Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/6873
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Magistratura, previdência social e constitucionalidade

Magistratura, previdência social e constitucionalidade

Publicado em . Elaborado em .

As duas reformas da Previdência talvez tenham sido bem-sucedidas do ponto de vista contábil, mas, do ponto de vista jurídico, não foram felizes. Pairam a incerteza e a desconfiança, em meio à de que as inconstitucionalidades sejam em algum tempo dirimidas.

«Não basta a elaboração lógica dos materiais jurídicos que se encontram num processo, para atingir o ideal de justiça baseada nos preceitos codificados. Força é compreender bem os fatos e ser inspirado pelo nobre interesse pelos destinos humanos» (CARLOS MAXIMILIANO, 1924).


I. Introdução. Inconstitucionalidades formais

Com o advento da Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.1998 (que, na condição de primeira reforma previdenciária de âmbito constitucional sob a égide da Constituição de 1988, "modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências"), o inciso VI do artigo 93 da Constituição da República Federativa do Brasil passou a ter a seguinte redação:

VI - a aposentadoria dos magistrados e a pensão de seus dependentes observarão o disposto no art. 40;

Ulteriormente, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 41, de 19.12.2003 (a segunda reforma previdenciária, que "modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do §3º do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº  20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências"), o regime de previdência dos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com disciplina no precitado artigo 40 da CRFB, foi substancialmente modificado ― e, com isso, alteraram-se igualmente os direitos previdenciários dos membros do Poder Judiciário brasileiro, ex vi do artigo 93, VI. Já por isso, o artigo 2º da EC n. 41/03 dispôs o seguinte:

Art. 2º. Observado o disposto no art. 4º da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, é assegurado o direito de opção pela aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o art. 40, §§ 3º e 17, da Constituição Federal, àquele que tenha ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública direta, autárquica e fundacional, até a data de publicação daquela Emenda, quando o servidor, cumulativamente:

I - tiver cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito anos de idade, se mulher;

II - tiver cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria;

III - contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:

a) trinta e cinco anos, se homem, e trinta anos, se mulher; e

b) um período adicional de contribuição equivalente a vinte por cento do tempo que, na data de publicação daquela Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea a deste inciso.

§ 2º Aplica-se ao magistrado e ao membro do Ministério Público e de Tribunal de Contas o disposto neste artigo.

§ 3º Na aplicação do disposto no § 2º deste artigo, o magistrado ou o membro do Ministério Público ou de Tribunal de Contas, se homem, terá o tempo de serviço exercido até a data de publicação da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, contado com acréscimo de dezessete por cento, observado o disposto no § 1º deste artigo [g.n.].

O arcabouço normativo constituído por esse preceito e pelo artigo 6º da Emenda comporia o "regime de transição" dos servidores públicos civis, prejudicando as regras de transição até então em vigor, que haviam sido aprovadas pela EC n. 20/98.

Variegadas polêmicas podem ser suscitadas a propósito desses dois preceitos. Algumas já o foram efetivamente e ora perfazem matéria litigiosa nos escaninhos do Supremo Tribunal Federal.

Cite-se, e.g., o fato de a alteração do texto do inciso VI do artigo 93 da CRFB não ter sido aprovada em dois turnos no Senado Federal, o que implicaria a inconstitucionalidade formal do preceito, ut artigo 60, §2º, da CRFB [1]. A supressão da devida forma procedimental exsurgira evidente, à época, nas páginas do próprio órgão noticioso do Senado Federal. Transcreva-se:

Depois de quase seis horas de debates, o plenário aprovou ontem, em segundo turno, a reforma da Previdência. Os senadores concordaram em eliminar, em votação de destaque em separado proposta pelo presidente da Casa, Antonio Carlos Magalhães, uma expressão que, na prática, permitia que juízes e promotores pudessem ter aposentadoria diferenciada do restante do funcionalismo [2].

Com efeito, suprimiu-se, ao apagar das luzes, a expressão "no que couber", que constava do Substitutivo (Emenda 51 CCJ), na parte final do inciso VI do artigo 93. Não se diga que a modificação encetou mero ajuste redacional: bem ao contrário, o destaque seguramente interferia com o mérito da questão (regime previdenciário dos magistrados), a ponto de justificar a matéria supra transcrita; e, nada obstante, a matéria foi votada em turno único (o segundo) no Senado Federal. Patente, pois, a eiva procedimental ― que, com a promulgação da Emenda, tornou-se insanável.

Na mesma ensancha, a se considerar o vínculo lógico-sistemático entre o disposto nos parágrafos 2º e 3º do artigo 2º da EC n. 41/03 e a nova redação do 93, VI, da CRFB, também aqueles preceitos estariam comprometidos, na parte atinente aos magistrados e membros do Ministério Público, uma vez que as referidas regras de transição não fariam sentido em um contexto orgânico de inaplicabilidade do artigo 40 da CRFB.

De outra parte, é fato que, por força do artigo 93, caput, da CRFB, o regime previdenciário dos magistrados haveria de ser objeto do Estatuto da Magistratura, ditado por lei complementar de iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal (e, não por outra razão, entre os "princípios" informadores do Estatuto está o do inciso VI, referente à "aposentadoria dos magistrados"). Conseqüentemente, não poderia o legislador, no uso do poder constituinte derivado, usurpar iniciativa originariamente conferida ao Supremo Tribunal Federal, mesmo porque essa iniciativa integra o sistema de checks and balances ínsito à norma do artigo 2º da CRFB (independência harmônica dos Poderes da República), de natureza pétrea (artigo 60, §4º, III). Por essa via, entrevê-se, na equiparação previdenciária consumada pela EC n. 20/98 e corroborada pela EC n. 41/03, nova inconstitucionalidade formal.

Uma e outra hipótese foram objeto de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), em setembro de 2004, contra o artigo 1º da EC n. 20/98, na parte em que alterou a redação do art. 93, VI, da CRFB, e contra os §§ 2º e 3º do artigo 2º da EC n. 41/03.

Aqui, porém, não interessará, malgrado toda a sua relevância, retomar o problema das inconstitucionalidades formais. Entre as hipóteses supra ventiladas, particularmente a primeira não poderia ser, venia concessa, mais óbvia e gritante; negá-la é fazer soçobrar todo o sentido de segurança jurídica imanente à Constituição Federal de 1988. Já por isso, interessa-nos ver além e descortinar os vícios materiais que, de demonstração mais laboriosa, são justamente os mais graves (conquanto sejam, provavelmente, os menos exitosos em juízo).

Nesse encalço, debruçar-nos-emos sobre aspectos mais problemáticos e desafiadores, como o tema do desconto previdenciário nas aposentadorias e a sua constitucionalidade, o tema dos regimes especiais de previdência social (que resistiram ao "propósito uniformizador" da EC n. 41/03) e, notadamente, o tema dos regimes de transição, que diz com a cláusula pétrea do direito adquirido (artigo 5º, XXXVI, da CRFB), com o seu conceito jurídico (artigo 6º, §2º, da Lei de Introdução ao Código Civil) e com a tese geral, dominante no Excelso Pretório, de que não há direito adquirido a regimes jurídicos (definitivos ou transitórios). São temas que se põem indelevelmente, si et quando superada a trincheira das inconstitucionalidades formais, donde a sua relevância institucional e científica, ainda que não haja dúvidas acerca dos vícios de forma e procedimento.

Diga-se, por oportuno, que não se trata, em absoluto, de combater politicamente as decisões consumadas e a jurisprudência assente do Supremo Tribunal Federal. Sequer seria útil fazê-lo. Trata-se de reposicionar a discussão, à luz da ciência jurídica universal, e revisitá-la sob o prisma de sua juridicidade e de sua legitimidade. Não se faz Direito sem aporia ― do contrário, não seria uma ciência prudencial, muito mais que lógico-formal.

Passemos a isto.


