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Magistratura, previdência social e constitucionalidade

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As duas reformas da Previdência talvez tenham sido bem-sucedidas do ponto de vista contábil, mas, do ponto de vista jurídico, não foram felizes. Pairam a incerteza e a desconfiança, em meio à de que as inconstitucionalidades sejam em algum tempo dirimidas.

«Não basta a elaboração lógica dos materiais jurídicos que se encontram num processo, para atingir o ideal de justiça baseada nos preceitos codificados. Força é compreender bem os fatos e ser inspirado pelo nobre interesse pelos destinos humanos» (CARLOS MAXIMILIANO, 1924).


I. Introdução. Inconstitucionalidades formais

Com o advento da Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.1998 (que, na condição de primeira reforma previdenciária de âmbito constitucional sob a égide da Constituição de 1988, "modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências"), o inciso VI do artigo 93 da Constituição da República Federativa do Brasil passou a ter a seguinte redação:

VI - a aposentadoria dos magistrados e a pensão de seus dependentes observarão o disposto no art. 40;

Ulteriormente, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 41, de 19.12.2003 (a segunda reforma previdenciária, que "modifica os arts. 37, 40, 42, 48, 96, 149 e 201 da Constituição Federal, revoga o inciso IX do §3º do art. 142 da Constituição Federal e dispositivos da Emenda Constitucional nº  20, de 15 de dezembro de 1998, e dá outras providências"), o regime de previdência dos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com disciplina no precitado artigo 40 da CRFB, foi substancialmente modificado ― e, com isso, alteraram-se igualmente os direitos previdenciários dos membros do Poder Judiciário brasileiro, ex vi do artigo 93, VI. Já por isso, o artigo 2º da EC n. 41/03 dispôs o seguinte:

Art. 2º. Observado o disposto no art. 4º da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, é assegurado o direito de opção pela aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com o art. 40, §§ 3º e 17, da Constituição Federal, àquele que tenha ingressado regularmente em cargo efetivo na Administração Pública direta, autárquica e fundacional, até a data de publicação daquela Emenda, quando o servidor, cumulativamente:

I - tiver cinqüenta e três anos de idade, se homem, e quarenta e oito anos de idade, se mulher;

II - tiver cinco anos de efetivo exercício no cargo em que se der a aposentadoria;

III - contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:

a) trinta e cinco anos, se homem, e trinta anos, se mulher; e

b) um período adicional de contribuição equivalente a vinte por cento do tempo que, na data de publicação daquela Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea a deste inciso.

§ 2º Aplica-se ao magistrado e ao membro do Ministério Público e de Tribunal de Contas o disposto neste artigo.

§ 3º Na aplicação do disposto no § 2º deste artigo, o magistrado ou o membro do Ministério Público ou de Tribunal de Contas, se homem, terá o tempo de serviço exercido até a data de publicação da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, contado com acréscimo de dezessete por cento, observado o disposto no § 1º deste artigo [g.n.].

O arcabouço normativo constituído por esse preceito e pelo artigo 6º da Emenda comporia o "regime de transição" dos servidores públicos civis, prejudicando as regras de transição até então em vigor, que haviam sido aprovadas pela EC n. 20/98.

Variegadas polêmicas podem ser suscitadas a propósito desses dois preceitos. Algumas já o foram efetivamente e ora perfazem matéria litigiosa nos escaninhos do Supremo Tribunal Federal.

Cite-se, e.g., o fato de a alteração do texto do inciso VI do artigo 93 da CRFB não ter sido aprovada em dois turnos no Senado Federal, o que implicaria a inconstitucionalidade formal do preceito, ut artigo 60, §2º, da CRFB [1]. A supressão da devida forma procedimental exsurgira evidente, à época, nas páginas do próprio órgão noticioso do Senado Federal. Transcreva-se:

Depois de quase seis horas de debates, o plenário aprovou ontem, em segundo turno, a reforma da Previdência. Os senadores concordaram em eliminar, em votação de destaque em separado proposta pelo presidente da Casa, Antonio Carlos Magalhães, uma expressão que, na prática, permitia que juízes e promotores pudessem ter aposentadoria diferenciada do restante do funcionalismo [2].

