tão apegada às suas verdades e tão rígida com os dissidentes ou não participantes da tribo, quanto aquelas baseadas em etnia ou raça, por exemplo. Deve-se, portanto, ficar atento para que tais comunidades não sejam um espaço de proliferação da tirania.[48]

No conceito de “comunidades de crise pública” estaria abrangida também a comunidade ambientalista, cuja abrangência aumenta progressivamente no sentido de se tornar um movimento global. Muitas vezes, todavia, esse movimento é obscurecido pela prática de se evitarem discussões sobre meio-ambiente em certas “ilhas acadêmicas”, ou em certas teorias políticas e filosóficas. De qualquer forma, os assuntos da pauta ambientalista já fazem parte de nossa rotina, e o movimento está comprometido em tornar o ambientalismo a metáfora dominante da vida pública. As formas de organização sugeridas são muitas: “governo mundial”, “federações”, comunidades participativas e cooperativas, e até mesmo um sistema de Estados-nação profundamente revisado.[49]

Segundo Fowler, as “comunidades de memória” seriam aquelas que derivam de sistemas de crença estabelecidos ao longo do tempo e que unem presente e passado, sendo sobretudo criadas com base na tradição e na religião. Seriam exemplos de tais tipos a comunidade político-intelectual (influenciada pela cultura ocidental e por valores gregos aristotélicos e platônicos), a comunidade familiar e a religiosa. Dessas, a que estaria em maior perigo seria a segunda, que é justamente a comunidade de memória essencial. O professor, juntamente com Allan Bloom, associa a desintegração familiar com a desvinculação dos valores comunitários e da vida pública. No caso das comunidades religiosas, reconhece que algumas também podem ser consideradas como “comunidades de idéias”, por frequentemente demonstrarem flexibilidade organizacional e doutrinária.[50]

Fowler questiona como a liberdade e a diversidade podem conviver com a comunidade, sem que haja uma certa tirania de alguns grupos sobre outros, ou sobre as pessoas. Ressalta a noção de Walzer de que a comunidade deve ser baseada no pluralismo, no autocontrole, e contrária a qualquer leve tirania. Defende que as comunidades devem sempre possuir um “estado de alerta existencial” (existential watchfulness), como característica e como limite.  Esse “estado de alerta” leva em conta as alegrias potenciais de uma comunidade, sendo também dirigido para impedir as possibilidades de que a comunidade termine em opressão. O mais importante é que a cooperação social se desenvolva, sem que para isso haja o desperdício da criatividade e o abandono das liberdades de dos direitos individuais. Trata-se de uma busca pela comunidade acompanhada de vigilância, sem, todavia, a pretensão de se alcançar um espirito público total ou abrangente, como no casos da antiga cidadania grega. Essa “busca comunitária”, por sua vez, não teria prazo para acabar, sendo um processo de construção interminável, e nunca poderia importar na nulificação das pessoas. [51]

 


4. A revisão da crítica comunitarista ao liberalismo

Michael Walzer defende que duas críticas comunitaristas ao liberalismo devem ser revistas: a) a de que a teoria política liberal representa perfeitamente a prática social liberal; b) a de que a teoria liberal não representa, em seu fundamento, a vida real. Com relação à primeira, ressalta que em certas teorias liberais a história de luta contra a opressão de tradições, comunidades e autoridades anteriores é esquecida, pois mesmo sendo celebrada, essa história é substituída por outra, a de que a sociedade se origina de uma criação ex nihilo (isto é, do nada), a qual se dá no estado de natureza ou na “posição original”. Nesse ponto, afirma Walzer que se uma sociedade é vista somente como um conjunto de práticas de fragmentação, onde se vêem apenas conflitos individuais e reivindicações de direitos individuais, poder-se-ia concluir que a política liberal é a melhor forma de tratar os problemas gerados pela decomposição social. [52]

Mas isso não seria totalmente verdadeiro, pois a segunda crítica comunitarista ao liberalismo também teria algum fundamento: a teoria liberal não representa, em seu fundamento, a vida real. A referência a John Rawls fica mais clara quando fala da figura mítica da “posição original”[53]: cada indivíduo imagina a si mesmo absolutamente livre, desimpedido, relegado à sua própria sorte, e entra na sociedade, aceitando suas obrigações, somente para poder minimizar os seus “riscos” e maximizar os seus ganhos. Seria da própria natureza da sociedade humana o fato de as pessoas nascerem já fazendo parte de determinadas comunidades, que por sua vez possuem determinados valores, padrões de relacionamento, redes de poder. Esses laços comunitários forjarão a “identidade” da pessoa, e é a partir dessa “base” que a pessoa poderá se distinguir de suas comunidades e dos valores que foram herdados.

 Em outras palavras, a ideologia liberal teria o efeito de limitar nosso entendimento sobre nossos hábitos de afeto e não nos forneceria meios para elaborarmos as convicções que nos unem enquanto pessoas e que unem as pessoas em comunidades. Ela tiraria de nós o senso de personalidade e de vinculação, e explicaria a nossa incapacidade para formarmos redes solidárias coesas, movimentos e partidos estáveis, os quais poderiam fazer as convicções profundas da sociedade visíveis e efetivas no mundo; explicaria também o fato de sermos (enquanto cidadãos) radicalmente dependentes do “Estado Central”. Conclui o autor que nem a primeira crítica e nem a segunda estão totalmente corretas ou erradas, pois realmente existe um separatismo liberal, ao tempo em existem também inúmeros laços comunitários, mas não tão fortes e estáveis. [54]

Walzer analisa o que chama de “as quatro mobilidades” da sociedade norte-americana: a) a geográfica, caracterizada pela mudança constante de residência para outras cidades e Estados, entre os cidadãos; b) a social, traduzida pela mudança da “posição social” da pessoa, que pode ser medida em função de diferentes critérios, como o nível de renda, de educação, o tipo de trabalho ou outra posição que tenha “valorização” social; c) a marital, relacionada com divórcios, separações e novos casamentos, além de mudanças geográficas e sociais; essa mobilidade é contrabalanceada pela maior probabilidade de homens e mulheres se unirem mesmo com diferenças de classe, etnia e religião; d) a política, que se vê na perda da lealdade aos partidos, aos movimentos de liderança e clubes afins, a qual por sua vez se daria à medida que o local de moradia, a posição social e a família passam a ocupar lugares menos centrais na formação da identidade pessoal. Os “cidadãos liberais” seriam votantes independentes, que nem sempre votam como seus pais votavam ou como votaram da vez anterior. O aumento desse número poderia gerar instabilidade institucional, especialmente nos níveis locais de governo, onde, em tempos passados, a organização política teria servido para reforçar os laços comunitários. [55]

As “quatro mobilidades”, por sua vez, seriam justificadas pelo próprio Liberalismo, justamente por representarem a atuação da liberdade e a busca pela felicidade pessoal, mas nem sempre tais mobilidades estão relacionadas com momentos felizes, sendo por vezes traumáticas. O resultado é que muitos indivíduos são separados de seus grupos, podendo tornar-se menos afeitos a compromissos e à moral. Isso, todavia, não parece indicar que a sociedade tenha perdido sua capacidade para o diálogo, mas que, onde houver relações entre as pessoas ou entre elas e suas comunidades, poderá haver discordâncias e até separações. A linguagem dos direitos individuais – associação voluntária, pluralismo, tolerância, separação, privacidade, liberdade de expressão, carreiras abertas a talentos – é simplesmente inevitável. O liberalismo seria uma doutrina “auto subversiva” (self-subverting), necessitando por isso de uma correção periódica de tempos em tempos.  Nessa linha, seria necessário ensinar às “pessoas livres” a reconhecerem-se como seres sociais, por meio de um reforço seletivo dos valores comunitários que existem no íntimo de cada um. [56]

Walzer fala então da necessidade de o Estado patrocinar ou apoiar atividades associativas[57], tendo em mente que a sociedade liberal, em sua melhor forma, seria algo parecido com o a União social de união sociais, de John Ralws.[58] Sustenta que o argumento liberal de que o Estado deve permanecer neutro com relação às concepções da vida boa é induzido da fragmentação social: os indivíduos devem poder viver como acham melhor, desde que não prejudiquem os projetos de vida de outras pessoas. O problema se encontra no fato de que, quanto mais dissociados ou isolados os indivíduos se encontrarem, mais forte o Estado tenderá a se tornar, uma vez que será a única ou a mais importante União social. Assim, é necessário, para a própria sobrevivência do Estado liberal, que este apoie ou patrocine alguns grupos ou comunidades, nomeadamente aqueles que apresentem formas e propósitos que sejam compatíveis com os valores compartilhados de uma sociedade liberal.[59]

Como exemplos de tais políticas públicas, são citadas: a) o apoio a formação de sindicatos de trabalhadores a partir de 1930, requerendo negociação coletiva com a empresa sempre que a maioria dos trabalhadores apoiasse o Sindicato de sua respectiva área de atuação, assim como permitindo a abertura de lojas dos sindicatos; b) a isenção de impostos ou a utilização de impostos a pagar como formas de viabilizar que diferentes grupos religiosos estruturem sistemas extensivos saúde, com clínicas e hospitais, de forma a que se criem sociedades de bem-estar dentro do Estado de bem-estar. Não que elas sejam a solução para as deficiências deste, mesmo porque ele continua a ser essencial para possibilitar uma cobertura adequada e equitativa, mas serão uma forma de fornecer serviços públicos e promover a solidariedade comunitária; c) aprovação de leis conferindo proteção – por tempo determinado - a algumas comunidades locais de trabalho e residência, em face das pressões do mercado para que elas se mudem de suas vizinhanças e procurem trabalho em outros lugares. Defende ainda o professor o fortalecimento de governos locais, de forma que pudesse ser encorajado o desenvolvimento das virtudes cívicas em uma diversidade de estruturas sociais/comunitárias.[60]

Assim, percebemos que, para Walzer, os ideais liberais também são compatíveis com os comunitaristas, devendo apenas o Estado promover iniciativas que estimulem a formação de associações, mormente as que desenvolvam esferas públicas de discussão, e sejam compatíveis com uma sociedade pluralista. [61]

 


5. A compatibilização entre a obra de Rawls e o comunitarismo liberal

Como visto anteriormente, comunitaristas como Thomas Spragens e Michael Walzer defendem que o governo deve estimular o desenvolvimento de comunidades e associações que contribuam para a construção de um consenso sobre os valores morais superiores da sociedade.

