Capa da publicação Liberalimos de Rawls x comunitarismo: há condições para implantação dos ideais comunitaristas-liberais no Brasil?
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Liberalismo de Rawls x comunitarismo:

Diferenças, compatibilidades e condições para implantação dos ideais comunitaristas-liberais no Brasil

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Reflexões sobre as principais teorias comunitaristas – que ressaltam a importância dos laços comunitários para o exercício dos direitos humanos – em comparação com a teoria de justiça de Rawls. Estaria o Brasil preparado para abraçar essas ideias?

1. Contexto histórico de surgimento[1]

Nas últimas três décadas do século XX, ganhou nova força no mundo o “liberalismo individualista”[2], na filosofia política, na cultura social e na prática política de vários povos do mundo, o que acabou provocando um isolamento excessivo das pessoas em suas sociedades “estatais”. Esse “liberalismo renovado”, por sua vez, está relacionado com vários fatores: a) a “falência” do modelo de Estado conhecido como “Welfare State”, que gerou em inúmeros regimes capitalistas um Estado paternalista, agigantado e deficitário, por ter assumido inúmeras responsabilidades na satisfação dos interesses e necessidades sociais, muitas vezes além de suas capacidades; b) a derrocada dos regimes socialistas do leste europeu, o que fez com que os ideais “individualistas”, associados ao “bloco capitalista”, passassem a ser mais valorizados, em detrimento dos ideais integracionistas, associados geralmente ao extinto “bloco comunista”; c) a intensificação da interdependência entre mercados e do intercâmbio entre culturas, com o desenvolvimento de redes mundiais de comunicação em tempo real; a globalização financeira e comercial, informacional e cultural, por sua vez, leva a uma discussão permanente entre o universal/geral e o regional/particular. [3] d) a perda de legitimidade das democracias de base representativa/partidária, com a alienação dos indivíduos da esfera política e consequente hipertrofia da esfera privada e romântica, enquanto a esfera política é apropriada por grupos de interesses e elites oligárquicas. [4]

Como reação às distorções sociais provocadas pelo “liberalismo individualista”, desenvolveu-se, nos Estados Unidos da América, a partir de 1980, o movimento filosófico-político comunitarista, de caráter teórico-prático, com inúmeras vertentes doutrinárias[5] e os seguintes postulados básicos: a) a importância dos valores morais e de laços comunitários, no próprio desenvolvimento da autonomia dos indivíduos e na busca da justiça social; a questão se explica por as pessoas dificilmente desenvolverem as capacidades de raciocínio moral e prático, isoladamente umas das outras; b) o princípio de que a defesa de direitos individuais deve levar em conta não só os seus custos, mas também as responsabilidades sociais necessárias/complementares para o respeito desses direitos;[6] c) a orientação de que as políticas públicas governamentais devem dar mais atenção às várias instituições e grupos civis (comunidades) que integram o Estado, e que são diferentes do Mercado e do próprio Governo; d) a recomendação de que deve haver um estímulo ao desenvolvimento de virtudes cívicas necessárias entre pessoas e comunidades, promovendo-se uma maior distribuição das atividades de interesse social e a redução dos processos de atomização (isolamento) dos indivíduos.

É sobre esse movimento - o comunitarismo - que versa o presente trabalho, o qual tem como objetivo ressaltar algumas de suas discussões básicas que têm possibilitado o aprimoramento da doutrina dos direitos fundamentais.

Também procuraremos fazer uma correlação entre o pensamento comunitarista e a obra de John Ralws, pois foi a partir das discussões retomadas com a publicação de sua “Teoria da Justiça”, em 1971, que o movimento filosófico-político estudado se desenvolveu[7]. Discutiremos, por fim, algumas compatibilidades e diferenças de abordagem entre o pensamento rawlsiano e o pensamento comunitarista, tendo em vista uma contribuição para a teoria dos direitos fundamentais.

