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O desacato ainda é crime no Brasil?

Breves considerações sobre os precedentes jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça e o controle de convencionalidade

O desacato ainda é crime no Brasil? Breves considerações sobre os precedentes jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça e o controle de convencionalidade

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O presente artigo tem como objetivo precípuo tecer breves comentários sobre a controversa descriminalização do crime de Desacato em função do controle de convencionalidade, exercido pelo Superior Tribunal de Justiça em recentes julgados.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo precípuo tecer breves comentários sobre a controversa descriminalização do crime de Desacato em função do controle de convencionalidade exercido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp.1640084/SP e no HC 379269/MS. Para tanto, parte-se da análise do tipo penal do Desacato e do significado da expressão “funcionário Público” utilizada pelo legislador na redação do Art. 331 do Código Penal. Em seguida, buscar-se-á diferenciar o Controle de Convencionalidade do Controle de Constitucionalidade para que se possa compreender se de fato foi operada ou não a abolitio criminis do referido delito com a decisão exarada pela 5ª Câmara do Superior Tribunal de Justiça.

PALAVRAS-CHAVE: Desacato. Controle de Convencionalidade. Abolitio Criminis.


INTRODUÇÃO

Em decisão proferida no julgamento do Recurso Especial 1640084/SP[3], a 5ª Câmara do Superior Tribunal de Justiça sinalizou o entendimento de que a conduta tipificada como “Desacato” no Art. 331 do Código Penal teria sido descriminalizada, por força de Controle de Convencionalidade, ao se mostrar incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, tratado internacional que foi recepcionado no Brasil pelo Decreto 678/92 e que goza de status de norma supralegal (Recursos Extraordinários nº 349.703-1/RS e 466.343-1/SP).

No entanto, em decisão posteriormente proferida sobre o Habeas Corpus 379269[4], a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça deixou de reconhecer a descriminalização do referido delito sustentando o argumento de que, dentre outros motivos, a exclusão do tipo penal do desacato em nada contribuiria para a inibição de excessos praticados contra os agentes públicos no exercício ou em razão de suas funções.

Surge daí o questionamento: é correto afirmar que foi operada a abolitio criminis  do Desacato (Art. 331 do CP) pelo controle de convencionalidade realizado pela 5ª Câmara do Superior Tribunal de Justiça? O tema não é pacífico nem mesmo entre os membros da Corte superior.

Ora, é sabido que o crime de desacato ocorre quando o sujeito ativo realiza sua conduta ofensiva contra o funcionário público no exercício da função ou em razão dela, conforme assevera o artigo 331 do Código Penal. Contudo, dúvidas podem surgir sobre o fundamento dessa conduta-crime tutelada pelo Estado através de seu códice criminalibus.

Assim, para a resposta da questão proposta, torna-se imprescindível a plena compreensão sobre os elementos caracterizadores do crime de desacato, como também dos conceitos dos institutos jurídicos citados, a saber, Abolitio Criminis, Controle de Convencionalidade e Controle de Constitucionalidade, outrora mencionados nas decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1640084/SP e no Habeas Corpus 379269/MS.


Do Desacato

O crime de Desacato é um crime tipificado no Código Penal no Art. 331, cuja conduta típica consiste em “desacatar[5] funcionário Público no exercício da função ou em razão dela” (C.P, art. 331- in fine). Nos estudos realizados por SOARES[6] (2005), o crime de Desacato teve origem na Roma antiga, quando buscava-se rechaçar as injurias perpetradas contra magistrados romanos no exercício de suas funções. Percebe-se que, desde as mais remotas origens do mencionado delito, o fim almejado pelo legislador na tipificação da conduta sempre foi o de salvaguardar a atuação de agentes estatais contra atos ofensivos a eles destinados no exercício de suas funções. Nesse sentido, Noronha (1988, p. 303) afirma que:

O bem tutelado pelo crime de desacato é, como já dito, a dignidade, o prestígio, o respeito devido à função pública. O Estado é diretamente interessado em proteger o respeito a essa função, pois ele é indispensável à atividade e à dinâmica da administração.

Importante observar que o crime de desacato (Art. 331 do CP) não se confunde com o de resistência (Art. 329 do CP), visto que, neste, o sujeito ativo se opõe à execução de ato legal, mediante violência ou grave ameaça, contra funcionário competente para cumprí-lo. Já no crime de desacato, não existe a efetiva resistência por meio da grave ameaça ou violência contra determinada ordem. Descontente com a atuação do funcionário público, o sujeito ativo passa a atacar a Administração pública por meio do seu servidor, valendo-se, para tanto, de ofensas, mas não do emprego da violência física ou da grave ameaça.

Em sua redação atual, no tipo do Art. 331 do Código Penal, pode-se afirmar que crime se caracteriza pela presença de dois requisitos fundamentais: 1) o sujeito passivo tem que ser “funcionário público”, e 2) o servidor público tem que estar no exercício da função ou em razão dela. Com isso, extrai-se que não é qualquer pessoa que pode ser vítima do crime de desacato, ficando este tipo penal restrito a uma determinada classe.