Essa idéia remete diretamente à idéia de John Rawls sobre a necessidade, nas democracias liberais constitucionais contemporâneas, de um “consenso sobreposto por justificação” que assegure padrões mínimos de justiça para a estrutura básica da sociedade e para a distribuição dos bens sociais. Segundo John Rawls, nas sociedades contemporâneas existem inúmeras doutrinas morais, gerais e abrangentes, que estariam em constante contato e atrito. Uma doutrina moral é geral quando se aplica a uma ampla variedade de temas de apreciação (ou seja, todos os temas possíveis) e é abrangente quando compreende concepções sobre aquilo que constitui o valor da vida humana, ideais da virtude pessoal e do caráter e de tudo o que pertence a essa ordem, que nos deve informar sobre a nossa vida em conjunto. [62]

Rawls reconhece o “fato do pluralismo”, isto é, o fato de vivermos em uma sociedade onde existem numerosas doutrinas religiosas e filosóficas que tendem a ser gerais e abrangentes. Tendo em vista que muitas vezes os conflitos entre as diferentes doutrinas morais gerais e abrangentes (sobre as concepções do bem) podem tornar-se insolúveis, o pensador fala de uma concepção política de justiça como aquela que, além de funcionar como um “quadro” que guia a deliberação e a reflexão e nos ajuda e alcançar um acordo político que incide pelo menos sobre as exigências constitucionais essenciais, também contribui para esclarecer nossa opinião e tornar mais coerentes entre si nossas convicções ponderadas, reduzindo a distância que separa as nossas diferentes convicções morais. Em outras palavras, como não se pode estabelecer um único conjunto de concepções do bem como sendo o conjunto de toda a sociedade, esta deve ser organizada de forma a possibilitar um consenso mínimo acerca dos valores comuns e basilares entre as diversas concepções, eliminando-se as divergências de fundamentação e os impasses dogmatistas. Daí se falar em um consenso por justaposição. [63]

Essa concepção política de justiça deve proteger os direitos e liberdades básicos e lhes conferir uma prioridade particular. Deve também compreender medidas que visem a garantir a cada membro da sociedade os meios adequados e polivalentes que permitam o uso eficaz de suas liberdades e oportunidades básicas. Devem ser eliminadas da pauta política os problemas mais discutíveis, a incerteza difusa e os conflitos sociais mais sérios, que não deixarão de minar os alicerces da cooperação social.[64]

Um regime constitucional, segundo Rawls, estaria calcado em algumas virtudes superiores: a tolerância, o fato de estar pronto a se juntar aos demais no meio do caminho, a moderação e o senso de equidade. Quando esse rol mínimo de virtudes se espalham na sociedade e integram a concepção política de justiça, constituem um bem público essencial, uma parte do “capital político” da sociedade.[65] Como a concepção política de justiça defende postulados morais mínimos para que haja uma cooperação social equitativa baseada no respeito mútuo dos cidadãos como pessoas livres e iguais, quaisquer valores que entrem em conflito com tal concepção política e/ou com as suas virtudes subjacentes podem ser normalmente suplantados, pois inviabilizariam a própria sustentabilidade da sociedade democrática liberal constitucional. [66]   

Segundo a teoria política de Rawls, deve haver dois “princípios de justiça” a informar a estrutura básica de uma sociedade democrática e o funcionamento de suas instituições livres: 1º) todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido. 2º) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer a dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade. [67] Rawls, todavia, reconhece que “o primeiro princípio, que trata dos direitos e liberdades básicos e iguais, pode ser facilmente precedido de um princípio lexicamente anterior, que prescreva a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, ao menos à medida que a satisfação dessas necessidades seja necessária para que os cidadãos entendam e tenham condições de exercer de forma fecunda esses direitos e liberdades” (grifamos). [68]

   A teoria da justiça possui, dentro dela, inúmeros fundamentos morais e éticos, pois está incorporando dentro de si, as seguintes normas:

1. normas referentes às instituições da sociedade (visão macro): 

a) o princípio da democracia, que diz que o governo do Estado deve ter a sua origem na própria sociedade; 

b) o princípio da autonomia institucional, já que a atuação “livre” das instituições não significa atuação isolada, mas livre de impedimentos ou interferências que sejam prejudiciais às finalidades institucionais;

c) o princípio do pluralismo, uma vez que a democracia viável em um Estado de Direito é a que consegue possibilitar a interação não ruinosa, mas cooperativa, entre as Instituições lícitas da sociedade, chamem-se entidades, corporações, associações, comunidades; nesse contexto, necessário que haja uma esfera pública de discussão aberta aos vários cidadãos e instituições dentro da sociedade, que é multidimensional;

 

2. normas referentes à dignidade de cada pessoa humana, que devem ser obedecidas pela estrutura básica da sociedade:

d) os direitos (ou liberdades) civis: pensamento, expressão, crença religiosa, associação, dentre outros (v. a intimidade) que visam a garantir a atuação da pessoa na sociedade, ainda que fora do Estado, devendo ser desenvolvidos sem impedimentos por parte das instituições sociais e dos outros indivíduos, a não ser que importem em um prejuízo (material ou moral) a outrem;

e) o direito da igualdade: cada pessoa é igual à outra em importância. Isso se denota no princípio distributivo de direitos e liberdades, segundo o qual qualquer direito ou liberdade que seja considerado básico, será garantido a cada um, desde que compatível com os demais;

f)  as liberdades (ou direitos) da vida política, abrangem o direito de formação de partidos, e de votar e ser votado para cargos de exercício dos poderes políticos: legislativo, executivo e em alguns casos, o judiciário, ainda que provisoriamente (como nos casos de júri popular para os crimes mais graves);

g) o princípio da primazia das liberdades políticas, já que somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido;

h) um princípio que prescreve a satisfação das necessidades dos cidadãos que sejam básicas para que eles entendam e tenham condições de exercer de forma fecunda esses direitos e liberdades;

i)  o princípio da autonomia e da dignidade da pessoa humana (quando fala acerca das “liberdades especificadas pela liberdade e integridade da pessoa”), que vai além dos direitos de liberdade e de igualdade, estando relacionada com o mínimo existencial; 

j)  o princípio do Estado de Direito, quando fala dos demais direitos e liberdades abarcados pelo império da lei;

k) o princípio do mérito no acesso aos cargos da vida pública/política;

l)  dentre os direitos reconhecidos pela lei, o direito de propriedade e a liberdade contratual.

 

A visão de “sociedade bem ordenada” de Rawls é a de “um sistema equitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais, vistas como membros plenamente cooperativos da sociedade ao longo de sua vida”. [69

“a noção apropriada de termos equitativos de cooperação depende da natureza da atividade cooperativa em si: de seu contexto social básico, dos objetivos e aspirações dos participantes, de como vêem a sim mesmos e aos outros como pessoas e assim por diante. Os termos que são equitativos para parcerias e associações, ou para pequenos grupos e equipes, não são adequados para a cooperação social. Pois, neste último caso, partimos da percepção da estrutura básica da sociedade como um todo como uma forma de cooperação. Essa estrutura compreende as principais instituições sociais – a constituição, o regime econômico, a ordem legal e sua especificação de propriedade e congêneres, e como essas instituições se combinam para formar um sistema. O que é característico da estrutura básica é que ela oferece o quadro para um sistema autossuficiente de cooperação para todos os objetivos essenciais da vida humana, objetivos esses realizados pelo grande número de associações e grupos no interior desse quadro”.[70]

 

Deixaremos, todavia, para analisar a compatibilidade entre a teoria de Rawls e o pensamento comunitarista após analisarmos algumas idéias do comunitarismo autônomo de Amitai Etzioni.


6. O comunitarismo autônomo

Outros pensadores preferem ver o Comunitarismo como uma Teoria substitutiva do Liberalismo, com plataforma política própria. Incluindo-se nesse grupo, Amitai Etzioni ressalta que alguns liberais se preocupam em proteger os indivíduos do “Estado ameaçador” e acabam por ignorar que existem certos pré-requisitos sociais para a manutenção da integridade psicológica, da civilidade e da habilidade de razão de cada indivíduo.  Esses pré-requisitos estão relacionados com o conceito de comunidade formada por redes sociais com valores morais.  Quando a comunidade morre, a psiquê individual é ameaçada e abre-se espaço para o aumento do poder estatal.  Quando, por outro lado, ela é cultivada, os cidadãos que os liberais pressupõem existir florescem. [71]

Para o Professor, indivíduo e comunidade estão intimamente relacionados em suas constituições, que abrangem, ao mesmo tempo, relações de apoio e de tensão.  Qualquer esforço para priorizar um em detrimento do outro mina os benefícios de um equilíbrio entre os dois.[72]

Nesse contexto, “comunidade” seria um rol compartilhado de laços sociais, ou uma “rede social”, indo além de relações interpessoais. Enquanto os laços que unem uma pessoa a outra muitas vezes são neutros moralmente, por sua vez, em uma perspectiva mais abrangente, estão vinculados a valores sociais e morais. Por isso é que o objetivo da comunidade – estabelecer o alcance e o caráter desses laços sociais e morais – deve ser analisado levando-se em conta as tensões entre particularismo e universalismo.[73]

Os valores comunitários não podem ser impostos por grupos externos ou por elites e/ou minorias, devendo ser gerados por diálogo aberto a todos os membros da comunidade. Nesse contexto, os valores herdados são o ponto de partida para o debate, e devem ser ajustados às mudanças circunstanciais e às diferentes composições comunitárias. [74]

Aparta-se o Professor, todavia, da visão de que os valores de uma dada comunidade são o critério principal para se estabelecer o que é moralmente apropriado, pois tais valores só serão legítimos caso não desrespeitem os valores ditos superiores ou centrais da Sociedade (ou poderíamos dizer, Estado).[75]

Quaisquer valores que forem compartilhados pelos diversos tipos de comunidades deverão respeitar, além desses valores centrais ou universais, também a “natureza humana”. Etzioni sustenta que comunidades não podem invadir muito a esfera dos indivíduos pois estes (mesmo os mais condicionados socialmente) sempre terão atributos universais que não devem ser extintos por um Estado ou por uma comunidade superprotetores. Em fato, o contrário deve acontecer: é a sociedade que deve se ajustar à natureza humana e às suas manifestações e efeitos.[76]

Dessa forma, a pessoa tem também importância em relação à comunidade, e por isso a teoria comunitarista em discussão não vê a comunidade como sendo o conceito básico da sociedade, sobrepondo-se ao indivíduo.  Esta visão seria tão reducionista quanto a visão de alguns liberais de que o indivíduo é a peça principal da sociedade, ocupando esta um papel secundário e posterior uma vez que é apenas o resultado da união de indivíduos. [77]

O Professor propõe uma teoria comunitarista em que se alcance o meio termo, uma vez que tanto os indivíduos estão inseridos na sociedade (e não isolados ou livres dela) quanto as comunidades são formadas por membros com diferentes individualidades. A pessoa sendo membro de uma comunidade é também uma “parte integral” dela.  Em outras palavras, indivíduos e comunidade são interdependentes.  Cada pessoa, em sua “personalidade”, ou “identidade”, é ao mesmo tempo influenciada pela sua comunidade e dirigida para ela, tendo além disso uma parcela de identidade própria. Uma sociedade é constituída de forças “centrífugas” e “centrípetas” pois ao mesmo tempo que os indivíduos têm o potencial de expandir seus projetos pessoais e sua parcela de identidade, transcendendo suas comunidades, estas por sua vez tendem a manter suas influências e a dirigir os indivíduos para os valores e/ou necessidades comuns.[78]

