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Sistema, norma e justiça nas teorias de Hans Kelsen e Niklas Luhmann

Sistema, norma e justiça nas teorias de Hans Kelsen e Niklas Luhmann

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Os tópicos sistema e normas são basilares no entendimento do sistema jurídico enquanto entidade autônoma. Há o entrelaçamento entre o sistema e as normas como vias de concretização da Justiça entendida pelo direito.

1.O Sistema do Direito

A análise do direito, enquanto sistema autônomo, remonta à teoria normativa de Hans Kelsen, célebre pela pretensão de outorgar pureza à ciência do direito. Apesar de ser rotulado como positivista, o jurista austríaco muito contribuiu para o entendimento do direito em si, e a partir dessa guinada a ciência do direito pôde se desenvolver baseada em análises que não se valem de juízos não-jurídicos. Nisso, a própria teoria dos sistemas desenvolvida por Luhmann resguarda uma intrínseca relação com a teoria pura do direito kelseniana, uma vez que ambas entendem o sistema do direito autonomamente, apesar compreenderem o fechamento do sistema jurídico diferentemente.   

1.1 O sistema do direito na visão de Hans Kelsen

A pureza científica de Hans Kelsen se dá pela ausência de valoração e interferência de outras ciências na descrição cognitiva das normas, objeto primordial de estudo da ciência do direito. Para Kelsen, sem sua “Teoria Pura do Direito” (2003), a ciência do direito é uma ciência social normativa. Nisso, os fenômenos sociais do direito são percebidos através da imputação e não da causalidade. Na imputação, a proposição designa um dever-ser, pois há o pressuposto de que a consequência de uma violação normativa pode não seguir da maneira que deva seguir.

Percebe-se que o cerne de uma avaliação deontológica se baseia em uma possível frustração normativa. Contudo, o pressuposto essencial do sistema jurídico é a qualidade imperativa das normas jurídicas, como algo que deva se impor, mesmo em casos de frustações. Ao contrário das ciências naturais, a ciência do direito não tem a premissa de mudança valorativa de uma norma em caso de frustrações empíricas deontológicas: a imperatividade de uma norma se mantém mesmo que seu comando seja desobedecido.

Ademais, dentro do sistema jurídico, há que se diferenciar a proposição jurídica como um juízo hipotético, e uma prescrição jurídica, como juízo normativo. Para Kelsen, o cientista do direito analisa o ordenamento jurídico por meio de uma proposição, ao contrário dos aplicadores do direito que se valem de uma prescrição. As normas jurídicas em si são válidas ou inválidas, ao passo que o conhecimento jurídico (proposição) sobre uma norma é verídico ou inverídico.

Em se tratando de interpretação e, consequentemente, de aplicação das normas, tanto o jurista teórico quanto o jurista prático se inserem nesse exercício. Através da interpretação é possível determinar as normas individuais a partir de normas gerais, guiando-se pela literalidade. Para Kelsen, processo cognoscitivo da ciência do direito formula um quadro com possíveis sentidos de uma norma, pelo qual o aplicador do direito, através de sua interpretação autêntica, irá escolher dentre eles qual irá se aplicar ao caso concreto (BITTAR 2015, p. 436).

Percebe-se que a centralidade da teoria pura do direito é a norma jurídica positiva. E é por isso que todo o arcabouço teórico de Kelsen se orienta no conceito de validade, como forma de representação da existência de uma norma. Por conseguinte, a pressuposição de uma norma fundamental se torna principal mecanismo dessa representação, pois expurga qualquer juízo de valor que não provenha da lógica normativa, fechando normativamente o sistema do direito. Segundo Bittar:

“O sistema jurídico, para Kelsen, é unitário, orgânico, fechado, completo e autossuficiente; nele, nada falta para seu aperfeiçoamento; normas hierarquicamente inferiores buscam seu fundamento de validade em normas hierarquicamente superiores. O ordenamento jurídico resume-se a esse complexo emaranhado de relações normativas. Qualquer abertura para fatores extrajurídicos comprometeria sua rigidez e completude, de modo que a norma fundamental desempenha esse papel importante de fechamento do sistema normativo escalonado” (BITTAR 2015, p. 435)

Portanto, o ordenamento jurídico kelseniano é lógica e normativamente fechado. A norma é o começo e o fim do sistema, tanto na ciência como na aplicação do direito. Dessa forma, ciência e prática jurídicas se auxiliam na dinâmica do direito a fim de expurgar qualquer elemento que não diz respeito ao direito em si.

1.2 O sistema legal na teoria de Niklas Luhmann

Na teoria sistêmica de Niklas Luhmann o ponto de partida se dá a partir da diferenciação entre sistema e ambiente, e nisso deve-se reconhecer o que seja uma operação, e qual operação pertence ao direito e qual operação não pertence. É com essa noção que Luhmann afirma a tese do fechamento operativo em seu livro “O Direito da Sociedade” (2016).

Os sistemas operativamente fechados “se fiam em sua própria rede de operações para a produção de suas próprias operações e, nesse sentido, reproduzem-se” (LUHMANN 2016, p. 59). Assim, as comunicações referentes ao direito enquanto operações do mesmo exercem uma dupla função: são fatores de produção e mantedoras de estruturas. Fatores de produção porque a manutenção ou a modificação da estrutura fazem parte da produção autopoiética; mantedoras de estruturas, porque na produção, deve-se preparar a estrutura para a próxima operação. Não obstante, “toda mutabilidade e toda estrutura têm de ser produzidos no sistema, por meio de operações provindas pelo próprio sistema” (LUHMANN 2016, p. 67). Assim, só o direito pode dizer o que é direito – e isso também é característica do fechamento operativo.

No entanto, o direito não é um sistema isolado da sociedade, porquanto ao ambiente que se heterorrefere o mesmo subjaz todo o sistema social. O direito opera enquanto subsistema da sociedade, e nisso deve realiza-la. As operações do direito, que se utilizam da linguagem, efetivam não apenas o sistema do direito, mas possibilidades de associações fora dele. Portanto, para que se entenda as operações como sendo parte do sistema legal, deve-se reconhecer nelas certas características. Por meio delas se reconhece quais operações foram feitas por último e quais se farão a seguir, tal como, em se tratando de modificações, ser determinado ou determinável o que será modificado.