Segundo Carvalho Filho (2009, p.562), o termo “Funcionário Público se tornou inadequado para tal delito, uma vez que foi banido da Constituição da República por ter um significado restrito”. Para ele, Funcionário Público seria um termo utilizado estritamente no Direito Penal. 

Ainda, assevera que a figura correta a ser utilizada seria a de Servidor Público, por ter um sentido mais amplo e possibilitar uma maior abrangência. Desse modo, todos os servidores Públicos estariam protegidos pelo tipo penal em estudo. (CARVALHO FILHO, 2009).

Nesse entendimento, extrai-se que o legislador buscou proteger todo servidor público, conforme exposto acima, para que exerça suas funções de maneira eficaz, tranquila, sem qualquer perturbação ou afronta por parte de terceiros.

Coadunando com o entendimento acima exposto, prescreve o Art. 327 do Código Penal brasileiro que “considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. ”

Servidor público seria, de maneira mais abrangente, todo aquele que integra a Administração Pública Direta, autárquica ou fundacional exercendo alguma atividade sob responsabilidade estatal. É toda pessoa que possui vínculo direto com o Estado em relação de trabalho e executa serviço Público, sob qualquer regime funcional, estando, por este fator, sujeito à proteção estatal.

Ademais, também é importante destacar que, para a caracterização do crime de desacato, pouco importa se o servidor público se sentiu ou não ofendido, visto que, conforme Gonçalves (2011, p. 753), o que o legislador pretendeu foi prestigiar e dar dignidade ao cargo por ele exercido.

Assim, o crime se perfaz como crime contra a Administração Pública porque a ofensa é dirigida ao exercício da profissão do servidor[7] e não à pessoa em si. Caso contrário, a conduta praticada encontraria tutela nos crimes de calúnia, difamação ou injúria, conforme tipificado no nosso Código Penal.

Após todo o explanado, restou comprovado que o intuito principal ao inserir no ordenamento jurídico a tutela desta conduta era dar uma garantia para que a pessoa exerça com honra e dignidade o cargo ou função pública para a qual se qualificou, sem que venha a ser menosprezado e/ou humilhado por qualquer particular que se sinta irritado com a atuação daquele funcionário. Ainda, conforme a Súmula 714 do STF, é concorrente com o Ministério Público a legitimidade do ofendido, mediante queixa crime, condicionada à representação do ofendido, para ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções.

Conclui-se, portanto, que o legislador não pretendeu por meio do Crime de Desacato cercear a manifestação da liberdade de pensamento. Em contrapartida, o que se almejou com a tipificação do crime em tela foi propiciar maior proteção aos funcionários da Administração Pública frente a atos ofensivos e desproporcionais praticados por terceiros contra os funcionários que estejam no exercício da função pública ou em razão dela.


CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE X CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Como forma de controle do ordenamento jurídico interno, existe na seara jurídica brasileira o Controle de Convencionalidade e o Controle de Constitucionalidade. Estas figuras de Controle citadas no tópico, para aqueles que não detém um conhecimento avançado sobre o tema, podem gerar confusão sobre sua aplicabilidade e entendimento. Buscando diferenciar de maneira breve e sem querer esgotar o assunto uma da outra, será apresentado um pouco sobre ambas ferramentas.

 3.1.    Do Controle de Convencionalidade     

Por Controle de Convencionalidade, entende-se como sendo a adequação de Normas internas brasileiras aos tratados que versem sobre Direitos Humanos ou similares (incluindo os tratados comuns), dos quais o Brasil seja parte. Seria, então, um novo controle à produção normativa doméstica (MAZZUOLI et al., 2013), ao qual todas as normas brasileiras que versem sobre Direitos Humanos devem se sujeitar ao contido nos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos (e comuns) dos quais o Brasil tenha se tornado signatário.

Ratificando o que acima foi exposto, Mazzuoli et al. (2013, p.7) aduz sobre o Controle de Convencionalidade que:

A primeira ideia a fixar-se para o correto entendimento do que doravante será exposto, é a de que a compatibilidade da lei com o texto constitucional não mais garante validade no plano do direito interno. Para tal, deve a Lei ser compatível com a Constituição e com os Tratados internacionais (de Direitos Humanos e Comuns) ratificados pelo Governo.  

Destarte, a norma deve se mostrar compatível não apenas à Constituição Federal, mas também aos tratados internacionais que tenham sido ratificados pelo País[8], não sendo suficiente a mera observância do processo legislativo para sua criação. Nesse sentido, averte Mazzuoli et al. (2013, p.7) que:

Caso a norma esteja de acordo com a Constituição, mas não com eventual tratado já ratificado e em vigor no plano interno, poderá ela ser até considerada vigente (pois, repita-se, está de acordo com o texto constitucional e não poderia ser de outra forma) - e ainda continuará perambulando nos compêndios legislativos publicados -, mas não poderá ser tida como válida, por não ter passado imune a um dos limites verticais materiais agora existentes: Os tratados internacionais em vigor no plano interno. Ou seja, a incompatibilidade da produção normativa doméstica com os tratados internacionais em vigor no plano interno (ainda que seja compatível com a Constituição) torna inválidas as normas jurídicas de direito interno.  