Essa tensão entre indivíduo e comunidade, dependendo da forma como é encaminhada, pode ser onerosa demais para um ou outro lado, ou para ambos (o que é pior ainda). A intensidade das forças “centrífugas” e “centrípetas” tem variado ao longo da história, como nos casos de sociedades totalitárias inclinadas totalmente para o coletivo e sociedades voltadas excessivamente para o indivíduo, podendo a sociedade americana atual ser enquadrada neste último tipo. [79]

Sob outro ângulo, todavia, essa tensão entre indivíduo e comunidade pode ser encaminhada para que se torne fonte de mudança para a sociedade e/ou comunidade, quando se dá atenção à expressão do indivíduo em sua parte criativa e não comum. Esse processo tem também o potencial de gerar uma maior estabilidade psicológica nas pessoas, além de desenvolver nelas virtudes sociais e pessoais, quando se dá atenção àquela parte de cada um que é compartilhada com a comunidade e/ou sociedade.[80]

Etzioni explica o seu caminho do meio fazendo uma analogia dele com a imagem do arco feito de tijolos.  Sem o arco, os tijolos são um monte de entulho.  Sem os tijolos o arco não existe.  Deve haver uma relação tal entre os tijolos de forma a construir uma tensão ideal para manter os laços e o arco. Se a tensão é excessiva ou deficiente, o arco desmorona.[81]  A analogia com a busca aristotélica do meio termo no alcance da “excelência” é clara.[82] Aliás, Aristóteles, ao definir a justiça como uma espécie de proporcionalidade, dizia que esta era derivada de uma ponderação entre o excesso e a falta. Essa ponderação deveria sempre ser dirigida para o bem comum, daí a justiça ser definida como uma forma de excelência moral.[83]

Quando fala de comunidades e indivíduos, Etzioni defende que nem um nem outro tem primazia ontológica ou normativa.  Ambos funcionam e vivem melhor quando as duas forças são balanceadas.  Aqueles que percebem isso – sejam críticos sociais, intelectuais, membros da mídia, líderes cívicos, entre outros – devem conclamar os concidadãos, governantes e técnicos de políticas públicas a adotar medidas em busca desse equilíbrio. [84]

O conceito de “equilíbrio”, no caso, seria o balanceamento entre direitos individuais e responsabilidades sociais (também defendido pelos comunitaristas liberais), como caminho para assegurar as condições sociais para o exercício dos direitos. Esse “balanceamento” deverá ocorrer sempre que para a realização de um direito for necessária uma responsabilidade; em outras palavras, sempre que houver uma complementaridade entre os dois. Por sua vez, o balanceamento poderá variar, como nos casos de comunidades ou grupos de pessoas menos favorecidas, que então podem vir a ter menos responsabilidades (e não menos direitos), ou nos casos em que as necessidades coletivas são tão importantes que impõem limitações aos direitos individuais. [85]

Os psicólogos e sociólogos têm dito que indivíduos atomizados (sem laços sociais), vivendo em um mundo liberal de direitos, não têm capacidade de agir livremente.  Percebe-se, portanto, que os direitos se encontram em perigo sempre que os laços sociais são rompidos. Aliás, Toqueville chegou a reconhecer que a melhor proteção contra o totalitarismo é uma sociedade pluralista, forjada por comunidades e/ou associações voluntárias, ao invés de uma sociedade de detentores de direitos altamente individualizados.[86]

Etzioni responde às críticas, dirigidas ao comunitarismo, de que este possibilitaria a ditadura da maioria ou de elites locais; além disso, de que este atribuiria o fracasso em resolver problemas sociais ao discurso dos direitos constitucionais.  Elas seriam improcedentes pois a sociedade americana tem defesas constitucionais e morais contra a ditadura da maioria, as quais devem ser respeitadas pelos comunitaristas.  Essas defesas trabalham por diferenciação:  algumas áreas não estão sujeitas à maioria; já outras estão, devendo assim permanecer.  Cita o exemplo da Carta de Direitos (Bill of Rights) que complementou a Constituição norte-americana.  Em questões como por exemplo as referentes à liberdade de expressão, ao direito de voto e ao direito a um julgamento por um júri (previstas na primeira emenda à constituição), não há sujeição à vontade da maioria.  Já em outros assuntos, como por exemplo se todos devem pagar impostos, dirigir somente com permissão e não maltratar as crianças, há sujeição à vontade da maioria, expressa nas leis.  Nesses casos, não há fundamento nem legal nem moral para que o indivíduo não cumpra a lei.  Por fim esclarece que a diferenciação entre as questões de um ou de outro tipo é apoiada por várias convicções, desde as cortes de justiça até as comunidades em consenso.[87]

Sobre o conceito de comunidades, entende que são redes de relações sociais que incluem ideias/significações e valores compartilhados, podendo ou não estarem relacionadas com algum espaço geográfico. Como exemplos de comunidades, cita famílias, vilas (ainda que potencialmente) e vizinhanças, além de associações nacionais, étnicas ou religiosas.  Faz uma crítica à Michael Sandel por este elogiar qualquer tipo de comunidade, lembrando que as comunidades não são necessariamente lugares de “virtude” (ou do que seriam virtudes cívicas), muitas ao longo da história têm sido homogêneas, monolíticas, autoritárias e opressivas; outras se trancam em valores que a maioria julga serem odiosos, como no caso dos racistas da Ku-Klux-Klan.[88]

Explica o professor que as comunidades contemporâneas tendem a formar uma teia pluralista de comunidades.  Nela, as pessoas podem pertencer a várias comunidades (trabalho, família, bairro, igreja, etc.), e podem usar essa multiparticipação para se proteger de uma pressão excessiva de uma comunidade.  Em alguns casos, inclusive, pode haver uma sobreposição de comunidades com uma se situando dentro de outra, de âmbito maior (vizinhanças, subúrbios, cidades e regiões).  Há sempre também a possibilidade de interseção com comunidades étnicas, raciais ou profissionais.[89]

Quanto ao conceito de comunidade, há uma divergência com relação à sua maior ou menor abrangência. Assim, em sentido amplo, as comunidades podem abranger todo o povo; em sentido estrito, ou em essência, comunidades são principalmente as pequenas, onde as pessoas se conhecem de alguma forma, e acabam possuindo laços mais fortes, permeados por vozes morais.  Deve-se tomar cuidado, todavia, para que essa ligação mais próxima com nossos vizinhos e amigos não nos leve a reduzir os objetivos morais dos compromissos sociais, como no caso da ajuda aos que precisam.[90]

Em fato, a maioria das pessoas pode se comprometer com sua comunidade imediata e com outras mais abrangentes, na construção de um movimento vertical de compromissos morais em direção a comunidades mais abrangentes.  Essa seria a marca registrada de uma comunidade que progride em condições sociais e em eficiência, tendendo a compartilhar valores de aceitação ampla como paz e justiça social.  Nesse sentido, questiona o autor como as comunidades desenvolvem políticas públicas e valores em comum.  Lembra que o espaço de ação da comunidade é muito mais abrangente do que o do governo.  Este, portanto, seria ressaltado por construir a história pública, porque oficial, da sociedade.[91]

Justamente nesse ponto, questiona o debate comum sobre o mérito relativo de se regular coisas pelo Estado ou pelo mercado (v. o laissez-faire).  Todos os sistemas sociais se misturam.  As perguntas corretas seriam, portanto, quanto de mercado e quanto de Estado são desejáveis, e qual a melhor forma de combinar os dois.  A polarização do debate, contudo, entre Estado e mercado, ignora o grande número de projetos compartilhados pelos indivíduos na esfera comunitária.  A retração do Estado de bem-estar não significa necessariamente mais espaço para o mercado, mas pode abrir espaço para instituições comunitárias atenderem as necessidades sociais, culturais e econômicas das pessoas carentes (vide os novos imigrantes).[92]

A esfera comunitária tem vários meios de organização e expressão, e o governo, ou corpo político, é apenas um deles.  Associações voluntárias, redes informais de comunicação, imprensa local, reuniões escolares e religiosas são alguns exemplos que nos remetem a uma imagem bem diferente da imagem da pólis grega, onde os cidadãos gastavam dias deliberando sobre os destinos da cidade porque se tratava de um modelo baseado na atribuição dos trabalhos aos escravos, servos e mulheres. A imagem da ação comunitária somente em lentes governamentais é insuficiente também pelo fato de ser derivada da concepção de indivíduos racionais, que usam os dados disponíveis de forma lógica em uma decisão ponderada e razoável.  Isso se explica pois os membros de uma comunidade desenvolvem seus valores e concepções sobre natureza, mundo e políticas públicas por meios parcialmente deliberativos.  Isso quer dizer que lideranças locais, líderes de opinião, expressões de afeto e mobilização de poder também contribuem consideravelmente nas decisões comunitárias, não necessariamente em canais cognitivos.[93]

A partir disso questiona como assegurar que tais processos, por serem parcialmente deliberativos, tornem-se, todavia, democráticos, substancialmente morais e empiricamente sólidos. Uma primeira condição seria que as decisões das comunidades fossem baseadas em questionamentos de base empírica, como por exemplo, se a pena de morte tem reduzido as taxas de criminalidade. Uma segunda condição seria que os processos deliberativos fossem moralmente apropriados. Esta condição seria alcançada quando estivesse de acordo com corretos processos de formação de consenso (pelo “discurso pacífico”, fundado na razoabilidade e na não- discriminação e não-opressão), e quando não violasse um conjunto básico de valores supremos.[94]

Põe-se a questão sobre qual deve ser a fonte dos valores supremos que devem funcionar como limites às decisões comunitárias, bem como o que dá a eles essa posição superior. Sobre as fontes, faz algumas suposições: a) religião: seriam os preceitos comuns à Bíblia, à Torá, ao Alcorão e a outros textos sagrados; b) o Direito natural, constituído por padrões gerais de conduta de acordo com o que é próprio, honesto, reto, direito, para todas as comunidades; c) valores respeitados universalmente, como “não matarás”, sendo que nesse caso o fundamento moral é precário, pois muitos não são universais e há países, como o Irã, em que queimar livros e matar os seus autores é valorizado; d) a deontologia, composta por deveres morais vinculantes e incontestáveis (ex. verdade é superior à mentira), presentes na cultura da sociedade, no estilo proposto por John Rawls, e preferido por Etzioni; e) o interesse público/social predominante: presunção de legitimidade dos valores comunitários, a menos que a comunidade nacional demonstre que há um interesse vinculante/superior em proibir/limitar determinada prática.[95]

Outro limite para a atuação do Estado e da Comunidade seriam os atributos da natureza humana, vista sobre uma perspectiva ampla. Para Etzioni, a natureza humana é universal: o homem é o mesmo sob as camadas culturais supostas por ele. Pessoas em diferentes épocas, sociedades e condições, demonstram as mesmas inclinações básicas. Não se pode achar na natureza humana qualquer justificativa para tratar um grupo de pessoas pior do que outro grupo. Ela nos diria que as pessoas têm necessidade profunda de laços sociais e comunitários, e de guias morais e normativos. Elas são incapazes de preencher as condições que os liberais e libertarianistas presumem como verdadeiras, como capacidade de fazer escolhas racionais, ou separar muitas preferências daquelas que são culturais. Os indivíduos, para serem “autônomos“, devem ter condições de desenvolver a capacidade de se distanciar de seu contexto social e cultural e fazer julgamentos do que foi incutido neles, participando da mudança de valores comuns e dos símbolos direcionais de seu contexto social e moral. [96]

   Com base nessa capacidade, podemos ver que o fato de a natureza humana ter certos atributos não significa que precisamos abraçá-los ou aprová-los. Quando há falta de escolhas racionais, em face de sistemas com menos capacidade racional, podem ser utilizados equipamentos por meio dos quais se possa decidir racionalmente. Devemos nos proteger contra os excessos, como o conformismo, os modismos e as noções injustas que estão inseridas na cultura e que merecem um exame normativo crítico aberto. [97]

  Em suma, o “eu” comunitário é em parte membro de uma comunidade e em parte ser autônomo, criativo e crítico. Trata-se de um conceito justificado empiricamente, a partir do qual a filosofia comunitarista pode traçar suas idéias construtivamente. [98]

 Não identificamos muitas incompatibilidades entre o pensamento de Etzioni e o dos demais comunitaristas liberais, pois todos pressupõem o respeito aos valores comunitários na formação da autonomia dos indivíduos; a necessidade de que haja um rol de responsabilidades sociais a sustentar as demandas por direitos; o respeito aos direitos e liberdades que sejam essenciais para o desenvolvimento dessa autonomia.          

