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Presunção de inocência, garantismo integral e a execução provisória da pena

Presunção de inocência, garantismo integral e a execução provisória da pena

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Aguardar o trânsito em julgado para, só a partir de então, executar a pena, confere proteção deficiente a objetivos e bens jurídicos tutelados pela ordem constitucional.

 

1.Garantismo Integral

Não se duvida que nosso processo penal é garantista. E assim deve continuar sendo. Todavia, é preciso bem compreender o que é o garantismo. Para muitos, o garantismo serviria apenas para beneficiar o réu, como forma de proteção de seus direitos fundamentais individuais. Isso não está incorreto, mas está incompleto. Por isso essa forma de visualizar o garantismo é chamado de hiperbólico monocular. É hiperbólico porque é aplicado de uma forma exagerada e é monocularporque só enxerga os direitos fundamentais do réu. Contrapõe-se ao garantismo integral, que visa resguardar os direitos fundamentais não só dos réus, mas também das vítimas e da sociedade. Em outras palavras, o que se propõe é um direito processual penal garantista e funcional, que garanta os direitos do réu, mas também seja eficiente a atingir a proteção da sociedade.

A vítima possui direitos fundamentais, violados em razão da prática criminosa (vida, integridade física, dignidade sexual, patrimônio, etc.), devendo, portanto, também ser tutelados pelo direito penal e processual penal. Quando a sociedade não é a própria vítima do crime, inegavelmente ela sofre violação aos seus direitos em razão de toda e qualquer prática criminosa (a ordem pública, a paz social, a segurança geral, etc.), que também devem ser defendidos pelo sistema penal e processual penal. Por isso, não se pode visualizar o sistema penal e processual penal tão somente como um aparato próprio à salvaguarda de direitos do réu. No crime, a vítima e a sociedade também tiveram direitos violados, que merecem ampla tutela.

Em outras palavras, ao se visualizar o garantismo de forma míope, como forma de proteção do réu contra os abusos estatais olvidando a proteção da sociedade, observamos um enfraquecimento do sistema penal e processual penal, e consequentemente, dos aparatos estatais atuantes na persecução criminal, atenuando, por conseguinte, o poder-dever estatal de punir criminosos, de desmantelar grandes organizações criminosas, de coibir graves crimes, enfim, mitigando a possibilidade de transformar a realidade social em prol da paz, segurança e do bem comum, exatamente o que se espera do sistema judicial e em especial do sistema judicial-penal.

Já de algum tempo tem-se difundido no âmbito jurídico que o Direito Penal deveria ser utilizado como sendo a ultima ratio, bem como, na aplicação do Direito, devam ser observados ao máximo os direitos e garantias fundamentais do cidadão que venha a ser investigado ou processado criminalmente. Estamos de acordo integralmente com tais premissas. A questão que se pretende na presente – e brevíssima – análise é tentar demonstrar que há alguns equívocos nas premissas e conclusões que se têm tomado com fundamento em ideais garantistas, incorrendo-se – não raras vezes – no que temos denominado de garantismo hiperbólico monocular, hipótese diversa do sentido proposto por Luigi Ferrajoli (ao menos em nossa leitura). Se é possível definir de forma bastante sintética e inicial, a tese central do garantismo está em que sejam observados rigidamente os direitos fundamentais (também os deveres fundamentais, dizemos) estampados na Constituição. Normas de hierarquia inferior (e até em alterações constitucionais) ou então interpretações judiciais não podem solapar o que já está (e bem) delineado constitucionalmente na seara dos direitos (e deveres) fundamentais. Embora eles não estejam única e topicamente ali, convém acentuar já aqui que o art. 5º da Constituição está inserto em capítulo que trata “dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Assim, como forma de maximizar os fundamentos garantistas, a função do hermeneuta está em buscar quais os valores e critérios que possam limitar ou conformar constitucionalmente o Direito Penal e o Direito Processual Penal.[...] Por esse espectro, importa que, diante de uma Constituição que preveja, explícita ou implicitamente, a necessidade de proteção de determinados bens jurídicos e de proteção ativa dos interesses da sociedade e dos investigados e/ou processados, incumbe o dever de se visualizarem os contornos (integrais, e não monoculares, muito menos de forma hiperbólica) do sistema garantista. [...] Vale dizer: quer-se estabelecer uma imunidade – e não im(p)unidade – dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e também a proteção dos interesses coletivos. Se todos os Poderes estão vinculados a esses paradigmas – como de fato estão –, especialmente é o Poder Judiciário que tem o dever de dar garantia aos cidadãos (sem descurar da necessária proteção social) diante das eventuais violações que eles virem a sofrer.[...] Quando dizemos que tem havido uma disseminação de uma ideia apenas parcial dos ideais garantistas (daí nos referirmos a um garantismo hiperbólico monocular) é porque muitas vezes não se tem notado que não estão em voga (reclamando a devida e necessária proteção) exclusivamente os direitos fundamentais, sobretudo os individuais. Se compreendidos sistemicamente e contextualizados à realidade vigente, há se ver que os pilares do garantismo não demandam a aplicação de suas premissas unicamente como forma de afastar os excessos injustificados do Estado à luz da Constituição (proteção do mais fraco). Quer-se dizer que não se deve invocar a aplicação exclusiva do que se tem chamado de “garantismo negativo”. Hodiernamente (e já assim admitia Ferrajoli embrionariamente, embora não nessas palavras), o garantismo penal não se esgota numa visão de coibir (apenas) excessos do Leviatã (numa visão hobesiana). Em percuciente análise do tema ora invocado, Gilmar Mendes já se manifestou de forma abstrata acerca dos direitos fundamentais e dos deveres de proteção, assentando que “os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção [...], expressando também um postulado de proteção [...]. Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção: [...] (b) Dever de segurança [...], que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas; [...] Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não-observância de um dever de proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental. [...]”. É o que se tem denominado – esse dever de proteção – de garantismo positivo. Sintetizando, em nossa compreensão, embora construídos por premissas e prismas um pouco diversos, o princípio da proporcionalidade (em seus dois parâmetros: o que não ultrapassar as balizas do excesso e da deficiência é proporcional) e a teoria do garantismo penal expressam a mesma preocupação: o equilíbrio na proteção de todos (individuais ou coletivos) direitos e deveres fundamentais expressos na Carta Maior. Quer-se dizer com isso que, em nossa compreensão (integral) dos postulados garantistas, o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (individuais e sociais), há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e a segurança, evitando-se a impunidade. O dever de garantir a segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também (segundo pensamos) na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, na punição do responsável. Se a onda continuar como está, poderá varrer por completo a também necessária proteção dos interesses sociais e coletivos. Então poderá ser tarde demais quando constatarmos o equívoco em que se está incorrendo no presente ao se maximizar exclusiva e parcialmente as concepções fundamentais do Garantismo Penal (FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral [e não o garantismo hiperbólico monocular] e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 28, mar. 2009).