II. Regimes especiais de previdência social. Princípio da isonomia

Consoante o artigo 40, §20, da CRFB, na redação do artigo 1º da EC n. 41/03, "fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social para os servidores titulares de cargos efetivos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal, ressalvado o disposto no art. 142, § 3º, X" [3].

Disso se extrai que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não podem mais particularizar regimes jurídicos de servidores públicos, sujeitando-os a regras diversas e/ou a gestão diferenciada. Assim, e.g., todos os servidores públicos da União ¾ aí entendidos os funcionários públicos "stricto sensu" (servidores regidos pela Lei 8.112/90) e os agentes políticos (e.g., os membros da Magistratura federal e do Ministério Público da União) ― devem se sujeitar a um mesmo regime de previdência social, sob mesma gestão, mantendo-se unicamente as distinções que o ordenamento constitucional preservou (e.g., o artigo 40, §1º, I, in fine, da CRFB e ― nos limites do artigo 2º da EC n. 41/03 ― o artigo 8º, §3º, da EC n. 20/98). Materializou-se, portanto, o propósito de uniformizar a previdência pública brasileira, que era preocupação expressa da então PEC n. 40/03 [4].

A regra evidentemente não abrange os fundos públicos de previdência complementar, que poderão ter gestão autônoma, desde que pública (artigo 40, §15, da CRFB [5]). Além disso, ressalva expressamente a classe dos servidores públicos militares da União (e, por conseqüência, dos Estados, ut artigo 42, §1º, da CRFB), cujo regime previdenciário deverá ser instituído em lei ordinária própria, com regime próprio e gestão apartada (artigo 142, §3º, X, da CRFB).

Nessa ressalva, a EC n. 41/03 violou obliquamente o princípio constitucional da isonomia, pelo qual "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (artigo 5º, caput, da CRFB). Diga-se, por oportuno, que por se tratar de norma pétrea (artigo 60, §4º, IV), tal princípio não pode ser tisnado pelo legislador no exercício do poder legiferante ordinário, como também não pode sê-lo pelo legislador no exercício do poder constituinte derivado. E a boa exegese do preceito denota a sua aptidão para assegurar inclusive a isonomia entre carreiras de mesmo cariz, ou entre quadros diversos vinculados à mesma função pública. Nesse último sentido, já decidiu o Excelso Pretório:

Fere o princípio constitucional da isonomia a norma ordinária que inabilita o diplomata inscrito no Quadro Especial à continuidade do exercício de missão permanente ou temporária no exterior, bem como à nomeação para igual propósito [6].

À vista disso, cabe reconhecer, para o que ora interessa, que os magistrados e os membros do Ministério Público são agentes políticos e se inserem em carreiras típicas de Estado, cuja condição jurídica não pode ser assimilada à dos servidores públicos em geral (inclusos os militares). Esses últimos, ao desempenhar serviços públicos, cumprem papel instrumental em relação ao Estado que os investe. Já os primeiros exercem poder político, personificando tanto o Estado como o serviço público que distribuem; mantêm, com a República, uma relação de ordem estrutural. Retirar-lhes garantias típicas da carreira, como são a irredutibilidade de subsídios (prejudicada, por via oblíqua, com a taxação de membros inativos e o fim da paridade entre ativos e inativos) e a aposentadoria com proventos integrais (amesquinhada com a instituição do benefício médio [7]), representa ameaça imediata à qualidade dos quadros técnicos do Poder Judiciário e do Ministério Público e, a médio e longo prazos, fissuras nos próprios pilares do Estado Democrático de Direito, em face da deterioração paulatina da função jurisdicional (exercida por pessoas cada vez menos qualificadas). No quadro mais nefasto, a perspectiva do aviltamento da qualidade de vida poderá compelir à ineficiência e/ou à ilegalidade, em face do acúmulo de atividades remuneradas em paralelo [8] e à própria ação de corruptores [9].

É cediço que as carreiras típicas de Estado exigem privações e rigores pouco encontradiços em outras carreiras públicas, como a alteração freqüente de domicílio, o dever de residir na sede de sua comarca (artigo 93, VII, da CRFB, na redação da EC n. 45/2004, e artigo 35, V, da Lei Complementar n. 35/79), a dedicação exclusiva com proibição de exercício de outras atividades profissionais (à exceção de um cargo ou função de magistério, ex vi dos artigos 95, par. único, II, da CRFB e 36, I e II, da LOMAN), a vedação de atividade político-partidária (artigo 95, par. único, III, da CRFB), a reserva social e a conduta social e pessoal irrepreensíveis (artigo 35, VIII, da LOMAN), a acessibilidade diária ao destinatário de seus serviços (artigo 35, IV, in fine, da LOMAN), as limitações ao direito de expressão (artigo 36, III, da LOMAN) e a sujeição diuturna à fiscalização do jurisdicionado, entre outras. Tantas especificidades reclamaram, historicamente, a instituição de um regime de previdência próprio, adequado às idiossincrasias dessa classe profissional, de modo a carrear-lhes, em contrapartida àqueles rigores e privações, atrativos como a vitaliciedade, a integralidade de proventos e a redução do tempo de serviço (vide artigo 2º, §3º, da EC n. 41/03). Têm-se, nesse caso, prerrogativas que não consubstanciam meras vantagens pessoais, mas antes garantem aos cidadãos a isenção e a imparcialidade dos que se dedicam ao mister da Justiça Pública.

Suprimir tais prerrogativas ¾ tanto mais quando se demonstra que, do ponto de vista atuarial, a previdência dos juízes sustentava-se por si mesma, com suas próprias entradas ¾ é expediente demagógico que consuma um perigoso retrocesso histórico. Nessa linha, se a EC n. 41/03 identificou, no serviço público militar, peculiaridades bastantes para autorizar o tratamento previdenciário diferenciado, nada justifica que não as tivesse divisado no serviço público jurisdicional, prestado por juízes e membros do Ministério Público, que ― tal como os servidores públicos militares ― desempenham atividade privativa, não têm estatuto de jornada e necessitam gozar de prerrogativas de função em regime de garantias e vedações. E, para além disso, o papel constitucional dos magistrados soma em responsabilidade, na medida que lhes incumbe distribuir Justiça à conta de Poder da República: na expressão clássica de PONTES DE MIRANDA, os juízes "presentam" o Poder Judiciário diante do cidadão.

Não se compreende, portanto, porque a sua função judicial estrita não é suficientemente "peculiar" para garantir um regime previdenciário próprio [10] (como, aliás, decorre do próprio acometimento da matéria à lei complementar de iniciativa do STF, como visto no tópico I) ― a não ser, é claro, que se considerem razões extrajurídicas, tal como o "sprit de corps". Se, porém, as razões meramente corporativas não conferem qualquer legitimidade à distinção, resulta insofismável a quebra de isonomia.


III. Taxação de inativos. Constitucionalidade e justiça

A taxação dos inativos em gozo de benefícios na data de promulgação da emenda tem fundamento no artigo 40, caput, da CRFB e no artigo 4º da EC n. 41/03. Dentre todas, essa era a alteração "in pejus" que guardava a mais notória inconstitucionalidade material. E, nada obstante, foi preservada pelo Excelso Pretório em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade promovida pela CONAMP (Confederação Nacional do Ministério Público). Isso, porém, não sepulta a questão, ao menos do ponto de vista juscientífico.

Em suma, a tese da constitucionalidade, amplamente desenvolvida pelo Deputado MAURÍCIO RANDS na condição de relator da então PEC n. 40/03, baseava-se em quatro pressupostos:

(a) inexistência de direito adquirido à não-incidência de tributo, sendo certo que a natureza jurídica da contribuição previdenciária é a de espécie do gênero tributo;

(b) o regime jurídico da imunidade da contribuição previdenciária dos inativos e pensionistas (ex vi do art. 40, § 12, na redação anterior à EC n. 41/03, c.c. o art. 195, II, da CF/88) não era cláusula pétrea;

(c) inexistência de direito adquirido a regime jurídico ("in casu", ao regime jurídico de imunidade da contribuição social que vigorava até a EC n. 41/03);

(d) a retributividade da espécie tributária, própria do tributo vinculado que é a contribuição social, não é estrita e imediata (como ocorre, e.g., nas taxas), mas sim mediata; logo, a instituição da contribuição em foco tem causa suficiente, a saber, a participação solidária do beneficiário no seu custeio e o interesse em sua sustentabilidade. 