Com efeito, suprimiu-se, ao apagar das luzes, a expressão "no que couber", que constava do Substitutivo (Emenda 51 CCJ), na parte final do inciso VI do artigo 93. Não se diga que a modificação encetou mero ajuste redacional: bem ao contrário, o destaque seguramente interferia com o mérito da questão (regime previdenciário dos magistrados), a ponto de justificar a matéria supra transcrita; e, nada obstante, a matéria foi votada em turno único (o segundo) no Senado Federal. Patente, pois, a eiva procedimental ― que, com a promulgação da Emenda, tornou-se insanável.

Na mesma ensancha, a se considerar o vínculo lógico-sistemático entre o disposto nos parágrafos 2º e 3º do artigo 2º da EC n. 41/03 e a nova redação do 93, VI, da CRFB, também aqueles preceitos estariam comprometidos, na parte atinente aos magistrados e membros do Ministério Público, uma vez que as referidas regras de transição não fariam sentido em um contexto orgânico de inaplicabilidade do artigo 40 da CRFB.

De outra parte, é fato que, por força do artigo 93, caput, da CRFB, o regime previdenciário dos magistrados haveria de ser objeto do Estatuto da Magistratura, ditado por lei complementar de iniciativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal (e, não por outra razão, entre os "princípios" informadores do Estatuto está o do inciso VI, referente à "aposentadoria dos magistrados"). Conseqüentemente, não poderia o legislador, no uso do poder constituinte derivado, usurpar iniciativa originariamente conferida ao Supremo Tribunal Federal, mesmo porque essa iniciativa integra o sistema de checks and balances ínsito à norma do artigo 2º da CRFB (independência harmônica dos Poderes da República), de natureza pétrea (artigo 60, §4º, III). Por essa via, entrevê-se, na equiparação previdenciária consumada pela EC n. 20/98 e corroborada pela EC n. 41/03, nova inconstitucionalidade formal.

Uma e outra hipótese foram objeto de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), em setembro de 2004, contra o artigo 1º da EC n. 20/98, na parte em que alterou a redação do art. 93, VI, da CRFB, e contra os §§ 2º e 3º do artigo 2º da EC n. 41/03.

Aqui, porém, não interessará, malgrado toda a sua relevância, retomar o problema das inconstitucionalidades formais. Entre as hipóteses supra ventiladas, particularmente a primeira não poderia ser, venia concessa, mais óbvia e gritante; negá-la é fazer soçobrar todo o sentido de segurança jurídica imanente à Constituição Federal de 1988. Já por isso, interessa-nos ver além e descortinar os vícios materiais que, de demonstração mais laboriosa, são justamente os mais graves (conquanto sejam, provavelmente, os menos exitosos em juízo).

Nesse encalço, debruçar-nos-emos sobre aspectos mais problemáticos e desafiadores, como o tema do desconto previdenciário nas aposentadorias e a sua constitucionalidade, o tema dos regimes especiais de previdência social (que resistiram ao "propósito uniformizador" da EC n. 41/03) e, notadamente, o tema dos regimes de transição, que diz com a cláusula pétrea do direito adquirido (artigo 5º, XXXVI, da CRFB), com o seu conceito jurídico (artigo 6º, §2º, da Lei de Introdução ao Código Civil) e com a tese geral, dominante no Excelso Pretório, de que não há direito adquirido a regimes jurídicos (definitivos ou transitórios). São temas que se põem indelevelmente, si et quando superada a trincheira das inconstitucionalidades formais, donde a sua relevância institucional e científica, ainda que não haja dúvidas acerca dos vícios de forma e procedimento.

Diga-se, por oportuno, que não se trata, em absoluto, de combater politicamente as decisões consumadas e a jurisprudência assente do Supremo Tribunal Federal. Sequer seria útil fazê-lo. Trata-se de reposicionar a discussão, à luz da ciência jurídica universal, e revisitá-la sob o prisma de sua juridicidade e de sua legitimidade. Não se faz Direito sem aporia ― do contrário, não seria uma ciência prudencial, muito mais que lógico-formal.

Passemos a isto.


II. Regimes especiais de previdência social. Princípio da isonomia

Consoante o artigo 40, §20, da CRFB, na redação do artigo 1º da EC n. 41/03, "fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social para os servidores titulares de cargos efetivos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal, ressalvado o disposto no art. 142, § 3º, X" [3].