Em suma, mesmo que a norma criada passe por todos os tramites legislativos internos, e esteja nos moldes da constituição, se ela não estiver de acordo com os termos do tratado internacional, ela não terá validade no plano jurídico interno brasileiro. Logo, o controle de Convencionalidade é justamente esta adequação das normas brasileiras aos tratados internacionais, principalmente no que concerne às normas de Direitos Humanos.

3.2.    Do controle de Constitucionalidade

O controle de Constitucionalidade é um instrumento de correção presente nos ordenamentos jurídicos dos Estados democráticos que se presta à verificação da conformidade de um Ato jurídico em relação à Constituição Federal. Segundo as lições de Machado (2005)[9], 

O objetivo maior do Direito Constitucional é o que se chama de “filtragem constitucional”. Isso quer dizer que todas as espécies normativas do ordenamento jurídico devem existir, ser consideradas como válidas e analisadas sempre sob à luz da Constituição Federal. Chama-se de compatibilidade vertical, pois é a CF quem rege todas as outras espécies normativas de modo hierárquico, tanto do ponto de vista formal (procedimental), quanto material (conteúdo da norma).

Quando se tem a ideia de controle de constitucionalidade, significa dizer então que é feita uma verificação para saber se as leis ou atos normativos estão compatíveis com a Constituição Federal, tanto sob o ponto de vista formal, quanto o material.

Com isso, importa dizer que a ferramenta de Controle de Constitucionalidade é que permite que toda norma produzida internamente, sejam decretos, leis federais, leis estaduais ou outras normas de cunho jurídico, estejam em consonância com o texto da Carta Magna do Brasil.

No Direito brasileiro, costuma-se classificar o Controle de constitucionalidade quanto ao momento de sua realização como Preventivo ou Repressivo (MACHADO, 2005)[10]. Atua no campo preventivo, quando o objetivo é impedir que um projeto de lei inconstitucional venha a ser efetivamente uma Lei. Atua no campo Repressivo quando uma Lei que já está em vigor afronta o texto constitucional.

Pode também ser realizado de maneira Difusa ou Concentrada. Nas palavras de Medeiros (2013)[11], o controle difuso é aquele realizado por via de exceção ou de maneira incidental, permitindo ao juiz ou Tribunal, no caso concreto, analisar a compatibilidade de lei ou ato normativo à Constituição. O controle concentrado, por sua vez, caracteriza-se pela análise realizada pelo Supremo Tribunal Federal da compatibilidade da lei estadual ou federal à Constituição Federal Machado (2005)[12].

3.3.    Da Abolitio Criminis

Abolitio Criminis é a abolição da figura típica, deixando de considerar delito determinada conduta tutelada no ordenamento penal (NUCCI, 2014)[13]. Em outras palavras, é a supressão da infração penal em virtude da edição de lei posterior que revoga lei anterior incriminadora.

Segundo o disposto no art. 107, III, do Código Penal, com a abolitio criminis, extingue-se a punibilidade do agente. Em qualquer fase do processo ou mesmo da execução da pena, deve ser imediatamente aplicada a retroatividade da norma que retira a tipicidade de qualquer fato.

No mesmo sentido, dispõe Rogério Greco (2011, p.110) sobre o tema:

Tem-se entendido por abolitio criminis, a suspensão da tipicidade de determinada conduta, a situação na qual a aplicação de determinado tipo penal encontra-se suspensa, não permitindo, consequentemente, a punição do agente que pratica o comportamento típico. A conduta é retirada do ordenamento jurídico não mais sendo criminalizada.

Ao discorrer sobre o Princípio da Legalidade Penal, acrescenta Belo (2013, p. 58) que:

Quando há a revogação total (ab-rogação) da lei ocorre a abolitio criminis (art. 107, I, CP), extinguindo-se a punibilidade tanto da pena quanto da medida de segurança. Neste caso, em decorrência do princípio (da legalidade), o réu/condenado não precisa mais responder ao processo, tem a liberdade reconquistada, inclusive para aqueles que já iniciaram o cumprimento da pena.                                                 

Após demonstrado o conceito da Abolitio Criminis, percebe-se que tal figura em apreço não existiu na decisão que descriminalizou a conduta desacato. Primeiro, porque a conduta nuclear da figura estipula que esta abolição só ocorrerá mediante promulgação de lei. Ou seja, a decisão exarada pela 5ª Câmara não se baseou em lei promulgada para esse fim, qual seja, extirpar do Código Penal a conduta de Desacato.

Baseou-se, todavia, em um tratado internacional, tendo assim produzido seus efeitos apenas entrepartes, visto que não foi excluído do código penal o tipo penal referente ao crime de desacato.


