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A condução coercitiva face à processualidade penal constitucional

A condução coercitiva face à processualidade penal constitucional

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Apresenta-se uma visão constitucionalizada sobre o instituto da condução coercitiva. Parte-se de uma abordagem histórica e da análise do modo como a referida medida constritiva da liberdade foi prevista no CPP.

Resumo: Pretende-se, pelo presente artigo, oferecer uma visão constitucionalizada sobre o instituto da condução coercitiva. Parte-se, para tanto, de uma abordagem histórica e da análise do modo como a referida medida constritiva da liberdade foi prevista no Código de Processo Penal, quem pode ordená-la e contra quem ela pode ser efetivada.  

Palavras-chave: Condução coercitiva. Legitimidade. Processo.


INTRODUÇÃO

A condução coercitiva ocorre quando determinada pessoa, contra sua vontade, é levada até a presença da autoridade, para cumprir atos que sejam necessários à elucidação de algum fato, ou seja, a pessoa tem sua liberdade cerceada por um curto período de tempo, se não se apresentar, de modo injustificado, depois de devidamente intimada.

Para a sua determinação, a condução deverá se sujeitar aos princípios constitucionais que a balizam, dentre os quais, o direito de permanecer calado, de não produzir prova contra si mesmo (não autoincriminação) e o princípio da legalidade, todos inseridos implicitamente no título dos direitos e garantias fundamentais da Constituição da República de 1988. As normas constantes do Código de Processo Penal, principalmente a da necessidade e da adequação, são igualmente importantes na imposição da medida coercitiva.

É importante lembrar que de acordo com o artigo 5º, inciso LXI da Constituição da República, ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial. Diante deste enunciado, é asseverado que, a priori, somente o juiz pode determinar a condução coercitiva, não sendo possível à autoridade policial ou a qualquer outra a determinação da referida restrição da liberdade.

Ocorre, no entanto, que não raramente se vê posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários no sentido contrário, ainda admitindo, na atual conjuntura da processualidade democrática, a condução coercitiva dos sujeitos atuantes no processo penal (acusado, ofendido, testemunhas) por ordem exclusiva da autoridade policial, posicionamento de questionável constitucionalidade.

Diante disso, há de se refletir sobre quais seriam os requisitos a serem atendidos para a decretação da medida, especialmente aqueles referentes à(s) autoridade(s) legitimadas para a sua decretação, para que, assim, a medida se conforme ao modelo constitucional de processo e aos princípios regentes do sistema acusatório. 


NOÇÕES GERAIS DA CONDUÇÃO COERCITIVA: NATUREZA JURÍDICA E ASPECTOS HISTÓRICOS.

Segundo a doutrina majoritária, a condução coercitiva tem natureza jurídica de medida cautelar de natureza pessoal. Estas medidas têm o objetivo de assegurar a efetividade do processo limitando a liberdade de locomoção do investigado, indiciado ou acusado, durante o inquérito ou processo.

É nesse sentido que Guilherme de Souza Nucci (2016) afirma que a condução coercitiva tem natureza jurídica de prisão processual cautelar, sendo inclusive admitido o uso de algemas, em casos de resistência, bem como o recolhimento em cela, até que seja realizada a oitiva pela autoridade competente[1].

Representando a corrente minoritária, Fernando Capez (2014) sustenta posicionamento contrário afirmando que o ofendido e as testemunhas podem ser conduzidos coercitivamente sempre que deixarem, sem justificativa, de atender a intimações da autoridade policial (CPP, art.201, §1º e 218). Condiz com esse posicionamento, por sinal, a decisão abaixo transcrita:

INTERROGATÓRIO. CONDUÇÃO COERCITIVA (TACRIM/SP): “No poder legal dos delegados de polícia, iniludivelmente se encontra o de interrogar pessoa indiciada em inquérito, para tanto podendo mandá-la conduzir a sua presença, caso considere indispensável o ato e o interessado se recusa a comparecer” (RT, 482/357).