Disso se extrai que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não podem mais particularizar regimes jurídicos de servidores públicos, sujeitando-os a regras diversas e/ou a gestão diferenciada. Assim, e.g., todos os servidores públicos da União ¾ aí entendidos os funcionários públicos "stricto sensu" (servidores regidos pela Lei 8.112/90) e os agentes políticos (e.g., os membros da Magistratura federal e do Ministério Público da União) ― devem se sujeitar a um mesmo regime de previdência social, sob mesma gestão, mantendo-se unicamente as distinções que o ordenamento constitucional preservou (e.g., o artigo 40, §1º, I, in fine, da CRFB e ― nos limites do artigo 2º da EC n. 41/03 ― o artigo 8º, §3º, da EC n. 20/98). Materializou-se, portanto, o propósito de uniformizar a previdência pública brasileira, que era preocupação expressa da então PEC n. 40/03 [4].

A regra evidentemente não abrange os fundos públicos de previdência complementar, que poderão ter gestão autônoma, desde que pública (artigo 40, §15, da CRFB [5]). Além disso, ressalva expressamente a classe dos servidores públicos militares da União (e, por conseqüência, dos Estados, ut artigo 42, §1º, da CRFB), cujo regime previdenciário deverá ser instituído em lei ordinária própria, com regime próprio e gestão apartada (artigo 142, §3º, X, da CRFB).

Nessa ressalva, a EC n. 41/03 violou obliquamente o princípio constitucional da isonomia, pelo qual "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (artigo 5º, caput, da CRFB). Diga-se, por oportuno, que por se tratar de norma pétrea (artigo 60, §4º, IV), tal princípio não pode ser tisnado pelo legislador no exercício do poder legiferante ordinário, como também não pode sê-lo pelo legislador no exercício do poder constituinte derivado. E a boa exegese do preceito denota a sua aptidão para assegurar inclusive a isonomia entre carreiras de mesmo cariz, ou entre quadros diversos vinculados à mesma função pública. Nesse último sentido, já decidiu o Excelso Pretório:

Fere o princípio constitucional da isonomia a norma ordinária que inabilita o diplomata inscrito no Quadro Especial à continuidade do exercício de missão permanente ou temporária no exterior, bem como à nomeação para igual propósito [6].

À vista disso, cabe reconhecer, para o que ora interessa, que os magistrados e os membros do Ministério Público são agentes políticos e se inserem em carreiras típicas de Estado, cuja condição jurídica não pode ser assimilada à dos servidores públicos em geral (inclusos os militares). Esses últimos, ao desempenhar serviços públicos, cumprem papel instrumental em relação ao Estado que os investe. Já os primeiros exercem poder político, personificando tanto o Estado como o serviço público que distribuem; mantêm, com a República, uma relação de ordem estrutural. Retirar-lhes garantias típicas da carreira, como são a irredutibilidade de subsídios (prejudicada, por via oblíqua, com a taxação de membros inativos e o fim da paridade entre ativos e inativos) e a aposentadoria com proventos integrais (amesquinhada com a instituição do benefício médio [7]), representa ameaça imediata à qualidade dos quadros técnicos do Poder Judiciário e do Ministério Público e, a médio e longo prazos, fissuras nos próprios pilares do Estado Democrático de Direito, em face da deterioração paulatina da função jurisdicional (exercida por pessoas cada vez menos qualificadas). No quadro mais nefasto, a perspectiva do aviltamento da qualidade de vida poderá compelir à ineficiência e/ou à ilegalidade, em face do acúmulo de atividades remuneradas em paralelo [8] e à própria ação de corruptores [9].