Do Recurso Especial 1640084/SP e do Habeas Corpus 379269/MS do STJ.

O Recurso Especial nº 1640084, interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e julgado pela 5ª Câmara do Superior Tribunal de Justiça, teve por relator o Ministro Ribeiro Dantas. Nele, a defensoria pública daquele Estado pleiteou a incompatibilidade do crime de Desacato com a Convenção Americana de Direitos Humanos, respaldada no comparativo do Art. 331 do Código Penal pátrio com o Art. 13 Pacto de San José da Costa Rica-CIDH-.

Na decisão proferida pelo Ministro Ribeiro Dantas, aduziu que a ausência de lei veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário. Continuou manifestando que a CIDH já consolidou posicionamento de que a figura do Desacato se presta ao abuso como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, proporcionando um maior nível de proteção dos agentes estatais em relação aos particulares, ferindo, com isso, o princípio da igualdade.

Expôs, também, que a criminalização do desacato está na contramão do humanismo porque resulta na preponderância do Estado em detrimento dos particulares. Com isso, expõe que tal conduta no nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares e, por este motivo, é inaceitável no atual estado democrático de direito. Com estes fundamentos, retira-se do caso que estava em julgamento, a figura típica do desacato.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084 - SP (2016/0032106-0), RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS, RECORRENTE : ALEX CARLOS GOMES, ADVOGADO  : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO RECORRIDO  : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

EMENTA: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ROUBO, DESACATO E RESISTÊNCIA. APELAÇÃO CRIMINAL. EFEITO DEVOLUTIVO AMPLO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ROUBO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE ROUBO PARA O DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. TEMA NÃO PREQUESTIONADO. SÚMULAS 282 E 356 DO STF. DESACATO. INCOMPATIBILIDADE DO TIPO PENAL COM A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE.

  1. Uma vez interposto o recurso de apelação, o Tribunal, respeitando o contraditório, poderá enfrentar todas as questões suscitadas, ainda que não decididas na primeira instância, desde que relacionadas ao objeto litigioso recursal, bem como apreciar fundamentos não acolhidos pelo juiz (arts. 10 e 1.013, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil, c/c art. 3º do Código de Processo Penal).
  2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça afasta a aplicabilidade do princípio da insignificância em crimes cometidos mediante o uso de violência ou grave ameaça, como o roubo.
  3. O pleito de desclassificação do crime de roubo para o de constrangimento ilegal carece da indicação do dispositivo legal considerado malferido e das razões que poderiam fundamentar o pedido, devendo-se aplicar o veto da Súmula 284/STF. Além disso, o tema não foi objeto de apreciação pelo Tribunal de origem, nem a parte interessada opôs embargos de declaração para suprir tal omissão, o que atrai o óbice das Súmulas 282 e 356 do STF.
  4. O art. 2º, c/c o art. 29, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) prevê a adoção, pelos Estados Partes, de "medidas legislativas ou de outra natureza" visando à solução de antinomias normativas que possam suprimir ou limitar o efetivo exercício de direitos e liberdades fundamentais.
  5. Na sessão de 4/2/2009, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, pelo rito do art. 543-C do CPC/1973, o Recurso Especial 914.253/SP, de relatoria do Ministro LUIZ FUX, adotou o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 466.343/SP, no sentido de que os tratados de direitos humanos, ratificados pelo país, têm força supralegal, "o que significa dizer que toda lei antagônica às normas emanadas de tratados internacionais sobre direitos humanos é destituída de validade."
  6. Decidiu-se, no precedente repetitivo, que, "no plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade."
  7. A adequação das normas legais aos tratados e convenções internacionais adotados pelo Direito Pátrio configura controle de constitucionalidade, o qual, no caso concreto, por não se cuidar de convenção votada sob regime de emenda constitucional, não invade a seara do controle de constitucionalidade e pode ser feito de forma difusa, até mesmo em sede de recurso especial.
  8. Nesse particular, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando do julgamento do caso Almonacid Arellano y otros v. Chile, passou a exigir que o Poder Judiciário de cada Estado Parte do Pacto de São José da Costa Rica exerça o controle de convencionalidade das normas jurídicas internas que aplica aos casos concretos.
  9. Por conseguinte, a ausência de lei veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário na verificação da inconformidade do art. 331 do Código Penal, que prevê a figura típica do desacato, com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estipula mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão.
  10. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário.
  11. A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos. Assim, o método hermenêutico mais adequado à concretização da liberdade de expressão reside no postulado pro homine, composto de dois princípios de proteção de direitos: a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos.
  12. A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo.
  13. A existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito.
  14. Punir o uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países aderentes ao Pacto de São Paulo abolissem suas respectivas leis de desacato.
  15. O afastamento da tipificação criminal do desacato não impede a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo de outra figura típica penal (calúnia, injúria, difamação etc.), pela ocorrência de abuso na expressão verbal ou gestual utilizada perante o funcionário público.
  16. Recurso especial conhecido em parte, e nessa extensão, parcialmente provido para afastar a condenação do recorrente pelo crime de desacato (art.331 do CP).
ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer parcialmente do recurso e, nessa parte, dar-lhe parcial provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Joel Ilan Paciornik, Felix Fischer, Jorge  Mussi e Reynaldo Soares da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 15 de dezembro de 2016(data do julgamento)