 


2. O liberalismo comunitarista

   Thomas Spragens, saindo em defesa de uma visão comunitarista inserida no legado liberal, observa que liberalismo e comunitarismo não são necessariamente teorias incompatíveis.[8] Considerado como corrente “contrária” ao liberalismo, o comunitarismo seria como que herdeiro da tradição cívica do partido republicano inglês do séc. XVIII, que fazia oposição aos adeptos de uma sociedade liberal fundada exclusivamente nos mercados e na proteção dos interesses (e direitos) individuais. [9]

Segundo o Professor, todavia, o ideal comunitarista que defende apenas considera insuficiente (parcialmente correta, portanto) a visão da sociedade como somatório de indivíduos na defesa de interesses privados, pois a sociedade abrange inúmeras esferas de relacionamento, além das inter-individuais, e muitos dos interesses individuais dependem sobretudo da consecução dos interesses mais importantes para a sociedade. É fato que os comunitaristas dão ênfase à promoção social de virtudes cívicas, bem como à criação de um rol de responsabilidades sociais correlatas aos direitos de cidadania. Mas isso não quer dizer que essas suas bandeiras sejam incompatíveis com a defesa dos interesses das pessoas e/ou dos indivíduos.[10]

A visão comunitarista está fundamentada na visão de que uma sociedade bem organizada abrange inúmeros círculos (ou redes) de ação formados pelas pessoas, os quais têm maior ou menor abrangência, podendo ser integrados (ou não) a entidades coletivas/comunitárias. O fato de que os indivíduos podem desenvolver diferentes capacidades, além daquela de autocontrole, demonstra que eles também podem desenvolver as qualidades necessárias para a cooperação e o autogoverno. Para os comunitaristas, toda sociedade deve ser pelo menos em parte o produto de condutas dirigidas à esfera pública.[11]

Objetivando fazer algumas correções sobre as ditas “visões estanques” do comunitarismo e do liberalismo, Spragens faz uma retrospectiva dos primórdios do liberalismo ocidental moderno, nos sécs. XVII, XVIII e XIX. Começa lembrando que no surgimento histórico do liberalismo, o conceito de liberdade era de importância central (mas não única) pelo fato de o movimento ter sido resultante da rejeição histórica à opressão do pensamento, da expressão, das atividades econômicas e religiosas.[12] A liberdades, como por exemplo a de comércio e a de religião, estavam intimamente ligadas à idéia de dignidade humana, além de serem consideradas como instrumentais para outros objetivos importantes, como maior igualdade, prosperidade, estabilidade social e harmonia cívica.

A liberdade, portanto, não representava o único valor do liberalismo, constituindo, porém, o foco de uma estratégia liberal que abarcava um rol complexo de aspirações, como igualdade política, amizade cívica e desenvolvimento individual. Saindo do campo normativo, observa-se que no campo filosófico o liberalismo também se apresentava de forma complexa, inspirando-se na ciência natural moderna e relacionando-se com idéias racionalistas e empiricistas.[13]   

Ressalta Spragens que, nesse contexto histórico, os liberais originais estavam implicitamente vinculados aos conceitos morais e filosóficos herdados da tradição clássica (grega). Tais pensadores eram moralmente mais tradicionais do que se imagina.[14] Refere-se o professor a Locke, Condorcet e Mill.

A obra de Locke é contemporânea à segunda revolução inglesa (1689), que aboliu definitivamente o regime de direito divino e instaurou uma monarquia constitucional na Inglaterra. Para o pensador, que era contrário ao “contrato de submissão” proposto por Hobbes, o conhecimento humano está ligado ao empirismo, e a motivação humana inclui valores hedonistas, mas nem por isso a sua base ideológica era positivista ou materialista. Ele acreditava em Deus, tendo escrito tratados morais e religiosos; acreditava também nas leis da natureza; defendia que a educação deveria ser dirigida para o cultivo da virtude.

 Se por um lado essa era uma concepção um pouco burguesa da virtude, nem por isso era uma celebração de um autointeresse isolado. Seu individualismo político e econômico era limitado por outros valores e obrigações: assim, por exemplo, os direitos de propriedade privada estavam vinculados ao esforço (trabalho) humano; as nossas próprias vidas, sendo propriedade de Deus, não poderiam ser tiradas nem por nós mesmos; devemos administrar nossas vidas de forma responsável. [15]

Assim, para Locke, os direitos individuais eram complementados de obrigações morais, por meio de um compromisso com o bem comum que constituía o propósito das sociedades. Tratava-se de um teórico procurando um equilíbrio entre contrato e consenso, entre Direito Natural e direitos naturais; um misto de liberdade, igualdade legal e moral (não social ou econômica), cooperação social e promoção da virtude.[16]