 


7. Considerações finais sobre o pensamento comunitarista. Compatibilidade com a obra de John Rawls

Os comunitaristas afirmam que a identidade e a capacidade de auto-realização dos indivíduos encontram-se intimamente relacionadas com seus laços sociais e comunitários. As pessoas devem ter condições efetivas de viver em um ambiente pluralista, onde é possível conviver com as diferenças, e onde as divergências são discutidas e encaminhadas de forma pacífica, tendo em vista o consenso, ou ao menos a concordância sobre alguns pontos principais, sem que isso signifique a discriminação ou a exclusão de grupos com menos voz na sociedade (as chamadas “minorias”).

 Podemos concluir que algumas das diferenças e semelhanças fundamentais entre o pensamento de Rawls e os ideais comunitaristas seriam:

a) o fato de que estes (os comunitaristas) dariam mais importância à participação das inúmeras esferas associativas e/ou comunitárias na distribuição dos bens sociais e na construção do respeito aos direitos fundamentais;[99]

b) a obra de Rawls geralmente é concebida em “condições ideais de temperatura e pressão”, isto é, pressupõe que as pessoas participando da discussão sobre os princípios de justiça são pessoas “livres e iguais”, capazes de ter um senso de justiça e de possuir concepções particulares acerca do bem; os comunitaristas têm bases mais empíricas e realistas;

c) ambos os pensamentos reconhecem os direitos e liberdades básicas tradicionais, em regra protegidos na Constituição;

d) em ambos os pensamentos, há a busca de uma base de valores morais que seriam necessários para a justiça social e para o respeito aos direitos fundamentais; a diferença é que na obra de Rawls a concepção política de justiça é neutra com relação a concepções substanciais do bem, ou da vida boa, que não sejam referentes ao pluralismo, ao debate democrático, e aos valores da igualdade e da liberdade; já as concepções comunitaristas estão mais preocupadas em defender um rol mais extenso de virtudes cívicas, que abrange as defendidas por Rawls, como tolerância, respeito/confiança mútuos, moderação/autocontrole e disponibilidade para se juntar aos demais no meio do caminho, mas vai além, abrangendo também confiança mútua, amizade cívica e solidariedade;[100]

e) a educação deve ser dirigida para o cultivo das virtudes cívicas; a diferença será na abrangência menor (Rawls) ou maior (comunitaristas) para o rol de virtudes cívicas a serem estimuladas;[101]

f) a recomendação comunitarista para que o Estado cuide da saúde das instituições básicas da sociedade civil diferentes do Governo e do Mercado, estimulando entidades associativas que nutrem concepções do bem compatíveis com uma sociedade liberal, democrática e pluralista;

g) os comunitaristas propõem um conceito de cidadania robusto, integrado por direitos individuais balanceados por responsabilidades sociais; já na obra de Rawls essa discussão é pressuposta, quando ele fala acerca da cooperação em uma sociedade bem ordenada, assunto que, todavia, é pouco desenvolvido;

h) os comunitaristas em regra defendem que as responsabilidades sociais, os deveres cívicos, devem em regra ser estimulados, e não impostos; partem do pressuposto de que a solidariedade deve ser espontânea e culturalmente adquirida, e não imposta de cima para baixo;

i) os comunitaristas defendem o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o Estado deve ajudar ou subsidiar os grupos e comunidades, organizados em suas respectivas esferas, na participação em políticas públicas de defesa dos interesses sociais.

Assim, não consideramos que sejam “incompatíveis” a obra de Rawls e o pensamento comunitarista liberal. Sem dúvida abordam questões de justiça social de formas diferentes, mas nada impede que a concepção política de Rawls seja preenchida pelos valores agregados mais substanciais (comunitaristas), de forma a possibilitar uma teoria da justiça mais realista para com a organização da sociedade em suas inúmeras esferas associativas.

   Nessa linha, os comunitaristas têm muito a contribuir para o enriquecimento da doutrina dos direitos fundamentais, não tomando como pressupostos os direitos humanos já reconhecidos na Declaração Universal de 1948 e nos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966. A elaboração de uma doutrina universal dos direitos humanos, que realmente tenha o consenso sobre um rol de direitos mínimos, não pode ser imposta de cima para baixo, mas antes deve resultar de uma discussão ampla com as inúmeras comunidades que compõem cada sociedade estatal.

No contexto de tais discussões, poderíamos inclusive lembrar do “mínimo existencial”[102], o rol prévio de direitos necessários para o desenvolvimento das potencialidades humanas, que são aqueles direitos básicos que devem ser garantidos pelo Estado às pessoas, para que elas possam se desenvolver com dignidade e que assim possam, quando adultas, exercer de forma plena, consciente e autônoma, os seus direitos civis e políticos (os direitos individuais tradicionais), que são reconhecidos amplamente pelas teorias estudadas. Esse rol prévio é composto pelos direitos sociais, econômicos e culturais, cujo respeito pressupõe o planejamento e a execução orçamentária de políticas públicas com efetivo dispêndio de recursos públicos dirigidos para determinadas áreas espaciais (bairros, regiões) onde serão prestados os serviços de educação, qualificação profissional/técnica, saúde, cultura, esporte/lazer, infraestrutura comunitária, saneamento básico etc. Repita-se: sem o respeito a esses direitos sociais, econômicos e culturais, especialmente em áreas carentes, as crianças e adolescentes não podem se desenvolver com dignidade para, quando adultas, exercerem de forma plena, consciente e autônoma, os seus direitos civis e políticos. Não terão acesso à “igualdade de oportunidades” na linha de partida, como preconizou Rawls.

Assim, com base nos ideais comunitaristas, poderíamos propor uma discussão sobre alguns “direitos” da realização humana (não necessariamente individuais, sendo alguns sociais, outros difusos), também relacionados com a virtude cívica da amizade cívica, ou da solidariedade:

1. direito a explicações sobre atos potencialmente danosos a si, sua família, seus amigos, sua comunidade, seu país e mesmo o planeta (reforçado pelo princípio da motivação dos atos administrativos);

2. direito ao atendimento de qualidade pelo serviço público, tendo em vista o princípio da eficiência administrativa, que gera o princípio do aprimoramento progressivo e prático dos padrões de desempenho administrativo;

3. direito à observância do princípio da subsidiariedade, que recomenda a interação pluralista entre diversas entidades coletivas autônomas e locais (associações sem fins lucrativos, associações comunitárias, fundações etc.) na distribuição de tarefas de interesse social, mediante delegação e apoio do Governo;  

4. direito de acesso à sociabilidade: estímulo à associação civil – cada comunidade/bairro deve ter a sua infraestrutura comunitária garantida pelo Poder Público, caso não possa ser financiada pela própria comunidade, a fim de que possa haver um espaço comunitário que transcenda as comunidades que geram divisão (religiosas, filosóficas, esportivas etc.), assim, haveria um local para se discutir sobre o que todos tem ou querem ter no bairro, um local para a participação, por exemplo, no orçamento participativo do município ou região; nessa infraestrutura comunitária, que poderia ser compartilhada ou não, conforme o caso, com os alunos da escola pública do bairro, haveria acesso a espaços coletivos de criatividade, esportes, artes e projetos de cooperação. Deve ser estimulada a cooperação a nível local nos espaços urbanos e no meio rural. 

5. promoção de um “ecletismo prático”, no seio das comunidades carentes, que se daria pela conjunção dos saberes e práticas locais, enriquecidos pelo contato com profissionais de inúmeras áreas;

6. promoção de cursos para a formação de líderes comunitários, principalmente em comunidades carentes, com vistas a promover a autonomia de tais vizinhanças explorando o potencial das lideranças naturais da comunidade, aposentados e desempregados; deveria haver, todavia, o acompanhamento do Ministério Público e da Polícia Comunitária (via Polícia Militar ou Civil), de forma a se evitarem os abusos por parte de membros do crime organizado.

 


8. Considerações sobre algumas condicionantes para a efetivação local das propostas liberais-comunitaristas no Brasil     

O abandono das áreas de periferia urbanas pelo Estado é também o abandono, pela sociedade dominante (ocupante dos cargos de controle da despesa pública-orçamentária), da sociedade carente que se encontra dentro dos orçamentos, mas fora das alocações reais (aplicações localizadas de verbas públicas), as quais só aumentam a concentração da aplicação de recursos públicos nas áreas que já receberam recursos públicos (fenômeno da Segregação Urbana).

A lei, ao ser aplicada no tempo, parece mudar de “forma objetiva” quando ela é revogada por outra, a partir de um prazo que foi pré-estabelecido. Mas, especificamente a lei orçamentária, que é uma lei de efeitos concretos, votada para ser aplicada em um espaço específico, antes de ser aplicada, muitas vezes, por pressões da classe dominante, acaba sendo modificada e, com isso, a verba que iria para uma comunidade carente acaba vindo a ser redirecionada para espaços públicos que já tinham recebido investimentos públicos bem maiores, no passado, do que aquela área carente. Com isso, a distância de qualidade de vida entre a área privilegiada e a área carente só faz aumentar, a cada ano que passa.

Assim, necessária se faz uma postura mais engajada dos operadores jurídicos, especialmente os juízes e membros do Ministério Público, em cobrar dos governantes a realização de atos de ofício tendentes a efetivar a institucionalização municipal da gestão orçamentária participativa, um dos mecanismos mais importantes da gestão democrática das cidades, mas que não tem recebido muita atenção em municípios onde prevalecem as práticas clientelistas e patrimonialistas e onde os recursos públicos são em maioria alocados nos espaços urbanos já elitizados, perpetuando a segregação urbana.