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É cediço que as carreiras típicas de Estado exigem privações e rigores pouco encontradiços em outras carreiras públicas, como a alteração freqüente de domicílio, o dever de residir na sede de sua comarca (artigo 93, VII, da CRFB, na redação da EC n. 45/2004, e artigo 35, V, da Lei Complementar n. 35/79), a dedicação exclusiva com proibição de exercício de outras atividades profissionais (à exceção de um cargo ou função de magistério, ex vi dos artigos 95, par. único, II, da CRFB e 36, I e II, da LOMAN), a vedação de atividade político-partidária (artigo 95, par. único, III, da CRFB), a reserva social e a conduta social e pessoal irrepreensíveis (artigo 35, VIII, da LOMAN), a acessibilidade diária ao destinatário de seus serviços (artigo 35, IV, in fine, da LOMAN), as limitações ao direito de expressão (artigo 36, III, da LOMAN) e a sujeição diuturna à fiscalização do jurisdicionado, entre outras. Tantas especificidades reclamaram, historicamente, a instituição de um regime de previdência próprio, adequado às idiossincrasias dessa classe profissional, de modo a carrear-lhes, em contrapartida àqueles rigores e privações, atrativos como a vitaliciedade, a integralidade de proventos e a redução do tempo de serviço (vide artigo 2º, §3º, da EC n. 41/03). Têm-se, nesse caso, prerrogativas que não consubstanciam meras vantagens pessoais, mas antes garantem aos cidadãos a isenção e a imparcialidade dos que se dedicam ao mister da Justiça Pública.

Suprimir tais prerrogativas ¾ tanto mais quando se demonstra que, do ponto de vista atuarial, a previdência dos juízes sustentava-se por si mesma, com suas próprias entradas ¾ é expediente demagógico que consuma um perigoso retrocesso histórico. Nessa linha, se a EC n. 41/03 identificou, no serviço público militar, peculiaridades bastantes para autorizar o tratamento previdenciário diferenciado, nada justifica que não as tivesse divisado no serviço público jurisdicional, prestado por juízes e membros do Ministério Público, que ― tal como os servidores públicos militares ― desempenham atividade privativa, não têm estatuto de jornada e necessitam gozar de prerrogativas de função em regime de garantias e vedações. E, para além disso, o papel constitucional dos magistrados soma em responsabilidade, na medida que lhes incumbe distribuir Justiça à conta de Poder da República: na expressão clássica de PONTES DE MIRANDA, os juízes "presentam" o Poder Judiciário diante do cidadão.

Não se compreende, portanto, porque a sua função judicial estrita não é suficientemente "peculiar" para garantir um regime previdenciário próprio [10] (como, aliás, decorre do próprio acometimento da matéria à lei complementar de iniciativa do STF, como visto no tópico I) ― a não ser, é claro, que se considerem razões extrajurídicas, tal como o "sprit de corps". Se, porém, as razões meramente corporativas não conferem qualquer legitimidade à distinção, resulta insofismável a quebra de isonomia.


III. Taxação de inativos. Constitucionalidade e justiça

A taxação dos inativos em gozo de benefícios na data de promulgação da emenda tem fundamento no artigo 40, caput, da CRFB e no artigo 4º da EC n. 41/03. Dentre todas, essa era a alteração "in pejus" que guardava a mais notória inconstitucionalidade material. E, nada obstante, foi preservada pelo Excelso Pretório em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade promovida pela CONAMP (Confederação Nacional do Ministério Público). Isso, porém, não sepulta a questão, ao menos do ponto de vista juscientífico.

Em suma, a tese da constitucionalidade, amplamente desenvolvida pelo Deputado MAURÍCIO RANDS na condição de relator da então PEC n. 40/03, baseava-se em quatro pressupostos:

(a) inexistência de direito adquirido à não-incidência de tributo, sendo certo que a natureza jurídica da contribuição previdenciária é a de espécie do gênero tributo;

(b) o regime jurídico da imunidade da contribuição previdenciária dos inativos e pensionistas (ex vi do art. 40, § 12, na redação anterior à EC n. 41/03, c.c. o art. 195, II, da CF/88) não era cláusula pétrea;

(c) inexistência de direito adquirido a regime jurídico ("in casu", ao regime jurídico de imunidade da contribuição social que vigorava até a EC n. 41/03);

(d) a retributividade da espécie tributária, própria do tributo vinculado que é a contribuição social, não é estrita e imediata (como ocorre, e.g., nas taxas), mas sim mediata; logo, a instituição da contribuição em foco tem causa suficiente, a saber, a participação solidária do beneficiário no seu custeio e o interesse em sua sustentabilidade. 

Não convencem, porém, tais argumentos.