É dizer, será tanto ilegítima a omissão estatal do dever de proteção da sociedade, por atuação insuficiente dos seus órgãos repressivos, quanto o excesso eventualmente cometido em desfavor do imputado, ao argumento de ser devida a proteção penal efetiva de toda a coletividade. Em contraponto, à proibição de excesso dos órgãos e agentes estatais em relação ao indivíduo a quem se imputa a prática de infração penal, releva também dar igual importância à proibição de proteção insuficiente de toda a coletividade, pelo mesmo Estado (STRECK. Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade. Revista da AJURIS, ano XXXII, nº 97, março⁄2005, p. 180).

Diante de uma Constituição que prevê a necessidade de proteção da sociedade, além da necessidade de proteção dos investigados e/ou processados, o garantismo deve ser lido com sua dupla face. O que se propõe, portanto, é a visão do garantismo processual penal integral, enfim, um garantismo negativo (proibição do excesso) e garantismo positivo (proibição da insuficiência e dever de proteção)[1].

 

2. Presunção de inocência ou da não culpabilidade.

A presunção de inocência[2] significa que todos são presumidamente inocentes até a condenação criminal transitada em julgado. Em outras palavras, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

No Brasil, nenhum princípio foi levado tão ao extremo como o da presunção de inocência ou da não culpabilidade, que em razão de uma exegese exacerbada, acabou transformando tal princípio em um valor absoluto.

É verdade, e disso não se duvida, que a CF (art. 5º LVII) consagra no âmbito processual penal o princípio da presunção de inocência (ou da não culpabilidade), que possui implicações como regra de processo (o ônus da prova é da acusação, impedindo-se que alguém seja obrigado a produzir prova contra si mesmo), regra de julgamento (in dubio pro reo) e regra de tratamento (que impede que o suspeito, o indiciado, o denunciado ou o réu, sejam tratados como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário, impedindo, assim, restrições antecipadas aos direitos dos cidadãos, salvo a concessão de cautelares em caráter excepcional).

 

3. A relativização da presunção de inocência

Todavia, a presunção de inocência não é um valor absoluto, como toda e qualquer garantia constitucional. A presunção de inocência é princípio que pode ser relativizado quando em conflito com outros valores de similar importância constitucional[3]. O núcleo da presunção de inocência não pode ser relativizado (teoria dos limites dos limites). Todavia, a presunção de inocência possui além do núcleo (que não pode ser relativizado), um âmbito de proteção mais ampla (proteção prima facie), que pode ser relativizado com base no princípio da proporcionalidade (ponderação de interesses), quando outros valores constitucionais sobrepujarem. Essa é uma tendência de vários países democráticos pelo mundo afora. E no Brasil, também percebemos essa evolução. Vejamos exemplos colhidos dos nossos Tribunais Superiores:

3.1. Na Lei da Ficha Limpa (LC 135/10), a inelegibilidade se dá àqueles condenados criminalmente (pelos crimes nela referidos) em julgamento colegiado. Entendeu o STF, na ADI 4578, pela mitigação da presunção de inocência em razão da moralidade eleitoral (art. 14 § 9º CF).

A presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a uma redução teleológica, que reaproxime o enunciado normativo da sua própria literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal (que podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilidade), sob pena de frustrar o propósito moralizante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal.(ADI 4578, Relator(a): Min. LUIZ FUX, ribunal Pleno, julgado em 16/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-127 DIVULG 28-06-2012 PUBLIC 29-06-2012)[4]

3.2. A Súmula 444 do STJ, que trata dos maus antecedentes,tem como base a presunção de inocência: é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base.  Da mesma forma decidiu o STF, em sede de repercussão geral:

PENA – FIXAÇÃO – ANTECEDENTES CRIMINAIS – INQUÉRITOS E PROCESSOS EM CURSO – DESINFLUÊNCIA. Ante o princípio constitucional da não culpabilidade, inquéritos e processos criminais em curso são neutros na definição dos antecedentes criminais. (STF. RE 591054, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-037 DIVULG 25-02-2015 PUBLIC 26-02-2015).

É verdade que o STF nesse julgado registrou entendimentos contrários, sob a exegese de que a presunção de inocência não é um direito absoluto, podendo ser relativizada (princípio da proporcionalidade) ante outros princípios constitucionais (no caso, a igualdade e a individualização da pena). O que chama a atenção é que, em julgados posteriores, o Pleno do STF (HC 94.620 e 94.680) reconheceu a possibilidade de mudar de entendimento, instando a PGR a reencaminhar o caso ao pleno do STF para reanálise do tema (aproximando-se à hipótese de anticipatory overruling).

3.3. Também observamos na jurisprudência a desnecessidade de sentença condenatória transitada em julgado: a) para a regressão de regime em razão de novo crime (art. 118 I LEP – sob o fundamento de se tratar de medida sancionatória-disciplinar no âmbito da execução penal); b) para impedir benefícios penais (sob o fundamento de se tratar de avaliação do mérito do réu para alcançar benesses legais), tal qual o art. 89 da Lei 9099/95 (suspensão condicional do processo) e art. 33 § 4º da Lei 11343/2006 (tráfico com redução da pena); c) para justificar a prisão preventiva, conforme o art. 312 do CPP (garantia da ordem pública - em razão do risco de reiteração criminosa):

O art. 118, I, da Lei 7.210/1984 prevê a regressão de regime se o apenado “praticar fato definido como crime doloso ou falta grave”. Para caracterização do fato, não exige a lei o trânsito em julgado da condenação criminal em relação ao crime praticado. Precedentes. (STF. HC 110881, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 20/11/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-154 DIVULG 07-08-2013 PUBLIC 08-08-2013)[5]

A suspensão condicional do processo é benefício que não alcança o acusado que esteja sendo processado ou condenado por outro crime. Precedentes. Recurso desprovido. (STF. RHC 79460, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 27/10/1999, DJ 18-05-2001 PP-00091 EMENT VOL-02030-02 PP-00410 RTJ VOL-00177-02 PP-00838)

O benefício legal previsto no §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06 pressupõe o   preenchimento pelo Réu de  todos  os  requisitos cumulativamente, sendo eles: i) primariedade; ii) bons antecedentes; iii)   não  dedicação  em  atividade  criminosa;  iv)  não  integrar organização criminosa.  O  crime  de  tráfico de drogas deve ser analisado sempre com observância ao mandamento constitucional de criminalização previsto no  artigo  5º, XLIII, da Constituição Federal, uma vez que se trata de  determinação do constituinte originário para maior reprimenda ao delito,  atendendo,  assim,  ao  princípio  da  vedação  de proteção deficiente.  Assim,  é possível a utilização de inquéritos policiais e/ou ações  penais  em  curso  para formação da convicção de que o Réu se dedica  à atividades criminosas, de modo a afastar o benefício legal previsto  no  artigo  33,  §4º,  da  Lei  11.343/06  (STJ. EREsp 1431091/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/12/2016, DJe 01/02/2017)

Conforme orientação jurisprudencial desta Corte, inquéritos e ações penais em curso constituem elementos capazes de demonstrar o risco concreto de reiteração delituosa, justificando a decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública. (STJ. RHC 70.698/MG, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 28/06/2016, DJe 01/08/2016)

3.4.Inquéritos e ações penais em curso, quando demonstrativos da reiteração delitiva e da contumácia na prática criminosa pelo agente, são considerados como vetores impeditivos da aplicação do princípio da insignificância, ao argumento de que tais circunstâncias denotam maior grau de reprovabilidade do comportamento lesivo.

Conforme entendimento pacífico desta Corte Superior de Justiça, apesar de não configurar reincidência, a existência de outras ações penais, inquéritos policiais em curso ou procedimentos administrativos fiscais, é suficiente para caracterizar a habitualidade delitiva e, consequentemente, afastar a incidência do princípio da insignificância. (STJ. AgRg no REsp 1706031/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 22/03/2018, DJe 02/04/2018)

3.5. Em matéria infracional, também observamos a relativização da presunção de inocência. É cabível o imediato cumprimento da medida de internação aplicada ao adolescente em sentença, ainda que este tenha recorrido da decisão, e mesmo que ele não tenha sido internado provisoriamente durante o processo infracional. Tem entendido o STJ não haver violação ao princípio da presunção de inocência, ante o escopo precípuo da medida de internação, qual seja, a reeducação, invocando, ainda, o princípio da intervenção precoce (art. 100, parágrafo único, VI, ECA). 