Por outro lado, o sociólogo alemão adverte que o direito se encontra dependente de estruturas sociais, e sua incorporação deve ser neutralizada com uma distinção específica no âmbito do direito, e não de outras nuances. Nisso, o mesmo deve levar em conta tais estruturas ao passo que as internaliza em forma de distinções relevantes: “com mudanças das estruturas sociais, mudam também as maneiras pelas quais o sistema legal, a partir de si mesmo, passa a levar em conta essas mudanças” (LUHMANN 2016, p. 80). Dessa forma, duas são as características que irão diferenciar o direito consoante seu fechamento operacional: a especificação de sua função e seu código (lícito/ilícito).

O sistema legal está presente na comunicação social, mas somente algumas dessas comunicações são operações internas do sistema. Assim, as comunicações orientadas pelo código binário lícito/ilícito são operações do sistema responsáveis pela autopoiése, ao passo que afirmam a integridade do sistema e também alargam a autopoiése, permitindo mais comunicação. Dessa forma, para que haja uma modificação no direito, a comunicação externa deve converter em comunicação interna ao sistema legal. A comunicação interna, ademais, é a única responsável por dizer o direito, e que, através do fechamento operativo, define os limites do sistema, resguardando ao direito a prerrogativa de dizer o que é lícito e ilícito.

Para Luhmann, o fechamento operativo do direito não pressupõe seu isolamento da sociedade. É precisamente pelo fechamento que é possível o intercâmbio entre sistema e ambiente através da abertura cognitiva. Ademais, a abertura do direito não põe em xeque sua autonomia. O problema consiste na forma que o direito internaliza operações do ambiente. Luhmann caracteriza o sistema do direito, quanto a sua função, como normativamente fechado e cogniscitivamente aberto. Pelo fechamento, a moral e o direito se distinguem, porquanto a moral não pode dar cabo de todas as operações do direito, uma vez que o dissenso pertencente à moral obstrui a consistência do direito. Ademais, é através da observação de segunda ordem que é possível reconhecer as combinações entre expectativas normativa e cognitiva, tal como entre autorreferência e heterorreferência. Assim, por mais que Luhmann reconheça o fechamento normativo do direito como consequência da separação entre direito e moral, ele também reconhece que por meio da abertura cognitiva do direito e uma observação de segunda ordem, é possível importar elementos da moral, assim como de outros elementos de outros sistemas, controladamente.

Por fim, a partir do fechamento operativo, pressupõe-se o encadeamento de operações anteriores e sucessivas, sendo que, nesse lapso, a possibilidade de haver ilegalidade dentro do sistema não é negada. Uma decisão que se paute em juízos puramente políticos não coaduna com a interconexão das operações internas. Ou seja, o rompimento da consistência do sistema legal por meio de operações do próprio sistema também é possível. Nesse caso, o fechamento do sistema consiste em as auto-observação segundo o esquema de legal/ilegal como forma de evitar a ilegalidade. Isso porque, para Luhmann, um ato de arbitrariedade não pode ser reconhecido como jurídico, mas, e em suma, como uma ruptura do direito, obstruindo, dessa forma, a autonomia do direito em face de sua utilização por outros sistemas.  

1.3 As divergências e similitudes

A analítica de Hans Kelsen baseia-se na ótica de um direito estático e de um direito dinâmico. Enquanto estático, o direito é um ordenamento hierárquico pelo qual a validade de uma norma inferior se ancora em uma norma superior, até que se chegue na norma fundamental. Enquanto dinâmico, o ordenamento está em constante mudança, porquanto sua aplicação implica também em criação do direito. Não obstante, o direito em sua dinâmica se renova a partir de si mesmo, e não de outras nuances fora do ordenamento, pois o faz consoante às normas presentes no próprio ordenamento. Ou seja, o direito se autorreproduz, e nisso muito se assemelha à teoria dos sistemas (SCHWARTZ e SANTOS NETO 2008, p. 192).

A diferença primordial entre as teorias de Kelsen e de Luhmann reside na relação que o sistema do direito tem com o seu entorno. Para Kelsen, poucas são as exceções que o mundo do dever-ser se conecta com o mundo do ser (SCHWARTZ e SANTOS NETO 2008, p. 194-195). A revolução ou golpe de Estado são formas de ruptura da autonomia do direito, pois o mesmo passa a não se determinar, mas é determinado por pressões destrutivas que nascem fora do sistema jurídico. Dentro do próprio ordenamento, o jurista austríaco reconhece que a norma positiva deve ter o mínimo de eficácia como condição necessária para sua validade. Por fim, o desuso também é uma forma de invalidar uma norma jurídica em detrimento de sua eficácia, visto que o costume também possui uma espécie de força derrogatória.

Por outro lado, Luhmann, com já exposto, baseia sua teoria na diferença primordial que existe entre sistema e ambiente. Dessa forma, o direito passa a ser entendido a partir de sua diferenciação funcional como forma de redução da complexidade do ambiente, estabelecendo uma via para que as operações do sistema legal possam ocorrer em si mesmo.

Ademais, o fechamento normativo de Kelsen impede uma análise mais rigorosa da relação entre o direito com a sociedade. Contudo, esse mesmo fechamento permite o entendimento do ordenamento jurídico enquanto fenômeno a par de outras nuances, tal como exerce um peso na ciência do direito como forma de entender o universo normativo. Dentro do sistema do direito, a comunicação, as operações, a observação, todos esses termos utilizados pela teoria dos sistemas parte de uma linguagem baseada no código binário lícito/ilícito.

Contudo, a forma como flui essa linguagem pressupõe o modo como é organizado o ordenamento jurídico. Desse modo, a teoria pura do direito exerce papel central como forma de facilitar a comunicação dentro do próprio sistema, porquanto a análise do direito é feita a partir de si mesmo. Assim, é possível inferir que a teoria jurídica de Hans Kelsen contribui para a própria autopoiése do direito.

Por fim, Luhmann se diferencia de Kelsen no alicerce de toda sua digressão teórica, ou seja, na relação entre sistema e ambiente. No sistema legal a autorreferência, a autonomia, a unidade do sistema, suas próprias operações, tudo se desenvolve a partir do código lícito/ilícito. Dessa forma, a abertura cognitiva preconizada por Luhmann parte da ideia de que este código pertence ao direito e tão somente ao direito. Mesmo que o sistema legal se utilize de referências externas, as operações decorrentes destas serão sempre internas ao sistema, como já exposto.