Escrevendo um século ou mais adiante, Condorcet e John Stuart Mill também exibiram uma concepção tradicional de sociedade, ligada a noções sobre as virtudes humanas, apesar de tanto o primeiro (anticlérico) quanto o segundo (agnóstico) não ligarem tais noções a quaisquer crenças teológicas. Para eles a sociedade liberal se justificava por permitir o desenvolvimento moral das pessoas/cidadãos, evitando-se que os cidadãos exigissem para si mais do que a sua parte devida (sendo esse excesso chamado pelos gregos de “pleonexia”). O controle racional sobre as paixões era fundamental para a conduta moral; as virtudes abrangiam a benevolência, a capacidade de compartilhar dos sentimentos de outros (compaixão, ou “sympathy”); o compromisso com a verdade. Aliás, esta última era vista como uma obrigação moral, parte do florescimento humano e característica de boas sociedades. Tais pensadores podem ter se afastado do veio principal clássico (a tradição de civilidade), em face de seu secularismo e de seu otimismo exacerbado sobre a capacidade da ilustração (o conhecimento) de gerar virtudes. Mas eles sem dúvida estavam inseridos naquela tradição moral, não eram céticos e nem relativistas morais.[17]

Apartando-se um pouco da tradição moral clássica, tanto Condorcet quanto Mill passariam a defender um complexo conjunto de bens humanos autenticamente “liberal”, por estarem centrados na autodeterminação política, civil e econômica. Todavia, a expansão das liberdades civis e a maximização da igualdade política eram valorizadas não só como bens em si mesmas, mas como causas eficazes da criação de outros bens humanos. Dentre estes, podemos citar a criação de uma união social contra opressões; o aumento da igualdade social, da prosperidade, da estabilidade e da amizade cívica; o desenvolvimento moral, a solidariedade social e o senso comunitário. Lembra o Professor Spragens que esse “otimismo” (em relação ao poder transformador da liberdade e da igualdade), se por um lado era um pouco exagerado, por outro, estava fundado na convicção de que todos esses “bens humanos” eram mutuamente causativos.[18]

Essa “fundamentação moral” da sociedade, conforme idealizada pelos pensadores liberais citados, veio, todavia, a sofrer uma erosão considerável na filosofia, nas ciências e na cultura, a partir de fins do séc. XIX. O darwinismo pôs em crise o sentido de natureza fixa que em Hume gerara a noção de uma moralidade universal (e que viria a influenciar Kant[19]); o relativismo e o historicismo levaram ao abandono da crença em uma ordem natural e em direitos naturais que inspirara o liberalismo de Jefferson e Paine; o positivismo e o emotivismo questionaram a importância cognitiva de todos os postulados morais; o existencialismo, em sua forma mais radical, propôs que a escolha de um plano de vida é um ato de vontade totalmente ilimitado. Por fim, o pós-modernismo trouxe a idéia de que todas as normas sociais são politicamente construídas, arbitrárias e contingentes (incertas, casuais).  [20]   

O liberalismo contemporâneo estaria situado em um contexto cultural diferente daquele que nutriu e limitou o liberalismo original,[21] sendo mais secular, mais materialista, mais agnóstico[22] com relação à boa vida e à virtude humana, tendo radicalizado a concepção de individualismo político. De se ver que, a partir de fins do séc. XIX, se por um lado a maximização da liberdade e da igualdade teria acabado com as desigualdades políticas, por outro, não teria impedido a concentração de poder econômico e o consequente distanciamento entre as elites e os trabalhadores.[23]   

No séc. XX, os liberais, orientados para o discurso dos direitos, passaram a priorizar a liberdade, sendo chamados de “libertarianistas”, ou a igualdade, sendo denominados de “igualitarianistas”. Ambas as duas vertentes liberais seriam individualistas, e tendo diferentes premissas morais, todavia não dariam tanta importância à questão da virtude e dos objetivos da comunidade. Esta não seria ignorada, mas vista de forma secundária.[24]

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Para os liberais “libertarianistas”, como Robert Nozick, os direitos deveriam ser assegurados aos indivíduos desde que estes respeitassem os direitos de outros. Milton Friedman fala da incompatibilidade da teoria liberal com as idéias dos igualitarianistas, por defender que o liberalismo não é uma ética que abrange tudo e todos, e que o problema ético deve ser resolvido pelo indivíduo. Para a corrente libertarianista, a virtude de uma sociedade orientada pelo mercado é a redução do atrito social por não forçar decisões majoritárias sobre a alocação de bens sociais; ela daria valor à comunidade pois seu sistema não contribui para a sua desordem e rebelião. Os mercados seriam formados pelas transações consensuais de indivíduos agindo em interesse próprio, sendo essa a essência da interação social legítima.[25]