À época de sua publicação, a decisão da 5ª Câmara do STJ sobre o Recurso Especial- Resp- nº1640084 acabou ensejando enormes controvérsias e insegurança jurídica, sobretudo no meio policial, quanto à descriminalização ou não do desacato, o que levou o tribunal a rever seu precedente jurisprudencial no Julgamento do HC 379269/MS.

Do Habeas Corpus 379269/MS

O presente Habeas Corpus foi impetrado pela Defensoria do Estado de Mato Grosso do Sul. Teve como relator o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca e o impetrado foi o Tribunal de Justiça daquele Estado. Nele se discute sobre a violação do Art. 306 do Código de Trânsito bem como os Arts. 330 e 331 do Código Penal brasileiro. Também, abordava a manutenção do Crime de Desacato no ordenamento jurídico.

O relator, fundamentando sua decisão, aborda que o Brasil é signatário do respectivo tratado de Direitos humanos e que o mesmo, incorporado antes da emenda constitucional nº 45, possui caráter de norma Supralegal, estando abaixo apenas da Constituição da República brasileira. Com isso, tem prevalência hierárquica sobre todas as outras normas infraconstitucionais brasileira. Expõe ainda que, de acordo com o Art. 41 do Pacto em apreço, as funções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos não ostentam caráter decisório, mas tão somente instrutório e cooperativo. Com isso, depreende-se de que a CIDH não possui função jurisdicional.

No mesmo raciocínio, aduz que a recomendação exarada pela Comissão não possui poder vinculante, constituindo apenas “poder de embaraço” ou “mobilização da vergonha”. Explica que, embora a Comissão já tenha se posicionado sobre os temas chamados de “leis do desacato”, ainda não existe precedente da Corte relacionada ao cometimento deste Crime no Brasil.

Por fim, o relator esclarece que ainda que existisse decisão da Corte sobre a prevalência dos Direitos Humanos, essa circunstância, por si só, não seria suficiente para obstar a eventual aplicação do julgado (a manutenção do crime de desacato no ordenamento pátrio) no âmbito doméstico, tudo isto por força da soberania que é inerente ao Estado. Com estes fundamentos, resolvem por manter a conduta-crime desacato no ordenamento jurídico estatal.

Como forma de auxiliar o entendimento do tema proposto, abaixo o respectivo Habeas Corpus:

HABEAS CORPUS Nº 379.269 - MS (2016/0303542-3), RELATOR: MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA R. P/ACÓRDÃO: MINISTRO ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, IMPETRANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL ADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL IMPETRADO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL PACIENTE: MAGNO LEANDRO SANTOS ANGELICO

EMENTA: HABEAS CORPUS. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO E DOS ARTS. 330 E 331 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DA TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE DESACATO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. DIREITOS HUMANOS. PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA (PSJCR). DIREITO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO QUE NÃO SE REVELA ABSOLUTO. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. INEXISTÊNCIA DE DECISÃO PROFERIDA PELA CORTE (IDH). ATOS EXPEDIDOS PELA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). AUSÊNCIA DE FORÇA VINCULANTE. TESTE TRIPARTITE. VETORES DE HERMENÊUTICA DOS DIREITOS TUTELADOS NA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. POSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO. PREENCHIMENTO DAS CONDIÇÕES ANTEVISTAS NO ART. 13.2. DO PSJCR. SOBERANIA DO ESTADO. TEORIA DA MARGEM DE APRECIAÇÃO NACIONAL (MARGIN OF APPRECIATION. INCOLUMIDADE DO CRIME DE DESACATO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO, NOS TERMOS EM QUE ENTALHADO NO ART. 331 DO CÓDIGO PENAL. INAPLICABILIDADE, IN CASU, DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO TÃO LOGO QUANDO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. WRIT NÃO CONHECIDO.