Condicionar a execução da medida socioeducativa ao trânsito em julgado da sentença que acolhe a representação constitui verdadeiro obstáculo ao escopo ressocializador da intervenção estatal, além de permitir que o adolescente permaneça em situação de risco, exposto aos mesmos fatores que o levaram à prática infracional. (STJ. HC 301.135/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 21/10/2014, DJe 01/12/2014)[6]

 

4. Execução Provisória da Pena

Por fim, a hipótese mais atual e mais controversa. Desde a decisão plenária no HC 84078, em 2009, o STF se posicionava no sentido de que a execução provisória da pena (antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória) só poderia se dar se o réu estivesse (ou fosse) preso cautelarmente. Entendia o STF que o princípio da presunção de inocência se mostra incompatível com a execução da sentença antes do trânsito em julgado da condenação, eis que a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória somente poderia ser decretada a título cautelar.

HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. (STF. HC 84078, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-05 PP-01048)

Todavia, em 2016, o pleno do STF passou a decidir de forma absolutamente diversa, em autêntica superação do precedente (overruling):

CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.(STF. HC 126292, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016)[7]

Tal entendimento foi confirmado pelo Pleno do STF, em outras duas oportunidades: em sede de medida cautelar na ADC 43[8], e também em sede de repercussão geral no ARE 964246.

MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ART. 283 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE APÓS O ESGOTAMENTO DO PRONUNCIAMENTO JUDICIAL EM SEGUNDO GRAU. COMPATIBILIDADE COM O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DO HC 126.292. EFEITO MERAMENTE DEVOLUTIVO DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS E ESPECIAL. REGRA ESPECIAL ASSOCIADA À DISPOSIÇÃO GERAL DO ART. 283 DO CPP QUE CONDICIONA A EFICÁCIA DOS PROVIMENTOS JURISDICIONAIS CONDENATÓRIOS AO TRÂNSITO EM JULGADO. IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA. INAPLICABILIDADE AOS PRECEDENTES JUDICIAIS. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 283 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA. 1. No julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, a composição plenária do Supremo Tribunal Federal retomou orientação antes predominante na Corte e assentou a tese segundo a qual “A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal”. 2. No âmbito criminal, a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial detém caráter excepcional (art. 995 e art. 1.029, § 5º, ambos do CPC c/c art. 3º e 637 do CPP), normativa compatível com a regra do art. 5º, LVII, da Constituição da República. Efetivamente, o acesso individual às instâncias extraordinárias visa a propiciar a esta Suprema Corte e ao Superior Tribunal de Justiça exercer seus papéis de estabilizadores, uniformizadores e pacificadores da interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional. 3. Inexiste antinomia entre a especial regra que confere eficácia imediata aos acórdãos somente atacáveis pela via dos recursos excepcionais e a disposição geral que exige o trânsito em julgado como pressuposto para a produção de efeitos da prisão decorrente de sentença condenatória a que alude o art. 283 do CPP. 4. O retorno à compreensão emanada anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de conferir efeito paralisante a absolutamente todas decisões colegiadas prolatadas em segundo grau de jurisdição, investindo os Tribunais Superiores em terceiro e quarto graus, revela-se inapropriado com as competências atribuídas constitucionalmente às Cortes de cúpula. 5. A irretroatividade figura como matéria atrelada à aplicação da lei penal no tempo, ato normativo idôneo a inovar a ordem jurídica, descabendo atribuir ultratividade a compreensões jurisprudenciais cujo objeto não tenha reflexo na compreensão da ilicitude das condutas. Na espécie, o debate cinge-se ao plano processual, sem reflexo, direto, na existência ou intensidade do direito de punir, mas, tão somente, no momento de punir. 6. Declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, com interpretação conforme à Constituição, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação assentada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível. 7. Medida cautelar indeferida.(ADC 43 MC, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 05/10/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-043 DIVULG 06-03-2018 PUBLIC 07-03-2018)

CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). ACÓRDÃO PENAL CONDENATÓRIO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. JURISPRUDÊNCIA REAFIRMADA. 1. Em regime de repercussão geral, fica reafirmada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. 2. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com o reconhecimento da repercussão geral do tema e a reafirmação da jurisprudência sobre a matéria. (STF. ARE 964246 RG, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, julgado em 10/11/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-251 DIVULG 24-11-2016 PUBLIC 25-11-2016)

Em síntese apertada, o STF passou a entender que a presunção de inocência pode ser relativizada quando ocorre o julgamento em segunda instância, pois finda a apreciação fático-probatória (eis que o recurso especial e extraordinário não reavalia matéria fático-probatória). A partir daí (ressalvada a possibilidade de concessão de efeitos suspensivos ao recurso especial e extraordinário), é possível a execução provisória da pena, eis que passa a ter valor maior o princípio da efetividade e credibilidade do sistema judicial-penal, além da necessária proteção eficiente dos objetivos e bens jurídicos tutelados pelo direito penal e processual penal, com amparo constitucional (art. 5º caput, LXXVIII, e art. 144 da CF). Em outras palavras, aguardar o trânsito em julgado para só a partir de então executar a pena, confere proteção deficiente a objetivos e bens jurídicos tutelados pela ordem constitucional. Trata-se, portanto, da aplicação correta do garantismo integral.