No que tange aos seus antecedentes jurídicos históricos, tem-se notícia, conforme o magistério de Eugênio Pacelli (2014), que no Código do Processo Criminal de Primeira Instância do Império do Brasil de 1832, o qual foi editado logo após a vigência das Ordenações do Reino de Portugal (do século XVI ao início do século XIX) e à promulgação da Constituição imperial de 1824, já havia um instituto análogo a condução coercitiva, nos artigos 95 e 202 da referida legislação:

Art. 95 do Código de Processo Criminal do Império: “As testemunhas que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de vara, e soffrerão a pena de desobediência”. (Grifo nosso).

Art. 202 do Código Criminal do Império assim dispõe: “O possuidor ou occultador das cousas ou pessoas, que forem objectos da busca, serão levados debaixo de vara a presença do juiz que a ordenou, para serem examinados e processados na forma da lei, se forem manisfestamente dolosos, ou se forem cumplices no crime”. (Grifo nosso).

É válido destacar que a expressão “debaixo de vara” tem uma conotação de obrigatoriedade, ou seja, de medida tomada à força, contra a vontade do conduzido.

A “Vara”, no direito antigo português, era símbolo de autoridade e as Ordenações Filipinas traziam a determinação de que os juízes deveriam trazer consigo varas, vermelhas ou brancas, sempre que estivessem em público, sob pena de multa:

“E os juízes ordinários trarão varas vermelhas e os juízes de fora brancas continuadamente, quando pella villa andarem, sob pena de quinhentos réis, por cada vez, que sem ella forem achados”. Livro 1, Título LXV. 1. Ordenações Filipinas.

Portanto, a condução coercitiva é um instituto utilizado desde meados do século XIX, com fundamento na necessidade de apuração de infrações de forma célere, mas devendo garantir os direitos do conduzido.


LEGALIDADE NORMATIVA DA CONDUÇÃO COERCITIVA.

No ordenamento jurídico brasileiro, somente a lei pode criar direitos, deveres e obrigações, constituindo-se uma garantia fundamental para todos os indivíduos contra os atos arbitrários cometidos pelo Estado.

O modelo atual de processo confere subordinação ao sistema constitucional vigente no Brasil, que em seu art. 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, no inciso XXXIX, dispõe que não há crime sem previsão em lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. O referido dispositivo revela o mandamento constitucional da anterioridade da lei e este é a aplicação do princípio da legalidade. O Código de Processo Penal também traz a previsão legal da medida limitativa da liberdade. (Artigos 201 § 1º, 218, 260 e 278).

Vale lembrar que tramita no congresso a Projeto de Lei do Senado 85/2017, que versa sobre a lei de abuso de autoridade, e também aborda o tema da condução coercitiva à luz do sistema constitucional brasileiro.

O referido projeto prevê mais de 30 ações que podem ser consideradas abuso de autoridade. Serão punidas, por exemplo, práticas como decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado sem prévia intimação ao juízo; fotografar ou filmar preso sem seu consentimento ou com o intuito de expô-lo a vexame; colocar algemas no detido quando não houver resistência à prisão e pedir vista de processo para atrasar o julgamento.


CONDUÇÃO COERCITIVA DO OFENDIDO

Segundo Renato Marcão (2016), o ofendido é o sujeito passivo do delito, é aquele sobre quem recai a ação delitiva, direta ou indiretamente. É o titular do bem jurídico atingido pela infração penal. É a vítima, em síntese, no sentido processual penal. Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci (2016), o Estado é considerado o sujeito passivo constante e formal sempre presente em todos os delitos, pois detém o direito de punir com exclusividade.

A respeito da condução coercitiva do ofendido, assim dispõe o Art. 201 do Código de Processo Penal:

Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstancias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.

§ 1º - Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008).

O ofendido deve comparecer perante a autoridade judicial ou policial para prestar declarações sobre a sua versão dos fatos. Trata-se de uma obrigatoriedade imposta pelo diploma processual penal, pois sua declaração é de suma importância para a instrução do inquérito ou processo. Uma vez que não seja ouvido o ofendido, poderá ocorrer o enfraquecimento da colheita das provas, dificultando, assim, a condição do magistrado formar sua convicção e proferir o veredicto.