Dessa forma, ao contrário de Kelsen, Luhmann pressupõe a abertura cognitiva do sistema legal na base de sua teoria; e nisso, o sociólogo alemão estabelece condições para que aquilo que é incorporado ao sistema esteja em consonância com o mesmo, ou seja, em consonância com seu próprio código binário. Por outro lado, a abertura do direito é reconhecida de forma tácita na teoria pura de Kelsen, uma vez que o aplicador do direito traz para o direito elementos não-jurídicos, através de sua interpretação autêntica. Contudo, o jurista austríaco não propõe um modelo de incorporação de elementos não-jurídicos pelo qual a arbitrariedade do aplicador possa ser barrada.

Dessa forma, percebe-se que Luhmann estabelece critérios mais sofisticados na preservação do fechamento operativo do direito, porquanto a pressuposição de uma abertura cognitiva permite a regulação na incorporação daquilo que reside no ambiente do sistema, em detrimento de arbitrariedades por parte dos aplicadores do direito. Com isso, a preservação da unidade do sistema, sua autorreferência e autonomia, tal como sua autopoiése, são resguardadas mesmo quando elementos do ambiente são incorporados nas operações do sistema.


2.As Normas e o Direito

As normas são imprescindíveis para o entendimento do direito enquanto sistema. Tanto nas operações do sistema em Luhmann, quanto no fechamento normativo em Kelsen as normas exercem papel central. O fenômeno da positivação, como já exposto, é uma característica intrínseca do direito moderno. Com isso, o estudo normativo levou juristas a fechar o direito como um universo de normas emaranhadas a par de outras nuances sociais.

Contudo, esse fenômeno se mostrou ineficaz, pois o direito não funciona como uma entidade apartado da sociedade. Dessa forma, o fechamento e a abertura normativa são fenômenos que dão ensejo a diferentes definições do direito, e que representam bem os processos pelos quais o mesmo passou a partir do séc. XX até os dias atuais. 

2.1 O fechamento normativo de Hans Kelsen

Para entender melhor a natureza das normas jurídicas, Hans Kelsen em seu livro “Teoria Pura do Direito” (2003) inicia expondo a diferença entre o “ser” e o “dever-ser” consoante aos sentidos subjetivo e objetivo. Um ato produzido no mundo sensível tem uma significação subjetiva que pode ou não ser, também, objetiva. Para que um ato seja objetivo, deve haver um respaldo normativo, um embasamento em uma norma. Dessa forma, o ato presente tão somente à ordem do ser tem, tão somente, uma significação subjetiva, ao passo que um ato presente no mundo do ser com respaldo normativo pertence, também, à ordem do dever-ser e tem uma significação objetiva.

As normas jurídicas, para Kelsen, localizadas na ordem do dever-ser objetivo, exprimem um juízo de valor acerca de condutas do mundo do ser, representando algumas como boas e outras como más. Ademais, em uma ordem racional, essa valoração é altamente mutável, pois alguns valores de determinada sociedade mudam com o tempo, e assim o acompanha sua legislação, sem que esta seja determinante daqueles.

Hans Kelsen preconiza que a característica distintiva do direito em face das demais ordens sociais é a coação -principalmente no que concerne às sanções. Ademais, o monopólio de coação pertence, em grande medida, à comunidade jurídica. Por coação se entende uma força, às vezes física, que o ordenamento se vale quando uma norma é violada, e nesse caso funcionando como sanção.

A sanção, portanto, é definida pelo jurista como “todos os atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica, desde que com ele outra coisa não se queira exprimir se não que a ordem jurídica, através desses atos, reage contra uma situação de fato socialmente indesejável e, através desta reação, define a indesejabilidade dessa situação de fato” (KELSEN, 2003, p. 45-46). A coação, todavia, não é utilizada positivamente consoante à efetivação normativa, mas tão somente quando as normas são violadas -e nisso se caracterizam como sanção.

O direito pressupõe sua unidade normativa no que o jurista austríaco denomina “norma fundamental”: todas as normas do ordenamento são-lhe oriundas. As normas são partes objetivas do dever-ser uma vez que têm, em última instância, amparo nessa norma fundamental, e, dessa forma, são válidas. Com isso, a coação oriunda do ordenamento jurídico deve, sob determinadas condições, ser executada, ao passo que uma ameaça coativa efêmera não deve ser aplicada, mas pode se concretizar em algum contexto. Isso porque a coação jurídica tem amparo na norma fundamental, e pertence à ordem do dever-ser objetivo, ao passo que uma ameaça pertencente à ordem do dever-ser subjetivo, não.

A norma fundamental é um artifício teórico que permite expurgar o direito de qualquer fundamentação última legitimante. Com ela, Kelsen vai diametralmente contra o jusnaturalismo, que, por excelência, exige uma base de justiça em todo o direito, preconizando certas condições imutáveis de validade para o mesmo. A efetividade e o predomínio no tempo são as únicas condições para que uma norma fundamental gere um ordenamento jurídico.

Além do mais, a norma fundamental, para o jurista austríaco, tem a prerrogativa de estabelecer os parâmetros pelos quais se poderá agir com coerção, no caso de violação de uma norma que tem em si a valoração de uma conduta socialmente desejável. A partir da norma fundamental, outras normas tratarão também desses parâmetros, até que se chegue à execução coercitiva última. Para Kelsen, basicamente todas as normas do ordenamento jurídico estão entrelaçadas e subordinadas umas às outras, com a finalidade de concretizar tal execução coercitiva. Assim, apenas esta seria uma norma autônoma, ao passo que todas as outras seriam normas não-autônomas.

2.2 A abertura do direito e as teorias principiológicas de Dworkin e Alexy na visão de Marcelo Neves

A noção de “lacunas” já era trabalhada em Kelsen como uma ficção, algo que não existe no ordenamento jurídico positivo e que tem relação intrínseca com as liberdades negativas conferidas pelo direito. Em Hart, a “abertura textual” do direito já é admitida, e pressupõe o poder discricionário do magistrado como forma de resolvê-la. E é a partir dessa noção de abertura interpretativa em Hart que Dworkin vai elaborar sua teoria principiológica, a fim de mitigar essa discricionariedade judicial. O presente capítulo não tem a pretensão de elaborar uma análise acerca desse problema de abertura interpretativa nas teorias de Kelsen e Hart. Ademais, a exposição dos modelos de Dworkin e Alexy é breve, seguindo a obra “Entre Hidra e Hércules” de Marcelo Neves, para depois se explicar o modelo (de matriz luhminana) preconizado pelo jurista brasileiro.