Não convencem, porém, tais argumentos.

Na dicção de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.,

do ângulo de sua história, a aposentadoria dos servidores públicos sempre foi considerada uma variável inerente ao seu trabalho, sendo assumida pelo Estado como um item previsto no Orçamento sob o ponto de vista da despesa. […] os servidores, ao contrário dos demais trabalhadores, nunca foram obrigados a contribuir para a sua aposentadoria, assumida, então, pelos Tesouros como uma obrigação orçamentária [11].

Com efeito, somente com o advento da EC n. 20/98, os servidores públicos passaram a se sujeitar a um autêntico "regime de previdência de caráter contributivo" (artigo 40, caput, da CRFB), comprometido com o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema e informado pelos requisitos e critérios do Regime Geral de Previdência Social, no que couber (artigo 40, §12).

FERRAZ JR. advertia, entretanto, que regime de custeio e regime de aposentadoria não se confundem. A "mens legis" da primeira reforma previdenciária (1998) encaminhou-se no sentido de que os regimes de aposentadoria ― e não os de custeio ― se equivalessem em requisitos e critérios, guardadas as regras de transição (como também a segunda reforma: cfr., supra, nota n. 4). É o que se deu com os juízes (artigo 93, VI), como já acentuado. Ocorre, porém, que nem o caput do artigo 40 da CRFB e tampouco o seu § 12 referem-se a "regime de aposentadoria" (= benefício), mas a "regime de previdência", que abrange, por definição, o custeio e o benefício. Assim, se para o benefício os regimes de equivaliam, para o custeio também haveriam de se equivaler ― o que significava atrair, para o serviço público, a imunidade do artigo 195, II, da CRFB.

Era em tudo acertada, portanto, a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal que reconhecia incidentalmente a inconstitucionalidade da contribuição dos servidores inativos, antes da EC n. 41/03, em vista do que dispõe o artigo 195, II, 2ª parte, da CRFB (que veicula regra de custeio, ínsita ao Regime Geral de Previdência Social), por entrever que a imunidade das aposentadorias e pensões concedidas pelo RGPS era extensível às aposentadorias e pensões públicas, ex vi do artigo 40, §12, da CRFB [12] (na redação da EC n. 20/98).

Dir-se-ia, agora, que a EC n. 41/03 revisou, nessa parte, a Constituição Federal. Realmente, assim o fez. Mas sem legitimidade, sem coerência e, mais, sem constitucionalidade de fundo. Sem legitimidade porque, quanto à Magistratura, essa matéria deveria ser tratada no Estatuto da Magistratura e não por remissão do artigo 93, VI, da CRFB, na redação da EC n. 20/98. Sem coerência, porque a Emenda não modificou o teor do artigo 195, II, 2ª parte, e tampouco o teor do artigo 40, §12, da CRFB, o que autoriza reproduzir a tese perfilhada pelo STF antes da EC n. 41/03, desde que se a entenda, nessa parte, inconstitucional. E sem constitucionalidade de fundo (material), porque as imunidades [13] são, a rigor, garantia individual do cidadão contribuinte, e como tal intocáveis ― assim como o são, em geral, todas as limitações ao poder de tributar arroladas no artigo 150 da CRFB (como, e.g., os princípios jurídico-constitucionais de tributação). Nesse último sentido, já decidiu o Excelso Pretório:

admitir que a União, no exercício de sua competência residual, pudesse excepcionar a aplicação desta garantia individual do contribuinte, implica em conceder ao ente tributante poder que o constituinte expressamente lhe subtraiu ao vedar a deliberação de proposta de emenda à constituição tendente a abolir os direitos e garantias individuais constitucionalmente assegurados [14].

No mesmo contexto, qualquer alteração "in pejus" da condição de imunidade conferida às aposentadorias e pensões de trabalhadores do setor privado e do setor público (por equiparação ¾ artigo 40, §12) importará em modificação tendente a abolir uma garantia individual da pessoa, sendo inconstitucional por desconhecer a vedação do artigo 60, §4º, IV, da CRFB. De conseguinte, é inconstitucional o artigo 5º, caput, da PEC 40/03, por ferir de morte a imunidade que a Constituição Federal outorga às aposentadorias e pensões, excluindo-as do regime de custeio, e que já está incorporada ao patrimônio jurídico dos servidores inativos e dos pensionistas, como também daqueles subsumidos à hipótese do artigo 3º, caput, da PEC 40/03.

E não é só. A taxação dos inativos está ainda eivada de inconstitucionalidade "na medida em que restabelece a cobrança de contribuição previdenciária aos inativos e pensionistas, mormente em relação àqueles que já estejam em gozo de benefícios correspondentes. A emenda implicará, por via oblíqua, violar a garantia da irredutibilidade de vencimentos (inciso XV do art. 37), que se estende aos proventos, por força da aplicação combinada do parágrafo 4º do art. 40, no caso dos servidores públicos, como também aos trabalhadores privados, à vista da irredutibilidade de salários (inciso VI do art. 7º), combinada com a regra contida no parágrafo 2º do art. 201 [rectius: §4º], que assegura a manutenção permanente do valor real dos benefícios" [15]. A propósito, a irredutibilidade de salários e o direito à manutenção permanente do valor real dos benefícios são indiscutívelmente direitos sociais e, nessa qualidade, estão igualmente sob o manto do artigo 60, §4º, IV, da CRFB [16].

Ao mais, e se já não bastasse, acresca-se que, "considerando o princípio da retributividade, a contribuição social dos servidores é sinalagmática; é paga justamente para que o pagante possa aposentar-se. Alcançada a aposentadoria, cessa a obrigação de contribuir. Esse caráter contraprestacional decorre do art. 149 da CF/88. A Constituição refere-se às contribuições cobradas dos servidores da ativa para custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social para a manutenção de suas futuras aposentadorias. Pois bem, que benefício terá o aposentado de uma contribuição que já não lhe permite mais nada, eis que já se aposentou? Nesse caso não seria contribuição, mas imposto velado, ou seja, a contribuição de aposentado não passaria de imposto especial sobre a renda dele em favor de terceiros" [17] ― que, esclareça-se, sequer poderia ser instituído, por ter base de cálculo própria do imposto do artigo 153, III, da CRFB (ut artigo 154, I).

Enfim, mais que inconstitucional, releva dizer que a taxação de inativos é sobretudo socialmente injusta, além de deletéria à própria estabibilidade da Ordem Social brasileira, pois

mesmo promovida a modificação constitucional, a imposição fiscal continuará sendo impropriedade lógica, distorção científica e equívoco político em matéria de Previdência Social. Trata-se, é fácil de ver, que tal medida legal ofende fundamento básico da técnica protética (a contribuição tem objetivo: custear prestações, totalmente ausente em relação aos jubilados), abrindo atalho para outras desnecessárias agressões à estrutura. [...] Redefinam-se as fontes de custeio [...] mas impor cotização de quem presumidamente já contribuiu é destituído de sentido, um contra-senso inaceitável, ignorância rematada, porque anarquiza a ordem social determinada pelos salários, e não é esse o papel do Estado. [...] Pretender [...] compensar isenção pretérita, quando o Estado generosamente dispensou essa contribuição, do ponto de vista exacional é absurdo. Daqui para a frente que só se cobre o necessário; a sociedade que errou no passado que pague por ele, até aprendermos a respeitar a técnica. [...] Pior que tudo [...] é a violação do princípio depois da porta arrombada; acolhido o precedente da ruptura, outras fortalezas da proteção social ficarão à mercê da incompetência gerencial, e adeus garantias constitucionais como a do caráter definitivo da concessão, manutenção do poder aquisitivo e a vitaliciedade do direito. Pior, a expectativa e o direito seguirão o mesmo caminho" [18].