Quanto a questão da legitimidade para determinação da apresentação obrigatória do ofendido a autoridade, no entendimento de Nestor Távora (2013), pode o ofendido ser conduzido coercitivamente tanto por determinação do magistrado quanto do delegado de polícia.

É importante ressaltar que estão dispostos, também, no art. 201 do citado diploma processual penal direitos fundamentais do ofendido, incluídos pela Lei 11.690 de 2008, que, de acordo com o processo penal constitucional, jamais poderão ser desrespeitados:

§ 2o O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem. 

§ 3o As comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele indicado, admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico. 

§ 4o Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido. 

§ 5o Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado.  

§ 6o O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação. 

Neste contexto, o ofendido será informado dos atos processuais referentes a entrada e saída do acusado da prisão, sendo informado através de meios e no endereço que ele informar, inclusive os eletrônicos. Terá espaço reservado e separado do acusado, antes e durante a realização das audiências. Poderá ser encaminhado para atendimento multidisciplinar, nas áreas psicossocial, saúde, jurídica as custas do Estado ou do acusado. Terá sua intimidade, vida privada, honra e imagem preservados, podendo ser beneficiado com o segredo de justiça com relação ao seu depoimento e demais informações constantes dos autos, evitando-se exposição aos meios de comunicação.


CONDUÇÃO COERCITIVA DO PERITO

O perito é conceituado por Renato Brasileiro (2016) como um auxiliar do juízo que possui conhecimentos técnicos ou científicos sobre determinada área do conhecimento humano. O perito oficial é investido pelo Estado da função de realizar exames periciais, uma vez que é funcionário público de carreira. Fornece, através de análise, elementos imprescindíveis para instrução da investigação, processo e do convencimento do magistrado. Há previsão de dois tipos de peritos, oficial e não oficial. Ambos devem possuir diploma de nível superior.

A respeito da condução coercitiva do perito, Renato Marcão (2016) informa que sua condução somente poderá ser determinada em caso de não comparecimento sem motivo justo. Entende, ainda o referido autor, que a medida somente seria aplicada a perito não oficial, uma vez que os peritos oficiais estão subordinados a regulamento disciplinar de sua instituição. Sendo que são previstas punições se cometerem falta funcional, tal como de não comparecer em juízo, quando intimado. 


CONDUÇÃO COERCITIVA DA TESTEMUNHA

A testemunha é o terceiro, que não é parte no processo, porém é capaz de fornecer informações sobre o ocorrido. Toda pessoa tem o dever de testemunhar, basta que tenha informação importante e pertinente sobre o fato objeto da causa.

O conceito de testemunha trazido por Renato Brasileiro (2016) é a pessoa desinteressada e capaz de depor, que perante a autoridade judiciária, declara o que sabe acerca de fatos percebidos por seus sentidos que interessam à decisão da causa. A prova testemunhal tem como objetivo, portanto, trazer ao processo dados de conhecimento que derivam da percepção sensorial daquele que é chamado a depor no processo. Suas declarações têm, portanto, natureza jurídica de meio de prova.

O Código de Processo Penal assegura que toda pessoa poderá ser testemunha (artigo 202), no entanto, a própria lei processual penal traz limitações ao dever de testemunhar, conforme demonstra o art.206 da lei processual penal:

“A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor, mas poderão, entretanto, recursar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstancias”.

Também de acordo com o art. 207 do mesmo diploma legal que consta o rol de pessoas proibidas de depor, temos que:

“São proibidas de depor as pessoas que em razão de função, ministério, oficio ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.

Assim, mesmo as pessoas listadas como testemunhas dispensadas e proibidas de depor, nos artigos supracitados do referido código processual legal, deverão comparecer quando devidamente intimadas pelo magistrado, sob pena de condução coercitiva, uma vez que não há ressalva em contrário no dispositivo legal.