Já para os liberais igualitarianistas, como por exemplo John Rawls e Bruce Ackerman[26], todos os direitos válidos seriam limitados por uma “norma superior da igualdade”. A liberdade é importante na vida humana, e liberdades específicas são permitidas desde que não comprometam as chances de vida dos cidadãos desafortunados.[27] O plano de vida de cada um deve ser tão valioso quanto o de qualquer outro. [28] [29]

Como prestam atenção apenas periférica e/ou secundária à comunidade, libertarianistas e igualitarianistas acabam desenvolvendo visões inadequadas sobre o que é necessário para criar comunidades, dentro de políticas que prejudicam laços comunitários. A igualdade entre os cidadãos seria necessária para eliminar as barreiras ao desenvolvimento da amizade cívica, mas não seria suficiente, por si só, para desenvolvê-la. Rawls, por exemplo, em seu conceito de “união social” presume que as pessoas possam aderir a uma concepção comum de justiça, e se sacrificar por seus concidadãos mesmo que tenham noções incompatíveis do bem.[30]

Segundo Thomas Spragens, nenhuma das duas correntes fornece uma noção convincente da “boa sociedade”, por extraírem um elemento de seu contexto e o oferecerem como objetivo principal da organização política e das políticas públicas. Ambas têm partes da verdade, perdendo todavia dimensões de uma sociedade bem ordenada.[31] As críticas trocadas seriam mais sólidas do que cada registro ou teoria própria: os libertarianistas não percebem que uma sociedade fundada exclusivamente no mercado leva a desigualdades profundas, gerando divisões e tensões sociais e preocupações egoístas; os igualitarianistas, por sua vez, não percebem que o regime estatista, enquanto motor da igualdade, seria por demais coercitivo, deletério da excelência e da eficiência e estimulador de outras formas de hostilidade grupal. O professor questiona como a liberdade, vista como simples “falta de impedimento” (na herança teórica de Hobbes), pode ser a finalidade essencial de uma sociedade; além disso, questiona também em que termos se quer uma sociedade “igualitária”, pois seria preferível ocupar uma posição inferior (e desigual) em uma sociedade próspera, do que ocupar uma posição igual a todos em uma sociedade pobre.[32] 

Nessa linha, Spragens defende o comunitarismo como uma tentativa de reforma do liberalismo, resgatando a complexidade normativa e a profundidade moral que se perdeu nos últimos séculos, ressaltando que não pretende com isso retornar às teorias do séc. XVII, pois que elas tinham incoerências e fraquezas, como a de misturar tradições morais com as novas epistemologias, ontologias e antropologias de então (lembre-se da “tendência natural” da riqueza de gerar a distribuição de bens sociais...). O cenário político e filosófico do séc. XX (e do séc. XXI) é diferente, por apresentar inúmeras formas de pensar convivendo entre si; a realidade contemporânea abrange capitalismo industrial, globalização, democracia de massas e pluralismo social. [33]

Quando se refere ao resgate da complexidade normativa do liberalismo original, o Professor tem em mente os três valores fundamentais da revolução francesa, liberdade, igualdade e fraternidade.[34] As variantes liberais desenvolvidas no séc. XX ter-se-iam tornado problemáticas por enfatizarem o primeiro ou o segundo valor em detrimento do último, visto como “amizade cívica em uma comunidade florescente”. Este deve ser o objetivo último de uma sociedade liberal, desde que os outros dois valores também sejam garantidos de forma extensiva a todos os cidadãos.[35]   