Na dicção de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.,

do ângulo de sua história, a aposentadoria dos servidores públicos sempre foi considerada uma variável inerente ao seu trabalho, sendo assumida pelo Estado como um item previsto no Orçamento sob o ponto de vista da despesa. […] os servidores, ao contrário dos demais trabalhadores, nunca foram obrigados a contribuir para a sua aposentadoria, assumida, então, pelos Tesouros como uma obrigação orçamentária [11].

Com efeito, somente com o advento da EC n. 20/98, os servidores públicos passaram a se sujeitar a um autêntico "regime de previdência de caráter contributivo" (artigo 40, caput, da CRFB), comprometido com o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema e informado pelos requisitos e critérios do Regime Geral de Previdência Social, no que couber (artigo 40, §12).

FERRAZ JR. advertia, entretanto, que regime de custeio e regime de aposentadoria não se confundem. A "mens legis" da primeira reforma previdenciária (1998) encaminhou-se no sentido de que os regimes de aposentadoria ― e não os de custeio ― se equivalessem em requisitos e critérios, guardadas as regras de transição (como também a segunda reforma: cfr., supra, nota n. 4). É o que se deu com os juízes (artigo 93, VI), como já acentuado. Ocorre, porém, que nem o caput do artigo 40 da CRFB e tampouco o seu § 12 referem-se a "regime de aposentadoria" (= benefício), mas a "regime de previdência", que abrange, por definição, o custeio e o benefício. Assim, se para o benefício os regimes de equivaliam, para o custeio também haveriam de se equivaler ― o que significava atrair, para o serviço público, a imunidade do artigo 195, II, da CRFB.

Era em tudo acertada, portanto, a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal que reconhecia incidentalmente a inconstitucionalidade da contribuição dos servidores inativos, antes da EC n. 41/03, em vista do que dispõe o artigo 195, II, 2ª parte, da CRFB (que veicula regra de custeio, ínsita ao Regime Geral de Previdência Social), por entrever que a imunidade das aposentadorias e pensões concedidas pelo RGPS era extensível às aposentadorias e pensões públicas, ex vi do artigo 40, §12, da CRFB [12] (na redação da EC n. 20/98).

Dir-se-ia, agora, que a EC n. 41/03 revisou, nessa parte, a Constituição Federal. Realmente, assim o fez. Mas sem legitimidade, sem coerência e, mais, sem constitucionalidade de fundo. Sem legitimidade porque, quanto à Magistratura, essa matéria deveria ser tratada no Estatuto da Magistratura e não por remissão do artigo 93, VI, da CRFB, na redação da EC n. 20/98. Sem coerência, porque a Emenda não modificou o teor do artigo 195, II, 2ª parte, e tampouco o teor do artigo 40, §12, da CRFB, o que autoriza reproduzir a tese perfilhada pelo STF antes da EC n. 41/03, desde que se a entenda, nessa parte, inconstitucional. E sem constitucionalidade de fundo (material), porque as imunidades [13] são, a rigor, garantia individual do cidadão contribuinte, e como tal intocáveis ― assim como o são, em geral, todas as limitações ao poder de tributar arroladas no artigo 150 da CRFB (como, e.g., os princípios jurídico-constitucionais de tributação). Nesse último sentido, já decidiu o Excelso Pretório:

admitir que a União, no exercício de sua competência residual, pudesse excepcionar a aplicação desta garantia individual do contribuinte, implica em conceder ao ente tributante poder que o constituinte expressamente lhe subtraiu ao vedar a deliberação de proposta de emenda à constituição tendente a abolir os direitos e garantias individuais constitucionalmente assegurados [14].

No mesmo contexto, qualquer alteração "in pejus" da condição de imunidade conferida às aposentadorias e pensões de trabalhadores do setor privado e do setor público (por equiparação ¾ artigo 40, §12) importará em modificação tendente a abolir uma garantia individual da pessoa, sendo inconstitucional por desconhecer a vedação do artigo 60, §4º, IV, da CRFB. De conseguinte, é inconstitucional o artigo 5º, caput, da PEC 40/03, por ferir de morte a imunidade que a Constituição Federal outorga às aposentadorias e pensões, excluindo-as do regime de custeio, e que já está incorporada ao patrimônio jurídico dos servidores inativos e dos pensionistas, como também daqueles subsumidos à hipótese do artigo 3º, caput, da PEC 40/03.