A respeito da legitimidade da autoridade policial (delegado) poder determinar a condução coercitiva da testemunha, Renato Brasileiro (2016) afiança que a expressão “polícia judiciária” está relacionada às atribuições de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão, condução coercitiva de testemunhas etc. Portanto, caso necessite proceder à oitiva da testemunha deve o delegado de polícia requer ao magistrado a apresentação dela.

Com referência a previsão legal da condução coercitiva da testemunha, está delineado no Art. 218 do Código de Processo Penal:

“Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública”.

No caso da testemunha, o texto da lei indica, exclusivamente, o magistrado, (juiz) como autoridade competente para determinar que seja conduzida contra sua vontade para prestar depoimento, se for regularmente intimada e não comparecer sem apresentar um motivo relevante.

No procedimento do júri também há previsão de condução coercitiva de testemunha, determinada, exclusivamente, pelo juiz, art. 461 do Código de Processo Penal, que assim dispõe:

§ 1º “se intimada a testemunha não comparecer o juiz presidente suspenderá os trabalhos e mandará conduzi-la”.

No mesmo sentido, Fernando Capez (2014) afirma que se for intimada e não comparecer, será determinada condução coercitiva da testemunha, ou o adiamento do julgamento para o primeiro dia possível, ordenando sua condução.


CONDUÇÃO COERCITIVA DO ACUSADO

Guilherme de Souza Nucci (2016) conceitua o acusado como sujeito passivo da ação penal, é também parte da relação processual. No decorrer da investigação deve ser denominado de investigado, se, formalmente, apontado como suspeito pelo Estado. É a pessoa em face de quem se deduz a pretensão punitiva, ou seja, é o sujeito passivo da relação processual.  (LENZA, 2012, p.335).

A previsão legal que autoriza a condução forçada até a presença da autoridade está descrita no Código de Processo Penal em seu art. 260:

Se o acusado não atender a intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato, que sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo a sua presença.

Diante desta situação, Renato Marcão (2016) comenta que muito embora cogitável a possibilidade de condução coercitiva do acusado até a presença da autoridade policial com vista à sua oitiva (por força do disposto no art. 260), não há dúvida a respeito da inconstitucionalidade desse dispositivo, visto não se encontrar o acusado obrigado a colaborar com as diligências em seu desfavor.

Se o investigado pode se manter calado, não tem sentido lógico e coerência sistêmica a interpretação que permite a sua condução coercitiva até a presença da autoridade policial, pois sua recusa manifestada mediante ausência inicialmente evidenciada deve ser interpretada como opção clara pelo silencio.


AUTORIDADE COMPETENTE PARA DETERMINAR A CONDUÇÃO COERCITIVA DO ACUSADO: POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS E PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS.

Neste ponto, existe controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a autoridade legitimada e competente para ordenar a apresentação do acusado para o ato legal.

O sistema constitucional vigente, legislação máxima da nação, assegura que ninguém poderá ter sua liberdade cerceada senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial, juiz, exceto nos casos de transgressão militar ou crime militar definidos em lei.

Conforme entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2016) atualmente, apenas o juiz pode determinar a condução coercitiva, visto ser esta uma modalidade de prisão processual, embora de curta duração. Afirma, ainda, que a Constituição é taxativa ao preceituar caber, exclusivamente, à autoridade judiciária a prisão de alguém, por ordem escrita e fundamentada (art. 5º, LXI).

O delegado, quando necessitar, deve pleitear a autoridade judicial que determine a condução coercitiva do indiciado/suspeito ou de qualquer outra pessoa à sua presença.

Em sentido divergente, Renato Brasileiro (2016), diz que em razão do disposto na Constituição da República de que o preso será informado dos seus direitos, entre os quais de permanecer calado, sendo-lhe assegurada assistência da família e de advogado (art.5º, LXIII), não poderia o acusado ser conduzido obrigatoriamente para realização de interrogatório, nem mesmo por determinação do juiz. A condução poderia ser determinada somente para atos que não implicassem em produção de prova contra si mesmo, a exemplo de identificação e acareação, atos que não demandariam do acusado nenhuma conduta positiva. Continua vigendo, certamente, a possibilidade de o juiz determinar a condução coercitiva doréu para comparecer ao interrogatório, mas somente assim fará, caso necessite, por alguma razão, identificá-lo e qualificá-lo.