Essa compreensão é, certamente, a mais justa e adequada, inclusive em função dos estudos atuariais realizados à época da PEC n. 40/03 pelas associações de classe.

Dessarte, a EC n. 41/03 fez mais que aniquilar direitos previdenciários historicamente conquistados. Suprimiu uma garantia individual dos cidadãos, a saber, a imunidade tributária dos proventos de aposentadoria no âmbito do serviço público. Tombam, por isso, as três primeiras razões alhures elencadas para a validade da taxação dos aposentados. E não seria a última ― a "retributividade solidária" ― a tornar a norma constitucional impositiva menos viciada ou deletéria. Oxalá a sociedade civil disso se aperceba a bom tempo, enquanto o tempo não colmata a ferida.


IV. Regimes de transição e direito adquirido

4.1. O direito adquirido na EC n. 41/03. Preservação nominal e econômica

O artigo 3º, caput, da EC n. 41/03 vazou regra consagradora dos direitos adquiridos na acepção do artigo 6º, §2º, da LICC, ao assegurar, em qualquer tempo, a concessão de aposentadoria aos servidores públicos, bem como pensão aos seus dependentes, que, até a data de publicação da Emenda, tivessem cumprido todos os requisitos para obtenção desses benefícios, com base nos critérios da legislação então vigente.

Mas não se limitou a fazê-lo. Para mais, o legislador de antanho preocupou-se em garantir também o conteúdo econômico do direito. Com efeito, nos termos do artigo 3º, §2º, da EC n. 41/03, os proventos de aposentadoria a serem concedidos aos servidores que tenham cumprido os requisitos para obtenção de aposentadoria voluntária, e bem assim as pensões de seus dependentes, serão calculados com base na legislação em vigor à época em que forem atendidos os requisitos estatuídos na Emenda para a concessão destes benefícios (i.e., quando atendidos os requisitos do artigo 40, §1º, III, "a" e "b", da CRFB), ou com base na "legislação vigente". Com isso, pretendeu-se preservar a dimensão econômico-financeira do direito tal como disposta na época de sua aquisição (inclusive quanto aos indexadores aplicáveis à época, evoluindo conforme a legislação subseqüente). Atendeu-se, pois, à melhor exegese para questões de direito intertemporal ("tempus regit actum") [19].

A referência às "condições da legislação vigente" diz respeito ao servidor que, subsumido à hipótese do artigo 3º, caput, da EC n. 41/03, optasse por permanecer em atividade, percebendo o abono do artigo 3º, §1º, da Emenda. Sob tais circunstâncias, o servidor com direito adquirido poderá optar, em termos análogos ao artigo 122 da Lei 8213/91 [20], pelo regime mais vantajoso, seja aquele em vigor na data do cumprimento de todos os requisitos necessários à obtenção do benefício, seja aquele vigente no momento do requerimento. Aliás, o artigo 3º, §2º, da EC n. 20/98 tem redação quase idêntica [21], a que hoje se dá a interpretação supra, para ali também se reconhecer o respeito ao direito adquirido e ― acresça-se ― o direito ao regime mais vantajoso.

Com efeito, entender que o requerimento administrativo tenha aptidão para determinar qual o regime jurídico de cálculo dos proventos de aposentadorias e pensões (se o regime vigente no momento da aquisição do direito ao benefício, caso requerido de plano, ou se o regime da "legislação vigente" à época do requerimento, quando postergado) é atribuir à condição administrativo-procedimental uma função jurídica que ela não possui. O direito está adquirido desde que atendidos os pressupostos do artigo 6º, §2º, da LICC, regendo-se em princípio pela legislação do seu tempo, independentemente do momento em que se o requeira no âmbito administrativo. Outra interpretação vulneraria, por via indireta, o artigo 5º, XXXVI, da CRFB.

Dessa inteligência resulta, em suma, que a EC n. 41/03 buscou, em boa medida, respeitar os direitos adquiridos sob a égide do regime anterior. Reconheceu, portanto, que o Poder Constituinte derivado não poderia, sem mais, ferir de morte direitos já incorporados no patrimônio jurídico dos servidores públicos civis, sob pena de violar a norma predita (artigo 5º, XXXVI) e incorrer em inconstitucionalidade material. Logo, não fez "favores".

4.2. Direitos adquiridos, direitos em formação e constitucionalidade

Modificando o teor do artigo 40, §3º, da CRFB (que estabelecia que os proventos de aposentadoria seriam calculados sobre a remuneração do servidor no cargo efetivo em que ocorresse a aposentadoria e corresponderiam, na forma da lei, à totalidade da remuneração), a EC n. 41/03 deu-lhe a seguinte redação:

§ 3º. Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei.

No entanto, para os servidores que houvessem ingressado regularmente nos quadros públicos até a data da publicação da EC n. 20/98, estabeleceu-se a seguinte regra:

Art. 6º. Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas estabelecidas pelo art. 40 da Constituição Federal ou pelas regras estabelecidas pelo art. 2º desta Emenda, o servidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que tenha ingressado no serviço público até a data de publicação desta Emenda poderá aposentar-se com proventos integrais, que corresponderão à totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria, na forma da lei, quando, observadas as reduções de idade e tempo de contribuição contidas no § 5º do art. 40 da Constituição Federal, vier a preencher, cumulativamente, as seguintes condições:

I - sessenta anos de idade, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade, se mulher;

II - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher;

III - vinte anos de efetivo exercício no serviço público; e

IV - dez anos de carreira e cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria.

Ora, o artigo 8º da EC 20/98 garantia a aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o artigo 40, §3º, na redação da época (logo, proventos virtualmente integrais), ao servidor que tivesse cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito, se mulher, mais cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se daria a aposentadoria e ainda o tempo mínimo de contribuição estatuído nas alíneas "a" e ‘b" do seu inciso III. Essa garantia terminou prejudicada pelos termos mais restritivos do artigo 6º da EC 41/03. Assim, à mercê das novas regras, põe-se a questão dos direitos de quem ingressou no serviço público sob a égide da norma antiga.

Como antecipado na introdução (supra, tópico I), o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em diversos arestos, que não há direito adquirido a determinado regime [22]. E de fato não pode haver, em termos absolutos. Mas o problema não está adstrito a termos assim maniqueístas. Vejamos.

Convém distinguir entre o regime em si mesmo e os direitos em formação aderentes ao patrimônio jurídico do servidor. Esses últimos podem surtir efeitos de direitos adquiridos, notadamente quando "assimiláveis aos [direitos] negociais, «quase-negociais», como os que outorgam «vantagens» (esperadas) ao servidor público nas suas relações com o Estado. Aqui se pode supor o aspecto da autonomia da vontade como determinante da adesão a um quadro legalmente fixado" [23].

Com efeito, também os direitos em formação tendem a ser garantidos contra mudanças unilaterais, "motivadas pelo arbítrio de outrem. É evidente que tanto o ingresso no serviço público quanto a filiação no INSS criam uma relação jurídica que não pode ser modificada a qualquer tempo. Talvez esse seja o pensamento minoritário nos Tribunais, mas um novo sistema que signifique mais perdas para as classes trabalhadoras ¾ especialmente para os servidores públicos ¾ certamente suscitará muita luta judicial em defesa do direito em formação" [24]. Em termos leigos, dir-se-ia que não é possível mudar impunemente as regras do jogo durante uma partida. Ou, em termos jurídicos: as expectativas devem ser preservadas, quando se fundam em atos jurídicos perfeitos.