Frise-se, aqui, que não se quer propor a imposição de um orçamento participativo, pois isso iria contra a própria natureza democrática do instituto de gestão orçamentária defendido. Mas daí a esperar que as próprias comunidades financiem a organização institucional e administrativa das discussões e encaminhamentos do orçamento participativo, sem inclusive contar com um suporte técnico e acadêmico que lhes dê a referência de outras experiências, é literalmente ter mais uma "lei pra inglês ver”.

É por isso que é tão importante que o estímulo, a estrutura institucional e os recursos necessários para se promoverem discussões para implantação do orçamento participativo partam da Câmara de Vereadores e da Prefeitura, que são os dois órgãos que, juridicamente, controlam mais de perto as despesas públicas, seja autorizando-as na lei orçamentária (poder legislativo), seja executando as despesas aprovadas na lei orçamentária (poder executivo).

Mas, por incrível que pareça, o inciso I do art. 52, do Estatuto da Cidade (Lei nº 10257/2001), que previa como ato de improbidade a omissão do prefeito e do presidente da Câmara em promover os atos necessários à implantação do orçamento participativo, foi vetado pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, convergindo com os interesses mais conservadores e os lobbies mais antidemocráticos e elitistas, que não querem o dever de ter que dividir a gestão local dos recursos públicos com comunidades pobres. Com isso, uma das normas mais importantes para o pontapé inicial na gestão democrática das cidades, foi simplesmente excluída do ordenamento jurídico por um ato unilateral e isolado do Presidente, depois de ter sido aprovada pelo Congresso Nacional.  

  Necessário se faz, portanto, que se reinterprete a lei de improbidade administrativa, em seu artigo 11, que cuida dos atos de improbidade administrativa que ofendem os princípios da administração, para enquadrar os prefeitos e presidentes de câmaras legislativas na prática de ato de improbidade ao se omitirem em promover atos destinados a implantar e organizar o orçamento participativo na cidade, ao longo de seus mandatos. A esse respeito, o inciso II do art. 11 da Lei 8429/92 prevê como ato de improbidade o de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”.

Ora, em não havendo a promoção do orçamento participativo pelas autoridades competentes para tanto,[103] tem-se uma omissão que transgride gravemente os princípios da legalidade, moralidade, eficiência, previstos no art. 37 da CRFB/88 e aplicáveis às Administrações Públicas de todas as esferas de governo no Brasil. Transgride-se absurdamente também o preceito fundamental que integra todas as leis orgânicas municipais por determinação expressa da Lei Maior (art. 29, XII, CRFB/88), regendo a gestão política municipal, qual seja, a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal“. Ora, essa cooperação foi regulada pelo Estatuto da Cidade, e tem seu apogeu na gestão democrática da cidade.

  Assim, mesmo tendo sido vetado o referido inciso do Estatuto da Cidade, como a sua norma é tão importante, pode ser extraída de outros trechos de nosso ordenamento, notadamente a Constituição e a própria lei de improbidade administrativa, não estando de mãos atadas o Ministério Público, podendo ele processar por improbidade administrativa os governantes que se omitirem em promover ou estimular as discussões necessárias à implementação do planejamento e da gestão orçamentária participativos.

Entendemos também necessária – via reforma legislativa federal e estadual – a distribuição local imediata, para os municípios, de parte dos impostos federais e estaduais pagos em seus territórios, porque assim os espaços locais que imediatamente geram a riqueza tributada não precisam esperar que a riqueza vá ao centro (para Brasília ou para a capital estadual) para depois esta ser redistribuída pelas transferências constitucionais/obrigatórias, e por outras, “voluntárias”, estando estas últimas ainda por cima sujeitas a eventuais retenções abusivas ou liberações que variam conforme as alianças político-partidárias, e não conforme as necessidades da sociedade e os acordos ou convênios firmados.

 Os bairros carentes devem ter seus próprios equipamentos urbanos e comunitários, suas escolas e postos de saúde, praças, centros comunitários. Cooperativas de crédito e de serviços devem ser facilitadas, e deve haver estímulo à criação de estações de rádio e/ou canais de televisão comunitários (que veiculariam programas e seriam uma opção diferenciada aos outros canais e estações). Há que se falar ainda em direito a políticas públicas localmente adaptadas, descentralizadas e fiscalizadas quotidianamente pela própria população que recebe o serviço.

  Gostaríamos, por fim, de ressaltar que inúmeras outras formas de apoio ao associativismo podem ser lembradas, como por exemplo o financiamento de projetos sociais executados por Organizações não governamentais em áreas carentes, com recursos provenientes de empresas e/ou do governo; ou ainda, a prestação de serviços de interesse social e comunitário por parte de Professores e alunos de cursos universitários, de forma integrada com as comunidades carentes, em projetos de extensão universitária, que podem ser financiados por empresas, por bolsas concedidas por Universidades, Fundações ou pelo próprio Governo.

 Partimos do ponto de vista que, para ter sustentabilidade, os projetos sociais não devem a princípio estar fundados no trabalho voluntário, a não ser que este não tome muito tempo das pessoas. Determinados projetos sociais exigem dedicação integral, e para que sejam estáveis e produzam efeitos de longo prazo, devem pressupor uma remuneração fixa para os que trabalham nos projetos. Isso possibilitaria, a longo prazo, uma mudança da cultura e das práticas locais, pela construção coletiva e espacial da cidadania com seus direitos, liberdades e garantias correspondentes.

 


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Notas

[1] O presente artigo foi escrito a partir de trabalho desenvolvido em setembro de 2003, para conclusão da disciplina Teoria dos Direitos Fundamentais, ministrada pelo Professor Dr. Ricardo Lobo Torres, no mestrado em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

[2] Adiante tentaremos demostrar que a classificação do pensamento de John Ralws como “liberalista individualista” não seria totalmente adequada, e que, portanto, ela talvez se dirija aos liberais libertarianistas, como por exemplo Robert Nozick. 

[3] V. Ricardo Almeida R. da Silva, “A crítica comunitarista ao liberalismo”, in Ricardo Lobo Torres (org.), Teoria dos Direitos Fundamentais, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 193-195. 

[4] V. Francisco Ortega, Para uma Política da Amizade – Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, pp. 15-ss., onde se refere às obras de Danilo Zolo: “Segundo a concepção realista da democracia proposta por Zolo, os sistemas que denominamos democráticos seriam, no fundo, ‘sistemas autocráticos diferenciados e limitados’, ou seja, oligarquias liberais; a democracia constituiria simplesmente a alternância das elites oligárquicas [nos governos da sociedade estatal]. Baseando-se nas análises dos cientistas políticos Schumpeter e Sartori, Zolo constata como a manipulação da opinião pública dos cidadãos é uma parte fundamental do processo democrático, em que a propaganda política serviria como um instrumento que impede toda argumentação fundamentada, suscetível de despertar a capacidade crítica dos eleitores e seu desejo de autonomia: ‘A essência da democracia seria, portanto, a aplicação das liberdades políticas e civis para reprimir a autonomia dos cidadãos’.   Os Comícios eleitorais constituem apenas um rito que assegura a integração social dos votantes e que, somente de forma marginal, influi nos conteúdos das decisões políticas. Nesse processo social, cria-se a ilusão de participação e de contribuição para o destino político de uma nação (...).” A democracia vista como “ficção de participação e de decisão” é “conditio sine qua non da existência do principado democrático, servindo de legitimação às elites oligárquicas em concorrência pelo poder político”.

[5] V. Ricardo Almeida R. da Silva, op.cit., p. 194, onde o autor menciona diversos grupos de comunitaristas: a) o dos liberais comunitaristas, com Bruce Ackerman, Michael Walzer, Charles Taylor, Thomas A. Spragens, Cass Sustein, Amy Gutmann e Philip Selzinick, dentre outros; b) o dos comunitaristas autônomos, com Amitai Etizioni e Robert Bellah; c) o dos neorrepublicanos, com Michael Sandel, Michael Warner e J.G.A. Pocock; d) os dos tradicionalistas (ou conservadores), com Robert Nisbet, Michael OakShott, Alasdair MacIntyre, Eric Volgelim e Leo Strauss. Este último grupo, então, já não integrava o “movimento”, tendo inclusive Alasdair MacIntyre reconhecido não ser um “comunitarista”, em seu artigo “The Virtues, the Unity of a Human Life, and the Concept of the Good”, in Michael Sandel (org.), Liberalism and its Critics. New York, New York University Press, 1984.

[6] V. Ricardo Almeida R. da Silva, op. cit., p. 195.

[7] Cf. Ricardo Lobo Torres, “A Teoria da Justiça de Rawls e o pensamento de esquerda”, Revista Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n.5, Renovar, 1997, p. 158, quando surgiu na década de 1971, a obra de John Rawls rompeu com o debate centenário sobre se “a norma emana ou dos fatos sociais ou de uma outra norma que lhe constitui a condição de validade”, e trouxe novamente para o debate político uma série de questões, em uma mudança de paradigmas da filosofia política, que ficou conhecida como a “virada kantiana”: “o direito volta a se comunicar com a ética no plano teórico, o Estado se funda na idéia de contrato, a liberdade se torna absolutamente prioritária e a justiça encontra no imperativo categórico o seu ponto de apoio”.

[8] V. ainda Robert Fowler, “Community – reflections on definition”, in Amitai Etzioni (org.), New communitarian thinking – persons, virtues, institutions and communities, Charlottesville/London, University Press of Virginia, 1995, pp. 93-95; Michael Walzer, “The communitarian critique of liberalism”, in Amitai Etzioni (org.), op. cit., pp. 54, 59-63.

[9] Cf. Thomas A. Spragens, “Communitarian Liberalism”, in Amitai Etzioni (org.), op. cit., pp. 37-38, a visão “típica e idealizada” do comunitarismo é a de que ele seria “substitutivo” do liberalismo, tentando fundar um novo tipo de sociedade. Existem, todavia, vertentes doutrinárias (nas quais se insere o Professor Spragens) que se consideram apenas “corretivas” do liberalismo individualista (em suas distorções), não sendo incompatíveis com os ideais liberais originais, cf. se verá adiante. 

[10] Idem, ibidem, pp. 37-38.

[11] Idem, ibidem, p. 38. Os comunitaristas, todavia, tomam cuidado em defender o estímulo à cooperação, e não a imposição de cooperação, como veremos adiante, uma vez que também respeitam e reconhecem os direitos e liberdades individuais, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana.

[12] Cf. Amitai Etizioni, “Old Chestnuts, new Spurs Communitarian Liberalism”, in Amitai Etzioni (org.), New communitarian thinking – persons, virtues, institutions and communities, Charlottesville/London, University Press of Virginia, 1995, pp. 19-20, Locke, Adam Smith e outros liberais clássicos deram ênfase ao individualismo pois naquela época a “comunidade” era mais poderosa, o interesse individual era sobrepujado, em prol dos interesses do Estado ou dos interesses públicos;  por isso é que lutavam por direitos individuais como os de expressão, religião e proteção à propriedade privada.  A sociedade americana de início deu ênfase ao individualismo pois seus fundadores fugiram de sociedades que impunham muitos encargos sobre os indivíduos, principalmente nas esferas individuais mencionadas. V. ainda, p. 16, que os tratados liberais não só previam direitos individuais, como pressupunham fundação comunitária

[13] Cf. Thomas A. Spragens, op. cit., pp. 38-39.