Renato Brasileiro (2016) ainda afirma que, mesmo diante do teor do dispositivo legal, a doutrina e a jurisprudência são unânimes em afirmar que na medida que a Constituição da República e a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos garantem ao acusado o direito de não produzir prova contra si mesmo não é possível que o magistrado determine a condução coercitiva para comparecer ao interrogatório, mesmo porque se o interrogatório é um meio de defesa, é claro que pode o acusado abrir mão de comparecer ao interrogatório.

O Supremo Tribunal Federal se manifestou no sentido de que não há qualquer objeção ao delegado de polícia determinar a condução forçada de investigado em cumprimento ao disposto no art. 260 do Código de Processo Penal, ou seja, a instrução do inquérito.

Foi fundamentado pela Suprema Corte que com base no art. 144 da Constituição da República, que descreve a função da polícia, e assim dispõe:

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares.

§4º: “A Polícia Civil deve ser dirigida por delegados de polícia de carreira, o qual incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, exceto as militares”.

E no art. 4º do Código de Processo Penal, que descreve a atuação da polícia judiciária.

A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Também no art. 6º, incisos II a VI, do Código de Processo Penal, que por sua vez, estabelece as providências a serem tomadas pelas autoridades policiais quando tivessem conhecimento da ocorrência de um delito.

Neste contexto, portanto, o delegado de polícia teria legitimidade na busca do esclarecimento do crime e para tanto, poderia de forma autônoma determinar a condução coercitiva de investigados. O Supremo Tribunal Federal observou, ainda, a desnecessidade da invocação da teoria dos poderes implícitos[2].

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. LATROCÍNIO. CONDUÇÃO DE SUSPEITO À DELEGACIA MESMO NÃO ESTANDO EM FLAGRANTE DELITO. POSSIBILIDADE. [...] 3. Consoante os artigos 144, § 4º, da Constituição Federal, compete 'às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares', sendo que o artigo 6º do Código de Processo Penal estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito. 4. A teoria dos poderes implícitos explica que a Constituição Federal, ao outorgar atribuições a determinado órgão, lhe confere, implicitamente, os poderes necessários para a sua execução. 5. Desse modo, não faria o menor sentido incumbir à polícia a apuração das infrações penais, e ao mesmo tempo vedar-lhe, por exemplo, exemplo, a condução de suspeitos ou testemunhas à delegacia para esclarecimentos (STF, HC 107.644, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 06/09/2011).

No mesmo sentido, orienta-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

[...] De acordo com tais relatos e informações, percebe-se claramente que não houve qualquer ilegalidade na condução do recorrente à delegacia de polícia para prestar esclarecimentos, ainda que não estivesse em flagrante delito e inexistisse mandado judicial. Consoante o disposto no § 4º do artigo 144 da Constituição Federal, "às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Por sua vez, o artigo 6º do Código de Processo Penal estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito, dentre as quais se destacam as previstas nos incisos II a VI, verbis : "Art. 6 o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (...) II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura; VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;" Nesse contexto, cumpre ressaltar que a doutrina constitucional cuida da teoria dos poderes implícitos, como postulado de hermenêutica pelo qual a atribuição de determinadas funções a um órgão é acompanhada, ainda que implicitamente, dos poderes necessários para a execução de suas finalidades funcionais. Desse modo, não faria o menor sentido incumbir à polícia a apuração das infrações penais, e ao mesmo tempo vedar-lhe, por exemplo, a condução de suspeitos ou testemunhas à delegacia. A jurisprudência, em diversos julgados, tem reconhecido a doutrina dos poderes implícitos (STJ, RHC 25.475, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 10/06/2014).