Nesse preciso sentido é que DALMO DE ABREU DALLARI entendeu estar "adquirido", no momento em que o servidor fosse empossado num cargo efetivo, o seu direito de se aposentar com proventos correspondentes à totalidade da remuneração (i.e., na forma do artigo 40, §§ 2º e 3º, da CRFB, ainda com a redação da EC n. 20/98: integralidade de proventos e cálculo baseado na remuneração do cargo efetivo). Assim entendido, não poderia a Administração Pública, por ato unilateral, alterar ou extinguir o tal direito, como tampouco poderia o legislador (nem sequer no exercício do poder constituinte derivado [25]) prejudicá-lo [26], em respeito à norma do artigo 5º, XXXVI, da CRFB.

Em Teoria Geral do Direito, a garantia dos direitos em formação dá-se quase por adquirida (discutem-se apenas seus termos), enquanto a jurisprudência constitucional produzida nos ordenamentos vanguardeiros já se insinua no mesmo sentido. Para referir apenas um caso, veja-se em OLIVEIRA ASCENSÃO o estado do Direito português. No escólio do autor,

Em casos mais graves, a lei que atinge retroactivamente direitos garantidos por lei anterior deve considerar-se inconstitucional.

A proibição é apenas expressa para as "leis restritivas de direitos, liberdades e garantias" (art. 18/3 da Constituição).

Mas a jurisprudência constitucional foi mais longe, e não admite que possa ser atingido direito anteriormente concedido quando isso afectar "o princípio da confiança ínsito na ideia do Estado de Direito democrático". Com isso se quer deixar excluída a privação arbitrária de direitos adquiridos. Note-se que assim se utiliza o critério do direito adquirido, o que se não coaduna com o critério do facto passado admitido em geral pela lei portuguesa.

A tendência é a de estender cada vez mais os "princípios do Estado de Dicreito democrático, da segurança e da confiança". E isso em dois sentidos:

― acentuando cada vez mais as expectativas e não os direitos;

― questionando a própria aplicação imediata da lei nova [27].

Também o Direito positivo brasileiro tem reconhecido paulatinamente a expressão jurídica dos direitos em formação ou "acumulados". Assim, p. ex., a Lei Complementar n. 109/2001, que "dispõe sobre o Regime de Previdência Complementar e dá outras providências" dispõe que "as alterações processadas nos regulamentos dos planos aplicam-se a todos os participantes das entidades fechadas, a partir de sua aprovação pelo órgão regulador e fiscalizador, observado o direito acumulado de cada participante" (artigo 17, caput ― g.n.). Já para o direito adquirido "stricto sensu" (artigo 6º, §2º, da LICC), o legislador reservou o parágrafo único [28] do mesmo artigo 17. Os primeiros estudos doutrinais em torno do caput já avaliam que, ressalvados os direitos adquiridos e acumulados (que garantem, a seus titulares, regimes de transição), a possibilidade de alteração dos planos de benefícios, sejam eles de contribuição ou de benefício definidos, é da própria essência do instituto. É inegável, portanto, que o Direito nacional caminha a passos largos para o reconhecimento de efeitos jurídicos iniludíveis aos direitos em formação ou acumulados, notadamente em matéria de previdência pública.

Convém reconhecer que é realmente tênue, em Direito de Estado, o limiar entre o direito adquirido e o direito em formação. Pode-se inclusive ir além e reconhecer, ainda com OLIVEIRA ASCENSÃO, que

A distinção entre direito adquirido e mera expectativa é muito difícil de traçar. Os autores acabam por chamar expectativas a umas situações e direitos a outras consoante pretendem ou não a aplicação da nova lei, o que representa a inversão do princípio [29].

Assim, interessará mais saber se a mudança de regras afeta o "princípio da confiança ínsito à idéia de Estado Democrático de Direito" que discutir se, à luz do artigo 6º, §2º, da LICC, trata-se ou não de direito adquirido. E, nesse encalço, a conclusão é palmar: indiscutivelmente, a mudança de regras operada pelo novo artigo 40, §3º, da CRFB apanhou de surpresa a generalidade dos servidores públicos civis.

Concretamente, sendo a posse em cargo efetivo, na célebre construção de LÉON DUGUIT, um ato-condição para a aposentadoria, tem ela o condão de vincular o servidor, até a inatividade, à estrutura peculiar da Administração Pública. Mais que isso, os efeitos da adesão protraem-se no tempo, para além do próprio jubilamento ¾ tanto que, à diferença do trabalhador filiado ao RGPS, o servidor público pode sofrer a cassação de sua aposentadoria por conta de faltas disciplinares praticadas na ativa. À vista disso, é razoável reconhecer algum sinalagma no espectro positivo da relação: do ponto de vista dos direitos subjetivos, alguns há que, ainda incipientes, enraízam-se no patrimônio jurídico do servidor, conquanto não possam ser fruídos de imediato: conformar-se-ão com o tempo, ganhando em maturidade, completude e exeqüibilidade. São, pois, direitos em formação, como no caso do cálculo da aposentadoria pela última remuneração da ativa ou, ainda, no caso da integralidade de proventos, marcadamente em relação aos servidores que ingressaram no serviço público antes da EC n. 20/98.

Recorrendo ao escólio de GABBA, é certo que, nesses dois casos, estão presentes dois dos pressupostos constitutivos de um direito adquirido, a saber:

(a) fato idôneo para gerar o direito em função da lei vigorante ao tempo em que tal fato teve lugar (= a posse no cargo);

(b) impossibilidade de atuação ou valência do interesse antes da entrada em vigor de nova norma relativa ao mesmo assunto (= EC n. 41/03).

Falta-lhes apenas o terceiro pressuposto, a saber, (c) o comando da lei contemporânea ao fato, determinando a integração imediata do direito imanente ao patrimônio de quem o adquire [30]. Com efeito, o texto constitucional anterior à EC n. 41/03 não o dizia e nem poderia fazê-lo, já que estabelecia ainda outros requisitos para o exercício do direito (artigo 40, §1º, III, da CRFB). Nada obstante, sendo evidentes a se as duas primeiras características da definição de GABBA, demonstra-se a franca proximidade entre aquelas situações e o conceito geral de direito adquirido.

Na verdade, o tempo de contribuição, a idade mínima, o "pedágio" e os outros pressupostos objetivos da aposentadoria são elementos de um fato constitutivo mais complexo, cuja realização "tem sua raiz num direito adquirido anterior", porquanto não está "no poder do interessado [a Administração] impedir o fato que falta, em se tratando de condição verdadeira e própria" [31]. Indubitável, portanto, que a posse no cargo efetivo conferia, por si mesma, alguma estabilidade jurídica à expectativa de aposentação com proventos integrais pela última remuneração. Dizer se havia aqui típico direito adquirido (como opina DALLARI), ou se havia direito acumulado com efeitos de adquirido (como sugere FREUDENTHAL em tese à qual acedemos), é discussão teórica que desborda dos objetivos deste estudo. Antes disso, sendo certo que a mudança violou os princípios da confiança e da segurança (supra), interessa saber se, na prática, aquelas pretensões ― os direitos em formação ― estariam sob guarida do artigo 5º, XXXVI, da CRFB, e por isso imunes ao Poder Constituinte derivado.

Para tanto, não há critério seguro no Direito positivo. Socorre-nos, pois, a doutrina.

FERREIRA FILHO assevera que é possível a conciliação entre o direito adquirido, no seu sentido mais amplo, e a restrição de seus efeitos futuros, desde que fundada no princípio da ponderação de bens: rejeita-se, a bem do direito, a extinção radical de efeitos futuros, mas admite-se, a bem do interesse público, a moderação desses efeitos. Ou, na sua dicção, "pode [...] toda norma constitucional, inclusive a norma derivada, restringir os efeitos futuros de ‘facta pendentia’. [...] Neste último caso, a restrição tem de respeitar os princípios inerentes a toda restrição de direitos fundamentais, mormente os de razoabilidade e proporcionalidade" [32]. Essa lição aplica-se com igual ou maior propriedade aos direitos em formação, emprestando fundamento jurídico para os chamados "regimes de transição".