A noção de discricionariedade é trabalhada por Hart como uma zona de abertura no direito que permite o magistrado decidir o caso da maneira que lhe convir. Dworkin mitiga essa noção ao afirmar que nesses casos, denominados “hard cases”, o magistrado não dispõe desse poder discricionário uma vez que os princípios seriam suficientes para guiar a atividade interpretativa. O filósofo do direito norte-americano, então, propaga a diferença entre princípios, regras e policies O conflito entre regras se dá à maneira do tudo-ou-nada, pressupondo na validade de uma a invalidade da outra. Ademais, na aplicação da regra válida deve-se enumerar taxativamente todas suas exceções.

Os princípios, por sua vez, são sopesáveis entre si, não havendo determinante de validade em sua aplicação. Ao contrário das regras, os princípios não funcionam como aplicação automática ao caso concreto, pois não exigem sua aplicação obrigatória. Por fim, o autor denomina policies aquelas normas que tem por fim a melhoria em algum aspecto econômico, político ou social, ao contrário dos princípios que têm compromisso com a justiça ou equidade, ou qualquer outra dimensão da moralidade.

Dessa forma, a teoria principiológica de Dworkin contém uma carga moral que pode incorrer na identificação de nuances jusnaturalistas. Contudo, os princípios para o autor remontam a uma moral comunitária, ao contrário de uma moral de ordem superior imutável – indo, portanto, contra o jusnaturalismo. Para afirmá-la, o juiz Hércules, disposto de amplo saber cognoscitivo, tem a função de apresentar uma única decisão correta para o caso a partir de uma espécie de vislumbramento dessa moral comunitária subjacente.

Marcelo Neves adianta algumas críticas ao modelo de Dworkin, sem, contudo, desprestigiar sua teoria principiológica, compreendendo nos princípios um importante mecanismo de satisfazer as expectavas normativas. Dentre elas, e consoante à Alexy, a que trata da exaustão obrigatória das exceções à regra aplicada ao caso concreta como sendo impossível, em face da complexidade do sistema jurídico. Outro ponto diz respeito à dimensão de peso que, segundo o jurista brasileiro, também se aplica às regras; ou seja, as regras também são sopesáveis entre si, sem pôr a validade em xeque. Por fim, a crítica mais importante vai contra a noção de moral comunitária subjacente, que, em face de uma sociedade supercomplexa na qual impera o dissenso estrutural, seria eminentemente utópica.

Já Alexy parte da teoria de Dworkin com a pretensão de melhorá-la e aplicá-la no contexto específico do direito alemão. Para o autor, como já exposto, na aplicação de uma regra é impossível, factual e teoricamente, arrolar exaustivamente todas suas exceções. A solução se mostra na possibilidade de haver uma cláusula de exceção que restrinja o alcance dessa norma. Ademais, o conflito normativo entre regras não é aplicado à maneira tudo-ou-nada, como em Dworkin, mas a validade aqui também é posta em xeque.

As regras, para Alexy, podem ser satisfeitas ou não satisfeitas, e são entendidas como razões definitivas em um caso, ao passo que os princípios são mandamentos de otimização, e são entendidos como razão prima facie. Por razão definitiva Alexy preconiza a previsão jurídico-factual que dispõem as regras em sua subsunção ao caso concreto -a questão fica um pouco nebulosa quando se fala em cláusula de exceção, mas que Alexy entende que estas não conferem às regras a razão prima facie pertencente aos princípios. Por razão prima facie se espera o contrário: não há qualquer previsão jurídica ou factual para a subsunção ao caso concreto, tal como nesta subsunção os princípios podem ser sopesáveis entre si.

Algumas críticas também são firmadas por Neves contra Alexy, e, assim como as críticas a Dworkin, serão melhor trabalhadas no seu modelo. Para o autor, tanto a teoria do tudo-ou-nada como a da satisfação ou não satisfação, no que concerne às regras, são inviáveis, salvo nos casos de aplicação corriqueira do direito, por negligenciar a perfeita possibilidade de ponderação entre regras – ou mesmo entre regra a exceção-, sem levar necessariamente à invalidade de uma delas. Ademais, a pretensão de otimização propagada por Alexy também é problemática em uma sociedade supercomplexa, porquanto uma decisão muito dificilmente será vista como a melhor decisão por todos os seguimentos da sociedade moderna, na qual impera o dissenso. Assim, a ponderação entre princípios não tem por finalidade garantir uma otimização, mas tão somente garantir a consistência jurídica e a adequação social do direito, em um contexto social e jurídico amplamente complexos.

2.3 Um novo modelo

Partindo dos modelos de Dworkin e Alexy, Marcelo Neves propõe um novo modelo, que tem por base a noção sistêmica de Niklas Luhmann. As regras e os princípios podem estar dispostos direta e indiretamente no texto constitucional. Deve-se tomar cuidado, todavia, com a atribuição indireta de regras e, em especial, de princípios, uma vez que a arbitrariedade não é permitida. É necessário que um princípio que se pretenda atribuir ao texto constitucional esteja em conformidade com todas as disposições normativas direta e indiretamente já consolidadas, respeitando assim a dupla contingência.

Como já exposto, Neves considera a distinção entre princípios e regras irrelevante na aplicação corriqueira do direito. Para o autor, só na observação de segunda ordem é que essa diferenciação fará sentido. O conceito de observação de primeira e segunda ordem se insere na teoria dos sistemas, em contraposição ao modelo da ação e da argumentação de Habermas. Na observação de primeira ordem não há questionamento entre alter e ego no exercício habitual do direito, mas o consenso também não é pressuposto. Em surgindo controvérsias acerca da aplicação de uma norma, descortina-se o dissenso, mas sem a pretensão de estabelecer novamente o consenso – como em Habermas-, pois, somente com o dissenso o sistema se abre a fim de possibilitar sua reconstrução periódica. Para o jurista brasileiro, a ideia de consenso é ingênua em uma sociedade supercomplexa, pois pressupõe uma realidade consensual subjacente à mesma. Por conseguinte, os princípios têm função paradoxal de absorver o dissenso e, ao mesmo tempo, promovê-lo.