Na corrente contrária, o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, se manifestou no sentido de não permitir que o Ministério Público determinasse a condução coercitiva:

PODER DE INVESTIGAÇÃO PENAL. - O Ministério Público, sem prejuízo da fiscalização intra-orgânica e daquela desempenhada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, está permanentemente sujeito ao controle jurisdicional dos atos que pratique no âmbito das investigações penais que promova "expropria auctoritate", não podendo, dentre outras limitações de ordem jurídica, desrespeitar o direito do investigado ao silêncio ("nemo tenetur se detegere"), nem lhe ordenar a condução coercitiva, [...] (STF, HC 94173, REL. MIN. CELSO DE MELLO, 2ª TURMA, DJ 27/11/209)


 A CONDUÇÃO COERCITIVA À LUZ DO MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO.

O sistema constitucional positivo vigente no Brasil foi promulgado em 05 de outubro de 1988. Destarte, toda legislação infraconstitucional brasileira deve ser interpretada sob a luz da Constituição, ou seja, qualquer norma jurídica do Brasil deverá ser subordinada aos mandamentos e princípios constitucionais.

Acompanhando essa tendência de processualidade constitucional, o Código de Processo Civil, Lei 13.105 de 16 de março de 2015, em seu art. 1º determina que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República, observando-se as disposições deste código. Nesse sentido, Fredie Didier Jr (2016), assevera que as normas jurídicas derivam da Constituição e devem estar em conformidade com ela. Essa norma decorre do sistema de controle de constitucionalidade estabelecido pela própria Constituição Federal.  

No mesmo sentido, o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 156/2009, que trata da elaboração do novo Código de Processo Penal, também em seu art. 1º dispõe que o processo penal reger-se-á por este código, bem como pelos princípios fundamentais constitucionais e pelas normas previstas em tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja signatário. O dispositivo deixa claro que é imprescindível a observação da Constituição na aplicação das normas processuais.

O atual Código de Processo Penal é datado da década de 40. Decreto-Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941. Foi elaborado baseado na legislação italiana da época, que vivia um regime autoritário, o fascismo[3].

Após a promulgação da Constituição da República, o modelo constitucional de processo penal, de acordo com Araújo, Grinover e Dinamarco (2013) passou a ser conceituado como a condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucionais abrangendo, de um lado, a tutela constitucional dos princípios fundamentais da organização judiciária e de outro a jurisdição constitucional.

Tecendo comentários à Lei 12403/11, Eugênio Pacelli (2014) afirma não haver mais dúvida quanto a essa tendência constitucionalizante do processo, visto que “nosso Código de Processo Penal vai se alinhando às determinações constitucionais, ao menos em temas essenciais: as prisões provisórias devem ser sempre a exceção, devendo o magistrado preferir as medidas cautelares diversas daquelas (prisões) ”.

De igual modo, a doutrina majoritária, a exemplo de processualistas de vanguarda, como Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró, tem entendido que o processo penal deve se conformar cada vez mais aos modelos acusatórios, visto que, neles, observa-se um respeito maior à dialeticidade processual e a uma isonômica distribuição dos papéis entre os interlocutores do processo.

Nesse sentido, o sistema de processo penal acusatório, conforme nos ensina Renato Brasileiro (2016), é aquele em que há distinção entre acusação e defesa, atuando ambos de forma igualitária. Sendo que o juiz, se coloca de forma imparcial e equidistante das partes. É claramente visível a separação das funções de acusar, defender e julgar. O sistema apresenta como características a oralidade e a publicidade. Neste modelo de processo, é aplicada a presunção de inocência. Diante disso, a regra é que o acusado permaneça solto durante o processo. 

Neste sistema, sob o ponto de vista da produção de provas, o juiz não deveria ser dotado do poder de determinar a produção de provas de oficio, uma vez que estas devem ser apresentadas pelas partes. O julgador atenderia ao princípio da imparcialidade. Podendo o juiz atuar excepcionalmente de forma instrutória subsidiariamente as partes, garantido o respeito aos procedimentos descritos na lei.