[14] Idem, ibidem, pp. 39-40.

[15] Idem, ibidem, p. 40.

[16] Idem, ibidem, pp. 40-41.

[17] Idem, ibidem, p. 41.

[18] Idem, ibidem, pp. 41-42.

[19] V. Marilena Chauí, “Vida e Obra de Kant”, no volume “Os pensadores”, São Paulo, Nova Cultural, 2000, p. 05. Kant também seria influenciado por Rousseau, tomando a sua teoria da “autolegislação” (de cada cidadão na sociedade) e desenvolvendo uma teoria da autonomia da vontade livre, racional e moral de cada um como geradora das “leis internas” do “agir universal” em sociedade.

[20] V. Thomas Spragens, op. cit., pp. 42-43.

[21] Cf. Thomas Spragens, op. cit., p. 43, o indivíduo em Locke, Mill, Adam Smith e Condorcet gozava sua liberdade dentro de um contexto de obrigações e responsabilidades complementares, derivadas dos laços comunais, dos limites de uma ordem moral válida e da força da compreensão humana. Para Condorcet e Adam Smith, a economia era orientada para o mercado, o que gerava maior igualdade social e econômica. A riqueza teria natural tendência para igualdade; qualquer desproporção excessiva não poderia existir ou desapareceria rapidamente se as leis civis não dispusessem de meios artificiais de perpetuar e unir fortunas, bem como se não restringissem artificialmente o comércio em outras questões.

[22]  Cf. Aurélio Buarque de Holanda, Dicionário da Língua Portuguesa, Nova Fronteira, 2001, agnosticismo: 1. segundo Thomas Henry Huxley (1825-1895), naturalista inglês, posição metodológica que só admite os conhecimentos adquiridos pela razão e evita qualquer conclusão não demonstrada. 2. atitude que considera inúteis as discussões sobre questões metafísicas, já que estas tratam de realidades incognoscíveis.

[23] Cf. Thomas Spragens, op.cit., p. 43.

[24] Idem, ibidem, p. 44.

[25] Idem, ibidem, p. 44.

[26] Bruce Ackerman também foi classificado na vertente “liberal comunitarista” (nota 2). Além disso, devemos levar em conta a notícia de que o constitucionalista se filiou ao “Republicanismo”, cf. Ricardo Lobo Torres, “A Teoria da Justiça de Rawls e o pensamento de esquerda”, Revista Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n.5, Renovar, 1997, p. 160. Isso demonstra que essas classificações não são rígidas.

Cf. Ricardo Lobo Torres, op. cit., p. 158, a obra de Rawls foi classificada de inúmeras formas: liberal contratualista, liberal individualista, neoliberal, liberal social, antiutilitarista e até neoutilitarista.  

[27] V. Thomas Spragens, op.cit., pp. 44. O Professor faz referência ao “princípio da diferença”, que integra a segunda parte do segundo princípio de justiça proposto por Rawls.

Cf. John Rawls, Liberalismo Político, 2.ed.bras., São Paulo, Ática, 2000, pp. 47-49, deve haver dois “princípios de justiça” a informar a estrutura básica de uma sociedade democrática e o funcionamento de suas instituições livres: 1º) todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido. 2º) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer a dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade.

Cf. Bruce Ackerman, Social Justice in the Liberal State, New Haven, Yale University Press, 1980, pp. 269-271, o princípio da diferença proposto por Ralws é temerário, pois isso excluiria pessoas de outras classes (médias, por exemplo) de terem um tratamento especial que fosse devido (por ex. os negros de classe média também são prejudicados pela estrutura social); poderia ainda possibilitar que inúmeros grupos sociais reivindicassem a condição de “menos favorecidos”. Para Ackerman, o estadista liberal, ao invés de fazer uma “precisa hierarquia de degradação”, procurará soluções que reconheçam que todos os grupos têm pleitos válidos a assistência especial, induzindo-os a reconhecerem que seus pleitos estão conectados por uma forma de diálogo comum. Não acreditamos, todavia, que o pensamento de Rawls mereça tais críticas ou que não possa ser utilizado para obter o diálogo proposto por Ackerman, pois que o autor de Teoria da Justiça também reconhece o pluralismo social, especialmente quando da discussão sobre o “consenso sobreposto” sobre os valores que devem orientar as instituições básicas da sociedade, cf. veremos adiante. 

[28] Idem, ibidem, p. 44. A referência é feita aos dois pensadores.

[29] Bruce Ackerman, Social Justice in the Liberal State, New Haven, Yale University Press, 1980, passim, desenvolve uma teoria política baseada no discurso dialógico (“Constrained power talk”), necessária para se discutir a posse e o uso do poder numa sociedade onde os bens são escassos. Após refutar o argumento utilitarista, traça alguns princípios do discurso: 1o) Princípio da Racionalidade: sempre que alguém questiona a legitimidade do poder de outrem, este deve responder não tentando eliminá-lo do discurso, mas dando uma razão pela qual ele tem direito ao bem questionado. Pressupõe o teste de conceivability ­­– para ser aceito como razão, uma justificativa não pode ignorar a possibilidade de o poder ser exercido de forma ilegítima (sem justificação);  2o) Princípio da Consistência – a razão oferecida pelo detentor do bem/poder em uma ocasião não pode ser incoerente com a razões dadas para justificar seus outros bens/poderes; 3o) Princípio da Neutralidade – nenhuma razão é boa se exige do detentor do bem/poder afirmar que:  a) sua concepção do bem é melhor do que a de seus concidadãos; b) a par de sua concepção do bem, ele é intrinsicamente superior a um ou mais de seus concidadãos. A consequência desses princípios é uma igualdade inicial na distribuição de bens sociais, já que cada cidadão é tão bom quanto o outro. A distribuição de bens sociais, por sua vez, obedece a algumas regras racionais: a) Harmonia – os bens a serem distribuídos não podem exceder os disponíveis; b) Completude – as regras de distribuição devem  permitir que se saiba o que exatamente caberá a cada cidadão; c) Diferenciação – qualquer distribuição desigual de bens deve ser justificada em uma especial característica atribuível à pessoa/classe favorecida, que a diferencia das demais e justifica o tratamento desigual; d) Compreensividade  - uma regra diferente de distribuição de bens só pode ser aceita quando tiver mérito com relação a todas as demais regras propostas para distribuição de bens. Os princípios de uma sociedade liberal deveriam ser respeitados na esfera pública não só no que tange a distribuição dos recursos escassos da sociedade, mas principalmente nos assuntos cruciais da vida humana, como a cidadania, o nascimento, o controle de natalidade, a diversidade genética, o acesso a recursos materiais, a família, a educação de primeiro e segundo graus, o mercado livre, o regime de propriedade, de herança e sucessões, os recursos não-renováveis, a ação afirmativa.  

Cf. Ricardo A. Ribeiro da Silva, op.cit., p. 222-223, a teoria de Ackerman pressupõe o diálogo pluralista, e se opõe à concepção dos direitos como decorrentes de um estado de natureza (os direitos não nascem em árvores) ou de um contrato social (não se “escolhe” contratar ou não), os direitos são antes de tudo decorrentes de reivindicações em um meio (a sociedade) onde os recursos e os bens sociais são escassos. Daí vem a importância de que todas as pessoas (ou grupos) tenham a mesma oportunidade de reivindicar parcelas de bens ou recursos em seu benefício. O justo título na distribuição e/ou aquisição dos bens será resultante da ponderação com os valores, com a cultura e a história da comunidade onde se dá a distribuição. O justo título poderá ser corrigido, após ampla ponderação e diálogo, em direção ao bem-estar social detectado no indivíduo. Todavia, a teoria de Ackerman está fundada na autonomia individual como direcionadora da interação com os demais indivíduos, deixando em segundo plano a fundamentação nos valores compartilhados pela comunidade.

De fato, Bruce Ackerman, op.cit., p. 368, afirma que na medida em que é moralmente melhor respeitar a autonomia moral de cada um do que forçá-lo a atingir alguma concepção do bem, deve-se ter um compromisso com a neutralidade. Não é necessário que a autonomia seja o único bem, a ela basta que seja o maior de todos os bens. À p. 369, diz que o Estado liberal tem quatro “vias principais”: realismo sobre a corrosividade do poder; reconhecimento da dúvida como passo necessário ao conhecimento moral; respeito pela autonomia das pessoas; ceticismo com relação à realidade de sentido transcendental.

[30] Cf. Thomas Spragens, op.cit., pp. 44-45. Veremos que Rawls traça o conceito de “consenso sobreposto” para tentar superar este impasse.

[31] A referência parece invocar o conceito rawlsiano de “sociedade bem ordenada”, que veremos adiante. 

[32] Cf. Thomas Spragens, op.cit., pp. 45-46.

[33] Idem, ibidem, pp. 46-47.

[34] Cf. Ricardo Lobo Torres, “A cidadania multidimensional na era dos direitos”, in “Teoria dos direitos fundamentais”, org. pelo autor, p. 241, “a noção de fraternidade (...) perdeu o vigor durante os oitocentos. Só no séc. XX é que volta a integrar a equação valorativa dos direitos fundamentais e da justiça, agora sob a expressão da solidariedade. Da mesma forma que a igualdade, a solidariedade é um princípio vazio, pois não traz conteúdos materiais específicos, podendo ser visualizada ao mesmo tempo como valor ético e jurídico, absolutamente abstrato, e como princípio positivado nas Constituições. É sobretudo uma obrigação moral ou um dever jurídico. Mas, em virtude da correspectividade entre deveres e direitos, informa e vincula a liberdade, a justiça e a igualdade. Sendo conceito extremamente complexo, porque vazio, a solidariedade encontra adequada fundamentação através do estudo sobre a cidadania.  

[35] Cf. Thomas Spragens, op.cit., p. 47.

[36] À p. 48, o professor Spragens, op. cit., admite que toma emprestado o termo cunhado por Rawls. Fala ainda que em sua concepção tais “valores centrais” seriam simples e “não-contenciosos”, abrangendo alguns dos valores que aprendemos no jardim de infância.

[37] Cf. Thomas Spragens, op.cit., p. 49-50, “Libertarians would seem for all practical purposes content to have citizens be strangers as long as they are free. And egalitarians tend either to ignore the conditions of civic friendship or to conceive them in very abstract and implausible ways. Moreover, they have in recent years often championed in the name of diversity policies and ideals that, whatever their putative virtues, threaten to deepen social divisions. Communitarians can recognize that pluralism is both a fact of life and - as a derivative of autonomy and authen­ticity - a valid norm. But they also are aware that societies devoid of moral consensus or a sense of common purpose have numerous diffi­culties governing themselves, and they recognize that achieving the necessary minima in these respects cannot be taken for granted except in the most homogeneous and compact polities.”