A discussão entorno dos princípios pressupõe o fenômeno da positivação do direito, como forma de possibilitar a diferenciação funcional e a autonomia do direito na sociedade moderna. Neves, consoante Luhmann, concebe o fenômeno da positivação voltado às Constituições no sentido moderno como acoplamento estrutural entre política e direito, pressupondo o funcionamento satisfatório do Estado de direito e da democracia, sendo que o entendimento acerca da Constituição é firmado tanto pela legislação quanto pela interpretação e aplicação das normas.

A secularização por meio da positivação leva a um dissenso estrutural dentro da sociedade, e ao surgimento dos princípios constitucionais como meio de orientação normativa. Isso porque as regras, tão somente, são insuficientes na satisfação de expectativas normativas em uma sociedade complexa: sua qualidade resulta como fundamento imediato do caso a decidir. Desse modo, a realidade desestruturada do ambiente passa por um crivo de estruturação através dos princípios que desembocará nas regras, estruturando a complexidade. 

A articulação entre princípios e regras configura uma relação circular, como forma de resguardar a dupla contingência do sistema jurídico. Por dupla contingência, Neves se utiliza da teoria dos sistemas para explicar a relação entre legislador e aplicador do direito. Ou seja, a norma não pode ser interpretada tão somente pelo sentido atribuído pelo legislador (alter), assim como não se pode tão somente levar em conta a interpretação do aplicador (ego).

A ordem constitucional deve manter essa alteridade paradoxal entre juiz e legislador, sob pena, ou de se cair em um positivismo constitucional-legalista ingênuo, desprezando a adequação social do direito, ou de se cair em um realismo/decisionismo judicial, desprezando a consistência jurídica. E nisso os princípios e as regras, em uma relação circular, exercem um papel central.

Os princípios, para Neves, constituem mecanismos reflexivos do sistema jurídico, ou seja, viabilizam a auto-observação do sistema. Assim, eles permitem uma maior adequação do direito em face do ambiente social, ao passo que as regras fortificam o direito em si. Isso porque, se as regras não forem levadas em conta, haverá uma desestabilização do direito em face de outros subsistemas, e das expectativas normativas, levando à insegurança jurídica. Nesse sentido, o direito se torna capaz de abarcar determinados casos complexos sem perder sua autorreferência, por meio dessa relação circular entre princípios e regras.

Por fim, Marcelo Neves ainda ressalva o problema da pretensão otimizante de Alexy, assim como da tese da única decisão correta de Dwokin. Ambas têm a pretensão do consenso estrutural na sociedade. Como já exposto, em uma sociedade marcada pela complexidade e pelo dissenso estrutural, é demasiado dificultoso falar em uma melhor decisão pressupondo a aceitação da sociedade como um todo. O problema nesse tipo de teoria consiste no rompimento da diferenciação funcional do direito, acarretando no perigo da desdiferenciação preconizado por Marcelo Neves.

Sua ocorrência se caracteriza pela demasiada influência exercida por algum subsistema (religioso, político, científico) ao sistema jurídico, através da abertura para adequação assegurada pelos princípios. Para o autor, a pretensão otimizante da ponderação encontra seu principal obstáculo na incomensurabilidade das perspectivas no processo de argumentação jurídica. Por incomensurabilidade, Neves cunha um termo de Thomas Kuhn acerca da discordância frequente entre paradigmas antagônicos sobre os problemas apresentados (KUHN 1996, p. 148-50 apud.: NEVES 2013, p. 149). O dissenso, portanto, será sempre mantido. Uma via proposta pelo jurista brasileiro é a comparabilidade como uma maneira de compatibilização de dissensos, levando em conta toda a pluralidade da relação conflituosa.

Em síntese, o modelo de Marcelo Neves encontra nos princípios uma importante fonte de adequação social do direito. As regras também não podem ser excluídas desse processo, por garantir a autorreferência e consistência do sistema jurídico. Para tanto, a relação entre ambos não é hierárquica, mas sim, circular. Ademais, o consenso não deve ser a nenhum momento procurado, porquanto o dissenso é uma via de abertura para diversas interpretações que um mesmo problema jurídico pode apresentar em uma sociedade supercomplexa. Por fim, o rompimento da dupla contingência na alteridade paradoxal entre legislador e aplicador do direito, tal como o problema da desdiferenciação, devem ser combatidos a todo o custo no exercício interpretativo.

Enfim, só há possibilidade de falar em sistema jurídico em um contexto de normas. A teoria de Hans Kelsen parte do entendimento do sistema jurídico em si, e isso ressoa principalmente pela sua abordagem normativista. Ou seja, é a partir do contexto normativo que Kelsen fechou o sistema jurídico. Ademais, as operações internas do direito pressupõem esse fechamento, uma vez que a comunicação do sistema legal parte também de um contexto normativo. Como já exposto, todavia, Kelsen e Luhmann divergem quanto a pressuposição de abertura do sistema. Nisso, a teoria dos sistemas exerce demasiada influência na teoria jurídica atual, pois o giro principiológico no final do séc. XX mantém relação intrínseca com a abertura do sistema do direito, partindo de seu fechamento operativo. Nisso, é possível regular a entrância de novas regras e, principalmente, de princípios nas operações jurídicas.

Os princípios, como já exposto, possuem um nível de abstração interpretativa que permite, ou a melhor adequação do direito com a sociedade, ou uma arbitrariedade a partir de um ativismo/realismo judicial, rompendo com toda a consistência do sistema jurídico. Nisso, o jurista Marcelo Neves expõe, a partir de uma matriz luhmanniana, a problemática em torno dessa abertura principiológica no sistema legal, advertindo as possibilidades de desdiferenciação e de rompimento da dupla contingência. Nisso, os princípios são possíveis, e mesmo preteridos na teoria sistêmica, quando em conformidade com a autonomia, unidade e código do sistema jurídico, em detrimento de uma possível corrupção sistêmica a partir da hipertrofia de outros subsistemas ao sistema legal.