E não é só. A taxação dos inativos está ainda eivada de inconstitucionalidade "na medida em que restabelece a cobrança de contribuição previdenciária aos inativos e pensionistas, mormente em relação àqueles que já estejam em gozo de benefícios correspondentes. A emenda implicará, por via oblíqua, violar a garantia da irredutibilidade de vencimentos (inciso XV do art. 37), que se estende aos proventos, por força da aplicação combinada do parágrafo 4º do art. 40, no caso dos servidores públicos, como também aos trabalhadores privados, à vista da irredutibilidade de salários (inciso VI do art. 7º), combinada com a regra contida no parágrafo 2º do art. 201 [rectius: §4º], que assegura a manutenção permanente do valor real dos benefícios" [15]. A propósito, a irredutibilidade de salários e o direito à manutenção permanente do valor real dos benefícios são indiscutívelmente direitos sociais e, nessa qualidade, estão igualmente sob o manto do artigo 60, §4º, IV, da CRFB [16].

Ao mais, e se já não bastasse, acresca-se que, "considerando o princípio da retributividade, a contribuição social dos servidores é sinalagmática; é paga justamente para que o pagante possa aposentar-se. Alcançada a aposentadoria, cessa a obrigação de contribuir. Esse caráter contraprestacional decorre do art. 149 da CF/88. A Constituição refere-se às contribuições cobradas dos servidores da ativa para custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social para a manutenção de suas futuras aposentadorias. Pois bem, que benefício terá o aposentado de uma contribuição que já não lhe permite mais nada, eis que já se aposentou? Nesse caso não seria contribuição, mas imposto velado, ou seja, a contribuição de aposentado não passaria de imposto especial sobre a renda dele em favor de terceiros" [17] ― que, esclareça-se, sequer poderia ser instituído, por ter base de cálculo própria do imposto do artigo 153, III, da CRFB (ut artigo 154, I).

Enfim, mais que inconstitucional, releva dizer que a taxação de inativos é sobretudo socialmente injusta, além de deletéria à própria estabibilidade da Ordem Social brasileira, pois

mesmo promovida a modificação constitucional, a imposição fiscal continuará sendo impropriedade lógica, distorção científica e equívoco político em matéria de Previdência Social. Trata-se, é fácil de ver, que tal medida legal ofende fundamento básico da técnica protética (a contribuição tem objetivo: custear prestações, totalmente ausente em relação aos jubilados), abrindo atalho para outras desnecessárias agressões à estrutura. [...] Redefinam-se as fontes de custeio [...] mas impor cotização de quem presumidamente já contribuiu é destituído de sentido, um contra-senso inaceitável, ignorância rematada, porque anarquiza a ordem social determinada pelos salários, e não é esse o papel do Estado. [...] Pretender [...] compensar isenção pretérita, quando o Estado generosamente dispensou essa contribuição, do ponto de vista exacional é absurdo. Daqui para a frente que só se cobre o necessário; a sociedade que errou no passado que pague por ele, até aprendermos a respeitar a técnica. [...] Pior que tudo [...] é a violação do princípio depois da porta arrombada; acolhido o precedente da ruptura, outras fortalezas da proteção social ficarão à mercê da incompetência gerencial, e adeus garantias constitucionais como a do caráter definitivo da concessão, manutenção do poder aquisitivo e a vitaliciedade do direito. Pior, a expectativa e o direito seguirão o mesmo caminho" [18].

Essa compreensão é, certamente, a mais justa e adequada, inclusive em função dos estudos atuariais realizados à época da PEC n. 40/03 pelas associações de classe.

Dessarte, a EC n. 41/03 fez mais que aniquilar direitos previdenciários historicamente conquistados. Suprimiu uma garantia individual dos cidadãos, a saber, a imunidade tributária dos proventos de aposentadoria no âmbito do serviço público. Tombam, por isso, as três primeiras razões alhures elencadas para a validade da taxação dos aposentados. E não seria a última ― a "retributividade solidária" ― a tornar a norma constitucional impositiva menos viciada ou deletéria. Oxalá a sociedade civil disso se aperceba a bom tempo, enquanto o tempo não colmata a ferida.

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Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Magistratura, previdência social e constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 713, 14 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6873. Acesso em: 25 abr. 2024.

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