[38] Cf. Thomas Spragens, op.cit., pp. 48, 49-50. As ideias expostas nesse parágrafo não diferem muito das de Rawls, cf. veremos adiante.

[39] Cf. Thomas Spragens, op.cit., p. 49, “Libertarian liberals have characteristically focused on the market as the central institution of their ideal society, understandably so because markets are constituted by the consensual transactions of self-interested individuals that libertarians see as the essence of legit­imate social interaction. Egalitarians, on the other hand, have for equally understandable reasons concentrated on the welfare state as the engine of social equality. Without denigrating for a moment the importance of state and market, communitarian liberals insist upon the crucial role of local communities, families, neighborhoods, churches, educational institutions, and civic associations in creating a productive environment for human development and happiness. Good social policies, therefore, should seek to bolster the health of these civic institutions. Strong markets and strong governments can crowd out or undermine the role of these institutions, and a wise liberal society would take steps to mitigate this tendency. lndeed, it is the serious decline in familial and educational institutions during the past couple of decades in this country that more than anything has provided the impetus for communitarian ideas.”

[40] Rogers M. Smith, “Citizenship and National Service”, in Amitai Etzioni (org.), op.cit., p. 257, propõe diversos programas de Serviço Social Nacional, de forma a enriquecer o conhecimento cívico aproveitando os talentos/capacidades de seus participantes em novos contextos e formas sociais, estimulando atividades/serviços em que haja a integração entre diferentes setores, grupos e comunidades tradicionalmente apartados na sociedade. A proposta é claramente inclusiva e pluralista, tendente a promover a apreciação das variadas comunidades que compõem a sociedade norte-americana, bem como a construção de uma “identidade cívica” nacional

[41] Cf. Thomas Spragens, op.cit., p. 50, “(...) this is one reason that communitarians tend to like the idea of a national service program, for example. They will seek to promote institutions, such as the public schools, that bring people from dif­ferent backgrounds together in common endeavor. And they will champion a public rhetoric of common identity and inclusiveness.”

[42] Cf. Thomas Spragens, op.cit., p. 59, os comunitaristas têm a mesma preocupação de Tocqueville de que a dinâmica da democracia liberal possa levar ao excesso de privatismo e ao esquecimento da esfera pública e do espírito público.

[43] Idem, ibidem, pp. 50-51. A respeito dos programas de serviço social, Rogers M. Smith, op.cit., p. 250, faz inúmeros questionamentos para orientar a direção dos programas: a) Se deveria ser uma opção voluntária para os cidadãos que sempre tem direitos a escolher seus compromissos, ou se seria uma obrigação jurídica fundada em suas identidades cívicas; b) se os programas nacionais deveriam exibir integração étnica, racial, religiosa e econômica em todos os níveis, ou se seria mais eficaz e justo encaminhar as pessoas para servirem em suas próprias comunidades de origem; c) se o serviço social nacional deveria apenas assistir as várias comunidades em suas formas correntes, ou se deveria também procurar alterá-las ou orientá-las em direções mais democráticas e inclusivas. À p. 236, o Professor reconhece que as propostas de um serviço nacional voluntário e compensado (mediante algum tipo de remuneração) sem dúvida encontram muito mais apoio do que as propostas fundadas na imposição, na obrigatoriedade.

[44] Cf. Thomas Spragens, op.cit., p. 51.

[45] V. Robert Booth Fowler, “Community – reflections on definition”, in Amitai Etzioni (org.), New communitarian thinking – persons, virtues, institutions and communities, Charlottesville/London, University Press of Virginia, 1995, p. 88.

[46] Idem, ibidem, pp. 88-89.

[47] Idem, ibidem, p. 89. Vide ainda Michael Walzer, “The communitarian critique of liberalism”, in Amitai Etzioni (org.), New communitarian thinking – persons, virtues, institutions and communities, Charlottesville/London, University Press of Virginia, 1995, pp. 67-68, onde fala do renascimento do republicanismo nos EUA, dizendo que se trata de um movimento predominantemente acadêmico, uma vez que dentre as comunidades que integram a sociedade civil raramente se veem associações tipicamente republicanas. O republicanismo seria uma doutrina integrada e unitária voltada primordialmente para a esfera política. Seria, portanto, uma doutrina adaptada às necessidades de comunidades pequenas e homogêneas, nas quais a sociedade civil é radicalmente indiferenciada. Sustenta que a doutrina republicana deve ser “estendida”, para a formação na sociedade de uma “república de repúblicas”, em uma revisão descentralizada e participativa da democracia liberal. Um fortalecimento de governos locais poderia ser promovido, de forma a encorajar o desenvolvimento das virtudes cívicas em um contexto pluralista.

[48] Idem, ibidem, pp. 89-90.

[49] Idem, ibidem, pp. 90.

[50] Idem, ibidem, pp. 91-92.

[51] Idem, ibidem, pp. 93-95.

[52] Cf. Michael Walzer, “The communitarian critique of liberalism”, in Amitai Etzioni (org.), New communitarian thinking – persons, virtues, institutions and communities, Charlottesville/London, University Press of Virginia, 1995, pp. 54-55.

[53] Cf. Catherine Audard, glossário in John Rawls, Justiça e Democracia, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 380, a posição original é um procedimento figurativo que permite representar os interesses de cada um de maneira tão equitativa que as decisões daí decorrentes serão elas próprias equitativas. Rawls posteriormente modificou esse procedimento, diferenciando entre interesses racionais (de cada um na concepção e busca de seu próprio bem) e razoáveis (resultantes da interação com os interesses dos outros), estando estes últimos ligados ao senso de justiça, bem como a noções de reciprocidade e cooperação. O razoável passa a condicionar o racional, tendo em vista a prioridade do justo sobre o bem.  Na posição original, os indivíduos se encontram sob um véu de ignorância, que lhes impede saber de suas capacidades e talentos pessoais, mas lhes permite ter um conhecimento geral sobre os fatos da vida humana e sobre as conclusões da ciência que não sejam controversas.

[54] Cf. Michael Walzer, op.cit, pp. 56-57.

[55] Idem, ibidem, pp. 58-59. À p. 60, todavia, o autor reconhece que ainda hoje a melhor previsão de como as pessoas votarão nas eleições se dá pela informação de como seus pais votaram, e isso é verdade inclusive se os pais são votantes independentes, nesse caso, os filhos também estarão inclinados à tal postura.

[56] Idem, ibidem, pp. 59-62. V. ainda à p. 63: “O liberalismo é distinguido menos pela liberdade de cada um de formar grupos com base em certas identidades, como as sociais, étnicas, religiosas, do que pela liberdade de deixar esses grupos e até mesmo essas identidades para trás.”

[57] Cf. Ricardo Lobo Torres, “A teoria da Justiça de Rawls e o pensamento de esquerda”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n.5, 1997, Renovar, pp. 161-164, em sua obra “As esferas da justiça” (1983), Walzer elabora um regime de “igualdade complexa” na distribuição dos bens sociais em suas respectivas esferas, elaborado de forma a impedir o uso tirânico de bens para favorecer o seu detentor (ou prejudicar outros indivíduos) em outras esferas. Walzer diminui a importância do Estado, que passa a controlar os monopólios e reprimir novas formas de dominação. Elabora, com isso, uma espécie de socialdemocracia descentralizada. As próprias comunidades estabeleceriam os critérios para distribuição dos bens: o poder local, o mercado, o serviço civil aberto, a escola pública independente, a partilha do trabalho árduo e do tempo livre, a proteção da vida religiosa e familiar, o controle dos trabalhadores sobre as companhias, a política de partidos, os movimentos e debates públicos. Com relação ao poder político, deve haver uma distribuição das chances de exercê-lo, sendo cada cidadão um participante político potencial. Os bens sociais devem ser distribuídos por diferentes razões e segundo vários procedimentos e diversos agentes, as diferenças devem resultar das distintas compreensões dos próprios bens sociais (análise particularista, histórica e cultural). Como princípios de distribuição elenca: merecimento, qualificação, nascimento, amizade, necessidade, livre intercâmbio, a lealdade política e a decisão democrática. É o significado social dos bens que justifica sua distribuição. A distribuição deve ser autônoma, procedendo-se de dentro de cada esfera segundo critérios específicos. Bens sociais como saúde e segurança devem estar na esfera pública e ser providos. A proposta de Walzer foi criticada, sendo chamada de formalista, relativista e utópica, pois o papel conferido ao Estado, como um mero árbitro da obediência - de todos - aos limites de cada esfera da justiça não seria capaz de assegurar por si só uma distribuição justa dos bens sociais. Para uns inclusive se tratava de uma nova teoria do Estado mínimo. Walzer posteriormente reformulou alguns de seus conceitos, e reconheceu ter “superestimado a justiça do sistema de distribuição e subestimado o Estado enquanto agente da justiça distributiva”; passa a adotar uma posição mais coerente com seus postulados sociais-democratas. Mas a intervenção direta do Estado não é necessária, cabendo-lhe em muitos casos apenas financiar e facilitar o trabalho das associações beneficentes (Igreja, sindicatos, cooperativas, associações de vizinhança, grupos de interesses).

[58] Adiante veremos o conceito de sociedade bem ordenada de Rawls.

[59] Idem, ibidem, pp. 63-64. A referência ao conceito de “consenso sobreposto” de Rawls, é clara, cf. veremos.

[60] Idem, ibidem, pp. 65-66, 68.

[61] Para uma visão ampla da cidadania, v. Ricardo Lobo Torres, “A cidadania multidimensional na era dos direitos”, in Teoria dos Direitos Fundamentais (org. pelo autor), Rio de Janeiro, Renovar, 1999, pp. 239-324, na quais defende que a cidadania abrange as dimensões temporal (direitos civis, políticos, sociais e econômicos, direitos difusos), espacial (cidadania local, nacional, mundial, comunitária/européia e virtual), bilateral (que prevê a existência de deveres e de direitos de cidadania, ainda que em relação assimétrica) e processual (que abrange participação ativa nos assuntos políticos, nos processos administrativos, legislativos e judiciais, de acordo com a Constituição e as leis).

[62] Cf. John Rawls, “A idéia de um consenso por justaposição” (1987), in Justiça e Democracia, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 272.

[63] Idem, ibidem, pp. 274-275

[64] Idem, ibidem, p. 275. A respeito da eliminação da pauta política dos pontos inconciliáveis entre diferentes concepções sobre a vida boa, David Hollenbach, “Virtue, the common good and Democracy”, in Amitai Etzioni, (org.), op.cit., p. 145, alerta que, se por um lado essa postura visa a evitar conflitos e a promover a harmonia social, por outro pode ameaçar a democracia ao estimular a alienação e a anomia. Entende, p. 147, que Rawls teme uma teoria compreensiva da vida boa na esfera pública em face da imagem de tal esfera com o domínio exercido pelo poder coercitivo do Estado.

[65] Cf. John Rawls, “A idéia de um consenso por justaposição”, (1987), op.cit., p. 275.