  1. O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), denominada Pacto de São José da Costa Rica, sendo promulgada por intermédio do Decreto n. 678/1992, passando, desde então, a figurar com observância obrigatória e integral do Estado.
  2. Quanto à natureza jurídica das regras decorrentes de tratados de direitos humanos, firmou-se o entendimento de que, ao serem incorporadas antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, portanto, sem a observância do rito estabelecido pelo art. 5º, § 3º, da CRFB, exprimem status de norma supralegal, o que, a rigor, produz efeito paralisante sobre as demais normas que compõem o ordenamento jurídico, à exceção da Magna Carta. Precedentes.
  3. De acordo com o art. 41 do Pacto de São José da Costa Rica, as funções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos não ostentam caráter decisório, mas tão somente instrutório ou cooperativo. Desta feita, depreende-se que a CIDH não possui função jurisdicional.
  4. A Corte Internacional de Direitos Humanos (IDH), por sua vez, é uma instituição judiciária autônoma cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, possuindo atribuição jurisdicional e consultiva, de acordo com o art. 2º do seu respectivo Estatuto.
  5. As deliberações internacionais de direitos humanos decorrentes dos processos de responsabilidade internacional do Estado podem resultar em: recomendação; decisões quase judiciais e decisão judicial. A primeira revela-se ausente de qualquer caráter vinculante, ostentando mero caráter "moral", podendo resultar dos mais diversos órgãos internacionais. Os demais institutos, porém, situam-se no âmbito do controle, propriamente dito, da observância dos direitos humanos.
  6. Com efeito, as recomendações expedidas pela CIDH não possuem força vinculante, mas tão somente "poder de embaraço" ou "mobilização da vergonha".
  7. Embora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já tenha se pronunciado sobre o tema "leis de desacato", não há precedente da Corte relacionada ao crime de desacato atrelado ao Brasil.
  8. demais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos se posicionou acerca da liberdade de expressão, rechaçando tratar-se de direito absoluto, como demonstrado no Marco Jurídico Interamericano sobre o Direito à Liberdade de Expressão.
  9. Teste tripartite. Exige-se o preenchimento cumulativo de específicas condições emanadas do art. 13.2. da CADH, para que se admita eventual restrição do direito à liberdade de expressão. Em se tratando de limitação oriunda da norma penal, soma-se a este rol a estrita observância do princípio da legalidade.
  10. Os vetores de hermenêutica dos Direitos tutelados na CADH encontram assento no art. 29 do Pacto de São José da Costa Rica, ao passo que o alcance das restrições se situa no dispositivo subsequente. Sob o prisma de ambos instrumentos de interpretação, não se vislumbra qualquer transgressão do Direito à Liberdade de Expressão pelo teor do art. 331 do Código Penal.

  1. Norma que incorpora o preenchimento de todos os requisitos exigidos para que se admita a restrição ao direito de liberdade de expressão, tendo em vista que, além ser objeto de previsão legal com acepção precisa e clara, revela-se essencial, proporcional e idônea a resguardar a moral pública e, por conseguinte, a própria ordem pública.
  2. A CIDH e a Corte Interamericana têm perfilhado o entendimento de que o exercício dos direitos humanos deve ser feito em respeito aos demais direitos, de modo que, no processo de harmonização, o Estado desempenha um papel crucial mediante o estabelecimento das responsabilidades ulteriores necessárias para alcançar tal equilíbrio exercendo o juízo de entre a liberdade de expressão manifestada e o direito eventualmente em conflito.
  3. Controle de convencionalidade, que, na espécie, revela-se difuso, tendo por finalidade, de acordo com a doutrina, "compatibilizar verticalmente as normas domésticas (as espécies de leis, lato sensu, vigentes no país) com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado e em vigor no território nacional."
  4. Para que a produção normativa doméstica possa ter validade e, por conseguinte, eficácia, exige-se uma dupla compatibilidade vertical material.
  5. Ainda que existisse decisão da Corte (IDH) sobre a preservação dos direitos humanos, essa circunstância, por si só, não seria suficiente a elidir a deliberação do Brasil acerca da aplicação de eventual julgado no seu âmbito doméstico, tudo isso por força da soberania que é inerente ao Estado. Aplicação da Teoria da Margem de Apreciação Nacional (margin of appreciation).
  6. O desacato é especial forma de injúria, caracterizado como uma ofensa à honra e ao prestígio dos órgãos que integram a Administração Pública. Apontamentos da doutrina alienígena.
  7. O processo de circunspeção evolutiva da norma penal teve por fim seu efetivo e concreto ajuste à proteção da condição de funcionário público e, por via reflexa, em seu maior espectro, a honra lato sensu da Administração Pública.
  8. Preenchimento das condições antevistas no art. 13.2. do Pacto de São José da Costa Rica, de modo a acolher, de forma patente e em sua plenitude, a incolumidade do crime de desacato pelo ordenamento jurídico pátrio, nos termos em que entalhado no art. 331 do Código Penal.
  9. Voltando-se às nuances que deram ensejo à impetração, deve ser mantido o acórdão vergastado em sua integralidade, visto que inaplicável o princípio da consunção tão logo quando do recebimento da denúncia, considerando que os delitos apontados foram, primo ictu oculi, violadores de tipos penais distintos e originários de condutas autônomas.
  10. Habeas Corpus não conhecido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, não conhecer do habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, que lavrará o acórdão. Vencidos os Srs. Ministros Reynaldo Soares da Fonseca e Ribeiro Dantas, que não conheciam do habeas corpus e concediam a ordem de ofício para excluir da ação penal o crime de desacato e determinando o prosseguimento da ação penal, quanto aos delitos previstos nos arts. 306 do CTB e 330 do CP.