3.A Justiça e o Direito

A Justiça é um tema primordialmente abordado desde os antigos. Trata-se de uma entidade de difícil definição e, por conseguinte, verificação no cotidiano. A relação entre direito e justiça também é abordada por vezes de forma conjunta, por outras, separada. Contudo, é inegável a importância dada por aquele a esta – razão pela qual muitas vezes se confundem. Ademais, a justiça trabalhada pelo direito pressupõe que haja um sistema de normas jurídicas.

3.1 Duas abordagens basilares do tema

Segundo Bittar, a Justiça trabalhada pela filosofia ocidental possui relação intrínseca com três noções, dentre elas a de Platão e de Aristóteles – a terceira é a noção romana de dar a cada um o que é seu (BITTAR 2015, p. 594-95). A abordagem platônica da justiça é eminentemente metafísica e ideal, quando representante do Bem Supremo, uma vez que sua realização concreta pelo ser humano não pode ser atingida (BITTAR 2015, p. 135-38). Isso porque no sistema filosófico de Platão há uma realidade metafísica/divina subjacente à realidade concreta humana. Enquanto entidade metafísica, o que se entende por justiça no mundo sensível pode ou não corresponder com a justiça metafísica. Percebe-se, dessa forma, que a abordagem platônica pouco contribui para a promoção prática da justiça, ao passo que seu entendimento como entidade metafísica permite aferir sua substância como algo a ser buscado incessantemente pelo ser humano. Isso é percebido, por exemplo, em um dos diálogos no Livro I da República, pelos quais a todo momento a justiça é defendida como algo vantajoso, benevolente e sábio, sem, contudo, defini-la precisamente.

Por outro lado, a abordagem aristotélica é concreta, pois a justiça é entendida no campo da ética como um saber prático (BITTAR 2015, p. 141). Assim, o justo um meio-termo com pretensão de orientar o comportamento humano. Ademais, ressalta Bittar, que a abordagem aristotélica da justiça prática permite a definição do tema sem constranger possíveis variações principológicas no tempo, e nos casos particulares.

Sua principal abordagem do tema reside na obra Ética a Nicômaco, pela qual Aristóteles preconiza a ética do meio-termo quando trata das disposições de caráter e das virtudes. Para ele, a justiça só pode se realizar pela alteridade, quando se pratica o bem a outrem: nisso consiste a justiça quando confrontada com a lei. Aristóteles ainda expõe a justiça como probidade e injustiça como improbidade, quando se fala em justiça e injustiça particulares, sendo que ambas são partes do conceito mais amplo de justiça – como licitude e ilicitude.

Aqui se pode adentrar ao conceito de equidade para Aristóteles, que coaduna com o que é justo, pois a distribuição de coisas entre partes de uma constituição deve ser equânime. Contudo, a equidade deve ser proporcional a cada caso, pois só assim será intermediária (meio-termo); logo, o que viola a proporção é injusto: a equidade é entendida de acordo como o que é proporcional – e nisso consiste a justiça distributiva para o filósofo grego.

Tendo em vista o conceito de equidade, Aristóteles preconiza que a justiça corretiva se caracteriza por ser um ponto intermediário entre a perda e o ganho. Contudo, aqui o meio-termo leva em consideração apenas a distribuição injusta e não a qualidade das pessoas em questão: “não faz diferença que um homem bom tenha defraudado um homem mau ou vice-versa, nem se foi um homem bom ou mal que cometeu adultério; a lei considera apenas o caráter distintivo do delito e trata as partes como iguais” (ARISTÓTELES, 1132a, 5; 1984, p. 126). Por fim, a relação entre justo e equitativo é levantada por Aristóteles que as distingue pela legalidade: a equidade não é a justiça legal. Ora, a lei não prevê todos os casos concretos possíveis para sua aplicação. Cabe a equidade corrigir essa justa omissão, sendo, portanto, “uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade” (ARISTÓTELES 1137b, 25; 1984, p. 136).”.

3.2 O relativismo de Hans Kelsen

Dentro do universo das normas, o jurista austríaco Hans Kelsen preconiza a difícil relação entre normas de direito positivo e normas de justiça. O cerne de sua argumentação resulta na justiça como algo relativo. Isso porque as normas de direito positivo não se confundem com as normas de justiça. Em sua obra “O Problema da Justiça” (1998), expõe que uma norma de justiça é parâmetro para atribuir o adjetivo “justo” às condutas humanas em geral. Desse modo, uma conduta é considera justa quando de acordo com essa norma de justiça, e injusta quando do contrário.

Kelsen ainda assevera que essa valoração se estabelece tão somente entre norma e conduta, e não entre normas; ou seja, não se pode valorar uma norma de direito positivo a partir de uma norma de justiça, pois ambas são em si valores. Nisso, só uma das normas pode ser considerada como válida – e por validade, entende como força vinculadora da norma-, pois “como poderia também uma norma, que constitui um valor – e toda norma constitui um valor-, como poderia um valor ser valorado, como poderia um valor ter um valor ou ter mesmo um valor negativo? Um valor valioso é pleonasmo, um valor desvalioso, uma contradição em termos” (KELSEN 1998, p. 7).

A partir disso, as normas de justiça podem exercer influência no ato instituidor das normas de direito positivo, no momento legiferante, mas não nas normas positivadas. É no ato normativo que se pode haver valoração por parte das normas de justiça no mundo do ser. As normas já positivadas, contudo, não são confrontadas com as normas de justiça por também constituir um valor, um dever-ser, e, como não pode haver conflito entre valores, a validade (a força vinculadora) da norma positiva subsiste mesmo sendo “injusta”- quando confrontada com a norma de justiça. Isso porque o sentido subjetivo do ato legiferante não se confunde com seu sentido objetivo – e por isso pode ser valorado pela norma de justiça-, mas a norma positiva, por outro lado, sim. Com isso, o cerne do pensamento kelseniano, e também do positivismo jurídico, consiste em pressupor a validade das normas positivas independente da validade das normas de justiça, resultando que a norma positiva não é justa nem injusta; por conseguinte, direito e moral não se confundem.