Perceba que há uma colisão de valores constitucionais. De um lado, o princípio da não culpabilidade. De outro, o da efetividade mínima do sistema judicial-penal, que abriga valores importantes como a realização da justiça e a proteção dos direitos fundamentais. Quando a investigação começa, o princípio da presunção de inocência possui peso máximo. Todavia, ele vai diminuindo ao longo do processo penal. Quando da condenação em segunda instância, o equilíbrio se inverte: os outros valores protegidos pelo sistema judicial-penal passam a ter mais peso do que a presunção de inocência e, portanto, devem prevalecer. A ponderação é feita com o auxílio do princípio da proporcionalidade, que possui duas vertentes: a) proibição do excesso; b) vedação à proteção deficiente. Um sistema em que os processos se eternizam, gerando longa demora até a punição adequada, prescrição e impunidade constitui evidente proteção deficiente dos valores constitucionais abrigados na efetividade mínima exigível do sistema judicial-penal.

Consoante  entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento  do  ARE  n.  964.243,  sob  a sistemática da repercussão geral,  é  possível a execução da pena depois da prolação de acórdão em  segundo  grau  de  jurisdição  e antes do trânsito em julgado da condenação,  para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos constitucionais por ele tutelados. (STJ. HC 366.907/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 06/12/2016, DJe 16/12/2016)

Inclusive, esse entendimento deve prevalecer nos casos de condenados de forma originária em segunda instância por possuírem foro privilegiado (quem recebe o bônus deve arcar com o ônus) e também àqueles condenados em primeira instância em julgamento colegiado pelo tribunal do júri (ante a soberania dos veredictos – art. 5º XXXVIII “c” CF), o que inclusive está previsto expressamente no art. 492 I “e” do CPP, quando a pena – decorrente de condenação pelo Tribunal do Júri - seja igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão.

É possível a execução provisória de pena imposta em acordão condenatório proferido em ação penal de competência originária de tribunal. (STJ. EDcl no REsp 1484415/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 03/03/2016, DJe 14/04/2016. Informativo 581)

Direito Constitucional e Penal. Habeas Corpus. Duplo Homicídio, ambos qualificados. Condenação pelo Tribunal do Júri. Soberania dos veredictos. Início do cumprimento da pena. Possibilidade. 1. A Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d). Prevê, ademais, a soberania dos veredictos (art. 5º, inciso XXXVIII, c), a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular. 2. Diante disso, não viola o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso. Essa decisão está em consonância com a lógica do precedente firmado em repercussão geral no ARE 964.246-RG, Rel. Min. Teori Zavascki, já que, também no caso de decisão do Júri, o Tribunal não poderá reapreciar os fatos e provas, na medida em que a responsabilidade penal do réu já foi assentada soberanamente pelo Júri. 3. Caso haja fortes indícios de nulidade ou de condenação manifestamente contrária à prova dos autos, hipóteses incomuns, o Tribunal poderá suspender a execução da decisão até o julgamento do recurso. 4. Habeas corpus não conhecido, ante a inadequação da via eleita. Não concessão da ordem de ofício. Tese de julgamento: “A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade.” (STF. HC 118770, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 07/03/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-082 DIVULG 20-04-2017 PUBLIC 24-04-2017)

Em conclusão, a presunção de inocência pode ser relativizada, não sendo um valor absoluto. Será, portanto, relativizada para permitir a execução provisória da pena[9] em duas hipóteses: a) havendo exaurimento do julgamento[10] pela segunda instância[11], cabendo apenas recursos excepcionais (especial e extraordinário) que não possuem efeito suspensivo, prevalecendo na hipótese a proteção eficiente dos bens jurídicos tutelados pelo sistema judicial-penal e a efetividade da função jurisdicional-penal do Estado[12]; b) quando exaurido o julgamento pelo Tribunal do Júri, onde qualquer recurso (apelação, especial ou extraordinário) não poderá substituir a análise fática-probatória já firmada pelo Júri, prevalecendo na hipótese a soberania dos veredictos. Identifica-se, assim, o núcleo da presunção de inocência (delimitado temporal e processualmente: até o fim das instâncias ordinárias ou até o fim do julgamento pelo tribunal do júri). O núcleo da presunção de inocência não pode ser relativizado (teoria dos limites dos limites). Todavia, a presunção de inocência possui além do núcleo (que não pode ser relativizado), um âmbito de proteção mais ampla (proteção prima facie), temporal e processualmente estabelecido (após o fim das instâncias ordinárias ou após o fim do julgamento pelo tribunal do júri) que pode ser relativizado com base no princípio da proporcionalidade (ponderação de interesses), quando outros valores constitucionais sobrepujarem (como a proteção eficiente dos bens jurídicos tutelados pelo sistema judicial-penal, a efetividade da função jurisdicional-penal do Estado e a soberania dos veredictos).