Do mesmo modo, ENNECCERUS advertia que "quanto mais graves são as razões que levaram a estabelecer o novo direito, tanto mais se há de supor que a força de seu efeito alcança também aos direitos existentes; sobretudo quando a norma jurídica se funda em razões de moralidade ou está ditada para eliminar situações inconvenientes na ordem econômica e social" (referindo, nesse sentido, o artigo 2º do Código Civil suíço) [33]. A contrario, se as razões para o novo direito são frágeis, inconvincentes ou desarrazoadas, não se justifica sacrificar, por ele, o direito adquirido (e, à sua conta, o direito em formação).

Restaria saber, então, se é razoável, do ponto de vista socioeconômico e em face do interesse público, a restrição estabelecida para a aquisição do direito à aposentadoria por parte dos servidores admitidos anteriormente à EC n. 20/98. Esses servidores perdem o direito de se aposentar com proventos integrais aos cinqüenta e três ou aos quarenta e oito anos, se homem ou mulher (artigo 8º, I, da EC n. 20/98), para fazê-lo somente com sessenta ou cinqüenta e cinco anos, respectivamente (artigo 6º, I, da EC n. 41/2003); além disso, não lhes basta mais cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se daria a aposentadoria (artigo 8º, II, da EC n. 20/98): é mister agora ter também vinte anos de efetivo exercício no serviço público e dez anos de carreira (artigo 6º, III e IV, da EC n. 41/03). É lídima tal modificação "in pejus"?

À mercê dos subsídios doutrinais colhidos, de ASCENSÃO a ENNECCERUS, passando por FERREIRA FILHO, é de rigor responder negativamente à pergunta. Com a mudança, frustram-se legítimas expectativas do servidor público civil, com malferimento dos princípios da confiança e da segurança no Estado Democrático de Direito e sem razões quaisquer de moralidade, proporcionalidade, razoabilidade ou conveniência socioeconômica (face à auto-sustentabilidade do regime previdenciário dos juízes) que justifique a manobra. Daí se concluir que essa alteração também vulnera, "a latere", a garantia constitucional do direito adquirido (ou direito em formação que, na espécie, estará sendo injustificadamente sacrificado) ¾ ou, se não, ao menos o princípio da irretroatividade da norma [34].

É que não se justifica o agravamento das condições de aquisição do direito às aposentadorias integrais, sequer do ponto de vista econômico. Em verdade, "a introdução da idade mínima, em moldes semelhantes aos observados na maioria dos países da OCDE, ou seja, entre 60 e 65 anos, reduziria o déficit potencial [...] Se tal mudança viesse acompanhada do fim das diferenças entre homens e mulheres, os efeitos redutores nos gastos seriam ainda mais pronunciados" [35], podendo compensar razoavelmente o que se perde, em arrecadação, com a manutenção da imunidade dos inativos, ou mesmo com a vinculação dos proventos e pensões às remunerações da ativa. O Poder Executivo preferiu, todavia, manter a distinção etária e contributiva entre homens e mulheres, carreando o ônus da reforma à classe dos inativos atuais (taxação) e futuros (taxação, benefício médio e desvinculação). Na verdade, "apenas uma queda muito expressiva do teto de benefícios provocaria efeitos modestos na redução dos gastos" [36] ¾ raciocínio que vale para a redução do piso e do teto do serviço público, mas vale também para a própria taxação dos proventos de aposentadoria e pensões.

É cediço, portanto, que essa política de cortes e os seus resultados "não melhorariam o perfil financeiro do sistema, além de colocar em risco o benefício dos segurados, tendo em vista que [p.ex.] todos aqueles que recebessem salários superiores ao teto fixado deveriam destinar seus recursos para fundos previdenciários capitalizados que dependeriam, por sua vez, do comportamento do portfólio para fixar a taxa de reposição. A recente experiência chilena não deixa margem a dúvidas sobre o problema" [37]. Desse modo, para promover reformas efetivas pelo viés dos benefícios, "seria necessário reduzir substancialmente o valor dos benefícios e manter inalterada a arrecadação de contribuições para manter o sistema em equilíbrio. Embora tal situação possa ser efetiva do ponto de vista financeiro, ela colocaria em risco as condições de vida dos inativos e causaria sérios prejuízos às economias das pequenas localidades [38], aumentando as migrações internas. Isso acabaria por incrementar as pressões por gastos sociais compensatórios que, em última instância, reduziriam os possíveis ganhos financeiros obtidos com a reforma" [39].

Em outras palavras, o ajuste fiscal às custas da capacidade econômica dos direitos em tese do servidor público tende a ser, a médio e longo prazo, funesto para o país, seja por implicar relativo desaquecimento da economia, em locais e graus variáveis, com possíveis deslocamentos migratórios internos, seja ainda por compelir o servidor da ativa a aderir a expedientes de complementação de renda escusos ou ruinosos. É, ademais, desnecessário, uma vez que as contas gerais da Seguridade Social têm sido superavitárias [40] e eventuais ajustes podem ser efetuados mediante aportes oriundos de outras fontes de financiamento, que não afetem direitos sociais e tampouco comprometam a atividade econômica [41]. Na verdade, a vinculação preferencial das contribuições às folhas de salários, desde a EC n. 20/98, é um equívoco programático e um recuo histórico, que desmerece o paradigma instaurado pela Constituição Federal de 1988, de múltiplas fontes de financiamento para a Seguridade Social [42].

Desse contexto extrai-se que, para a preservação da confiança e da segurança ínsitas ao Estado Democrático de Direito, as regras de transição da EC n. 20/98 ― supondo-se-as, por agora, aplicáveis aos juízes ― haveriam de ser preservadas. Diga-se-o "ad argumentantum tantum", porque já a primeira reforma previdenciária (1998) é de duvidosa constitucionalidade, pelas razões expostas na introdução. Mas, se ali os direitos em formação foram validamente alterados (antes da EC n. 20/98 sequer havia idade mínima para a aposentação com proventos integrais, como tampouco se exigia "tempo de contribuição", mas "tempo de serviço"), impendia instituir regras de transição, como imperativo de justiça social e confiança pública, já que os servidores de então haviam acedido a um estatuto jurídico bem definido no momento da posse no cargo ou função. E, uma vez instituídas, jamais poderiam ser ao depois frustradas, como se deu com o advento da EC n. 41/03. Nesse passo ― seguindo o programa axiológico consagrado alhures pela Tribunal Constitucional português, de segurança e confiança públicas [43] ―, é de inteira juridicidade admitir que aqueles servidores, sejam funcionários ou agentes políticos, mantiveram as condições de aposentação dispostas pelo artigo 8º da EC n. 20/98.


V. Conclusão

As reformas previdenciárias que se seguiram à Constituição de 05.10.1988 talvez tenham sido bem-sucedidas do ponto de vista contábil. Não é o que revela o noticiário recente; mas se pode supor que, ao longo dos anos, a depreciação dos benefícios e o aumento do tempo de contribuição reduzam os "rombos" amiúde anunciados.

Do ponto de vista jurídico, porém, não foram felizes. Com relação aos magistrados, padeceram de vícios fatais "ab ovo", que a rigor prejudicaram todos os desdobramentos ulteriores da matéria. Fossem reconhecidos, discussões mais complexas, como as do tópico 4.2 (supra), seriam despiciendas. Mas a sorte recente das demandas judiciais instauradas em torno desses vícios tampouco é animadora. Emerge desse contexto ― como não poderia deixar de ser ― um temor silencioso e crônico, que suscita aqui e ali referências algo jocosas, algo dramáticas às "próximas" reformas da Previdência. Foram já duas, sem que se garantissem adequadamente a estabilidade dos regimes jurídicos e a devida regência constitucional dos estatutos pessoais. Pairam a incerteza e a desconfiança, em meio a alguma esperança de que as inconstitucionalidades sejam em algum tempo dirimidas.