No que tange à igualdade, Kelsen a expõe como uma consequência lógica da norma. A igualdade, no sentido de tratar todos igualmente, é entendida pelo jurista como utópico. O tratamento igual, na verdade, pressupõe e leva em conta as desigualdades entre os indivíduos. Ora, as normas positivas prescrevem determinados contextos, tal como elenca determinadas desigualdades e despreza outras, para que uma norma deva ser aplicada. Na aplicação da norma, quem se encaixa nesses contextos referenciados são “iguais”. Logo, a igualdade pelo tratamento da norma resulta tautológico.

Contudo, há que se diferenciar a igualdade perante a lei e a igualdade na lei. A esta última cabe todo o raciocínio já exposto sobre normas de justiça e normas positivas, e sua relação; pois que a igualdade na lei é uma valoração de acordo com uma determinada norma de justiça, ao passo que a igualdade perante a lei resulta tautológico da norma positiva.

Contudo, esse raciocínio de que a lei pressupõe aplicação igualitária não deixa de ser utópico, posto que há casos em que não se tem claro aquilo que a lei prescreve. Esse problema já é abordado, e de certa forma resolvido, em Aristóteles. Este se utiliza da equidade como forma de solucionar a impossibilidade de aplicação em todos os casos possíveis pela lei, considerada sua demasiada generalidade. O problema consiste na falta de critérios para aplicação dessa equidade nos casos concretos não abarcados pela lei. Hoje é sabido que o magistrado se utiliza da analogia, os costumes e os princípios gerais do direito em casos de lacuna na lei, critérios estes mais sofisticados, mas que não excluem a equidade em seu exercício.

3.3.A justiça como desconstrução

Uma das teorias acerca da justiça que se insere na abordagem platônica do termo é a de Jacques Derrida. O filósofo franco-argelino se tornou o grande instaurador da teoria da desconstrução. Em seu livro “Força de Lei” (2010), trabalha a justiça e o direito como entidades diferentes. Para o autor, o direito pressupõe a força para que se possa garantir a aplicabilidade da lei, por conseguinte, a justiça em direito. Contudo, Derrida, consoante Pascal e Montaigne, preconiza que a obediência forçosa às leis não se dá pela justeza destas, mas sim, por terem autoridade.

Há um ponto em um dos escritos de Montaigne que chama a atenção de Derrida, que seria “o fundamento místico da autoridade”, uma “ficção legítima”, ou seja, aquilo que edifica a obediência às leis, e que, por vezes determina o que é justo ou injusto:

Mas se isolarmos a alçada, de certo modo funcional, da crítica pascaliana, se dissociarmos esta simples análise da presunção de seu pessimismo cristão, o que não é impossível, podemos então nela encontrar, como aliás em Montaigne, as premissas de uma filosofia crítica moderna, ou uma crítica da ideologia jurídica, uma dessedimentação das superestruturas do direito que ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade (DERRIDA 2010, p. 23)

A partir daí, Derrida questiona os fundamentos da justiça do direito, preconizando que esta surge a partir de uma força performativa, um ato fundador, que rompe com a linearidade histórica por não ser covalente com forças anteriores que o legitimem; nesse momento, inexiste tanto o justo quanto o injusto assim como tal ato não é justo nem injusto. É isto que Derrida entende por “fundamento místico da autoridade”. Essa noção de fundamento místico muito se assemelha à norma fundamental kelseniana, porquanto ambas não representam definidamente o conteúdo do ato fundador de um ordenamento jurídico – para Kelsen, trata-se apenas de um pressuposto lógico. Dessa forma, a validade das normas jurídicas que encontram amparo na norma fundamental provém, segundo a noção de Derrida, dessa justiça do direito encontrada no ato de força performativa.

Tendo tudo isso em vista, Derrida pode afirmar que o direito é desconstruível, “ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis [...], ou porque seu fundamento último, por definição, não é fundado” (DERRIDA 2010, p. 26). A partir dessa conclusão, e tendo por base que a justiça fora do direito não é determinável, Derrida promove o cerne do seu pensamento ao afirmar que, por também não ser determinável, “a desconstrução é a justiça” (DERRIDA 2010, p. 27). Ou seja, o ato de desconstrução é a garantia da justiça em si, tal como a força é garantia da justiça como direito.

Derrida ainda prossegue diferindo ainda mais o direito da justiça em si. Para o filósofo, a justiça é uma experiência do impossível, ou seja, não existe, não podemos experimentá-la, mas tão somente querê-la. A simples aplicação de uma regra, o respaldo jurídico de uma sentença não coaduna com a justiça, mas tão somente com o direito. Tais afirmações podem levar à conclusão de que a desconstrução se baseia em uma visão niilista de justiça como entidade, em um afastamento do tema; contudo, Derrida preconiza que, pelo contrário, a atividade desconstrutiva tem por base o resgate dos pressupostos fundantes do direito, da análise histórica do sistema, dos casos em particulares confrontados com a universalidade das normas, enfim

Manter sempre vivo um questionamento sobre a origem, os fundamentos e os limites de nosso aparelho conceitual, teórico ou normativo em torno da justiça é, do ponto de vista de uma desconstrução rigorosa, tudo salvo uma neutralização do interesse pela justiça, uma insensibilidade à justiça. Pelo contrário, é um aumento hiperbólico na exigência da justiça, a sensibilidade a uma espécie de desproporção essencial que deve inscrever, nela, o excesso e a inadequação (DERRIDA 2010, p. 37)

Em suma, a justiça no pensamento derridiano se resume a uma experiência incalculável, mas que é a todo momento ansiada pela atividade desconstrutiva. É por meio desta que será possível, em algum momento, pequenas revoluções que possam garantir o progresso social. Ademais, a relação entre justiça do direito e justiça em si muito se assemelha ao sistema filosófico de Platão, que separa o a realidade concreta e o mundo das ideias subjacente. Ou seja, a justiça do direito em Derrida não representa a justiça do bem supremo, que é, inclusive, indefinida, assim como o que se tem por justo no mundo concreto não coaduna com a justiça metafísica de Platão. Contudo, enquanto o filósofo grego pressupõe a difícil ou mesmo quase impossível implementação da justiça em si no mundo sensível, o filósofo franco-argelino preconiza a necessária desconstrução como forma de atingir a justiça em si, que, paradoxalmente, é inatingível.