Todavia, em novo overruling datado de 11/2019, o STF, no julgamento plenário do mérito da ADC 43, entendeu que é constitucional a regra do CPP (art. 283) que prevê o esgotamento de todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado da condenação) para o início do cumprimento da pena[13]. Como antes visto, se trata de evidente retrocesso constitucional que não se coaduna com a melhor leitura do princípio da presunção de inocência. Como lenitivo, o Supremo vem se encarregando de tentar contornar a ruína. Primeiro, com o HC 176473, onde o Plenário estabeleceu a exegese de que o acórdão confirmatório da sentença condenatória também interrompe a prescrição (art. 117 IV CP), seja mantendo, aumentando ou diminuindo a pena. O segundo, através do ARE 848107, onde o Plenário decidirá a repercussão geral da questão do início da prescrição da pretensão executória. Conforme parecer da PGR, embora o art. 112 I do CP estabeleça iniciar a prescrição da pretensão executória com o trânsito em julgado para a acusação, se impossível executar a pena antes do trânsito em julgado para ambas as partes, conforme entendeu o STF, então incabível estabelecer o início da prescrição da pretensão executória antes desse fato jurídico. Afinal, a essência do conceito de prescrição decorre da inércia do titular do direito, daí ser absolutamente incoerente a antecipação do início da prescrição ao trânsito em julgado para a acusação, quando é certo que o MP não pode executar a pena antes do trânsito em julgado para ambas as partes, sem olvidar que iniciar antecipadamente a prescrição quando incabível a execução da pena, afronta a eficácia do sistema de execução penal, o direito fundamental à segurança e a expectativa legítima das vítimas do delito de que aqueles que cometeram o crime recebam a punição prevista na lei.

 


[1] Aqui se utiliza do princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes de proibição do excesso e proibição da insuficiência.

[2] O estado jurídico de inocência, e a consequente presunção de inocência, não incidem apenas no campo sancionatório stricto sensu, mas também, e fundamentalmente, na esfera da proteção de direitos de um modo geral, como é o caso dos concursos públicos. Todavia, opera a presunção de inocência, no campo administrativo e no terreno penal, com diferenças sensíveis. A regra do in dubio pro reo possui mais clara aplicação no processo penal, relevando-se de alcance mais restrito em outras áreas (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. RT. 4ª ed. p. 397-430).

[3] Tal relativização da presunção de inocência, com muito mais razão se aplica em outras áreas do direito, como o administrativo e o eleitoral, onde o princípio também possui aplicação.

[4] Conforme o voto do Relator Min. Luiz Fux: A presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida, segundo a lição de HUMBERTO ÁVILA (Teoria dos Princípios. 4. edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005), como uma regra, ou seja, como uma norma de previsão de conduta, em especial a de proibir a imposição de penalidade ou de efeitos da condenação criminal até que transitada em julgado a decisão penal condenatória. [...] Sendo assim, a ampliação do seu espectro de alcance operada pela jurisprudência desta Corte significou verdadeira interpretação extensiva da regra, segundo a qual nenhuma espécie de restrição poderia ser imposta a indivíduos condenados por decisões ainda recorríveis em matéria penal ou mesmo administrativa. O que ora se sustenta é o movimento contrário, comparável a uma redução teleológica, mas, que, na verdade, só reaproxima o enunciado normativo da sua própria literalidade, da qual se distanciou em demasia. [...] A presunção de inocência, sempre tida como absoluta, pode e deve ser relativizada para fins eleitorais ante requisitos qualificados como os exigidos pela Lei Complementar nº 135/10. [...] Nessa ordem de ideias, conceber-se o art. 5º, LVII, como impeditivo à imposição de inelegibilidade a indivíduos condenados criminalmente por decisões não transitadas em julgado esvaziaria sobremaneira o art. 14, § 9º, da Constituição Federal, frustrando o propósito do constituinte reformador de exigir idoneidade moral para o exercício de mandato eletivo, decerto compatível com o princípio republicano insculpido no art. 1º, caput, da Constituição Federal. Destarte, reconduzir a presunção de inocência aos efeitos próprios da condenação criminal se presta a impedir que se aniquile a teleologia do art. 14, § 9º, da Carta Política, de modo que, sem danos à presunção de inocência, seja preservada a validade de norma cujo conteúdo, como acima visto, é adequado a um constitucionalismo democrático.