Mas o Direito é assim: só existe em essência quando se faz concreto. Assim fazem os juízes, no dia-a-dia das varas e dos tribunais. Não seria diferente com eles próprios, nas causas que interessam à Magistratura como estrato organizado da sociedade civil. Aos que têm voz ou letras, impõe-se alertar e registrar, para o futuro, o golpe sentido. E recordar a advertência de JHERING [44]: de nada serve almejar as mais altas metas éticas ou captar a mais digna idéia de liberdade e justiça em forma de determinações legais, se a realização das idéias nas relações jurídicas concretas é precária, difícil ou desigual, porque falta habilidade para transformar o abstrato em realidade.

Em geral, o magistrado "concretiza" o Direito ao decidir os litígios que se lhe apresentam. Neste preciso contexto, todavia, haverá de concretizá-lo por outros caminhos. Demonstrando. Propondo. Contrapondo. E confiando.


VI. Bibliografia (citada e/ou consultada)

ALVES, Léo da Silva. "O furo é mais embaixo" In: Revista Jurídica Consulex. São Paulo: Consulex, ano VII, n. 149, pp.23-25, 31.03.2003.

ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral. 13ª ed. Coimbra: Almedina, 2005.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Seguridade e Desenvolvimento ¾ Um projeto para o Brasil. Brasília: ANFIP, 2003.

BIASOTO JÚNIOR, Geraldo. "A reforma da Previdência". In: Folha de São Paulo, p.A-3, 12.05.2003.

COMPARATO. Fábio Konder. Direito Público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996.

DALLARI, Dalmo de Abreu. "Previdência e Dignidade Humana". In: Previdência ou Imprevidência. Porto Alegre: AJURIS, 2001.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva, 1994.

__________________. Norma constitucional e seus efeitos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

ELUF, Luiza Nagib. "Reformar para quê?". In: Folha de São Paulo, p.A-3, 28.05.2003.

ENNECCERUS, Ludwig. KIPP, Theodor. WOLF, Martin. Tratado de Derecho Civil ¾ Derecho Civil (Parte General). 2ª ed. Trad. Hans Carl Nipperdey. Barcelona: Bosch, 1953. t. I. v. 1º.

ESPÍNOLA, Eduardo. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. "A cobrança dos inativos é inconstitucional?". In: Folha de São Paulo, p.A-3, 21.04.2003.

___________________. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 1991.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003.

___________________. Comentários à Constituição Brasileira. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1977.

___________________. Curso de Direito Constitucional. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

FIÚZA, Tatiana. "Reforma da Previdência ¾ Déficit no sistema: blefe, fraude ou incompetência?". In: Revista Jurídica Consulex. São Paulo: Consulex, ano VII, n. 149, pp.14-18, 31.03.2003.

FREUDENTHAL, Sérgio Pardal. "Reforma na Previdência". In: Justiça do Trabalho, ano 20, n. 231, pp.122-126, março de 2003.

GALL, Norman. RICUPERO, Rubens. "Globalismo e localismo ¾ quais são os limites da competição e da segurança?" In: http//:www.normangall.com/ brazil_art3.htm, 05/2003, p.08 (Acesso em 05/2003).

GOVERNO FEDERAL. E.M.I. n. 29 (MPS/Ccivil-PR). Brasília: Casa Civil, Subchefia de Assuntos Parlamentares, 29.04.2003.

JHERING, Rudolph von. Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung. 2ª ed. Leipzig: [s.e.], 1924. t. II. p. 2.

MACHADO, Hugo de Brito. Direito Tributário. 13a ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

MARTINEZ, Wladimir Novaes. "E há outros aspectos". In: Folha de São Paulo, p.A-3, 17.05.2003.

MARTINS, Carlos Eduardo Behrmann Rátis. "A ‘Reformatio in Pejus’ da Previdência". In: http://www.atarde.com.br/auth.php (Acesso em 05/2003).

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

MATTIOLI, Maria Cristina. "Por que os Juízes devem ser excluídos do Regime Único de Previdência proposto pelo atual Governo". Harvard: [s.e.], 2003.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Constituição e Inconstitucionalidade. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. t. II.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1997.

__________________. Direitos Humanos Fundamentais. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2000.

ROSSI, Clóvis."Palocci e o debate pobre". In: Folha de São Paulo, p.A-2, 04.06.2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

SOUZA, Lilian de Castro. "As normas sobre seguridade social na Constituição de 1988 como evolução dos direitos fundamentais da pessoa humana". In: http://www.anpprev.org.br/doutrina-5.htm, p.12 (Acesso em 05/2002).

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

VIANNA, Luiz Werneck. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. BURGOS, Marcelo Baumann. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997.


Notas

1 "A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros".

2 "Aprovada a Reforma, juízes perdem aposentadoria especial" (Jornal do Senado, dezembro de 1998 ― g.n.).

3 "A lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra".

4 A respectiva Exposição de Motivos considerava que "persistem hoje regras bastante diferenciadas entre o Regime Geral de Previdência Social e os regimes próprios de Previdência Social dos servidores, com desequilíbrios nas dimensões da eqüidade e sustentabilidade de longo prazo", elegendo como um dos objetivos estratégicos da reforma a construção, a longo prazo, de um regime previdenciário público básico, universal e compulsório, para todos os brasileiros. O segundo objetivo da PEC n. 40/03 era a modernização do sistema previdenciário brasileiro, com vistas à correção das distorções, imprimindo ao modelo maior eqüidade social e viabilidade financeiro-atuarial. Cfr. E.M.I. n. 29 (MPS/Ccivil-PR), Brasília, Casa Civil/Subchefia de Assuntos Parlamentares, 29.04.2003, nos. 02 a 06.

5 "O regime de previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202 e seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição definida".

6 MS 21.710-DF, Pleno, in RTJ 151/847; MS 21.154-DF, Pleno, in RTJ 155/440.

7 Artigo 40, §3º: "Para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na forma da lei".

8 E.g., docência universitária em profusão, empreendedorismo (cursos preparatórios para concursos públicos) e até mesmo bancas de advocacia em nome alheio.

9 Lembrando, com LUIZA NAGIB ELUF, que "a polícia se degradou a partir do brutal achatamento dos salários de seus funcionários" ("Reformar para quê?", in Folha de São Paulo, 28.05.2003, p.A-3).

10 Nesse sentido, demonstrando politica e juridicamente a necessidade de um regime previdenciário próprio para a Magistratura, cfr. Maria Cristina Mattioli, "Por que os Juízes devem ser excluídos do Regime Único de Previdência proposto pelo atual Governo", Harvard, [s.e.], 2003.

11 Tércio Sampaio Ferraz Júnior, "A cobrança dos inativos é inconstitucional?", in Folha de São Paulo, 21.04.2003, p.A-3.

12 "Além do disposto neste artigo, o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social" (g.n.).

13 Afinal, como pontuado pelo próprio MAURÍCIO RANDS (supra), as contribuições sociais são uma modalidade do gênero tributo, jungidas à classe das contribuições especiais ou parafiscais do artigo 149, caput, da CRFB. Cfr. Hugo de Brito Machado, Direito Tributário, p.306: "É induvidosa, hoje, a natureza tributária dessas contribuições". A vedação constitucional à incidência de contribuição social (artigo 195, II, 2ª parte) é, portanto, uma imunidade tributária, entendida como tal "o obstáculo decorrente de regra da Constituição à incidência de regra jurídica de tributação. O que é imune não pode ser tributado. A imunidade impede que a lei defina como hipótese de incidência tributária aquilo que é imune. É limitação da competência tributária" (idem, p.192 ¾ g.n.). Não se entende, por isso, como pôde sustentar a "inexistência de direito adquirido à não-incidência de tributo": seria o mesmo admitir que o legislador, no exercício do poder constituinte derivado, pudesse autorizar o uso de determinado tributo com efeito de confisco, ou cobrar certo tributo em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os instituísse ou majorasse. Em todos esses casos, como na hipótese da ADIn n. 939, haveria violação de garantias fundamentais do contribuinte ― como houve, na taxação dos inativos.