3.4 A justiça como fórmula de contingência

Niklas Luhmann aborda a justiça em sua obra “O Direito da Sociedade” (2016), enquanto uma fórmula de contingência, pela qual o sistema legal não mais se baseia em um critério unívoco de justiça ao passo que a arbitrariedade em face da contingência nas decisões não é aceita. As fórmulas para a contingência consistem na distinção entre determinabilidade e indeterminabilidade, e nisso representam a unidade do sistema. Ademais, essa mesma distinção não é algo dado factualmente no presente, mas leva em conta as diversas possibilidades mutualmente possíveis: “todas as normas jurídicas e todas as decisões, todos os motivos e todos os argumentos podem assumir outra forma” (LUHMANN 2016, p. 294).

Contudo, essa função de distinguir o determinável do indeterminável deve ser, segundo Luhmann, ivizibilizada. A justiça é uma fórmula para a realização de expectativas normativas, é uma norma, mas não pode ser um critério de seleção, “pois assim a norma da justiça se colocaria ao lado de outros critérios de seleção do sistema e perderia sua função de representação no sistema” (LUHMANN 2016, p. 295). Sua função, portanto, é latente e não explícita. Ademais essa fórmula é incalculável, ao passo que os critérios de seleção são precisamente calculáveis. Assim, para Luhmann, nenhuma operação do sistema deve se excetuar de ser justa, ao passo que nenhuma aplicação de uma norma deve ser presumida como justa por ser pertencente ao sistema. As decisões do sistema, portanto, devem se basear por uma impressão de justiça, e não por alguma orientação precisa daquilo que se tenha como justo.

Tendo isso em vista, percebe-se que a justiça é temporalmente aberta, no sentido de possibilitar sua reinterpretação no dia-a-dia. Nisso, o direito, que possui a justiça no sentido de uma fórmula de contingência, se abre também ao ambiente a partir de uma auto-observação, pois a consistência das decisões jurídicas, segundo Luhmann, podem se ancorar na justiça enquanto programa do sistema legal.

O sociólogo alemão, nesse sentido, expõe o desenvolvimento da justiça a partir das mudanças sociais no decorrer da história, como algo dinâmico, afirmando a tese de que a justiça passa por ressignificações com o tempo. Por isso, a justiça como fórmula de contingência é também um meio pelo qual o direito se relaciona com o ambiente, selecionando as pressões por justiça a priori indeterminável no mesmo, em um critério de seleção dentro do sistema legal. Ou seja, transforma algo indeterminável em algo determinável, como um exercício temporalmente dinâmico.

A importância da teoria de Luhmann reside na forma com que é trabalhada a indeterminabilidade na definição da justiça com a aplicação concreta da mesma. A justiça como fórmula de contingência pode ser vista como a justiça em si, a priori indeterminável, mas que determina os critérios de seleção do sistema, sendo que ambos são altamente mutáveis com o tempo. Nisso, Luhmann estabelece uma intrínseca relação com Derrida. Ambos entendem que a justiça é incalculável, não possui uma estática, mas é dinâmica e a todo momento buscada.

Ademais, a mesma noção entre fórmula de contingência como tradução do indeterminável para algo determinável ressoa também nas noções de justiça em si e justiça do direito. Ou seja, a justiça como fórmula de contingência estabelece um mecanismo para a reformulação de operações no tempo com a finalidade de adequar os anseios por justiça do ambiente ao sistema legal, assim como a desconstrução é um mecanismo de modificação da justiça do direito, com a finalidade de se aproximar da justiça em si – que, novamente, é paradoxalmente inalcançável. Todavia, passada a indeterminabilidade pelo crivo da determinabilidade, a justiça passa a não ser mais algo incalculável, como em Derrida, mas como um critério de solução precisamente calculável. E nisso Luhmann mais se aproxima de uma abordagem aristotélica da justiça, em detrimento das nuances platônicas residentes na teoria derridiana.


Conclusão

Enfim, os tópicos sistema e normas são basilares no entendimento do sistema jurídico enquanto entidade autônoma. A justiça, apesar de ser trabalhada por diversas áreas da vida, possui uma significação particular dentro do direito. E, nisso, há o entrelaçamento entre o sistema e as normas como vias de concretização da justiça entendida pelo direito.  

Pela teoria de Kelsen, o sistema e as normas são entrelaçados logicamente, compondo-se. Contudo, o jurista austríaco não preconiza uma justiça necessária para o direito, ao passo que entende a forma como a mesma é relativizada nos ordenamentos jurídicos. Nisso, sistema e norma funcionam, são válidos, independentemente de alguma norma de justiça, porquanto não é possível a vigência simultânea de normas de justiça e normas positivas.

Pela sua abordagem relativa, todavia, não há um rechaço da ideia de justiça, mas tão somente a separação entre o âmbito de influência de uma norma de justiça e do âmbito de influência de uma norma positiva. Isso porque uma norma positiva não é mais confrontada com uma norma de justiça, mas uma norma de justiça pode influenciar, ou mesmo ser determinante na legislação de uma norma positiva – ou mesmo da norma fundamental. Dessa forma o jurista austríaco afasta as normas de justiça na aplicação concreta do direito, que se guia pela coerência normativa do sistema jurídico, composto por normas hierarquicamente distribuídas.

Por outro lado, Luhmann parte de uma análise do direito enquanto sistema autônomo relacionado com seu ambiente. Dentro do sistema legal, as normas exercem um peso como crivo da abertura do direito ao ambiente, tal como na fluência das operações, da comunicação e da observação. O diferencial na teoria dos sistemas reside na pressuposição do fechamento (operativo) do sistema legal como via de abertura (cognitiva) do mesmo. A análise do direito enquanto sistema que faz parte da sociedade, e que por ela é influenciado, permite reconhecer a interconexão dos três tópicos basilares que circundam o direito, ou seja, da interconexão entre sistema, norma e justiça.

A justiça aqui é entendida como fórmula de contingência, representando a relação que o direito tem com seu ambiente ao passo que mantém sua unidade. O sistema do direito é fechado normativa e operativamente – com possibilidades também de abertura operativa-, e nele se inserem as normas.

A justiça, por sua vez, representa tanto a unidade do sistema quanto sua abertura, a fim de traduzir sua indeterminabilidade em critérios de seleção determináveis dentro do sistema em uma atividade dinâmica e altamente mutável temporalmente. Ou seja, na teoria dos sistemas, o sistema, as normas e a justiça possuem um papel determinante dentro do sistema legal.


Bibliografia

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