Votaram com o Sr. Ministro Antonio Saldanha Palheiro (Relator para acórdão) os Srs. Ministros Felix Fischer, Maria Thereza de Assis Moura, Jorge Mussi, Rogerio Schietti Cruz e Nefi Cordeiro.

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Joel Ilan Paciornik. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior.

Sustentou oralmente o Adv. Elias Cesar Kesrouani pelo impetrante. Brasília, 24 de maio de 2017 (data do julgamento).

Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO

Relator

Importante salientar que esta decisão sobrepõe a primeira pelo fato de que, na decisão exarada pela 5ª Câmara do STJ, não tinha caráter de uniformizar o tema, aplicando-se exclusivamente inter partes.  Já a decisão expedida pela 3ª Seção, uniformizou o entendimento no tribunal. Isto porque esta seção reúne as duas turmas de direito penal da corte. Com isso, colocou-se fim, por hora, nas indagações sobre a descriminalização ou não da conduta em tela.


CONCLUSÃO

Diante do exposto, conclui-se que a figura tipo em análise originou-se do direito antigo e era considerada injuria Atrox (gravíssima). No direito romano, buscava-se proteger a figura do magistrado e quando ocorria, era considerada como uma ofensa ao próprio príncipe sendo punível até mesmo com a morte.

No Código penal brasileiro, encontra-se inserta no Art. 331, ao qual estipula que desacatar funcionário público no exercício da função constitui crime punível com pena de detenção de 6 meses a dois anos ou multa.

A objetividade jurídica tutelada pelo Estado ao estipular esta conduta é a dignidade e o prestigio do funcionário público, que está vinculada à autoridade de um estado. O sujeito ativo deste crime pode ser qualquer pessoa, inclusive um funcionário público, embora seja controverso esse posicionamento. Já o sujeito passivo, é apenas o Estado, representado pela União, Estado e Município. Igualmente, ainda que em plano secundário, o funcionário público.

Têm-se também a diferenciação do funcionário público do servidor público. Para o doutrinador Carvalho Filho, a figura funcionário público fica restrito ao código penal, sendo considerado uma figura ultrapassada. O termo certo seria servidor público pois, com isso, abrange-se uma classe que presta serviços públicos seja na categoria de concursados ou de assemelhados. Desse modo, a proteção ao exercício da função pública seria utilizada de maneira ampla e não apenas restrita.

No que tange ao Controle de Constitucionalidade e Convencionalidade viu-se a diferença entre ambas ferramentas de controle. Enquanto aquele cuida da adequação das normas domésticas com a Constituição federal, este cuida da adequação das normas internas no plano internacional por meios dos tratados ao qual o Estado seja signatário, sobretudo os de Direitos Humanos.

Quanto à Abolitio Criminis, obteve-se que é uma figura existente no Código Penal brasileiro, por intermédio do Art. 107, III que aduz que ocorre a extinção da punibilidade quando Lei posterior revogar lei anterior, retirando do ordenamento jurídica determinada conduta tida como crime.

No julgamento do Recurso Especial analisado pelo Superior Tribunal de Justiça, obteve-se posicionamento de descriminalizar a conduta de desacato. Aqui, utilizou-se como fundamento o Art. 13 do Pacto de San José da Costa Rica ao qual preleciona que toda pessoa tem liberdade de pensamento e de expressão. Fundamentou-se para a abolição desta conduta, no argumento de que o crime de desacato não trata como iguais os funcionários estatais e o particular. Também, que a existência deste crime no ordenamento jurídico pátrio era uma violação à dignidade da pessoa humana, pois feria o direito à liberdade de expressão do cidadão. Também que esta figura de crime, serviria apenas para esconder os abusos do estado em detrimento do particular.

Em contrapartida, o julgamento do Habeas corpus pela mesma corte optou por manter a conduta crime de desacato no ordenamento jurídica. Para o relator, o Pacto de San José da Costa rica possui caráter meramente instrutório ou cooperativo, não possuindo caráter decisório e nem função jurisdicional. Conclui, que a aplicação domestica deste crime não viola a garantia dos direitos humanos, até porque a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Este ato é inerente à soberania interna do Estado.

Por fim, obteve-se que no julgamento do Recurso especial em comento não houve a figura da Abolitio Criminis. Por interpretação literal, apenas uma Lei federal pode retirar determinada conduta do ordenamento jurídico pátrio. Com isso, a decisão exarada pela 5ª Câmara no julgamento deste recurso, possuiu efeito apenas inter partes não possuindo efeito vinculante sobre a seara jurídica doméstica. Ou seja, aplicabilidade apenas para o casum em análise sede do recurso.

A decisão pacificada pelo STJ por meio da análise do Habeas Corpus oriundo da defensoria pública do Mato Grosso foi acertada. A proteção do servidor público em detrimento do particular não busca cercear o direito à liberdade de expressão deste. Busca, apenas, proteger aqueles que laboram nas inúmeras funções públicas existentes contra os que extrapolam seu direito de liberdade. Todos podem expressar-se livremente, desde que seja nos moldes da civilidade e da educação.