Por sua vez, ao se referir ao “resgate da dimensão moral“ do liberalismo, o Professor Spragens ressalta que ela se perdeu nas teorias contemporâneas muito em face de seus exageros, não se podendo privilegiar uma doutrina da perfeição humana. O Estado liberal deve manter a neutralidade ante as várias doutrinas morais e religiosas, mas não uma neutralidade absoluta, pois há que se diferenciar os bons cidadãos dos sociopatas. Algumas virtudes cívicas liberais devem ser reconhecidas e estimuladas, como o autocontrole, a aceitação da legalidade, o respeito pelos direitos dos outros, a disposição de se engajar em projetos comuns (defendidas por Mill), sendo essenciais para viabilidade das democracias liberais e presentes em bons governos. O desenvolvimento moral seria derivado de uma cidadania democrática, onde existe um “consenso sobreposto” acerca dos pontos centrais da vida moral.[36] A busca desse “consenso” não pode ser ignorada ou pressuposta (a não ser em comunidades homogêneas), sendo essencial para uma organização social integrada com o seu governo.[37]  Isso não significa adotar uma doutrina sectária do bem e nem interferir nos planos pessoais de cada um, mas possibilitar que estes se desenvolvam em um ambiente pluralista.[38]

  O resgate da complexidade normativa e da dimensão moral do liberalismo, dentro da linha do comunitarismo liberal, traria implicações para as políticas públicas e para a organização social: reconhecendo-se sempre a importância do Governo e do Mercado na estrutura social, deve-se, todavia, prestar a devida atenção para as condições dos outros elementos institucionais da Sociedade Civil, que abrangem comunidades locais, famílias, vizinhanças, igrejas, instituições educacionais e associações civis. Nesse diapasão, essenciais as políticas públicas de apoio à saúde dessas instituições civis, promovendo a amizade cívica e um senso de objetivo comum; limitando o poder excludente e enfraquecedor de governos ou mercados fortes. Assim, haverá um ambiente produtivo para o desenvolvimento humano e para a felicidade. [39]

Essa visão comunitarista liberal, reconhecendo a importância dos direitos individuais na proteção dos cidadãos contra a opressão majoritária, todavia, entende que quando o confronto jurídico (entre direitos individuais) passa a ser a forma paradigmática de interação social, a sociedade se torna amarga e dividida, e que, portanto, devem-se construir formas políticas de mediação, reconciliação e compromisso, que buscam a síntese criativa de interesses diversos e preocupações morais divergentes. Em face de tal postura, os comunitaristas tendem a apoiar políticas públicas e outros projetos que ofereçam a possibilidade de criar laços entre as usuais fissuras de classe, raça, etnia e religião. [40] Menciona o professor o “Programa de Serviço Nacional”, dizendo ainda que os comunitaristas procurarão promover instituições, como escolas públicas, que coloquem pessoas de diferentes origens, classes e grupos atuando em projetos comuns. A retórica comunitarista abrangeria termos como “identidade comum” e “inclusividade”.[41]

Nesse contexto, a manutenção e o encorajamento de uma esfera pública deliberativa é vital na formulação de políticas públicas. [42]A cidadania passa a ser um conceito mais robusto, as pessoas deixam de ser recebedores passivos de proteção e benefícios do governo e passam a ter papel ativo nos assuntos de interesse comum, dividindo responsabilidades pelo bem de todos. Concordamos com o autor quando este ressalta que, por sua vez, a criação de uma “cidadania responsável” não deve ser imposta a princípio por se tratar mais de uma questão cultural do que legal. O desenvolvimento da cidadania, portanto, deve ser em regra apenas estimulado por meio de educação cívica e de rituais da esfera pública acessíveis a todos. [43]

Conclui o Professor Spragens que o “comunitarismo liberal” é plenamente possível e desejável, pois, ao tempo em que abraça as bandeiras tipicamente liberais, como o compromisso com o governo representativo, a legitimação pelo consenso, o respeito ao Direito, os direitos e as liberdades civis, todavia também defende uma concepção da “sociedade boa” fundada em laços comunitários, os quais já eram valorizados nos textos dos liberais originais. Nesse sentido, o comunitarismo seria reformador e não substitutivo do liberalismo, agindo contra os efeitos nocivos da “utopia do mercado“ (do libertarianismo) e da “utopia do Estado de Bem-estar” (do igualitarianismo). [44]

 

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Sobre o autor
Eduardo Pereira Nogueira da Gama

Delegado de Polícia Civil do DF, Professor de Direito Administrativo, Direito Penal e Direito Processual Penal, Mestre em Direito Público (UERJ-2003), Especialista em Gestão de Polícia Civil (UCB-2010), Bacharel em Direito (UFES-1997)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAMA, Eduardo Pereira Nogueira. Liberalismo de Rawls x comunitarismo:: Diferenças, compatibilidades e condições para implantação dos ideais comunitaristas-liberais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5472, 25 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64770. Acesso em: 21 nov. 2024.

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