14 STF, Pleno, ADIn n. 939-7/DF, rel. Min. Sidney Sanches, Medida Cautelar, in RTJ 150/68-69, 151/755 e 198/123. O julgado reconheceu a parcial inconstitucionalidade da EC n. 03/93, que vulnerava o princípio da anterioridade tributária (artigo 150, III, "b", da CRFB), que foi considerado garantia individual do contribuinte, e também o princípio da imunidade tributária recíproca, que foi considerado garantia da forma federativa de Estado.

15 "A ‘Reformatio in Pejus’ da Previdência", Carlos Eduardo Behrmann Rátis Martins, in http://www.atarde.com.br/auth.php (05/2003 ― g.n.).

16 Cfr. votos dos Ministros Carlos Velloso e Marco Aurélio Mello no julgamento da ADIn n. 939-07/DF, in Serviço de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Ementário n. 1.730-10/STF. No primeiro voto, reconhece-se que os direitos e garantias sociais do artigo 7º, assim como os direitos de nacionalidade e os direitos políticos são, também, direitos e garantias individuais, imodificáveis; no segundo, aponta-se a relação de continência entre os direitos individuais, na acepção do artigo 60, §4º, e os direitos sociais em geral.

17 Carlos Rátis, loc.cit. (g.n.).

18 Wladimir Novaes Martinez, "E há outros aspectos", in Folha de São Paulo, 17.05.2003, p.A-3, 17.05.2003.

19 "Todos os aposentados e pensionistas, portanto, possuem direito adquirido, não só em relação à existência da aposentadoria, como situação jurídica já concretizada, mas também em relação aos valores e regras de atualização dos proventos recebidos, regidos pela Constituição e legislação atuais, inatacáveis por meio de proposta de emenda constitucional" (Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, p.85). Confira-se também a Súmula 359 do C.STF.

20 No regime geral de previdência social, "se mais vantajoso, fica assegurado o direito à aposentadoria, nas condições legalmente previstas na data do cumprimento de todos os requisitos necessários à obtenção do benefício, ao segurado que, tendo completado 35 (trinta e cinco) anos de serviço, se homem, ou 30 (trinta) anos, se mulher, optou por permanecer em atividade" (artigo 122 da Lei 8.213/91, revogado pela Lei 9.032/95 e restabelecido, com nova redação, pela Lei 9.528/97).

21 "Os proventos da aposentadoria a ser concedida aos servidores públicos referidos no caput, em termos integrais ou proporcionais ao tempo de serviço já exercido até a data da publicação desta Emenda, bem como as pensões de seus dependentes, serão calculados de acordo com a legislação em vigor à época em que foram atendidas as prescrições nela estabelecidas para a concessão destes benefícios ou nas condições da legislação vigente".

22 "Não há direito adquirido ao regime jurídico observado para o cálculo do montante dos proventos, quando da aposentadoria, se, de forma diversa, preceito constitucional superveniente vem dar nova disciplina à matéria" (in RTJ 154/225). Cfr. também Lex-JSTF, 246/67, 256/207; RTJ 114/237 (apud Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo, pp.120-121, notas 26 a 29).

23 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo, p.117 (g.n.). O autor se refere, aqui, aos direitos adquiridos "proprio sensu".

24 Sérgio Pardal Freudenthal, "Reforma na Previdência", in Justiça do Trabalho, ano 20, n. 231, março de 2003, p.126.

25 "Anote-se a impossibilidade de alegar-se direito adquirido em face de norma constitucional originária, salvo nas hipóteses em que a própria nova Constituição o consagra. O mesmo não ocorre em relação às normas constitucionais derivadas, nascentes das emendas constitucionais, cujo processo legislativo deve respeitar, entre outras normas, as chamadas limitações expressas materiais, conhecidas como cláusulas pétreas. Entre elas, a previsão do art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal (direitos e garantias individuais), especificamente, o art. 5º, XXXVI (direito adquirido)" (Alexandre de Moraes, Direitos Humanos Fundamentais, p.203 ¾ g.n.).

26 Dalmo de Abreu Dallari, "Previdência e Dignidade Humana", in Previdência ou Imprevidência, p.20.

27 José de Oliveira Ascensão, O Direito: Introdução e Teoria Geral, pp.554-555.

28 "Ao participante que tenha cumprido os requisitos para a obtenção dos benefícios previstos no plano é assegurada a aplicação das disposições  regulamentares vigentes na data em que se tornou elegível a um benefício de aposentadoria".

29 Op.cit., p.556.

30 Cfr. Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, pp.182-183 (citando Gabba).

31 Eduardo Espínola, Eduardo Espínola Filho, A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, pp.273-274 (citando Gabba).

32 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Aspectos de Direito Constitucional Contemporâneo, pp. 118 e 125.

33 Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp, Martin Wolf, Tratado de Derecho Civil ¾ Derecho Civil (Parte General), t. I, v. 1º, pp.240-241. Tradução livre.

34 "Se a Constituição proíbe a retroatividade, ou garante o direito adquirido, a norma derivada não pode colher a estes, nem ter efeito retroativo. [...] fruto de um Poder adstrito às limitações e condicionamentos postos pela Constituição, obviamente tem de observar o que esta preceitua quanto aos pontos assinalados: irretroatividade ou respeito aos direitos adquiridos", que não se confundem (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Aspectos de Direito Constitucional Contemporâneo, p.112).

35 ANFIP, cit., p.19.

36 Idem, ibidem (g.n.).

37 Idem, p.20.

38 As aposentadorias são importante fator de demanda efetiva nos pequenos e médios municípios brasileiros. Cfr., por todos, Norman Gall, Rubens Ricupero, "Globalismo e localismo ¾ quais são os limites da competição e da segurança?", in Braudel Papers, 1997, n. 17 (http//:www.normangall.com/ brazil_art3.htm, 05/2003, p.08): "Embora o número de funcionários públicos no Brasil seja baixo em comparação com países ricos, ele é alto em muitas comunidades que dependem de transferências, salários e pensões do governo para sobreviver". No mesmo sentido, com relação às aposentadorias e pensões, cfr. Léo da Silva Alves, "O furo é mais embaixo", in Revista Jurídica Consulex, ano VII, n. 149, 31.03.2003, p.23: "Muitos gestores que passaram pela Esplanada dos Ministérios e pela presidência do INSS orgulhavam-se em dizer que a Previdência no Brasil ‘é a maior distribuidora de rendas’. É verdade. Há municípios do interior do País onde a economia depende, unicamente, do pagamento de aposentadorias e pensões. Popularizou-se, em algumas regiões, a chamada Feira do Véio. Funciona só nos dias em que parte da população recebe os benefícios previdenciários".

39 ANFIP, p.20.

40 Dados da ANFIP (2001). O estado deficitário deveu-se historicamente ao desvio de fundos da Previdência para outras finalidades.

41 "Esse foi, por exemplo, o caso recente da França que, para destinar mais recursos para a seguridade, optou por criar uma nova fonte de financiamento, incidente sobre o imposto de renda" (ANFIP, cit., p.42).

42 Idem, ibidem.

43 Cfr. Ac. TC n. 95/1992, rel. Ribeiro Mendes, j. 17.03.1992, in BMJ 415/190 e ss.

44 Rudolph von Jhering, Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung, t. II, p. 2, pp.310-311.


Autor

  • Guilherme Guimarães Feliciano

    Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Magistratura, previdência social e constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 713, 14 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6873. Acesso em: 26 abr. 2024.