[5] Voto da Relatora Min. Rosa Weber: A prática de novo crime ou falta grave no curso da execução da pena reclama uma reação imediata do Poder Público, sob pena de inviabilização da disciplina penitenciária e do sistema de mérito e demérito que lhe é inerente. Se exigido o trânsito em julgado de condenação pelo crime caracterizador da falta grave, a reação perder-se-ia no tempo, com a real possibilidade de sua ocorrência quando já cumprida a pena em execução [...] Há que diferenciar as consequências disciplinares e as sanções penais decorrentes da prática de novo crime no curso de execução da pena por condenação anterior. A aplicação das sanções penais pela prática do novo crime, usualmente pena privativa de liberdade, está sujeita ao processo penal, com as garantias a ele inerentes, inclusive a presunção de inocência. Já a aplicação das sanções disciplinares por força da prática de novo crime submete-se a processo administrativo disciplinar, com as garantias próprias. A prática de novo crime constitui incidente na execução de pena imposta após julgamento condenatório, em que garantido ao réu o devido processo legal, com a observância da presunção de inocência  [...] Isso no tocante à condenação em execução, sendo oportuno relembrar que a presunção de inocência tem lugar antes, e não depois do julgamento condenatório. De outra parte, se, no curso da execução da pena, o condenado pratica falta grave, há consequências disciplinares, inclusive a possível regressão de regime. Acaso a falta grave também tipifique crime, o condenado sofrerá consequências na execução da pena pela condenação preexistente, e igualmente responderá a novo processo penal tendo por objeto o novo crime. As consequências disciplinares não constituem sanções imponíveis ao novo crime, mas sim pertinentes à execução da pena imposta pela condenação pelo crime anterior. Nesse contexto, não há falar em punição antecipada pelo novo crime cometido, já que a regressão é sanção disciplinar decorrente de incidente na execução da pena pela condenação preexistente, tendo a presunção de inocência operado antes do juízo condenatório.

[6] Voto do Relator Min. Schietti Cruz: o adolescente que pratica ato infracional não pode ser equiparado ao adulto imputável autor de crime, pois, de acordo com o artigo 228 da Constituição Federal, os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis e estão sujeitos às normas da legislação especial. Por esse motivo e considerando que a medida socioeducativa não representa punição, mas mecanismo de proteção ao adolescente e à sociedade, de natureza pedagógica e ressocializadora, não há de se falar em ofensa ao princípio da não culpabilidade, previsto no artigo 5°, LVII, da Constituição Federal, pela sua imediata execução.

[7] Assim o voto do Relator Min. Teori Zavascki: Ressalvada a estreita via da revisão criminal, é, portanto, no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado. É dizer: os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobramentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devolutividade, já que não se prestam ao debate da matéria fática probatória. Noutras palavras, com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa. Os recursos ainda cabíveis para instâncias extraordinárias do STJ e do STF – recurso especial e extraordinário – têm, como se sabe, âmbito de cognição estrito à matéria de direito. Nessas circunstâncias, tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado[...] Realmente, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias. Nessa trilha, aliás, há o exemplo recente da Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), que, em seu art. 1º, I, expressamente consagra como causa de inelegibilidade a existência de sentença condenatória por crimes nela relacionados quando proferidas por órgão colegiado. É dizer, a presunção de inocência não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado. Não é diferente no cenário internacional. Como observou a Ministra Ellen Gracie quando do julgamento do HC 85.886 (DJ 28/10/2005), “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema”. [...] Nesse ponto, é relevante anotar que o último marco interruptivo do prazo prescricional antes do início do cumprimento da pena é a publicação da sentença ou do acórdão recorríveis (art. 117, IV, do CP). Isso significa que os apelos extremos, além de não serem vocacionados à resolução de questões relacionada a fatos e provas, não acarretam a interrupção da contagem do prazo prescricional. Assim, ao invés de constituir um instrumento de garantia da presunção de não culpabilidade do apenado, acabam representando um mecanismo inibidor da efetividade da jurisdição penal. Nesse quadro, cumpre ao Poder Judiciário e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal, garantir que o processo - único meio de efetivação do jus puniendi estatal -, resgate essa sua inafastável função institucional. A retomada da tradicional jurisprudência, de atribuir efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário (como, aliás, está previsto em textos normativos) é, sob esse aspecto, mecanismo legítimo de harmonizar o princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado. Não se mostra arbitrária, mas inteiramente justificável, a possibilidade de o julgador determinar o imediato início do cumprimento da pena, inclusive com restrição da liberdade do condenado, após firmada a responsabilidade criminal pelas instâncias ordinárias. Sustenta-se, com razão, que podem ocorrer equívocos nos juízos condenatórios proferidos pelas instâncias ordinárias. Isso é inegável: equívocos ocorrem também nas instâncias extraordinárias. Todavia, para essas eventualidades, sempre haverá outros mecanismos aptos a inibir consequências danosas para o condenado, suspendendo, se necessário, a execução provisória da pena. Medidas cautelares de outorga de efeito suspensivo ao recurso extraordinário ou especial são instrumentos inteiramente adequados e eficazes para controlar situações de injustiças ou excessos em juízos condenatórios recorridos. Ou seja: havendo plausibilidade jurídica do recurso, poderá o tribunal superior atribuir-lhe efeito suspensivo, inibindo o cumprimento de pena. Mais ainda: a ação constitucional do habeas corpus igualmente compõe o conjunto de vias processuais com inegável aptidão para controlar eventuais atentados aos direitos fundamentais decorrentes da condenação do acusado. Portanto, mesmo que exequível provisoriamente a sentença penal contra si proferida, o acusado não estará desamparado da tutela jurisdicional em casos de flagrante violação de direitos.