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Notas

[3] RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084 - SP (2016/0032106-0). Disponivel em: < http://www. stj. jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/RECURSO%20ESPECIAL%20N%C2%BA%201640084.pdf>. Acesso em 25 de outubro de 2017.m 11/02

[4] STJ. Habeas Corpus Nº 379269/MS (2016/0303542-3 de 30/06/2017). Disponivel em:< https:// stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22036841/habeas-corpus-hc-190067-ms-2010-0207390-0-stj/inteiro -teor-22036842#>. Acesso em 25 de outubro de 2017.

[5] PIERANGELI aduz que a ação está no verbo desacatar, que exprime a ação de ofender, humilhar, denegrir, espezinhar, agredir, achincalhar, afrontar, menoscabar, menosprezar o funcionário, condutas que ofendem a dignidade, o prestígio e o decoro da função. A função constitutiva do desacato é qualquer palavra ou ato que redunde em vexame, humilhação desprestigio ou irreverencia ao funcionário. É a grosseria, falta de acatamento, podendo consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas, vias de fato, agressão física, ameaças, gestos obscenos, gritos agudos, etc. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal.: Parte Especial (Arts.121 a 361). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

[6] SOARES, Claudio Leal. O crime de desacato e a honra funcional como bem jurídico. 2005. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2157/O-crime-de-desacato-e-a-hon ra-funcional-como-bem-juridico>. Acesso em: 16 abril 2017.

[7] Como exemplo, cite-se aquele cidadão que vai retirar uma carteira de identidade civil e, descontente com a demora começa a proferir os seguintes dizeres contra os funcionários ali existentes: “Bando de inútil”, “parasitas do governo”, ou palavras de baixo calão contra os mesmos, visando ofender a dignidade profissional daqueles servidores.

[8] RUSSOWSKY, Iris Saraiva. O Controle de Convencionalidade das Leis: Uma análise na esfera internacional e interna. 2012. Disponível em: <https://www2.direito.ufmg.br/revistado caap/index. php/revista/article/viewFile/305/294>. Acesso em: 16 abril 2017.

[9] MACHADO, Mariana de Moura A. A. Controle de Constitucionalidade: Abordagem Sistemática no tocante aos temas centrais do controle de constitucionalidade: conceitos, modalidades, legitimidades e tipos de controle por via incidental e direta. 2005. Disponível em: <http://www.direitonet.com. br/artigos/exibir/1924/Controle-de-constitucionalidade>. Acesso em 17 setembro 2017.

[10] MACHADO, Mariana de Moura A. A. Controle de Constitucionalidade: Abordagem Sistemática no tocante aos temas centrais do controle de constitucionalidade: conceitos, modalidades, legitimidades e tipos de controle por via incidental e direta. 2005. Disponível em: <http:// www.direitonet.com.br/artigos/ exibir/1924/Controle-de-constitucionalidade>. Acesso em 17 setembro de 2017.

[11] MEDEIROS, Orione Dantas de. O controle de constitucionalidade na Constituição brasileira de 1988: Do modelo híbrido à tentativa de alteração para um sistema misto complexo. 2013. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/502943/000991834.pdf?sequen ce=1>. Acesso em 03 outubro 2017;

[12] MACHADO, Mariana de Moura A. A. Controle de Constitucionalidade: Abordagem Sistemática no tocante aos temas centrais do controle de constitucionalidade: conceitos, modalidades, legitimidades e tipos de controle por via incidental e direta. 2005. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/ exibir/1924/Controle-de-constitucionalidade>. Acesso em 17 setembro 2017.

[13] Por exemplo, deixaram de ser consideradas condutas criminosas o adultério, a sedução e o rapto consensual, em face da edição da Lei 11.106/2005.


Autores

  • Jânio Oliveira Donato

    Advogado criminalista. Mestre em Direito Processual (2013) e Especialista em Ciências Penais (2007) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Gestão de Instituições de Ensino Superior (2016) pela Faculdade Promove de Minas Gerais. Professor de Direito Processual Penal e Filosofia do Direito da graduação e pós-graduação das Faculdades Kennedy de Minas Gerais. Presidente da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas de Minas Gerais (ABRACRIM-MG).

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  • Wesley Mark Medeiros Neres

    Wesley Mark Medeiros Neres

    Graduado em Direito pelas Faculdades Kennedy de Minas Gerais.

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Informações sobre o texto

Artigo elaborado como trabalho de conclusão do curso de Direito das Faculdades Kennedy de Minas Gerais pelo discente, orientando e principal autor Wesley Mark Medeiros Neres.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DONATO, Jânio Oliveira; NERES, W. M. M., Wesley Mark Medeiros Neres . O desacato ainda é crime no Brasil? Breves considerações sobre os precedentes jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça e o controle de convencionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5430, 14 maio 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65793. Acesso em: 5 maio 2024.