[66] Idem, ibidem, p. 276.

[67] Cf. John Rawls, Liberalismo Político, 2.ed. bras., São Paulo, Ática, 2000, pp. 47-49. Às pp. 345 e 352, Rawls enumera as liberdades fundamentais dos cidadãos: a liberdade de pensamento e de consciência; as liberdades políticas e a liberdade de associação, as liberdades especificadas pela liberdade e integridade da pessoa; e os demais direitos e liberdades abarcados pelo império da lei, inclusive o direito de propriedade e a liberdade contratual.

[68] John Rawls, Liberalismo político, cit., p. 49. V. ainda John Rawls, “A prioridade do justo sobre as concepções do bem” (1988), in Justiça e Democracia, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 302, em que a lista básica de bens primários citada por Rawls abrange, além dos direitos e liberdades básicos, a liberdade de circulação e de escolha da ocupação, os poderes e as prerrogativas pertinentes de certos empregos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica; as rendas e a riqueza; as bases sociais do respeito próprio.

[69] Cf. John Rawls, Liberalismo político, pp. 51, 56, 57 e 58.

[70] Idem, ibidem, p. 355.

[71] V. Amitai Etizioni, “Old Chestnuts, new Spurs Communitarian Liberalism”, in Amitai Etzioni (org.), New communitarian thinking – persons, virtues, institutions and communities, Charlottesville/London, University Press of Virginia, 1995, p. 16. Concordamos com o professor, por entendermos que o indivíduo construído modernamente como “ser”  pensante, autônomo, racional, moral, controlador de suas paixões em prol do bem comum, não se trata de uma definição do que o homem é em qualquer caso, mas a definição de um projeto de ser humano desejável, que todavia depende da existência de determinadas condições de desenvolvimento e sociabilidade no meio em que cada pessoa nasce, cresce e se desenvolve. O “homem moderno”, guardadas as devidas correções teóricas contemporâneas, trata-se no máximo de algo que pode vir a ser. Adiante falaremos um pouco mais sobre o assunto.

[72] Idem, ibidem, pp. 16-17.

[73] Idem, ibidem, p. 17.

[74] Idem, ibidem, p. 17.

[75] Idem, ibidem, p. 17. Nesse ponto fica clara a remissão aos direitos humanos, que serão discutidos adiante.

[76] Idem, ibidem, pp. 17-18.

[77] Idem, ibidem, p. 18.

[78] Idem, ibidem, pp. 18-19. De se lembrar que Michael Walzer, “The communitariam critique of liberalism”, in Amitai Etzioni (org.), “New Communitarian Thinking...” (op. cit.), p. 70, reconhece que a crítica comunitarista do liberalismo tende a ressurgir de tempos em tempos, em sociedades liberais como a norte-americana, sempre que as suas tendências dissociativas superarem excessivamente as tendências associativas dos indivíduos, na sociedade. À p. 54, reconhece nos escritos de Marx dos anos 1840 uma das primeiras críticas comunitaristas ao liberalismo na História.

[79] Idem, ibidem, p. 19. V. ainda o artigo de Putnam, “Bowling Alone: America’s Declining Social Capital”, Journal of Democracy, vol.6, n.1., Baltimore, John Hopkins University Press, 1995. Nele Putnam analisa o declínio, na sociedade norte-americana das últimas décadas do séc. XX, do “capital social”, isto é, aquelas características de uma dada organização social, como a participação em entidades civis, a existência de normas e redes de cooperação social e confiança mútua, essenciais para o bem-estar social.

[80] Cf. Amitai Etzioni, op.cit., p. 19.

[81] Idem, ibidem, p. 19

[82] V. a esse respeito, Ricardo Almeida R. da Silva, op. cit., p. 205.

[83] V. Aristóteles, Ética a Nicômacos, Brasília, UnB, 1992, p. 95: “(...) E já que o igual é o meio termo, o justo será um meio termo. Ora: a igualdade pressupõe no mínimo dois elementos; o justo, então, deve ser um meio termo, igual e relativo (por exemplo, justo para certas pessoas), e na qualidade de meio termo ele deve estar entre determinados extremos (respectivamente ‘maior’ e ‘menor’); na qualidade de igual ele pressupõe duas participações iguais; na qualidade de justo ele o é para certas pessoas.  (...) O justo, então, é uma das espécies do gênero ‘proporcional’ (a proporcionalidade não é uma propriedade apenas das quantidades numéricas, e sim da quantidade em geral).” Nessa época, todavia, as considerações de proporcionalidade na distribuição dos cargos de governo, de dinheiro ou de outras coisas permitidas pela constituição da cidade, estavam inseridas em um sistema que excluía da cidadania (enquanto participação na esfera pública/política) inúmeros grupos sociais, como o dos escravos, o dos estrangeiros e o das mulheres, que dessa forma tinham um “tratamento proporcional” (isto é, diferenciado/desigual), conforme à posição social (decorrente da visão preconceituosa) que ocupavam.

[84] Cf. Etzioni, op. cit., p. 20, início, p. 19, in fine. Às pp. 20 e 21, o autor, a título de exemplo, fala que o direito de ser julgado por seus pares só se torna viável se houver o dever de servir como jurado. Lembra que muitas vezes o indivíduo quer se beneficiar de serviços e instituições sociais e/ou comunitários mas não quer contribuir para eles, como nos casos do pagamento de impostos ou da prestação de serviços sociais voluntários. Essa exigência só de direitos e não de responsabilidades (especialmente na organização quotidiana das comunidades que integram – e/ou extrapolam - uma sociedade estatal) seria “moralmente indefensável” sempre que os dois elementos fossem interdependentes, caso em que o não respeito das responsabilidades inviabilizaria o funcionamento dos serviços e instituições que são essenciais para o respeito aos direitos. 

[85] Idem, ibidem, p. 21. O autor exemplifica (mas sem tomar partido), falando da hipótese de os motoristas de ônibus escolares serem submetidos a exames para detectar o consumo de substâncias ilícitas.

[86] Idem, ibidem, p. 22.

[87] Idem, ibidem, pp. 22-23.

[88] Idem, ibidem, pp. 24-25.

[89] Idem, ibidem, p. 25.

[90] Idem, ibidem, p. 25.

 

[91] Idem, ibidem, p. 25.

[92] Idem, ibidem, p. 26.

[93] Idem, ibidem, p. 27.

[94] Idem, ibidem, p. 28.

[95] Idem, ibidem, pp. 29-30.

[96] Idem, ibidem, p. 33.

[97] Idem, ibidem, p. 34.

[98] Idem, ibidem, p. 34.

[99] Ressalte-se que a utilização do termo “comunidade” no presente estudo não apresenta o mesmo significado que o termo assume para Rawls, pois para este, seria uma determinada “sociedade governada por uma doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente e compartilhada.” V. Rawls, Liberalismo político, pp. 84-86.

[100] David Hollenbach, op. cit., pp. 150-153, fala da virtude da “solidariedade expandida”, que se divide nas áreas intelectual, religiosa, artística e social. Ela pressupõe que as partes pertencentes a diferentes grupos e comunidades estejam dispostas a levar a sério os outros grupos e pessoas, de forma a viabilizar um diálogo sobre como o mundo interdependente (tecnologicamente, economicamente, politicamente, socialmente) que dividimos deveria ser moldado e estruturado. Há a esperança de que a compreensão substitua a incompreensão e que até alguns acordos sejam estabelecidos. Essas discussões, todavia, devem ocorrer não na esfera política governamental, mas na sociedade civil pluralista, composta pelas comunidades que são os detentores primários dos significados e valores culturais. As discussões pressupõem também uma educação questionadora do sentido da vida boa. Defende que as Universidades deveriam ser alguns dos locais onde discussões reais sobre a adequação ou veracidade de certas concepções do bem comum deveriam estar ocorrendo. Pressupõem ainda a promoção de experiências entre setores mais ricos e outros, menos favorecidos. Ressalta o Professor que o processo de expansão e aprofundamento do consenso deve continuar se queremos lidar com as novas formas de interdependência social de fins do séc. XX. As virtudes de solidariedade e responsabilidade mútua entre cidadãos são pré-requisitos para que essa interdependência seja reconhecida e orientada para o bem comum em uma democracia pluralista.

[101] Para Rawls, “A prioridade do justo e as concepções do bem”, in Justiça e Democracia, 2000, pp. 317-318, a educação das crianças deverá comportar o estudo de seus direitos cívicos e constitucionais, a fim de que elas saibam que a liberdade de consciência existe em sua sociedade de  forma que possam optar ao ser tornarem adultos, entre seguir ou não uma determinada concepção religiosa ou filosófica; além disso, a educação deve prepará-las para serem membros integrais da sociedade e capazes de autonomia; deve também encorajar as virtudes políticas a fim de que elas desejem respeitar os termos equitativos da cooperação social nas suas relações com o resto da sociedade.

[102] Cf. John Rawls, Liberalismo político, cit., p. 49., que na época fez um aperfeiçoamento em sua Teoria da Justiça, “o primeiro princípio, que trata dos direitos e liberdades básicos e iguais, pode ser facilmente precedido de um princípio lexicamente anterior, que prescreva a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, ao menos à medida que a satisfação dessas necessidades seja necessária para que os cidadãos entendam e tenham condições de exercer de forma fecunda esses direitos e liberdades”. Ou seja, seria como se Rawls reconhecesse a existência de um “princípio zero”, onde a dignidade humana nasceria. Sem acesso a educação, saúde, cultura, lazer, saneamento básico etc. (e aqui insiro a convivência comunitária), o ser humano não tem condição de se desenvolver com dignidade para exercer seus direitos civis e políticos. Afinal, se não possui saúde, sua liberdade de ir e vir fica prejudicada, se não possui boa instrução, não conseguirá um bom trabalho nem boa renda, o que também lhe tolherá a liberdade de ir para outros lugares; se não possui uma instrução de qualidade e uma cultura razoável em termos de conhecimentos sociais e políticos, poderá facilmente ser manipulado quando do exercício de seus direitos políticos. Veja-se, portanto, que todos os direitos estão relacionados, são interdependentes, mas uns – os direitos sociais, econômicos e culturais – são condicionantes para o bom exercício dos direitos civis e políticos.

[103] Entendemos dessa forma, pois mesmo nas cidades onde não há orçamento participativo, é competência privativa do Chefe do Executivo propor iniciativa de projeto de lei sobre orçamento, e cabe à Câmara, especialmente por seu presidente, encaminhar o projeto e proceder às votações das leis orçamentárias. E uma vez que, a partir do Estatuto da Cidade, a implantação do orçamento participativo passou a ser obrigatória, passou a também integrar uma fase procedimental necessária do processo orçamentário municipal, que, como visto, depende de atuação - mediante ato de ofício - dos chefes do Executivo e do Legislativo para que seja implementada.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAMA, Eduardo Pereira Nogueira da. Liberalismo de Rawls x comunitarismo: Diferenças, compatibilidades e condições para implantação dos ideais comunitaristas-liberais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5472, 25 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64770. Acesso em: 26 abr. 2024.