[8] Assim o voto do Min. Roberto Barroso na MC-ADC 43: Muito embora uma das leituras possíveis do art. 283 do Código de Processo Penal (com redação dada pela Lei nº 12.403/2011) limite a prisão às hipóteses de trânsito em julgado, prisão temporária ou prisão preventiva, deve-se conferir ao preceito interpretação que o torne compatível com a exigência constitucional de efetividade e credibilidade do sistema de justiça criminal. [...] Em primeiro lugar, a Constituição brasileira não condiciona a prisão –mas,sim, a certeza jurídica acerca da culpabilidade –ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O pressuposto para a privação de liberdade é a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, e não sua irrecorribilidade. Para chegar a essa conclusão, basta uma leitura sistemática dos incisos LVII e LXI do art. 5º da Carta de 1988, à luz do princípio da unidade da Constituição. Enquanto o inciso LVII define que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, logo abaixo, o inciso LXI prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. Assim, é evidente que a Constituição diferencia o regime da culpabilidade e o da prisão.  Em segundo lugar, a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes. [...] Na discussão sobre a execução da pena depois de proferido o acórdão condenatório pelo Tribunal competente, o princípio da presunção de inocência está em tensão com o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos objetivos (prevenção geral e específica) e bens jurídicos (vida, dignidade humana, integridade física e moral, etc.) tutelados pelo direito penal, com amplo lastro na Constituição (arts. 5º, caput e LXXVIII e 144). Nessa ponderação, com a decisão condenatória em segundo grau de jurisdição, há sensível redução do peso do princípio da presunção de inocência e equivalente aumento do peso atribuído à exigência de efetividade do sistema penal. É que, de um lado, já há demonstração segura da autoria e materialidade e necessariamente se tem por finalizada a apreciação de fatos e provas. E, de outro, permitir o enorme distanciamento temporal entre fato, condenação e efetivo cumprimento da pena (que em muitos casos conduz à prescrição) impede que o direito penal seja sério, eficaz e capaz de prevenir os crimes e dar satisfação à sociedade. Nessa situação, o sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilidade –prisão do acusado condenado em segundo grau antes do trânsito em julgado –é superado pelo que se ganha em proteção da efetividade e da credibilidade da Justiça. E mais: interditar a prisão quando já há condenação em segundo grau confere proteção deficiente a bens jurídicos constitucionais tutelados pelo direito penal muito caros à ordem constitucional de 1988.

 

[9] O STF no ARE 851109 entendeu que a competência para o decreto de prisão é do juiz de origem (juiz da condenação). Assim também tem entendido o STJ (AgRg no AREsp 591833), deferindo a execução provisória da pena, mas encaminhando cópias ao juízo de origem (juiz da condenação) a fim de expedir mandado de prisão e guia de execução provisória da pena.

[10] Tecnicamente deve-se falar em julgamento pela segunda instância e não julgamento pelo segundo grau de jurisdição nem em julgamento em apelação, porque aplicável a execução provisória da pena também em sede de julgamento pela segunda instância em competência originária (STJ -  EDcl no RESP 1.484.415).

[11] Tecnicamente deve se falar em exaurimento da segunda instância, porque se pendente embargos declaratórios, incabível a execução provisória. Assim o STJ: Na hipótese, no entanto, ainda se encontram pendentes de apreciação os embargos de declaração opostos em face do acórdão que julgou o recurso de apelação, razão pela qual, não exaurida a jurisdição do Tribunal de origem, está obstada a determinação de mandado de prisão para execução provisória da pena (precedente). (STJ. HC 396.414/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 20/06/2017, DJe 30/06/2017)

[12] No STJ não tem se admitido o mesmo entendimento em sede de PRD, prevalecendo o art. 147 da LEP (necessidade de trânsito em julgado para execução). Assim o STJ: Embora o Supremo Tribunal Federal tenha decidido pela viabilidade da imediata execução da pena imposta ou confirmada pelos tribunais locais após esgotadas as respectivas jurisdições, não analisou tal possibilidade quanto às reprimendas restritivas de direitos. Considerando a ausência de manifestação expressa da Corte Suprema e o teor do art. 147 da LEP, não se afigura possível a execução da pena restritiva de direitos antes do trânsito em julgado da condenação. (STJ. EREsp 1619087/SC, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Rel. p/ Acórdão Ministro JORGE MUSSI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/06/2017, DJe 24/08/2017).

[13] Ainda está pendente de julgamento pelo STF (RE 1235340) a compatibilidade do art. 283 do CPP com a soberania dos veredictos (art. 5º XXXVIII “c” CF), ganhando ainda mais força com a previsão expressa do art. 492 I “e” do CPP, que estabelece a execução provisória da pena decorrente de condenação pelo Tribunal do Júri, quando igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão.


Autor

  • Cleber Couto

    Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Presunção de inocência, garantismo integral e a execução provisória da pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5955, 21 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65339. Acesso em: 26 abr. 2024.