Neste contexto, reforçando uma característica do sistema acusatório, a Constituição da República, em seu art. 129, inciso I, determina que é privativo do Ministério Público a propositura de ação penal pública, sendo que a relação processual somente tem início por sua provocação.

O sistema inquisitório se apresenta de maneira totalmente divergente ao sistema acusatório.

Dessa forma, no sistema inquisitório não há separação nas funções de acusar e julgar, que se encontram concentradas nas mãos de uma só pessoa, que é o juiz. É admitido o princípio da verdade real e o acusado não é sujeito de direito. O juiz tem total iniciativa na produção de provas e também de acusação, em qualquer fase da persecução penal. Atuando dessa forma, o juiz viola frontalmente os princípios da imparcialidade e do devido processo legal, atualmente inseridos na Constituição brasileira vigente.

Diante de tudo acima exposto, chega-se ao entendimento de que o instituto da condução coercitiva é relevante dentro da persecução penal. A doutrina e a jurisprudência apontam a necessidade da medida. Portanto, a restrição da liberdade das partes no processo penal somente deve ser determinada conforme ditames constitucionais, e ainda se observando todos os requisitos legais constantes do Código de Processo Penal. A autoridade competente que pode determinar a condução coercitiva é sempre o magistrado, em respeito à lei máxima da nação e os princípios nela constantes.


CONCLUSÃO

Para concluir, pode-se afirmar que a condução coercitiva é uma medida cautelar de natureza pessoal que restringe o direito fundamental da liberdade. A medida pode ser adotada tanto na fase do inquérito quanto na fase do processo. Na primeira fase, deve ser devidamente fundamentada e requerida à autoridade judicial pelo delegado de polícia. Na segunda fase, ordenada pelo juiz, também devidamente fundamentada. Podem se apresentar como sujeito passivo da medida o acusado, assegurado seu direito ao silêncio e de não produzir provas contra si mesmo, o ofendido, a testemunha e o perito,

Destarte, fato é que a doutrina e a jurisprudência têm opiniões distintas quanto a legitimidade da autoridade que pode ordenar a condução coercitiva. Em decorrência do sistema de processualidade constitucional, a medida deve ter como parâmetro os princípios da constituição da República, que autoriza somente o magistrado para impor medida constritiva da liberdade.

Diante disso, impõe-se à condução coercitiva uma cautela maior na sua determinação, que só deve acontecer quando não houver outro meio para apuração da materialidade e autoria do delito, respeitando-se os direitos fundamentais do conduzido e com rigorosa observância do devido processo legal.


REFERENCIAS:

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BRASILEIRO, Renato. Manual de Processo Penal. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. 

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Notas

[1] Vale advertir que em recente mudança no Código de Processo Penal, através da Lei 13.434 de 12 de abril de 2017, determinou a vedação do uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para o parto e que estejam em estado puerperal recente, portanto nestes casos há a limitação do uso de algemas.

[2] Conforme Cabette e Sannini Neto (2013), a teoria dos poderes implícitos tem sua origem na Suprema Corte dos EUA, no ano de 1819, no precedente Mc CulloCh vs. Maryland. De acordo com a teoria, a Constituição, ao conceder uma função a determinado órgão ou instituição, também lhe confere, implicitamente, os meios necessários para a consecução desta atividade.

[3] Movimento político e filosófico ou regime, como o estabelecido por Benito Mussolini, na Itália, em 1922, que faz prevalecer os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais e que é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador. Dicionário da Academia Brasileira de Letras. 2008.


Autores

  • Jânio Oliveira Donato

    Advogado criminalista. Mestre em Direito Processual (2013) e Especialista em Ciências Penais (2007) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Gestão de Instituições de Ensino Superior (2016) pela Faculdade Promove de Minas Gerais. Professor de Direito Processual Penal e Filosofia do Direito da graduação e pós-graduação das Faculdades Kennedy de Minas Gerais. Presidente da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas de Minas Gerais (ABRACRIM-MG).

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  • Lucas Marco da Silva Rocha

    Lucas Marco da Silva Rocha

    Bacharel em Direito pela Faculdade Kennedy de Minas Gerais.

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